sábado, 26 de fevereiro de 2011

sobre "O Retrato de Dorian Gray" (2/2)




sobre “O Retrato de Dorian Gray
(The Picture of Dorian Gray, 1890/91)
do poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900)
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Quando a Escrita simboliza o psiquismo narcisista


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É com a visita de Harry, a trazer a notícia do suicídio de Sibyl – a morte de Ophélia? - que Dorian entende a consequência de seu impulso de crueldade – bem próximo ao 'impulso de perversidade', descrito nos contos terror-psicológico de Edgar Allan Poe. Dorian é uma personagem complexa pois dividida entre o narcisismo (a Beleza em si-mesmo) e a auto-consciência (que o atormenta tal qual um Hamlet, um Faust, um Manfred)

Para Dorian, o retrato seria a marca da 'consciência', visible emblem of conscience, além de 'consciência' que poderia substituir o 'temor de Deus' que Dorian não tinha. Ele se culpa pela morte da jovem – mas o quanto isto é sincero? O quanto é autêntico? Quanto tempo dura o remorso?

Estes mergulhos no psiquismo – tão abundantes nas obras românticas e ultra-românticas – está presente nas obras 'simbolistas', em contraponto as preocupações objetivas e coletivas do Realismo, mas atento ao que está fora da personagem do que os volteios da vida psíquica – e ainda nem falemos de 'inconsciente', em plena gestão na obra freudiana!

Há algo aqui das personagens autoconscientes de tragédias shakespearianas – além de metalinguagem. O que é lido nos romances emociona, mas a realidade não! É justamente a ironia em “Northanger Abbey”, de Jane Austen. Acontece que Dorian – assim também Catherine Morlay – são protagonistas de obras literárias!
O que Lorde Henry pensa disso? “Frequentemente acontece que as tragédias reais da vida ocorrem em tal maneira nada artística que nos ferem com crua violência, e absoluta incoerência, em absurdo falta de significação, em completa falta de estilo. As tragédias reais nos afastem tanto quanto a vulgaridade.” (It often happens that the real tragedies of life occur in such an inartistic manner that they hurt us by their crude violence, their absolute incoherence, their absurd want of meaning, their entire lack of style. They affect us just as vulgarity affects us. p. 73, c.8)

Mas, realmente, Dorian sente a perda de Sibyl – agora a representar a morte - “Você me dizia que Sibyl Vane representava para você as heroínas do romance – que ela era Desdêmona numa noite, e Ophelia na outra; que se ela morria no papel de Julieta, ela ressuscitava no de Imogen.” “Ela nunca voltará à vida de novo”, murmurou o rapaz, com o rosto oculto nas mãos.”

"You said to me that Sibyl Vane represented to you all the heroines of romance – that she was Desdemona one night, and Ophelia the other; that if she died as Juliet, she came to life as Imogen."
"She will never come to life again now," muttered the lad, burying his face in his hands.
p. 75

E o quanto a conclusão da vida imitou a atuação artística, “Pobre Sibyl! Que romance foi tudo isso! Ela tão frequentemente imitava a morte no palco. Então a Morte a envolveu e carregou com ela. Como ela atuou na última cena? Terá ela me amaldiçoado, quando ela morreu?” (Poor Sibyl! What a romance it had all been! She had often mimicked death on the stage. Then Death himself had touched her and taken her with him. How had she played that dreadful last scene? Had she cursed him, as she died? p. 77)

Mas, em seguida, no Capítulo 9, com a visita de Basil, Dorian demonstra apatia, mesmo frieza, e até ironia, e parece citar trechos da 'filosofia' de Lorde Henry (Harry) Que se 'deve dominar as emoções' e não ser dominado...

