sexta-feira, 22 de outubro de 2010

sobre "Bel-Ami" (Maupassant) p2




Sobre “Bel-Ami” (1885) Romance
do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893)

Os Clássicos
(ensaio 5)

Quando a Literatura adentra bastidores de alcova e gabinete


Parte II


No final da Parte I, a viúva Forestier, Madeleine deixou claro a Duroy que para ela o casamento é associação, não jogo de dominação – afinal, ela é a mulher burguesa que carregou o 'talentoso' marido na pronta ascensão deste. É ela quem realmente escreve as crônicas...

“Compreenda-me bem. O casamento para mim não é uma cadeia, mas uma associação. Eu pretendo ser livre, inteiramente livre nos meus atos, em meus passeios, minhas saídas, sempre. Eu não poderei tolerar nem controle, nem ciúmes, nem discussão sobre minha conduta.” (“Comprenez-moi bien. Le mariage pour moi n'est pas une chaine, mais une association. J'entends être libre, tout à fait libre de mês actes, de mes démarches, de mes sorties, toujours. Je ne pourrais tolérer ni contrôle,” p. 225)

Aqui, a mulher é quem define as regras. Ela aceita o 'novato' e integra-o ao modo de vida dela. Casar-se com Madeleine é 'ganhar mais uma carta' no jogo da ascensão social – para isso Duroy precisa afastar a amante, a Sra de Marelle, e a prostituta Rachel.

O casamento é visto como um negócio, e com certa frieza pela viúva Forestier. E Duroy 'deixa-se levar' pelo 'espírito prático' da esposa – ele que pretende ser educado. Não é Duroy que conquista Madeleine – como ele fez com a Sra de Marelle – mas é a viúva que conquista o jovem arrivista, “'Não tenho mais ninguém no mundo... - ela lhe estendeu a mão e acrescentou – senão você.' E ele (Duroy) se sentia comovido, emocionado, conquistado como ele nunca antes havia sido por alguma mulher.” (“Je n'ai plus personne au monde... - elle lui tendit la main et ajouta... - que vous.' Et il se sentit attendri, remué, conquis comme il ne l'avait pas encore été par aucune femme.” p. 233)

Madeleine é uma arrivista inteligente, metódica, quer 'enobrecer' nem que seja mudando nomes próprios e de regiões, quer ser a Madame Duroy de Cantel, quer um nome que 'pareça' nobre... “e ela declara: 'com um pouco de método, se chega a alcançar tudo o que se quer.” (“et elle déclara: 'Avec un rien de méthode, on arrive à réussir tout ce qu'on veut.” I, p. 235)

Assim, Duroy vai se casar com Madeleine, e então afasta – sem 'cenas e arrufos' – a amante Clotilde de Marelle. O cronista da seção de boatos (isto é, fofoca sobre celebridade) se prepara para formar uma família burguesa, assinando com um nome de aparência nobre – Du Roy. E a esposa cuidará dos negócios do casal, “De resto, antes do casamento, ela tinha organizado, com uma segurança de homem de negócios, todos os detalhes financeiros do matrimônio.” (“Avant leur union, du reste, elle avait réglé, avec une sûrete d'homme d'affaires, tous les détails financiers du ménage.” p. 244)

E Duroy – ou Du Roy – aceita esse talento organizador da esposa, “Pois que é você quem assume a direção da casa, e mesmo de minha pessoa. O que te compete, com efeito, como viúva!” (“Parce que c'est vous qui prenez la direction de la maison, et même celle de ma personne. Cela vous regarde, em effet, comme veuve!” p. 245)

E ele assume seu papel, afinal de contas, a vida social é mesmo um teatro. “Ele [Duroy] falava agora com entonações de ator, com um jogo agradável de fisionomia que divertia a jovem mulher habituada às maneiras e jovialidade da grande boêmia dos homens de letras.” (“Il parlait maintenant avec des intonations d'acteur, avec un jeu plaisant de figure qui divertissaient la jeune femme habituée aux manières et aux joyeusetés de la grande bohème des hommes de lettres.” I, p. 246)

Na viagem que o casal faz para Rouen, em visita aos pais de Duroy, os modestos camponeses donos de uma taverna, aos quais Madeleine deseja conhecer, há belas descrições, de estilo romântico, mesmo numa obra onde o evidente é o estilo realista e límpido do Autor.

