segunda-feira, 22 de julho de 2013

sobre O Estranho / O Estrangeiro / p2 - A. Camus


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Sobre O Estrangeiro / O Estranho (L’étranger, 1957)
do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960)


A literatura ousa explicitar o estranhamento

 
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P2


Na segunda parte de O Estranho / O Estrangeiro encontramos maior evidência do embate sujeito versus mundo, ou engrenagem versus máquina, pois após o crime, ao ter assassinado o árabe, de modo gratuito, o protagonista Meursault, também o narrador, percebe o quanto está sob os olhares dos que julgam, o quanto está exposto, em todas as suas ações, e como será condenado por mais que se esforce. Na verdade, ele não se esforça, nem se defende.

Meursault é submetido a vários interrogatórios, sofre com o rigor e o desrespeito da polícia, é julgado pelos concidadãos, é avaliado por colegas de escritório, por conhecidos, em suma, está sob os olhares. Não é mais um anônimo na multidão, mas um criminoso a ser condenado. Ao se sentar no banco dos réus já é um condenado por antecipação.

O próprio Meursault se vê condenado, lembra sempre que matou um homem, que perdeu sua condição de homem livre. Não será mais visto como um homem comum, cumpridor dos deus deveres, mas na condição de criminoso, e toda a sua vida anterior será contemplada a partir deste crime. Ele levou uma vida normal até o crime, mas é após o crime que sua vida será avaliada – como a vida de um criminoso! Assim sua vida será investigada e julgada.

Há todo um ritual do advogado, todo um ritual do juiz, todo um ritual do sacerdote – tudo é ritualizado nas teias da justiça humana. E o criminoso, o futuro condenado, deve seguir todos os rituais, todo o protocolo. O fato de Meursault não seguir o comportamento protocolar o prejudica ainda mais – ainda mais do que não cuidar de sua mãe, não guardar luto, não se afastar de certos mulherengos, não ser amigável com os vizinhos. Não seguir o protocolo judicial é ainda pior.

Não se arrepender dos 'pecados' é ainda pior – na visão do sacerdote que deseja salvar almas. Meursautl deve ser salvo – mesmo que ele não queira – pois assim terá sentido sua vida absurda. Assim o protagonista precisa se explicar para a justiça humana e para a justiça divina. Relatar tudo novamente, “Raymond, a praia, o banho, a briga, ainda a praia, a pequena fonte, o sol e os cinco tiros de revólver” (“Raymond, la plage, le bain, la querelle, encore la plage, la petite source, le soleil et les cinques coups de revolver.” p. 105) até a exaustão, de fadiga ou de justificação.

Qual a causa do crime? Eis o que intriga aos figurões da justiça. Será o sol abrasante uma justificativa suficiente? O ambiente hostil legitima a hostilidade do ser humano? A carência externa causando a carência interna? A causa será a ausência de Deus? Será a indiferença religiosa do protagonista-criminoso? Indiferença que para os juízes é justamente descrença e impenitência, como bem se expressa o juiz de instrução, ao apontar um crucifixo na parede,

Em seguida , ele olhou-me atentamente e com um pouco de tristeza. Ele murmurou: 'Jamais vi uma alma tão impenitente quanto a vossa. Os criminosos que chegam diante de mim sempre choram diante desta imagem da dor.' Eu responderia que era justamente porque eles agiam como criminosos. Mas pensei que eu também era igual a eles.” (“Ensuite, il m'a regardé attentivement et avec un peu de tristesse. Il a murmuré: 'Je n'ai jamais vu d'âme aussi endurcie que la vôtre. Les criminels qui sont venus devant moi ont toujours pleuré devant cette image de la douleur.' J'allais répondre que c'était justement parce qu'il s'agissent de criminels. Mais j'ai pensé que moi aussi j'étais comme eux.” p. 109)


De tanto ser apontado como criminoso, o protagonista passa a se ver como um criminoso. Antes ele era um cidadão qualquer, nas ruas, no trabalho, na vida rotineira, agora é um cruel assassino, pois assim é julgado. O crime passa a ser o sentido de sua vida. As pessoas agora podem dizer: Ele, o sujeito estranho, só podia mesmo ser um homicida, um assassino cruel. Como se toda a vida fosse uma preparação para o crime. É assim: Meursault, o ateu, o anticristo, nasceu para cometer o crime e ser condenado.

De início a dificuldade da detenção, pois deixa-se de ser um 'homem livre', quando se passa a ter pensamentos de detido, de confinado. É uma prisão mais explícita que a rotina, com barras de ferro e grades, não apenas cargos e horários,

No início de minha prisão, assim, o que foi mais difícil, é que eu tinha só pensamentos de homem livre. Por exemplo, uma vontade me tomava de estar na praia e de descer até o mar. A imaginar o som das primeiras ondas sob a sola dos pés, a entrada do corpo na água e a libertação que eu encontraria, sentia tudo subitamente como os muros da prisão estavam próximos. Mas não dura mais que uns meses. Em seguida, eu tinha só pensamentos de prisioneiro. […] eu estava pouco a pouco habituado. […] Aliás, era uma ideia de mamãe, que ela sempre repetia, que se acaba por se habituar a tudo.” (“Au début de ma détention, pourtant, ce qui a été le plus dur, c'est que j'avais des pensées d'homme libre. Par exemple, l'envie me prenait d'être sur une plage et de descendre vers la mer. A imaginer le bruit des premiéres vagues sous la plante de mes pieds, l'entrée du corps dans l'eau et la délivrance que j'y trouvais, je sentais tout d'un coup combien les murs de ma prison étaient rapprochés. Mais cela dura quelques mois. Ensuite, je n'avais que des pensées de prisonnier. […] je m'y serais peu à peu habitué. […] C'était d'ailleurs une idée de maman, et elle le répétait souvent, qu'on finissait par s'habituer à tout.” pp. 119-120)