“Apenas as pessoas frívolas demoram tempo para se livrar de uma emoção. Um homem que é dono de si-mesmo pode acabar com uma mágoa tão facilmente quanto inventar um novo tipo de prazer. Não quero ficar à mercê de minhas emoções. Quero usá-las, gozá-las, e dominá-las.”
[...] It is only shallow people who require years to get of an emotion. A man who is master of himself can end a sorrow as easily as he can invent a pleasure. I don't want to be at the mercy of my emotions. I want to use them, to enjoy them, and to dominate them. p. 79

O pintor então percebe o quanto Dorian mudou. Aquele que era o seu modelo ideal, a inspiração para a sua obra-prima! Agora, um jovem cínico e egocêntrico. Um jovem a destilar toda a filosofia do hedonista, “Todas as renúncias às quais os homens imprudentemente chamaram virtudes, tanto quanto aquelas revoltas naturais às quais os sábios ainda chamam pecados.” (“[...] those renunciations that men have unwisely called virtue, as much as those natural rebellions that wisemen still call sin.” p. 91)

Basil quer rever a própria obra – aquela que antes ele não deseja expor (pois seria SE expor!) Há qualquer coisa de 'íntimo' na obra – talvez a confissão do desejo de Basil. Um afeto homossexual? Ora, trata-se de uma obra simbolista – sugerir e nunca explicitar, eis uma das regras do estilo. (Inclusive as adaptações para o cinema sempre deixam a desejar quanto ao aspecto 'simbolista' – explicam, explicitam demais!) Porém, Dorian não permite ao pintor ver a própria obra!

Ao temer que vejam sua 'verdadeira alma', Dorian oculta o quadro no sótão. Ele passa a viver numa 'duplicidade' – a vida pública, de glamour e diversão, e uma vida íntima, inquieto quanto a 'confissão' que se revela no retrato. Ele passa a abafar sua angústia com prazeres e sensações estéticas, salões e exposições artísticas.

Ele recebe um livro, enviado por Lorde Henry, parece ser um livro simbolista francês (qual autor?) que passa a interessar o rapaz, como se a narrativa sobre a vida dele mesmo. Sim, um livro dentro do livro – o livro que fascina Dorian a ponto dele acreditar que lê a própria vida no livro!

Podemos 'rastrear aqui' a influência francesa no Autor. Aliás, uma 'rede de influências'! Se Oscar Wilde foi influenciado por Baudelaire e Gautier, lembrar que os franceses simbolistas foram influenciados por Edgar Allan Poe, após a tradução/divulgação de poemas do poeta e contista norte-americano feita pelo próprio Baudelaire.
Ao preocuparem-se com o irracionalismo – os lados sombrios da alma humana – os simbolistas voltam ao ultra-romantismo de um Byron, de um Shelley. Podemos então sugerir paralelos entre Dorian Gray-Wilde e Don Juan-Byron, na exaltação da individualidade, da busca de prazeres, na vida de aventuras.

Os estilos apresentam explorações sonoras (musicalidade, em assonâncias e aliterações), sinestesias, estados alterados de consciência, onde o mundo externo se apresenta tal qual sentido no psiquismo da personagem – aspecto que será ainda mais ressaltado no psicologismo de uma Virginia Woolf (e Clarice Lispector no Brasil) e no 'fluxo de consciência' extrapolado na obra de James Joyce.

Não estamos numa obra de realismo. Aqui importam os simbolismos. Não é científico que uma face num retrato envelheça. Mas, aqui, o retrato envelhece, a figura pintada se deforma, enquanto o tempo passa e Dorian se diverte sem limites e sem consequências, entorpecido no narcisismo, na auto-contemplação da própria beleza,

“e permanecia, com um espelho, diante do retrato que Basil Hallward havia pintado para ele, olhando agora a malévola e envelhecida face na tela, e então a bela face jovem que ria no vidro polido. A brutalidade do contraste atiçava o seu senso de prazer. Ele ficava cada vez mais enamorado da própria beleza, cada vez mais interessado na corrupção da própria alma. Ele examinaria com apurado cuidado, e às vezes com um monstruoso e terrível prazer, as rugas medonhas que marcavam a testa ou se insinuavam nos cantos dos lábios sensuais, a pensar às vezes no que seria mais horrível, os sinais do pecado ou os sinais do envelhecer.”
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[...] and stand, with a mirror, in front of the portrait that Basil Hallward had painted of him, looking now at the evil and aging face on the canvas, and now at the fair young face that laughed back at him from the polished glass. The very sharpness of the contrast used to quicken his sense of pleasure. He grew more and more enamoured of his own beauty, more and more interested in the corruption of his own soul. He would examine with minute care, and sometimes with a monstrous and terrible delight, the hideous lines that seared the wrinkling forehead or crawled around the heavy sensual mouth, wondering sometimes which were the more horrible, the signs of sin or the signs of age. [...] p. 93