“Essa melancolia do anoitecer entrava pela portinhola aberta penetrando nas almas, tão alegres há pouco, dos dois esposos agora silenciosos.” (“Cette mélancólie du soir entrant par la portière ouverte pénétrait les âmes, si gaies tout à l'heure, des deux époux devenus silencieux.” p. 247)

Mas na sequência, o aoto erótico é narrado sem lirismo, nada de tom idílico, é ligeiro tal um apontamento, não passa de “uma curta luta sufocada, um coito violento e desajeitado” (“une courte lutte essouffée, un accouplement violent et maladroit”, p. 247-48) com algo de um tom 'naturalista' que veremos em Zola (e Aluízio de Azevedo, no Brasil, especialmente em “O Cortiço”)

O/a Leitor/a acompanha a viagem do casal até Rouen, a cidade natal de Duroy, onde visitaram os pais dele, camponeses donos de modesta taverna. A descrição dos camponeses é muito árida, ao tom realista, dos quadros de Millet e Courbet. Os pais de Duroy mostram-se tão pobres que até a 'cartesiana' Madeleine se comove – a mesma Madame que idealizava os camponeses.

“Madeleine também descera da carruagem e ela via chegar os dois pobres seres com um aperto no coração, uma tristeza que ela não tinha previsto.” (“Madeleine aussi était descendue de voiture et elle regardait venir ces deux pauvres étres avec un serrement de cœur, une tristesse qu'elle n'avait point prévue.” p. 252)
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E como o meio condiciona o olhar (a percepção) os camponeses admiravam a Madame como se estivessem diante de uma aparição – mesmo com a aprovação do velho pai e a reserva da velha mãe (que esperava uma nora mais robusta, ao modo da rústica mulher camponesa) – aqui temos o tema cidade X campo novamente encenado (tal como vimos em “Le Rouge et le Noir”, “Les Misérables” e veremos em “A Cidade e as Serras” - de Eça de Queirós – e “João Ternura” - de Aníbal Machado.

Numa época de imperialismo, de colonialismo, quando as potências europeias 'repartem' os espólios das conquistas no subjugado continente africano, o Autor quer mostrar – com a ascensão sem escrúpulos de Bel-Ami – que somente os inescrupulosos, os ambiciosos, os 'fortes' vencem no Capitalismo! O Capitalismo é movido por cobiça e exploração – e quem quer ser 'bonzinho' não tem lugar no topo, só há as 'margens'. Bel-Ami sai das 'margens' para ocupar o campo de batalha dos 'parvenus', os novos ricos.

Bel-Ami, Duroy, ou Du Roy, aqui assume o lugar que antes pertencia a Forestier. A mesma mulher, a mesma casa, os mesmos criados, os mesmos 'amigos' – o conde Vaudrec vem sempre para jantar – e demonstra um paralelismo com o plano da Parte 1 – falta ao leitor indagar quem será o novo 'Duroy' que este novo 'Forestier' irá 'erguer da lama' ! A esposa dita os artigos, o submisso cronista assina – e ainda julga-se 'ajudado' pela inteligência de Madeleine – a verdadeira 'ghost writer' destes jornalistas de sucesso!

Du Roy deixa a seção de Boatos e assume a coluna de política – a mesma coluna que antes era de responsabilidade do falecido Forestier ! (O Autor quer deixar claro o paralelismo!) Quem passa as informações 'privilegiadas' à esperta Madeleine? Quem são os políticos que frequentam os jantares do novo casal? (ver capítulo II) Será o Conde o amante de Madeleine ? Duroy frequentava a casa do Sr. de Marelle, o marido traído...

Ao contrário de Victor-Hugo, cujo o Narrador quer tudo explicar, o estilo de Maupassant é de concisão e limpidez. Apenas o essencial – o restante o leitor que 'complete' as entrelinhas. É Vaudrec o amante de Madeleine? Terá o Conde apresentado Madeleine ao futuro marido, Charles Forestier? Era o Conde a tal 'fonte' não revelada dos 'jogos' da alta política?

No jogo de interesse partidário, um exemplo é o deputado – agora ministro – Laroche-Mauthier (outro contato de Madeleine, e que se tornará amante...), um “advogado de província, belo homem de distrito, guardando um equilíbrio de esperto entre todos os partidos extremos, espécie de jesuíta republicano e de cogumelo liberal de natureza duvidosa, como se prolifera às centenas sobre o estrume popular do sufrágio universal.” (“avocat de province, joli homme de chef-lieu, gardant un équilibre de finaud entre tous les partis extrêmes, sorte de jésuite républicain et de champignon libéral de nature douteuse, comme il en pousse par centaines sur le fumier populaire du suffrage universel.” II, p. 267)

Bel-Ami apenas ocupa o lugar antes ocupado por Forestier – a ponto de gerar ironias e piadas entre os jornalistas. Afinal de contas, o estilo de Duroy é muito semelhante ao de Forestier – é Madeleine quem escreve, como sabemos, e todos assim insinuam. Bel-Ami, ou Du Roy, sente rancor do falecido Charles Forestier, o amigo que o ajudou a 'sair da margem'. No mais, Duroy suspeita que Charles possa ter sido traído – Madeleine não parece acima de suspeitas. Afinal, é mulher inteligente, liberal, independente, com amigos influentes...