Como tudo é uma questão de hábito, o protagonista se entrega à rotina da prisão. Enquanto isso, continua em suas impressões e esclarecimentos – a própria narrativa – como uma expressão de sua pálida revolta. E inútil defesa, que ele não despeja no tribunal. E em sua rotina, recebe carta (e a visita) da amante, visitas do advogado, entrevistas com o juiz, pregações do sacerdote, em suma, ele se integra como engrenagem da máquina. Somente a sua consciência e sua narrativa possibilitam o deslocamento, o distanciamento, ou o estranhamento, que vem agir sobre o protagonista e os leitores.

Se na obra do russo Dostoiévski, Crime e Castigo, o protagonista pensa no crime e na culpa antes de se entregar à punição, aqui Meursault tem tempo suficiente para pensar em sua condenação. Nada sabemos sobre o processo, a investigação, ou se ele se entregou à justiça. Não é essa a questão aqui, mas o drama psicológico do narrador, entre os aprisionados e os que julgam. Temos um condenado diante daqueles que são pagos para julgar. O juiz que se julga acima, acima dos crimes, que exige o arrependimento moral do acusado.

Enquanto a sentença não vem, o pesadelo do prisioneiro consiste em 'matar o tempo', isto é, como passar tanto tempo ali preso, sem nada fazer, a olhar para as grades? Como ocupar o tempo? Como evitar uma apatia mental devastadora do ânimo e do intelecto? Aqui, Meursault se permite rememorar, relembrar o tempo passado, todo o vivenciado, em mínimos detalhes. Assim encontra uma forma de 'preencher' o tempo.

Exceto por estes aborrecimentos, não estava mais tão desgraçado. Toda a questão, ainda uma vez, era a de matar o tempo. Acabei por não mais me entediar a partir do momento em que me dediquei a relembrar. […] Assim, quanto mais eu refletia e mais coisas desconhecidas e esquecidas eu tirava da minha memória. Entendi então que um homem que tivesse vivido um só dia poderia viver cem anos numa prisão. Teria lembranças o bastante para não se entediar. Num certo sentido, era uma vantagem.” (“A part ces ennuis, je n'étais pas trop malheureux. Toute la question, encore une fois, était de tuer le temps. J'ai fini par ne plus m'ennuyer du tout a partir de l'instant où j'ai appris à me souvenir. […] Ainsi, plus je réfléchissais et plus de choses méconnues et oubliées je sortais de ma mémoire. J'ai compris alors qu'un homme qui n'aurait vécu qu'un seul jour pourrait sans peine vivre cent ans dans une prison. Il aurait assez de souvenirs pour ne pas s'ennuyer. Dans un sens, c'était un avantage.” pp. 122-123)


No julgamento, Meursault volta ao seu natural estado de apatia, deslocado e estranho ao ambiente, ao ritual. Ali estão os figurantes do drama: o juiz, os advogados, o promotor, os jurados, a plateia, os jornalistas, enfim todos para o ritual do julgamento, o processo montado para se condenar um homem. Ele teve tempo suficiente para pensar em crime e culpa, assim já está distanciado dos acontecimentos – que ele narra como uma estória lida. (Igual a história trágica do novo rico tcheco assassinado por parentes. Caso este encontrado numa tira de jornal sob o colchão. Ele confessa ter lido 'mil vezes' este drama. Tanto que começa a situar entre o verídico e o provável, entre o factual e o fictício.)

Todos me olhavam: percebi que eram os jurados. Mas não posso dizer que podia distingui-los uns dos outros. Eu não tinha mais que uma impressão: a de que estava diante de um banco de bonde e todos estes viajantes anônimos espiavam aquele que embarcava para notar algum ridículo. Eu sabia bem que era uma ideia idiota pois que não era um ato ridículo que queriam achar, mas o crime. No entanto a diferença não era tão grande e em todo caso está foi a ideia que me ocorreu.” (“Tous me regardaient: j'ai compris que c'étaient les jurés. Mais je ne peux pas dire ce qui les distinguait les uns des autres. Je n'ai eu qu'une impression: j'étais devant une banquette de tramway et tous ces voyageurs anonymes épiaient le nouvel arrivant pour en apercevoir les ridicules. Je sais bien que c'était une idée niaise puisque ici ce n'était pas le ridicule qu'ils cherchaient, mais le crime. Cependant la différence n'est pas grande et c'est en tout cas l'idée qui m'est venue.” p. 129)


Diante dos olhares dos concidadãos, o réu adquire uma identidade, ou aceita-a, a de um criminoso. Ele precisa se explicar e se justificar, ou seja, se defender. Acusar o árabe, alegar legítima defesa, denunciar o gigolô interesseiro. Mas ele se deixa em sua apatia, vendo tudo com deslocamento, sentindo-se um estranho. Ou como se assistisse o julgamento de outro réu. Pois tudo já está em processo: os advogados criam uma defesa, a imprensa cria um monstro, um cruel assassino, enquanto os sacerdotes julgam moralmente o ateu e anticristo. Como pode ele se defender se já está condenado pelos outros? Tudo o que disser será usado contra ele. Todas as suas ações apontam para o seu crime. Como se ele tivesse tudo premeditado! Todas as pessoas de sua vida agora observam-no como o criminoso. Ele, um cidadão tão apagado, agora pelo menos fez algo, reprovável, é verdade, mas fez algo, e será assim rotulado: assassino. É ele refém das impressões alheias, não tem controle sobre sua imagem pública.