Dorian segue a estética simbolista, a filosofia hedonista, o modo de vida dândi – a busca da beleza e do prazer, a elegância e as futilidades. Para ele as virutdes nascem do medo. “Têm sido loucas e voluntariosas renúncias, formas monstruosas de auto-tortura e auto-negação, que se originam do medo” (“there had been mad wilful rejections, monstrous forms of self-torture and self-denial, whose origin was fear, [...]” p. 95)(2)

E ele mantém, depois de orgias e bacanais, a mesma aparência aristocrática, impecável, como apenas um bom hipócrita é capaz. “seria nunca aceitar alguma teoria ou sistema que envolveria o sacrifício de algum tipo de experiência passional.” (“it was never to accept any theory or system that would involve the sacrifice of any mode of passionate experience.” p. 95)

Para Dorian não existia teorias sobre a existência que realmente tivesse alguma importância diante da própria existência – o importante não é pensar sobre a vida, mas viver. Ele então se entrega às pluralidades de sensações, ao interessar-se por perfumes, música, instrumentos musicais, pedras preciosas, bordados, tapeçarias, também ornamentos eclesiásticos.

Ele justifica a livre vazão aos impulsos instintivos como um 'novo Hedonismo', contra o ascetismo e diverso da libertinagem – porém, nada mais que uma reação ao moralismo e ao racionalismo da Era Vitoriana. Afinal, até eles mesmo reconhecem, o ser humano é um ser de paixões, em conflito com os deveres, em renúncias instintivas e aspirações idealistas, sem qualquer coerência – esta não passa de uma 'racionalização' após a paixão. Não somos seres racionais.

“Ele costumava questionar a superficial psicologia daqueles que concebiam o Ego do homem como algo simples, permanente, confiável, e de apenas uma essência. Para ele, o homem era um ser com miríades de vidas e miríades sensações, uma complexa criatura multiforme que abriga em si estranhos legados de pensamento e paixão, e cuja carne foi maculada com as monstruosa doenças dos mortos.”
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He used to wonder at the shallow psychology of those who conceive the Ego in man as a thing simple, permanent, reliable, and of one essence. To him, man was a being with myriad lives and myriad sensations, a complex multiform creature that bore within itself strange legacies of thought and passion, and whose very flesh was tainted with the monstrous maladies of the dead.” p. 104
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O capítulo 11 é um apanhado de recortes de filosofias da época, além de belas descrições e sinestesias... afinal, quer demonstrar a passagem do tempo...
http://en.wikisource.org/wiki/The_Picture_of_Dorian_Gray_(1891)/Chapter_11
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Mesmo sendo um 'romance de pensamento', como defendem alguns críticos, a obra de Wilde é um testemunho de época, no declinar da Era Vitoriana, no que esta tem de fugaz e de duradouro. É a mesma época na qual viveu Freud, e atraiu os olhares do atento psicólogo. Assim, Wilde registrou em literatura tudo aquilo que o pai da Psicanálise 'dissecou' nas duplicidades daquela 'civilização': a busca de prazeres freada pela repressão e o 'puritanismo', a gerar assim a hipocrisia, os vícios ocultados, o culto às aparências.

Dorian primeiramente resiste a corrupção da 'alma' retratada no quadro, depois começa a sentir um prazer sádico em assistir a deterioração da imagem retratada. Esta ''segmentação' do protagonista – o ser de carne e osso e o retrato – cria um clima sobrenatural, de atmosfera gótica, além de influências de Poe – por exemplo “O Retrato Oval” - onde é possível a conjunção do sinistro e do trágico, do lúgubre e do crime.