Assim, Madeleine não se mostra tão ciumenta quanto a Sra. De Marelle. E espera, assim, que Duroy não se incomode com os possíveis contatos da esposa – que cada um cuide dos (possíveis) casos extra-conjugais. E ela até chega a insinuar uma possível paixão da Sra. Walter, esposa do patrão. O sedutor Duroy acha interessante esta nova conquista. A própria Madeleine 'empurra' Duroy para a Madame Walter – além de 'aconselhar' que Duroy – se fosse livre – pedisse a mão da jovem Suzanne, filha dos Walter. E Duroy passa a sonhar com um casamento com a rica herdeira.

Assim, Bel-Ami passa a transitar entre as amantes – Sra. Walter e Sra de Marelle – enqaunto mantem o casamento com Madeleine. Ao mesmo tempo, cultiva uma 'amizade' com Suzanne... Só a menina Laurine – filha de Clotilde de Marelle – a menina que deu-lhe o apelido carinhoso de 'Bel-Ami', percebe que tipo de 'crápula' é o sedutor Duroy.

Bel-Ami, o querido das madames! Eis o “cherchez la femme”! Em todo o sentido possível do ditado francês: há sempre uma mulher por trás de algum caso, em algum bastidor, nas penumbras da questão. Uma mulher que pode ser uma porta para adentrar um mistério, uma poder almejado, ou a mulher enquanto portadora de uma infortúnio, tal uma Charlotte a apunhalar Marat!

As mulheres funcionam mais como um trampolim para a ascensão social – as mulheres que conhecem os bastidores – que compartilham homens – que obtem assim as informações colhidas nas alcovas – repassadas de um homem a outro! O amante envia recado ao marido através da amante! Assim Bel-Ami faz 'amizade' com o Sra. de Marelle e ajuda-o a ganhar 10 mil francos!

Mas esta tradição de fêmeas e alcovas está em “Les Liaisons daugereuses”, 1782 ) o romance epistolar (em forma de cartas) do nobre militar Chordelos de Laclos (1741-1803) – que foi traduzido, no Brasil, por Carlos Drummond de Andrade, com o título de “As Relações Perigosas”.
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Sempre frequentador da alta sociedade, Duroy se integra ás cenas de 'sociedade' que antes somente podia ver 'de longe'. Agora adentra a multidão de esnobes num torneio de esgrima na propriedade do jornalista Jacques Rival, que propõe o evento para arrecadar 'fundos' para os necessitados. A hipocrisia dos ricos em 'paternalmente' manter a pobreza dos necessitados graças ao envio frequente de 'esmolas' na forma de 'donativos'. A filantropia não passa de uma forma de manter a dependência e a servidão dos explorados. Quanto ao evento, Duroy aproveita para estreitar a 'amizade' com a Sra. Walter.

A narrativa alterna eventos da sociedade com cenas amorosas e acontecimentos políticos, até históricos – por exemplo, as turbulências do II Império francês – 1852-1870 – época de Baudelaire e dos 'poetas malditos', além dos pintores realistas. Tudo cria um perfeito 'folhetim' que hoje nós lemos como um romance clássico, até 'canônico'.

Sobre o II Império Francês
http://fr.wikipedia.org/wiki/Second_Empire
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Folhetim até pelos cenários escolhidos. Retratar a sociedade em lugares icônicos – templos, feiras, jornais, torneios, boulevards, distritos & subúrbios, em suma, o Autor realista pretende apresentar um 'painel' da sociedade que está diante das 'objetivas' da Escrita. Assim se explica a cena na qual Duroy encontra a Madame Walter numa ... igreja! O Narrador destila toda uma ironia sobre o papel da religião no II Império – num estilo que encontraremos num Machado de Assis (“Memórias Póstumas” e “Quincas Borba”) A Sra. Walter é cristã, mas casada com um judeu (o dono do La Vie Française), e se esmera em mostrar-se 'católica praticante'. O estilo aqui tem algo do 'naturalismo' que já encontramos na cena lá no Bois de Bologne – P2, c. II, pp. 273-80 – onde os amantes são comparados aos animais no cio. Já a cena na igreja – com todo um jogo de sedução, com avanço e negação, ao pé do altar! - é irônica, e o Narrador chega a ser iconoclasta.

O confesssionário, por exemplo, é assim descrito, na p. 316 ,

“Ele (o padre) tira uma argola cheia de chaves, depois ele escolhia uma, e ele se dirigia, com um passo rápido, rumo as casinhas de madeira, espécie de caixa de lixo da alma, onde os crentes esvaziam os pecados.” (“il tira un anneau garni de clefs, puis il en choisit une, et il se dirigea, d'un pas rapide, vers les petites cabines de bois, sorte de boîtes aux ordures de l'âme, où les croyants vident leurs péchés.” IV )

A Madame prefere se confessar ao padre, o que irrita o sedutor Du Roy – que, no entanto, sabe ser paciente. A sedução vai continuar.