Perguntas são feitas, sobre sua vida, seu passado, seus relacionamentos, a perda da mãe, sua amante conquistada logo em enlutamento, sua indiferença interpretada como misantropia própria de um 'monstro moral', tudo investigado e exposto, para os olhares da plateia e para o delírio dos jornais. Enquanto isso o estranho Meursault se sente estrangeiro no próprio julgamento! Assim como os outros são estranhos à sua vida – então como podem julgá-lo? O que tem enquanto ligação a sua relação com a mãe e a premeditação de um crime? Será o Sr. Meursault um ser sem sentimentos? Um psicopata à solta?

Todos os atos anteriores são usados para julgá-lo, como uma premeditação do crime. Sua apatia no velório, o fato de fumar, a insensibilidade, os lugares onde frequenta, a solidão onde se resguarda, a inoportuna conquista sexual, um filme qualquer visto no cinema, a escolha de um amigo com ações suspeitas, tudo configura o curriculum vitae de um criminoso! Ou seja, não há escapatória: tudo é interpretado sob a perspectiva do crime – logo tudo leva ao crime! É muito simples julgar estando fora da ação, assim como é complexo o julgar sendo o autor da ação.

Premeditado ou mero acaso? Eis uma questão que define o crime. Os juízes não acreditam em acaso, logo é como se Meursault fosse responsável pela amizade com Raymond, o homem de 'moralidade duvidosa', e responsável pela escrita da carta, e responsável pela visita à casa de praia, e responsável pela briga e por andar armado, e responsável por apertar o gatilho. Responsável pela morte da mãe, pela amante, pelo filme cômico, pelo banho de mar, pelo passeio na praia, pelos golpes, em suma, pelo assassinato. Não há um caminho de acasos até o crime, mas responsabilidade, assim julga o promotor. É tão culpado pela morte da mãe quanto pela morte do árabe. Afinal, é o mesmo 'coração criminoso'.

Com tanta pressão, tanto ódio popular, sendo tão detestado, o narrador começa mesmo a se sentir culpado, começa a internalizar sua identidade de 'monstro moral'. Ele se sente estrangeiro ao julgamento que o condena, tudo acontece sem ele, à revelia, quando falam em nome dele, quando o representam, quando o acusam e o defendem, sua voz raramente é ouvida, e quando ele fala, se explica sobre a angústia do sol abrasante, todos não hesitam em rir em aberta zombaria. Como pode o sol levar ao crime? Como pode ele não sentir remorsos? Como pode viver tão à superfície?


Ele não tem remorsos de coisa alguma, pois não se liga ao quer que seja, sempre sem afeto ou sem engajamento. É o que ele deseja explicar ao afetado promotor que o acusa retoricamente de ser um 'monstro moral' incapaz de se arrepender, “Eu não lamentaria muito o meu ato. Mas tanta obstinação me surpreendia. Gostaria de tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeto, que eu jamais tinha me arrependido realmente de alguma coisa.” (“Je ne regrettais pas beaucoup mon acte. Mais tant d'acharnement m'étonnait. J'aurais voulu essayer de lui expliquer cordialement, presque avec affection, que je n'avais jamais pu regretter vraiment quelque chose.” pp. 154-155)

No final temos um adensamento mais filosófico, ou até teológico, com o embate entre Meursault e o sacerdote, quando o protagonista já se sabe condenado, diante da morte iminente, o fim de sua angústia de preso e culpado. Houve o julgamento e a condenação e ele só pode aceitar sua condição. Quer agora ser consolado pelo padre? Confessará para alcançar a salvação de sua alma? Ele está distante de piedade ou constrição, mais preocupado com o mecanismo que vem moendo sua identidade e rotina. Como pode ele escapar ao seu destino? Vive um momento absurdo, onde é inútil qualquer defesa pois desde o início estava condenado.

Deitado, passo as mãos sob a cabeça e espero. Não sei quantas vezes eu me perguntei se havia exemplos de condenados à morte que tivessem escapado ao mecanismo implacável, desaparecido antes da execução, rompido os isolamentos dos agentes.” (“Couché, je passe les mains sous ma tête et j'attends. Je ne sais combien de fois je me suis demandé s'il y avait des exemples de condamnés à mort qui eussent échappé au mécanisme implacable, disparu avant l'exécution, rompu les cordons d'agents.” p. 165)

É difícil aceitar a condenação, uma sentença assinada por terceiros, segundo interpretações de terceiros. Ao narrar sua condição presente, ele tece considerações sobre o passado, é quando podemos conhecê-lo melhor, sua relação com a mãe (pois o pai ele não conheceu), seu desenvolvimento, suas lembranças, ainda que deslocadas, ou mesmo desfocadas, pois ele não narra aqui uma autobiografia, no máximo uma autojustificação.