O crime não demora. É um dos passos da decadência de Dorian Gray. Assim o assassinato de Basil – a fúria homicida se apossa de Dorian – a lembrar os crimes de “O Gato Preto” e “O Coração Delator” - evidencia o seu 'impulso de perversidade' em plena ação. A cena tem toda uma ambiência gótica, noir, quando Dorian guia o pintor (que insiste em rever o retrato) até o sótão,

“Ele saiu da sala e começou a subir, Basil Hallward o seguia. Eles caminhavam levemente, do jeito que os homens fazem instintivamente durante a noite. A lanterna projetava sombras fantásticas nas paredes e na escada. Um vento soprava fazendo tremer alguma das janelas.
Quando eles chegaram lá encima, Dorian deixou a lanterna no chão, e pegando a chave, deu a volta na fechadura. “Você quer mesmo saber, Basil?” ele perguntou numa voz baixa.”
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He passed out of the room and began the ascent, Basil Hallward following close behind. They walked softly, as men do instinctively at night. The lamp cast fantastic shadows on the wall and staircase. A rising wind made some of the windows rattle.
When they reached the top landing, Dorian set the lamp down on the floor, and taking out the key, turned it in the lock. "You insist on knowing, Basil?" he asked in a low voice.
p. 113, c. 13
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A dubiedade : o bem e o mal dentro de cada um de nós (já tratamos sobre esta duplicidade SuperEgo – Id em nosso ensaio sobre “O Médico e o Monstro”) quando Dorian diz, sem hesitar, ao perplexo Basil diante do quadro deformado, “Cada um de nós tem dentro si o Céu e o Inferno” (“Each of us has Heaven and Hell in him” c. 13).

Pois Basil não acreditava na 'perversidade' do belo Dorian, uma vez que o pintor acreditava que “o pecado é coisa que se inscreve na face, não pode ser ocultado. Não existem vícios ocultos. Se alguém tem um vício, este se revela nas linhas dos lábios, no pender das pálpebras, no formato das mãos.” (Sin is a thing that writes itself across a man's face. It cannot be concealed. People talk sometimes of secret vices. There are no such things. If a wretched man has a vice, it shows itself in the lines of his mouth, the droop of his eyelids, the moulding of his hands even. c. 12)

O artista não podia aceitar que os 'boatos' sobre a luxúria de Dorian fosse realmente verdade. E morreu ao verificar que o belo Dorian tinha uma imagem' (ou 'alma') deveras 'deformada'! A 'imagem' interior de Dorian é bem pior do que diziam os boatos. A beleza exterior não passava de uma máscara.

Outra obra que me vem à mente : Doktor Faustus de Thomas Mann, onde posso comparar aspectos personais de Dorian com a frieza estética de um Adrian Leverkühn, entre a glória da Arte e a perdição da Consciência.

Assim, somente no dia seguinte, Dorian parece tomar consciência do crime que cometeu. O cadáver de Basil quebra a 'beleza' que Dorian ainda anseia. “Gradualmente os fatos da noite anterior rastejou com passos silentes e sangrentos na sua mente e reconstruíram-se lá com terrível nitidez. Ele estremeceu ao lembrar-se de tudo o que tinha sofrido, e o momento em que o mesmo curioso sentimento de aversão por Basil Hallward que tinha feito com que ele o matasse quando ele se sentava na cadeira de costas para ele, e ele continuava frio de qualquer emoção. O morto estava ainda sentado lá, e agora já era dia. Quão horrível tudo isso! Tais coisas horrendas feitas para a escuridão, não em pleno dia.”
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Gradually the events of the preceding night crept with silent, blood-stained feet into his brain and reconstructed themselves there with terrible distinctness. He winced at the memory of all that he had suffered, and for a moment the same curious feeling of loathing for Basil Hallward that had made him kill him as he sat in the chair came back to him, and he grew cold with passion. The dead man was still sitting there, too, and in the sunlight now. How horrible that was! Such hideous things were for the darkness, not for the day. p. 118, c. 14
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Após o crime, Dorian precisa de álibi e de um cúmplice. Alguém precisa limpar o cenário do homicídio. O colega de outros momentos de luxúrias, um tal Alan Campbell é aqui o cientista que oculta o cadáver e limpa as marcas do crime. É como se simbolizasse o lado sombrio da ciência – vide Frankenstein de Mary Shelley – com suas práticas de assepsia e dissecação.

Nos capítulos seguintes, assistimos ao apogeu da vida libertina de Dorian, o consequente uso do narcótico para entorpecer a Culpa – eis a recompensa para quem ousa desafiar a Moral, esta seria uma leitura moralista, sem dúvida. Mas há outro detalhe: algo de romance policial noir. Quem comete crimes, deve ser punido. Em algum momento, o passado golpeia de volta e será a hora de pagar pelos crimes!