Mas antes a cena política: a crise no Marrocos, a mudança de Gabinete de Governo, a ascensão do jornal – La Vie Française – a 'folha oficiosa' (“feuille officieuse”). Du Roy rescreve o primeiro artigo – aquele ditado por Madeleine no c. III da Parte 1 – e faz sucesso! Só depois outra cena amorosa. Saberemos mais sobre a crise no Marrocos e na Argélia – noticiada exaustivamente pelo La Vie Française – no c. V – onde o salão de Madeleine está no foco político. O deputado Larouche-Mathieu é agora o poderoso Ministro dos Negócios Estrangeiros. Manda em todos – e Du Roy sente inveja... “Que cretinos esses homens políticos!” (“Quels crétins que ces hommes politiques!”)

O Capitalismo é a selva das finanças e exploração onde o esperto, o inescrupuloso vence. Du Roy percebe que manter a união com Madeleine é limitação à ascensão dele na política. Ele volta o olhar para a herdeira Suzanne – e vai fazer de tudo para conquistar a mocinha.

Com a morte do Conde Vaudrec – possível amante de Madeleine – a esposa de Du roy recebe a herança de um milhão ! Du Roy consegue repartir a fortuna entre o casal – para garantir as 'conveniências' – imagine-se o escândalo! Ele acaba por usar o dinheiro para se garantir na vida de gastos e consumo na 'alta sociedade' – por exemplo, frequentar a casa e os eventos do casal Walter. (Ao mesmo tempo em que se afasta a Sra. Walter enquanto amante...)

O observável é que os nobres arruinados se casam com as filhas de capitalistas – financistas, banqueiros, industriários – em suma, a nobreza entra com o título pomposo e a burguesia com a fortuna. A herdeira aqui são as filhas Rose e Suzanne – esta última garantia a Du Roy o acesso à carreira política.

“Ele (Du Roy) sorria de modo irônico e altivo, e nomeava aqueles que passavam, pessoas da nobreza, que tinham vendido seus títulos enferrujados às filhas de financistas iguais a ela (Suzanne), e que viviam agora junto ou longe de suas mulheres, mas livres, imprudentes, conhecidos e respeitados.” (“Il souriait d'un sourire ironique et hautain, et il se mit à lui nommer les gens qui passaient, des gens très novles, qui avaient vendu leurs titres rouillès à des filles de financiers comme elle, et qui vivaient maintenant près ou loin de leurs femmes, mais libres, impudents, connus et respectés.” VII, p. 378)

Mas para casar-se com Suzanne, Du Roy precisa conseguir o divórcio. Então, ele não hesita em surpreender Madeleine em flagrante adultério com o Ministro Larouche-Mathieu. Em seguida, os artigos de Du Roy derrubam o Gabinete do Ministro. Até o Sr. Walter passa a 'respeitar' a força de ascensão do 'jornalista' Du Roy! Que finalmente consegue o divórcio. E não hesita em cortejar a filha do patrão. A família de Suzanne obviamente não aceitaria semelhante arrivista, então a mocinha aceita fugir com o querido Bel-Ami. Assim, Du Roy 'rapta' Suzanne para enfim pressionar a família Walter. E o arrivista vence novamente!

Nos finalmente, Du Roy volta a aromper com a amante, a Sra. De Marelle, e só consegue a inimizade da ex-amante Sra. Walter, agora a sogra! Assim, Duroy, agora Du Roy, e com título de Barão, e 'filho de dois pobres camponeses', casa-se com uma rica herdeira, filha de um maiores financistas franceses, um empresário judeu. (Veremos em breve como o antisemitismo passou a atuar na França no final do século 19, principalmente com o “caso Dreyfus”) E Du Roy pode satisfazer finalmente sua ambição de ter uma carreira política.

Enquanto isso, começam a surgir, num outro jornal, artigos semelhantes aos de Forestier e Duroy, e assinados por um 'iniciante' – obviamente 'adotado' por Madeleine, que encontrou outro aluno, digo, marido. A 'ghost writer' Madeleine é mesmo incansável. E o Autor, sempre invisível atrás do discretíssimo Narrador, sai de cena com um sorriso amargo.

ago/set/10

por
Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
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Bel-Ami (em francês) no Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Bel-Ami
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sábado, 16 de outubro de 2010

sobre BEL-AMI de Maupassant (P1)






Sobre “Bel-Ami” (1885) Romance
do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893)

Os Clássicos
(ensaio 5)

Quando a Literatura adentra bastidores de alcova e gabinete

O tema do arrivista ou do homem de província que atinge ascensão social na capital é fartamente encontrado na literatura clássica (ou não) do século 19, ainda mais na estética francesa (e naquelas influenciadas pela francesa, tais como a portuguesa e brasileira, anteriores às Guerras Mundiais do século 20) tanto como uma forma de moralismo (para denunciar os 'modos licenciosos') como para divertir os leitores (numa literatura de deboche, ou anti-literatura).