Ciente que a morte pode chegar a qualquer momento, que o cadafalso ou a guilhotina haverão de selar a absurda existência, o narrador só tem mesmo está narrativa – não sabemos se escrita ou a se desenrolar em sua mente - para desabafar sua angústia – a consciência da morte. É inevitável quando a condenação faz cessar uma vida ainda jovem. (Mas em nenhum momento ele pensa no árabe gratuitamente assassinado...) Muitos viverão, muitos nascerão, mas sua consciência vai se extinguir em breve.

É deste momento que o sacerdote se aproveita para rogar pela 'salvação da alma' do condenado. É preciso um profundo arrependimento para que a alma possa alcançar a redenção. Mas Meursault recusa qualquer consolo e desconhece qualquer constrição. Ele sabe que a pregação do religioso somente tem efeito sobre o homem desesperado. Fala em crença e provação, acusa o desvio e a perdição, num discurso já demasiadamente conhecido. Como pode um impenitente conviver consigo mesmo, se sabe que a morte o espera? Não entende que o condenado nega o próprio processo (ao qual não compreende, assim como o Joseph K. protagonista da obra de Franz Kafka) que o vitimou.

link para meu ensaio sobre O Processo


Ao condenado, agora um homem revoltado (o 'homme revolté' é figura marcante na obra do revoltado Albert Camus, escritor em desassossego), o padre vem falar em esperança! Vem falar em vida eterna! Ao homem que perdeu tudo (se é que alguma vez teve algo...) o sacerdote vem falar em vida após a morte. Condenado na justiça dos homens está o estranho protagonista, mas desejará ele ser absolvido na justiça divina? Para o padre, a verdadeira condenação não é a humana, mas a divina. “Segundo ele, a justiça dos homens nada era e a justiça de Deus era tudo. Eu observei que a primeira havia me condenado. Ele me respondeu que ela não havia, por outro lado, lavado o meu pecado.” (“Selon lui, la justice des hommes n'était rien et la justice de Dieu tout. J'ai remarqué que c'était la premiére qui m'avait condamné. Il m'a répondu qu'elle n'avait pas, pour autant, lavé mon péché.” p. 179)

Ao condenado nada aborrece mais que a presença de um sacerdote com suas frases feitas e crenças ancestrais. Falando em esperança e salvação somente consegue irritar aquele que aguarda a chegada da morte, para aquele que tem pouco tempo. Aqui se configura um duelo entre a crença e a descrença, sob a óptica do descrente, que não suporta mais as tentativas de consolo. O homem revoltado encara o absurdo do viver e do morrer e sem buscar consolos em crenças ou ideologias. Ele está só em sua condição e saberá morrer sozinho.

Mas a descrença do condenado incomoda a crença do sacerdote, que precisa da fé para dar sentido à existência. Para o crente é uma tragédia a vida ser um absurdo – pois tudo deve existir para a glória de Deus. Tanto o crime quando o arrependimento são para a excelsa glória divina. Tanto o santo como o criminoso existem para a maior glória do Altíssimo. A atitude paternalista do sacerdote visa abrandar os ânimos do infiel para que este retorne ao rebanho dos redimidos. Mais para provar a própria fé do que para realmente converter o outro.

Meursault não tem outra certeza do que a própria finitude. Há uma ordem judicial para executá-la. Assim como ele tirou a vida alheia, sua vida será tirada. Agora vem um padre falar em redenção? Mais um julgamento sob o trono divino? Um homem que não tem mais amanhã, deve agora acreditar numa vida eterna? Deve crer no privilégio de viver além da morte? O narrador usa mesmo esta palavra 'privilégio', pois lembra que uns são privilegiados, enquanto outros são simplesmente condenados. Como pode um privilegiado aparecer com lições de moral para um condenado? Que direito tem de usar tal paternalismo? Por que não deixar o outro na descrença?

O protagonista, o estranho a si e aos outros, exige nada mais que o direito de ser descrente, de ser excêntrico num mundo de absurdos. O direito de dispensar confortos e devoções. Mas ao devoto não pode haver chance de descrença – pois a não fé do outro abala a fé do missionário. Daí o totalitarismo da fé religiosa: não pode haver descrentes. Que apenas uma pessoa negue Deus: eis um perigo ao edifício religioso, que apregoa crença absoluta. O sacerdote nega a liberdade do outro, que não está livre para descrer! Aquele que despreza a fé, e suas instituições tradicionais, é um coração endurecido, é um monstro moral. Mas, Meursault, o estranho, o que se sente estrangeiro, só deseja morrer em paz, liberto enfim, mesmo cercado pelos gritos de ódio daqueles que assistem a execução.



Fonte: CAMUS, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 1957.



Jul/13


Leonardo de Magalhaens




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o mito de sísifo




segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sobre O Estrangeiro / O Estranho - de A Camus / p1




Sobre O Estrangeiro / O Estranho (L’étranger, 1957)
do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960)


A literatura ousa explicitar o estranhamento

parte 1

Um estranho homem taciturno e indiferente, de origem francesa, é julgado, na Argélia, por ter matado um árabe argelino, quase em legítima defesa, contudo o estranho não se defende e, então, é condenado. Eis o enredo básico do romance O Estranho ou O Estrangeiro (L'étranger) do franco-argelino Albert Camus que se destacou, juntamente com os franceses André Malraux, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, na onda existencialista de meados do século 20 na literatura europeia.