O irmão de Sibyl, James Vane reaparece – decide caçar o “Prince Charming” (Príncipe Encantado) que destruiu a vida da jovem atriz. Mas Dorian se salva ao mostrar sua permanente face jovem e singela – ele foi salvo pela 'máscara de juventude' (“mask of youth”)

No capítulo 16 temos descrições da paisagem soturna de London na era vitoriana – semelhantes àquelas da Paris de Baudelaire – onde um atmosfera densa, de vapores, de névoa, pesa sobre os cidadãos, em busca de prazeres nos antros de ópio, nas garrafas de bebidas, nos recantos do 'submundo'. Mas que não se espere descrições 'realistas', aqui trata-se de uma 'paisagem' urbana filtrada pela hipersensibilidade de Dorian Gray,

“Uma chuva fria começava a cair, e os embaçados lampiões das ruas pareciam espectrais na névoa úmida. As casas-públicas agora fechadas, e homens e mulheres indistintos se aglomeravam em grupos dispersos ao redor das portas. De algum bar vinha o som de uma horrível risada. Em outros bares, bêbados brigavam e gritavam.
[...]
A lua pendia no céu tal qual uma caveira amarela. De tempo em tempo uma imensa nuvem deformada estendia um longo braço e a ocultava. Os lampiões a gás se enfraqueciam, e as ruas eram mais estreitas e sombrias. Certa vez o homem perdera o rumo e teve que voltar uma meia milha. Um vapor subia da casa quando o [fiacre] borrifava as poças de lama. As janelas laterais do fiacre estavam embaçadas com uma névoa acinzentada.”
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A cold rain began to fall, and the blurred street-lamps looked ghastly in the dripping mist. The public-houses were just closing, and dim men and women were clustering in broken groups round their doors. From some of the bars came the sound of horrible laughter. In others, drunkards brawled and screamed.
[...]
The moon hung low in the sky like a yellow skull. From time to time a huge misshapen cloud stretched a long arm across and hid it. The gas-lamps grew fewer, and the streets more narrow and gloomy. Once the man lost his way and had to drive back half a mile. A steam rose from the horse as it splashed up the puddles. The sidewindows of the hansom were clogged with a grey-flannel mist
. p. 135
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Dorian é jovem herdeiro aristocrata que desperdiça sua fortuna em prazeres, muitas vezes no mundo das drogas, das prostitutas pobres. Seria hoje em dia o caso de um rico playboy que vai aos prostíbulos dos subúrbios ou vai até a favela buscar drogas... Nestes antros de ópio, Dorian encontra Adrian Singleton, outro viciado, outro jovem perdido.

Não se trata de uma obra realista, sabemos. Todo o Simbolismo se assemelha a uma 'reação' ao cientificismo, ao racionalismo, ao materialismo do Realismo enquanto estilo literário nos meados do século 19. Explicitamente, Lorde Henry (Harry) se declara contra o realismo, “odeio o realismo vulgar na literatura” (“I hate vulgar realism in literature”). O Narrador compartilha o desprezo pelo realismo – nunca pretende 'espelhar' o mundo tal como é – se isso é mesmo possível.

O olhar é sempre guiado pela hipersensibilidade de Dorian – atormentado entre desejo e culpa – logo abemos que estamos diante (e dentro!) de uma obra simbolista. Trata-se aqui não da realidade, mas de um psicologismo sombrio diante da realidade – qual é o olho que vê o mundo? Aqui o olhar é carregado de decadentismo, ceticismo, auto-ironia.

Quando a face de James Vane aparece diante de Dorian, nos perguntamos (tanto quanto o protagonista): alucinação? O Complexo de culpa de Dorian está a materializar espectros? Não! É realmente o anjo vingador, o irmão da bela e falecida Sybil Vane, que segue em caçada ao jovem hedonista – mas ironicamente, o vingador morre em plena caçada na propriedade de um nobre.

A culpa gera uma mania de perseguição, uma paranóia, que inquieta o jovem hedonista. A vida não é tão 'divertida'. Diante da 'materialização' de seu 'complexo de culpa' que por pouco não realizou a vingança, Dorian evidencia sua dubiedade em tentativas de 'regeneração': evita seduzir uma mocinha camponesa. Espera dar provas de sua 'correção' moral. Ainda que sofra com os irônicos epigramas de Lorde Henry. (Não era Dorian que dizia buscar prazer, e não felicidade? Por que limitar agora seus prazeres?)