Podemos comparar Bel-Ami e Ilusões Perdidas (Illusions perdues, 1843) onde temos o arrivista na capital parisiense e o modus operandi – o jornalismo enquanto 'escrita de mercenários'. Temos um Julien chardon na província – jovem poeta de talento – que pretende 'brilhar' na capital, onde encontra os tipos mais suspeitos – aqueles que encontramos no Père Goriot, o ex-forçado Vautrin (ou Jacques Collin, ou Carlos Herrera) – bem diferente do ex-forçado Jean Valjean, de Os Miseráveis, que se regenera – e o arrivista Eugene de Rastignac nos bastidores da 'vida social'.

Assim, nessa galeria de oportunistas – a incluir Julien Sorel de O Vermelho e o Negro – com Vautrin, Rastignac, Lucien Chardon, vamos encontrar mais um, o Georges Duroy, ou Bel-Ami, como as mulheres preferem chamá-lo. Um arrivista sem escrúpulos que não vai se perder em metafísicas como aquelas personagens de um Stendhal ou de um Dostoiévski, mas saberá se posicionar na selva de interesses e na luta pela ascensão social – existente no mundo burguês, antes inexistente no mundo feudal.

Podemos também comparar Maupassant com Balzac – assim como podemos comparar com a estilística de Flaubert – assim como podemos comparar Balzac com Sir Walter Scott – no propósito de escrever o romance enquanto testemunho de uma época. (A diferença é que Balzac não vai ao passado buscar a 'História' mas apresenta o 'presente', a própria época enquanto registro histórico.) O romance tentará se situar na 'vida como ela é', no modo de organização social, no modo pelo qual as personagens são determinadas pelo ambiente de competição e hipocrisia. Tornam-se insensíveis para melhor 'pisar por cima ' dos 'miseráveis' (mostrados por Victor-Hugo' e dos 'humilhados e ofendidos' (apresentados por Dostoiésvki).

Tanto em Bel-Ami quanto em Ilusões Perdidas presenciamos a prostituição dos escritores que precisam escrever sobre boatos de sociedade, sobre bastidores de política, quando não folhetins açucarados para as leitoras burguesas.

Illusions Perdues (parte de A Comédia Humana)
de Honoré de Balzac
na Wikisource
em
http://fr.wikisource.org/wiki/Illusions_perdues
Georges Duroy é um camponês pobretão que volta das colônias francesas na África do Norte, onde havia sido soldado raso, e agora tenta 'vencer' em Paris. Na capital francesa,o ex-soldado encontra um conhecido, que lhe consegue um emprego num jornaleco, onde o moço tenta 'escrever' sobre as suas 'aventuras', e é prontamente 'ajudado' pela inteligente esposa do tal 'jornalista'. Temos o ambiente de 'Redação' – com as querelas entre 'jornalistas', com direito até a um duelo – enquanto ele faz dívidas para pagar dívidas, até que se casa com a inteligente esposa do amigo então falecido e descobrimos que a mulher 'ghost writer' vai 'alavancar' sua (dele) carreira.

Temos as vicissitudes financeiras e comportamentais – narradas ao estilo 'naturalista' – quando o protagonista tem dinheiro e quando não tem uma moeda. Como ele odeia aqueles que comem, quando ele tem fome E a primeira moeda que ele consegue logo paga para si-mesmo uma farta refeição. (Aqui Duroy faz lembrar o protagonista-narrador do clássico “Fome”, de Knut Hamsun, como veremos) O romance é composto de duas partes – antes e depois da morte do amigo 'jornalista' – e do casamento de Duroy com a inteligente viúva escritora.

Parte I

Encontramos o protagonista Georges Duroy nas ruas de Paris. A cena inicial é aquela da personagem saindo de algum lugar – temos algo parecido em “Crime e Castigo” de Dostoiévski, e “Ulisses” de J Joyce. (Outra clássica – que também encontraremos neste romance – é a da personagem quando acorda pela manhã – tal como veremos em Proust e Joyce)

Georges Duroy observa e é observado na capital francesa – populosa, tumultuada tal como vemos nos romances de de Victor-Hugo, de Balzac, e nos poemas de Baudelaire. “Ao chegar até a calçada, ele demorou-se um momento, parado, a se perguntar o que devia fazer. Estava em 28 de junho, e lhe restava no bolso apens a quantia de trs francos e quarenta para terminar o mês.” (“Lorsqu’il fut sur le trottoir, il demeura un instant immobile, se demandant ce qu’il allait faire. On était au 28 juin, et il lui restait juste en poche trois francs quarante pour finir le mois.” p. 7)