Comparando com o romance-diário A Náusea (de Sartre, tema do artigo anterior) temos também uma voz em 1ª pessoa, um protagonista-narrador, que nos apresenta sua visão-de-mundo, seus dissabores diante da sociedade. Uma voz subjetiva contra um universo objetivo, ou ainda, uma engrenagem gritando contra a máquina. Enquanto Roquetin vive nauseado, desassossegado, em sua crise existencial, temos aqui um Meursault que vive indiferente em sua rotina, à superfície das situações, sem se envolver, sem se engajar.


Ambos, Roquetin e Meursault, observam o mundo, tecem longas descrições, julgam gregos e troianos, criticam burgueses e marginais, se desapegam da vida social, e adotam um modo de vida derrotista. De tanto se sentirem atacados, atacam e, por fim, perdem. Uma engrenagem contra engrenagens numa máquina de monstruosa desproporção. Não há como um soldado derrotar um exército, ainda mais quando o soldado dispensa as ajuda de outros soldados. Estar só é ser mais uma vítima facilmente moída.


Tanto Camus quanto Sartre oscilam entre uma visão humanista e uma visão ceticista com relação aos seres humanos de seu tempo, uma época de derrotas políticas das esquerdas e uma ascensão dos regimes ditatoriais de direita (Espanha, Itália, Alemanha, etc), quando a burguesia se alia aos antidemocratas para se manter no poder, com medo dos revolucionários. Quando a maré fascista avança, os intelectuais ou se convertem ou se exilam. Alguns enfrentam a bota e a tortura, mas apenas para serem destruídos. Um sentimento de derrotismo - e de hedonismo - se alastra, um viver-aqui-agora, um desfrutar-dos-prazeres-enquanto-ainda-é-tempo passa a dominar e anestesiar os cidadãos, incapazes de engajamento e ânimo-de-combate. Não se admira que a França tenha caído sob as botas e tanques nazistas (em menos de um mês!) em 1940, tendo antes enfrentado os alemães por 4 anos sangrentos (na Primeira Guerra Mundial, 1914-18).


Mas falemos do Sr. Meursault, sempre indiferente em seu mundo de rotinas. Vamos reler esta obra que muita impressão causou uma década antes quando da primeira leitura. A linguagem de Meursault é clara e explicativa, a filosofia está nas entrelinhas (se compararmos com as digressões do nauseado Roquetin) pois seu propósito é confessar, é se expor, ciente de seu crime. Mesmo que não entenda exatamente porque o crime foi cometido. Vamos aos trechos memoráveis do livro. (Todas as citações com tradução minha.)


O início – desde a primeira frase – é chocante. A simplicidade, ou a banalidade, do dito, do enunciado, se contrasta com o vivido. Há a perda de um ente querido que é declarado como um fato meramente declarativo. Nem se sabe quando ocorreu a morte da própria mãe. Há uma rotina que domina os dias, que entorpece os sentimentos. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: ' Mãe falecida. Sepultamento amanhã. Nossas condolências. Isso quer dizer nada. Talvez fosse ontem.” (Aujoud’hui, mamam est morte. Ou peut-être hier., je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile: ‘Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingués.' Cela ne veut rien dire. C’était peut-être hier.” p. 9 )


A relação de Meursault com a mãe, que se entediava em sua companhia, daí o internamento no asilo, ilustra bem como ele se comporta em relação às pessoas ao redor. Se acostuma, por rotina. “Quando estava em casa, mamãe passava o tempo a me seguir com os olhos em silêncio. Nos primeiros dias quando foi para o asilo, ela chorava muito. Mas é uma questão de hábito. Ao fim de alguns meses, ela teria chorado se fosse retirada do asilo. Sempre um questão de hábito.” (“Quand ele était à la Maison, maman passait son temps à me suivre des yeux en silence. Dans les premiers jours où ele était à l’asile, ele pleurait souvent. Mais c’était à cause de l’habitude. Au bout de quelques mois, ele aurait pleuré si on l’avait retirée de l’asile. Toujours à cause de l’habitude.” p. 12)


O comportamento do filho enlutado é sempre observado, avaliado, como são suas reações, suas palavras, como expressa – ou não – seus sentimentos de perda. Os representantes das instituições, os familiares, os idosos no asilo, todos têm suas impressões e avaliações, que depois serão usadas contra ele no tribunal.
Foi neste momento que os amigos de mamãe entraram. Eram cerca de uma dezena, e eles deslizavam em silêncio nesta claridade cegante. Se sentaram sem que nenhuma cadeira gemesse. Eu os observava como jamais observara antes uma pessoa e nenhum detalhe de suas aparências ou de suas vestes não me escapava. No entanto não os escutava e com muito custo podia crer na realidade deles. (C'est à ce moment que les amis de maman sont entrés. Ils étaient en tout une diziaine, et ils glissaient en silence dans cette lumière aveuglante. Ils se sont assis sans qu'aucune chaise grinçât. Je les voyais comme je n'ai jamais vu personne et pas un détail de leurs visages ou de leurs habits ne m'échappait. Pourtant je ne les entendais pas et j'avais peine à croire à leur réalité. p. 18)