Nesta 'contenção' dos desejos – as auto-renúncias instintivas – há toda uma crítica a civilização / cultura que cria o complexo de culpa quando o indivíduo quer apenas 'curtir a vida', quer se entorpecer de prazer – e o trabalho (ou o 'dever') é contra o instinto de prazer. 'Não o que queres – mas o que deves', eis o peso da Moral. (2)

Crítica evidente nos escritos de Nietzsche (toda a obra) e de Freud (vejam mais sobre o princípio de prazer e o princípio de realidade, principalmente nas obras “Além do Princípio do Prazer” e “Mal-Estar na Civilização” (1930)) (2)
Uma cena belíssima – que os filmes suprimem, mais preocupados com uma imagem caricata, pouco propícia aos 'mergulhos psicológicos', quando os diretores esquecem que trata-se de uma obra simbolista – na qual Dorian toca piano para Lorde Henry Wotton, que não se cansa de elogiar e bajular a beleza e fineza do jovem – sempre jovem! - Dorian Gray. Invejado pelos outros rapazes, desejado pelas moças, admirado pelas madames, mas nunca desprezado igual a Harry, mais envelhecido e cínico.

Harry sempre a elogiar a juventude – agora que a perdeu em definitivo! - e a procurar o convívio com os jovens,

“Você tem mudado, claro, mas não em aparência. Gostaria que você me dissesse qual o seu segredo. Para voltar a ser jovem, eu daria tudo o que há no mundo, exceto fazer exercício, ou levantar cedo, ou ser respeitável. Juventude! Nada há igual a isto! É um absurdo falar sobre a ignorância da juventude. As únicas pessoas cujas opiniões eu ouço hoje em dia em relação a qualquer coisa são de pessoas mais jovens do que eu. Elas parecem estar a minha frente. A vida tem revelado a elas as recentes maravilhas.”
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You have changed, of course, but not in appearance. I wish you would tell me your secret. To get back my youth I would do anything in the world, except take exercise, get up early, or be respectable. Youth! There is nothing like it. It's absurd to talk of the ignorance of youth. The only people to whose opinions I listen now with any respect are people much younger than myself. They seem in front of me. Life has revealed to them her latest wonder. p. 159, c. 19
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Quanto ao desaparecimento do pintor Basil Hallward nada há de certo. Fugiu? Foi sequestrado? Foi assassinado? Harry de anda desconfia. E se Dorian resolvesse confessar? Ninguém acreditaria. Muito menos Harry! Para o nobre cínico, o crime é coisa de pessoas vulgares. “Todo crime é vulgar, justamente como toda vulgaridade é crime. Não é próprio de você, Dorian, cometer um homicídio. Lamento se vou magoar a sua vaidade ao dizer isso, mas tenho certeza. Crime é coisa das classes baixas.” (All crime is vulgar, just as all vulgarity is crime. It is not in you, Dorian, to commit a murder. I am sorry if I hurt your vanity by saying so, but I assure you it is true. Crime belongs exclusively to the lower orders. p. 157)

Não é possível que um 'ato vulgar' venha a manchar a 'perfeição' apolínea do sempre jovem Mister Gray. Harry muito menos lamenta a morte do pintor – que ele julga um artista inferior – aliás, nada fez de memorável após a obra-prima: o retrato de Dorian Gray. Aliás, Harry adoraria comprar o sensasional quadro! Por que será que Dorian insiste em manter 'oculta' a obra magistral?

A beleza jovem de Dorian é um mistério para Harry – como o jovem conseguiu esta façanha? Ele, Dorian, é uma obra-prima em si-mesmo, não precisa ser artista. Ele vale em si-mesmo tanto quanto uma escultura, um poema, uma pintura!