Duroy precisa então encarar a pobreza. Precisará escolher qual refeição é a mais importante (no Brasil, diríamos, 'vai ter que vender o almoço para comprar a janta'), “Esta (quantia) representava dois jantares sem almoço, ou dois almoços sem jantar, à escolha” (“Cela représentait deux dîners sans dejeuners, ou deux déjeuners sans dîners, au choix.” p. 7)

Pobre, mas elegante, bem-apessoado, diríamos, com marcha de soldado em veste civil, Georges Duroy segue pelas ruas, meio à multidão, ele se parecia bem com um anti-herói de romances populares” (“il ressemblait bien au mauvais sujet des romans populaires” ) eia a metalinguagem: temos uma personagem de romance que parece uma personagem de romance! (Onde começa o real e termina o ficcional?)

A cidade “quente como uma estufa” - como se a cidade fosse uma pessoa a suar – é uma entidade que existe à medida em que o protagonista anda... Expliquemos: não é descrita a cidade, e depois 'inserido' a personagem, como encontramos em “Le Rouge et Le Noir”, de Stendhal, ou “Les Misérables” de Victor-Hugo, mas a cidade é mostrada pela perspectiva da personagem – assim é em “Crime e Castigo” quando testemunhamos a pobreza do subúrbio de San Petersburg à cada passo do penseroso Raskólnikov.

Georges Duroy segue pela metrópole como se à espera de um 'encontro amoroso'. Sem dinheiro, ele não pode deixar-se seduzir pelo 'canto das sereias”, as prostitutas. A presença da 'vulgaridade' é perceptível neste romance mais para naturalista do que realista. Já vimos a quantidade de 'baixo calão' (gírias) no “Os Miseráveis” e no “Comédia Humana”, também a presença de 'personagens desqualificadas' – pobres, habitantes de mansardas e cortiços, putas, ladrões, forçados, etc, em suma, toda uma galeria de tipos que não era de 'bom tom' – assim é nos romances de Dickens, de Flaubert, e outros, sempre acusados de 'imorais', de 'indecorosos'. (A boa moral burguesa sempre alerta para censurar a obras que desmitificam o sistema burguês...)

Assim, o vocabulário de Maupassant é diferente daquele de Stendhal e mais próximo de Victor-Hugo, ainda que bem mais 'recheado' de gírias, palavras chulas, ofensas, e assemelhados. Afinal, em Bel-Ami o ambiente é urbano, de cidade grande & metrópole política, enquanto “Le Rouge...” tem um cenário provinciano, somente localizado em Paris no Livro II.

Quanto ao Narrador, podemos dizer que 'interfere' menos que aqueles nas obras lidas de Stendhal e Victor-Hugo – como todo aquele psicologismo e/ou enciclopedismo. No estilo de Maupassant a voz narrativa apresenta o cenário e as personagens – e o/a Leitor/a que tire as conclusões. (Um estilo que encontramos em Flaubert, e que influenciará os estilos de Hemingway, Sartre, Simone de Beauvoir, André Maulraux, etc)

O vulgar é até comum para o ex-soldado Duroy. Ele não despreza as 'mulheres do amor', mas o caso é que ele não tem dinheiro. Então se limita a ser um 'observador' – a admirar e invejar a diversão alheia. “Os grandes cafés, cheios de gente, transbordavam para as calçadas, expondo o público que bebia à luz radiosa e crua de suas faces iluminadas.” (“Les grands cafés, pleins de monde, débordaient sur le trottoir, étalant leur public de buveurs sous la lumière éclatant et crue de leur devanture illuminée.” I, p. 9)

Até que Duroy encontra o Sr. Forestier, um conhecido de outros tempos. Agora é um cidadão respeitado, “casado e jornalista, em boa situação” (“il était marié et journaliste, dans une belle situation” ) até por que viver bem em Paris é ter um dinheiro excedente e se enturmar nas rodas da vida social. A vida em Paris é viver em teatro, é sempre atuar/interpretar um 'papel', e Duroy sabe ser um 'bom aluno', pois “ele estudava [as atuações] como os atores estudavam os seus papéis” (“Alors il s'étudia como font les acteurs pour apprendre leurs rôles.” II, p. 28)

Mas não será as observações do mundo parisiense que deverão trazer o foco sobre Duroy. Ele foi um soldado nas colônias francesas na África do Norte e tem histórias para contar. É esse conhecimento – obtido in loco – que permite a Duroy atrair a atenção dos convivas numa cena de vida social. E atrair a atenção – sobretudo – das mulheres – leitoras ávidas de 'aventuras'.