Ao mesmo tempo em que é observado, o protagonista observa, descreve, sim, em longas descrições, a tecer julgamentos sobre as pessoas ao redor, sobre as situações que o enchem de tédio. É este tédio que o mantém sempre indiferente, sempre a espera das ações ao redor. Ele não toma iniciativas, mas reage às iniciativas de terceiros. Pois para ele 'tanto faz' fazer ou não fazer.
Participar de um velório, de um enterro, isto é, de uma série de cerimoniais de enlutamento e sepultamento, eis o que enreda o protagonista em impressões sobre a existência, sobre o viver e o morrer, nas relações em sociedade. Cada gesto a se fazer, cada palavra a se dizer, como inscritas num protocolo, como pré-escritas num rito, e quem destoar, ou não pronunciar, ou se expressar diferente, pode sofrer as desconfianças e sanções.
Eu estava um pouco perdido entre o céu azul e branco e a monotonia dessas cores, preta grudante de piche aberta, terno preto das vestes, o preto laqueado da carroça. Tudo isso, o sol, o odor de couro e de // da carroça, esse de verniz e de incenso, a fatiga de uma noite de insônia, me perturbava o olhar e as ideias. (J'étais un peu perdu entre le ciel bleu et blanc et la monotonie de ces couleurs, noir gluant du goudron ouvert, noir terne des habits, noir laqué de la voiture. Tout cela, le soleil, l'odeur de cuir et de crottin de la voiture, celle du vernis et celle de l'encens, la fatigue d'une nuit d'insomnie, me troublait le regard et les idées. p. 29)


Para se deslocar até o velório da mãe, Meursault mudou sua rotina, de casa para o trabalho, tendo alguns dias de folga, assim se ver em situação nova, não esperada. Também não esperada é a aproximação de uma mulher, que o deseja. Ele encara esta situação de desejo com a mesma indiferença diante da morte. A mulher está disponível, é desejável, e ele se envolve. Nem percebe que tudo isso acontece quando ele deve manter o luto pela morte da mãe. A mulher se surpreende com o luto do novo amante, mas nada diz. O protagonista se sente levemente culpado.


O narrador segue em sua vida sem atrativos, em monotonia, reagindo em torpor a cada estímulo, apenas fisicamente engajado, como se o ânimo estivesse em outro lugar. Ele é incapaz do 'se envolver de corpo e alma', sempre à superfície, como que anestesiado. Em mais um domingo, dia que ele pouco aprecia, ao deixar o quarto de solteiro, ele segue pelas ruas, a observar a vida rotineira, as mesmas pessoas, as mesmas roupas, os mesmos gestos. Cena a lembrar as perambulações de Antoine Roquetin na cidadezinha de Bouville (no romance-diário “A Náusea”, Sartre), quando é descrita a vida na cidade, os pequenos cafés, a diversão, os bondes (tramways) que passam. Ele anda e anda até ao anoitecer,
Os lampiões na rua se iluminaram bruscamente e deixavam pálidas as primeiras estrelas que subiam na noite. Sentia meus olhos se cansarem de observar as calçadas com suas cargas de pessoas e de luzes. Os lampiões iluminavam a rua molhada, e os bondes, em intervalos regulares, deixavam reflexos sobre os cabelos brilhantes, um sorriso ou um bracelete prateado. (Les lampes de la rue se sont alors allumées brusquement et elles ont fait pâlir les premières étoiles qui montaient dans la nuit. J'ai senti mes yeux se fatiguer à regarder les trottoirs avec leur chargement d'hommes et de lumiéres. Les lampes faisaient luire le pavé mouillé, et les tramways, à intervalles réguliers, mettaient leurs reflets sur des cheveux brillants, un sourire ou un bracelet d'argent. p. 40)


Recuperando novamente sua rotina, Meursault volta ao escritório, onde o trabalho contínuo o impede de pensar, de refletir. A jornada de trabalho provoca uma rotinização da vida, que abafa a angústia. Só quando o drama irrompe é que o protagonista se perceberá numa trama que ele não controla: a vida. Situações que ele não causou, problemas alheios a ele, mas que interferem em seu cotidiano. Ele evita se envolver, então é envolvido.


Não há razão para não conversar com o Sr. Raymond Sintès, sujeito que é olhado com desconfiança por alguns concidadãos. Estará ele envolvido com contrabando ou outras negociações ilícitas? Meursault não se importa, desde que o outro não o prejudique. E até podem travar algum contato, ou quiçá amizade. Mas nada de se envolver com os negócios do outro. Mas não há como se evitar: logo se está envolvido. Começa com uma conversa, um almoço, um favor e, então, se está jogado na vida do outro. Assim Meursault não procura amante e amigo – tanto a mulher quanto o amigo adentram a vida apática do protagonista.


O novo 'amigo' quer um favor, que Meursault escreva uma carta para a amante que não 'se comporta bem', como um aviso antes que ela seja 'devidamente punida'. “Escrevi a carta. Escrevi um pouco ao acaso, mas me concentrei a contentar Raymond pois não tinha razão para não o contentar.” (J'ai fait la lettre. Je l'ai écrite un peu au hasard, mais je me suis appliqué à contenter Raymond parce que je n'avais pas de raison de ne pas le contenter. p. 54) Será que o mulherengo é mesmo um cafetão, um explorador de mulheres? Não se sabe, e pouco importa. Aliás, a expressão “pra mim tanto faz” (“moi cela m'était égal”) é recorrente. O protagonista coopera e tem a amizade o outro. Amizade esta que o levará ao núcleo do drama. Pois a mulher é árabe, e o irmão árabe logo pretende se vingar. E o irmão árabe logo adentrará a vida de Meursault, dramaticamente.