“Gostaria muito de trocar de lugar com você, Dorian. O mundo clamou contra nós dois, mas sempre tem te adorado. Vai sempre te adorar. Você é o tipo que a época procura, e tem medo de encontrar. Alegra-me muito que você não tenha feito algo, nunca esculpido uma estátua, ou pintado um quadro, ou produzido algo além de si-mesmo! A vida tem sido a sua arte. Você fez música consigo mesmo. Seus próprios dias de existência são os seus sonetos.”
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I wish I could change places with you, Dorian. The world has cried out against us both, but it has always worshipped you. It always will worship you. You are the type of what the age is searching for, and what it is afraid it has found. I am so glad that you have never done anything, never carved a statue, or painted a picture, or produced anything outside of yourself! Life has been your art. You have set yourself to music. Your days are your sonnets. p. 160
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Assim, nada há que possa incriminar Dorian – eis o crime perfeito! Mas há uma coisa – a CULPA – que não permite que o jovem possa usufruir a vida de prazeres sem consequência. Esta Culpa leva Dorian a pensar sobre o estado de sua 'alma'. Que beleza terá sobrado? Afinal, o terror do 'deformado' quadro volta com a força de uma náusea.

Dorian volta pra casa e decide ver se o quadro registra seu remorso, sua vontade de 'mudar', de deixar a vida de libertinagens. Afinal, ele até evitou seduzir aquela mocinha camponesa... Mas a imagem no quadro somente exibe a face de um grande hipócrita. Dorian não poderá se 'redimir', tem as mãos sujas de sangue. Não poderá culpar as 'más influências', os 'livros imorais', o 'espírito da época' – afinal, toda a sua perversidade brotou de um obsessivo narcisismo dentro dele mesmo. É inútil apontar culpados além.

Tomado de fúria e indignação, Dorian levanta um punhal (o mesmo que feriu e matou o pintor Basil) contra o quadro. E assim vem ele mesmo a cair, prostrado, apunhalado. A pintura volta à perfeição primordial. Quanto ao corpo, subitamente envelhecido, este só é reconhecido pelos anéis.

jan/fev/11
Notas

(1)Dorian Gray não é um livro filosófico, por mais que aborde questões de Estética e Moral. Exige-se alguns aprofundamentos. Dois autores que trataram sobre estes temas são Nietzsche e Sartre.
(2)Crítica evidente nos escritos de Nietzsche (toda a obra) e de Freud (vejam mais sobre o princípio de prazer e o princípio de realidade, além da 'renúncia instintiva', principalmente nas obras “Além do Princípio do Prazer” e “Mal-Estar na Civilização” (1930))
links
http://www.ebah.com.br/sigmund-freud-o-mal-estar-na-civilizacao-pdf-pdf-a3586.html
http://www.espacoacademico.com.br/026/26tc_freud.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Civilization_and_Its_Discontents
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Assim como é possível relacionar “Ego e Id” com “O Médico e o Monstro”; ou “Das Unheimliche” com os contos de Hoffmann e Poe; ou “Luto e Melancolia” com “Dracula”, aqui, no romance de Oscar Wilde, temos a visão literária do 'princípio do prazer' que egoisticamente persegue a auto-satisfação sem preocupar-se com imperativos coletivos, sociais.
Além da obra freudiana, podemos apontar alguns paralelos com obras de Shakespeare e Goethe.
Em comparação com os dramas de Shakespeare, temos Dorian enquanto um Hamlet, e Harry enquanto um Falstaff, e Sibyl seria uma fusão de várias heroínas, principalmente Julieta e Ophélia – sem que Dorian seja Romeu. Sibyl encarna o ideal romântico do 'morrer de amor'...

Ainda, a figura de James Vane seria próxima a de Laerte que pretende vingar a morte da irmã Ophélia (em Hamlet)

E se lembrarmos da obra-prima de Goethe, “Faust”, Dorian em relação a Fausto, enquanto Harry seria Mephisto e Sibyl uma proto-Margarete. Pois, Sibyl não recebe uma atenção mais profunda por parte do Autor Wilde, tanto quanto Margarete é central na obra alemã.
REFERÊNCIAS

WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. New York: Dover Publications, 1993.
The Picture of Dorian Gray
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Um comentário:

  1. "O Narrador compartilha o desprezo pelo realismo – nunca pretende 'espelhar' o mundo tal como é – se isso é mesmo possível."
    É verdade. Mas o escritor, aqui, se diferencia do narrador, já que Wilde adorava Balzac e disse que um dos momentos mais tristes de sua vida foi a morte de Lucien de Rubempré (Illusions Perdues)
    Curioso, como sempre são as relações entre escritor e narrador que têm opiniões semelhantes mas não iguais.
    Abraços

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