Vous êtes irresistible, monsieur Duroy” será uma frase que ele se acostumará a ouvir. Conquista as mulheres e conquista os cargos. O sucesso depdende das relações de amizade e sexo com as 'damas de sociedade'. Até o interessante personagem – o poeta Norbert de Varenne , algo parecido com o Autor – se vê enciumado enquanto duroy comenta suas 'aventuras' na colonização francesa na Argélia,

“O velho poeta, que chegara tarde à fama, detestava e temia os novatos. Ele respondia com um ar pouco gentil.” (“Le vieux poète, arrivé tard à la renommée, détestait et redoutait les nouveaux venus. Il répondit d'un air sec” II, p. 38)

É Forestier quem 'guia' o novato Duroy por dentro do labirinto 'jornalístico'. O novo jornalista deve escrever crônicas épicas sobre as aventuras argelinas. Mas como? Duroy nada entende disso de escrever! Duroy quer ser 'jornalista' – igual ao bem-sucedido Forestier – mas quem escreve a crônica é a Sra. Forestier. E é justamente a Sra. Forestier quem 'joga' Duroy 'em cima' da Sra de Marelle.

Há portanto uma alternância de ambientes – a 'redação' e a 'alcova' – como veremos – pois a vida em ascensão se faz com 'crônicas' sem qualquer talento e com posses amorosas que mentem o orgulho masculino em alta. Na descrição da 'redação' – o ambiente do jornalismo comercial mercenário do La Vie Française, um jornaleco de um judeu burguês cheio de ligações obscuras no mundo político – temos o plano do marido Forestier, respeitado, enquanto no outro plano – a alcova, sabemos que os artigos do jornalista são ditados pela Sra. Forestier – tal como ela fizera com o novato Duroy.

Ferido no orgulho – pois é rejeitado junto aos Forestier, quando novamente solicita ajuda na 'escrita' do artigo, Duroy começa a perceber que escrever não é justmante o meio mais fácil para subir na vida. Daí a outra polaridade – a alcova – se tornar mais importante. A mulher refinada,a amante de classe alta, poderá ser um trampolim para o sucesso.

Não adiante copiar os 'romances folhetins' com passagens 'picantes' e enredos mirabolantes – tudo lugar-comum, como sabemos – pois objetivo do Narrador (e do Autor) é justamente mostrar que o que menos existe no jornalismo (diríamos 'imprensa marrom') é escrita séria, autêntica. É a mesma denúncia de Balzac quando mostra o poeta de província Lucien numa redação de jornal em Paris, no segundo parte de “Illusions Perdues”.

Assim, labutando sobre o não-talento de escritor, Duroy enquanto o tempo passa, almeja antes conquistar a Sra. De Marelle, aquele dama de sociedade, e pouco importa se a Madame é casada. Ele é um pobretão, mas ela quer apenas o amor livre, sem compromisso. A madame que é sensual, engana o marido e vive sem dores de consciência – igual às heroínas de “Relações Perigosas” (de Laclos) – a madame que adora frequentar as taverna de bairros pobres – algo tematizado em Baudelaire, e também em “Orlando”, de V. Woolf, e “Picture of Dorian Gray”, de O Wilde, segundo veremos, quando a diversão dos nobres era se divertir 'prosmicuamente' com os 'de classe baixa', os plebeus.

“Ela responde: “Ó, não, é muito chique. Queria mais qualquer coisa mais divertida (exótica), mais comum, tal um restaurante, onde vão os empregados e operários; adoro as festinhas em tavernas! Ó, se nós pudéssemos ir até o campo!” (“Elle répondit: 'Oh! Non, c'est trop chic. Je voudrais quelque chose de drôle, de commum, comme un restaurant, où vont les employés et les ouvrières; j'adore les parties dans les guinguettes! Oh! Si nous avions pu aller à la campagne!” VI, pp. 115/16)

Assim para manter esta conquista amorosa, Duroy acaba sufocando ciúmes e gastando o dinheiro recém-ganho no jornal ao sustentar os caprichos da amante. Afinal, a mulher é caprichosa – e não aceita os 'caprichos' do homem. Escândalo, vexame: a madame insultada por uma prostituta.
Portanto não causa surpresa o triste e endividado Duroy – se endividando para pagar dívidas... - enquanto mantem uma amizade (respeitosa) com a Sra. Forestier (quanto o marido está doente) a ponto de obter uma indicação para freuqentar o salão da Sra. Walter (a esposa do diretor do jornaleco, aquele judeu ricaço, já mencionado). E Duroy logo fascina as mulheres com um jeito galante e ou ditos irônicos. E realmente é como disse o Sr. Forestier – logo no início do Romance – é “ainda através das ajuda das mulheres que se pode subir na vida”.