Enquanto o drama não vem, o protagonista continua a ser envolvido pela bela e morena Maria, a mulher que reapareceu em sua vida logo no momento de enlutamento. Ele perdeu a mãe, mas não se lembra mais. Agora está nos braços da amante e tudo segue bem. Até recebe convite do 'amigo' – que não hesitara em espancar a amante - para um pouco de lazer numa casa de praia, com outro casal. Sabe-se-lá que relações os casais mantêm, qual a participação do gigolô Raymond, pouco importa. Meursault aceita o convite. É quando o árabe, num grupo de mais árabes, aparece.

É quando Meursault percebe-se envolvido. Só pelo fato de estar ao lado de Raymond, de testemunhar a seu favor quando diante da polícia (logo atraída pela violência contra a mulher), só pelo fato de não reprovar as ações do outro, tudo isso caracteriza – ao olhar dos outros – uma amizade. Ora, o protagonista nada sabe sobre o gigolô, pouco se importa. Como pode uma amizade nascer da indiferença?


No mais, o protagonista concorda com o interlocutor, não porque esteja de acordo, mas para evitar polêmica, para evitar discussões. E assim é prontamente envolvido – ele não sabe dizer um claro Não, e é interpretado como um possível Sim. Seja na conversa com um diretor de asilo, uma amante a propor casamento, um amigo interesseiro, um vizinho solitário a pedir conselho, o patrão a oferecer uma oportunidade, sempre Meursault adota uma atitude de 'tanto faz' que seja sim ou não, desde que ele não se envolva. Ele não toma qualquer iniciativa para se envolver. Mas, é então que ele se envolve! Basta não dar atenção, como faz um Roquetin, para não se envolver. Fingir atenção é pior.

O patrão oferece oportunidade, e a mulher quer se casar, onde fica o protagonista nestas situações? Sempre indiferente, sem ânimo ou ambição, sem interesse por dinheiro ou formar família. O que ele faz é por rotina ou hábito, por reação, não atuação. Não que Meursault não tenha opinião, pois ele tem. Sempre descreve e julga, mesmo nas entrelinhas. Afinal, a narrativa é dele, só temos seu ponto de vista, sua perspectiva. O que os outros pensam ou julgam? Como os outros atuariam no lugar do narrador? Não temos respostas. Claro que o julgamento exterioriza bastante as opiniões alheias sobre Mersault, mas aí já estão viciadas pelo pré-julgamento: ele é um criminoso, um assassino. Ele não se defenderá, e poucos o defendem. Interessante seria um julgamento antes do crime. Será que esperavam que ele o cometesse?

É tudo gratuito: um amigo interesseiro, cuja amante foi espancada, cujo irmão árabe quer se vingar, em jogo de espreita que o leva às proximidades da casa de praia – ou seja, tudo se entrelaça e se encaminha para o embate, o drama, o crime. Um crime do qual o protagonista pouco sabe, sequer premeditou, e do qual não vai se defender.


Primeiro, percebe-se o quanto a incidência solar, o sol abrasante, é um dos estímulos ao torpor de Meursault, sendo quase um figurante, ou antagonista. Como não pode atirar contra o sol, ele atira em alguém mais próximo? Ou ele agiu por legítima defesa? Afinal, o árabe estava armado, como é relatado.
O sol tombava quase em prumo sobre a areia e seu clarão sobre o mar era insustentável. Ninguém estava na praia. (…) Se respirava penosamente no calor de pedra que subia do sol. (…) Nada me ocupava a mente pois estava meio que adormecido pelo sol em minha cabeça descoberta. (Le soleil tombait presque d'aplomb sur le sable et son éclat sur la mer était insoutenable. Il n'y avait plus personne sur la plage. […] On respirait à peine dans la chaleur de pierre qui montait du sol. […] Je ne pensais à rien parce que j'étais à moitié endormi par ce soleil sur ma tête nue. p. 85)


Ensolarado no corpo e na mente, Meursault se depara com uma aparição: o grupo de árabes. Cheiro de animosidades no ar. Mas nada acontece além de um luta corporal. O mulherengo Raymond é ferido. O combate se encerra por enquanto. Ainda não há o crime. O protagonista e o amigo perambulam pela praia. Continua o sol abrasante, e 'o sol e o silêncio'. O ferido carrega um revólver. Os árabes descansam junto a uma fonte atrás de um rochedo, e quando os franceses aparecem, e medem forças, os primeiros recuam.

Depois os franceses voltam à casa de praia, mas apenas Raymond sobe as escadas, pois Meursault resolve continuar em andanças pela areia. Sempre sob o sol abrasante. Andança que o levará fatalmente ao mesmo lugar onde está o árabe. Temos então a cena mais dramática do romance, brilhantemente narrada (a ponto de se pensar que tipo de narrador é este Meursault, tão indiferente e ao mesmo tempo tão atento às minúcias...)
a cabeça retinindo de sol, desânimo diante do esforço necessário para subir os degraus de madeira e encarar as mulheres. Mas o calor era tal que me era penoso ficar imóvel sob a chuva cegante que caía do céu. Ficar aqui ou partir, dava no mesmo. Ao fim de um momento, voltei à praia e me comecei a caminhar.
Havia o mesmo clarão rubro. Sobre a areia, o mar arfava de toda a respiração rápida e sufocada das pequenas ondas. Caminhava lentamente rumo aos rochedos e sentia me testa inchar sob o sol. Todo este calor sobre mim e se opondo ao meu avanço.
[...] la tête retentissante de soleil, décourage devant l'effort qu'il fallait faire pour monter l'étage de bois et aborder encore les femmes. Mais la chaleur était telle qu'il m'était pénible aussi de rester immobile sous la pluie aveuglante qui tombait du ciel. Rester ici ou partir, cela revenait au même. Au bout d'un moment, je suis retourné vers la plage et je me suis mis à marcher.
C'était le même éclatement rouge. Sur le sable, la mer haletait de toute la respiration rapide et étouffée de ses petites vagues. Je marchais lentement vers les rochers et je sentais mon front se gonfler sous le soleil. Toute cette chaleur s'appuyait sur moi et s'opposait à mon avance. pp. 91-92


Para onde ele seguia ? E por que? Não sabia o perigo a que se expunha? Ou que expunha o árabe que queria vingar a irmã? Ele, Meursault, nutria algum rancor contra o árabe que atacou seu amigo Raymond? Será que o antes indiferente se tornou um frio assassino? Parece que ele deseja se justificar diante de todas estas questões? Se ele não se defende no tribunal, ao menos se defende nestas linhas escritas.
Pensava na fonte fresca detrás do rochedo. Queria reencontrar o murmúrio de sua água, desejo de fugir do sol, o esforço e os choros de mulher, desejo de reencontrar a sombra e seu repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o sujeito do Raymond tinha retornado.
Ele estava só. Repousava de costas, as mãos sob a nuca, a cabeça nas sombras do rochedo, todo o corpo ao sol. Sua bolsa esfumaçava no calor. Fiquei um pouco surpreso. Por mim, era um caso acabado e tinha chegado lá sem pensar.
[…] Je pensais à la source fraîche derrière le rocher. J'avais envie de retrouver le murmure de son eau, envie de fuir le soleil, l'effort et les pleurs de femme, envie enfin de retrouver l'ombre et son repos. Mais quand j'ai été plus près, j'ai vu que le type de Raymond était revenu.
Il était seul. Il reposait sur le dos, les mains sous la nuque, le front dans les ombres du rocher, tout le corps au soleil. Son bleu de chauffe fumait dans la chaleur. J'ai été un peu surpris. Pour moi, c'était une histoire finie et j'étais venu là sans y penser. p. 92


Seu ato impensado será causado pelo horror ao sol abrasante? Um mero reflexo fisiológico ao sofrimento externo, ao meio ambiente? Ele reage assim ao empunhar a arma e atirar? Estará se defendendo? Ou agindo finalmente? Contra o sol que o persegue, desde o sepultamento de sua mãe. Ou ele apenas reage, indiferente, como sempre fez em sua vida?


Eu adivinhava seu olhar por instantes, entre suas pálpebras semicerradas. Mas, com frequência, sua imagem dançava diante de meus olhos, no ar inflamado.
Pensei que não teria mais que dar meia-volta e tudo acabaria. Mas toda uma praia vibrante de sol se pressionava atrás de mim. (…) A queimadura do sol dominava minhas bochechas e sentia as gotas de suor se ajuntarem em minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia quando havia enterrado mamãe e, como então, a cabeça me doía e todas as veias pulsavam juntas sob a pele.


(…) o suor ajuntado nos minhas sobrancelhas escorreu de uma vez sobre as pálpebras e a recobri-las com um véu morno e denso. Meus olhos estavam cegados atrás dessa cortina de lágrimas e de sal. Não sentia mais que os címbalos do sol sobre minha cabeça e, indistintamente, a lâmina golpeante desliza do punhal sempre diante de mim.
[…] Je devinais son regard par instants, entre ses paupières micloses. Mais le plus souvent, son image dansait devant mes yeux, dans l'air enflammé. […]


J'ai pensé que je n'avais qu'un demi-tour à faire et ce serait fini. Mais toute une plage vibrante de soleil se pressait derrière moi. […] La brûlure du soleil gagnait mes joues et j'ai senti des gouttes de sueur s'amasser dans mes sourcils. C'était le même soleil que le jour où j'avais enterré maman et, comme alors, le front surtout me faisait mal et toutes ses veines battaient ensemble sous la peau. […]


[…] la sueur amassé dans mes sourcils a coulé d'un coup sur les paupières et les a recouvertes d'un voile tiède et épais. Mes yeux étaient aveuglés derrière ce rideau de larmes et de sel. Je ne sentais plus que les cymbales du soleil sur mon front et, indistinctement, le glaive éclantant jailli du couteau toujours en face de moi.” pp. 93-94


Todo o sol, todo o calor que angustia o protagonista é despejado em ira descontrolada sobre o árabe,  que cai tombado pelo disparo,  e mais quatro tiros sobre 'o corpo inerte',  assim  a 'destruir o equilíbrio do dia' como reconhece o narrador agora um criminoso, com seu destino selado pela tragédia. Quem o defenderá? Ou como ele se defenderá? Eis o que veremos na segunda parte do romance.


Fonte: CAMUS, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 1957.


continua …


Leonardo de Magalhaens