Por falar em Forestier, cada vez mais doente, o foco volta-se para à 'redação' do La Vie Française, onde o 'bom' jornalista não tem qualquer escrúpulos. Vejam o encarregado da seção de 'Boatos', o Sr. Boisrenard. O jornalista que “trabalhava tal qual um cego que nada vê, tal um surdo que nada ouve, e tal um mudo que nada fala” (“Il travaillait comme un aveugle qui ne voit rien, comme un sourd qui n'entend rien, et comme un muet qui ne parle jamais de rien.” VI, p. 147) e só tem lealdade pelo editor que lhe paga. Aliás, os jornais vivem de 'escritores mercenários'.

“Pois se procurava, a baixo preço, críticos de arte, de pintura, de música, de teatro, um redator para a parte criminal e um redator sobre hipismo, entre a grande tribo mercenária dos escritores de prontião.” (“Puis on s'était procuré, à bas prix, des critiques d'art, de peinture, de musique, de thêatre, un rédacteur criminaliste et un rédacteur hippique, parmi la grande tribu mercenaire des écrivains à tout faire.” VI, p. 148)

Duroy descobre que até as madames nobres escrevem, usando pseudônimos – assim como no século 18, a literatura francesa teve a Madame de Staël – assim a cultura burguesa 'absorve' os talentos da nobreza, como revela a irônica Sra. De Marelle, “Os restos da nobreza são sempre recolhidos pelos novos ricos burgueses.” (“Les épaves de la noblesse sont toujours recueilles par les bourgeois parvenus” p. 159)

Mas meio a todo este elenco de arrisvistas e hipócritas, há aqui um destaque para uma personagem: o velho poeta Sr. Norbert de Varenne, que trata o jovem Duroy com certo paternalismo, e desabafa pensamentos metafísicos sobre a finitude – uma verdadeira 'seção' a la Hamlet num romance demasiadamente irônico! (Confesso que a parte do romance que mais me emociona – quase animei em traduzi-la na íntegra)

“Ah, é difícil encontrar um homem que tenha amplidão de pensamento, que lhe dê a sensação de um grande fôlego a respirar sobre o mar. Já conheci alguns, eles estão mortos.
Norbert de Varenne falava com uma voz clara, mais contida, que soava no silêncio da noite como se finalmente libertada. Ele parecia superexcitado e triste, de uma dessas tristezas que caem às vezes sobre as almas e deixam-nas vibrantes tal a terra sobre a geada.”
(“Ah ! c’est qu’il est difficile de trouver un homme qui ait de l’espace dans la pensée, qui vous donne la sensation de ces grandes haleines du large qu’on respire sur les côtes de la mer. J’en ai connu quelques-uns, ils sont morts.
Norbert de Varenne parlait d’une voix claire, mais retenue, qui aurait sonné dans le silence de la nuit s’il l’avait laissée s’échapper. Il semblait surexcité et triste, d’une de ces tristesses qui tombent parfois sur les âmes et les rendent vibrantes comme la terre sous la gelée
.” VI, pp. 160/61)

Toda a cena é poética, lírica, de uma profundidade que destoa da mesquinha 'vida de sociedade' da cena anterior. Justamente parece ser este o propósito do Autor, mostrar-se sem hipocrisias na fala da personagem menos inclinada à hipocrisia, pois já se encontra na velhice, já se despedindo da 'vida social'. (Alguns críticos lembram que nesta época o escritor Maupassant já se percebia doente.)

Diz Norbert, “A vida é uma colina. Quando se sobe, se vê o cume, e se sente feliz; mas, logo que se chega lá encima, percebe-se, de repente, a descida, e o fim que é a morte.” ( “La vie est une côte. Tant qu'on monte, on regarde le sommet, et on se sent heureux; mais, lorsqu'on arrive em haut, on aperçoit tout d'un coup la descente, et la fin qui est la mort.” p. 161) pois só pressente a presença da morte ao redor, “Só a morte é certa” (“La mort seule est certaine”)

“E depois então? E a glória? De que serve a glória se não se pode mais colhê-la sob a forma do amor?
“E depois? Sempre a morte para acabar com tudo.
“Eu, agora, eu a vejo tão perto que é preciso estender os braços para afastá-la. Ela cobre a terra e enche o espaço. Eu a descubro em toda parte. Os pequenos animais mortos nas trilhas, as folhas que caem, o fio branco percebido na barba de um amigo, me devastam o coração e grito: 'Ei-la!'”
(“Et puis encore? De la gloire? A quoi cela sert-il quand on ne peut plus la cueillir sous forme d'amour?
“Et puis, après? Toujours la mort pour finir .
“Moi, maintenant, je la vois de si près que j'ai souvent envie d'étendre les bras pour la repousser. Elle couvre la terre et emplit l'espace. Je la découvre partout. Les petites bêtes écrasées sur les routes, les feuilles qui tombent, le poil blanc aperçu dans la barbe d'un ami, me ravagent le coeur et me crient: 'La voilà!'
“ p. 163)

O ser que sente, pensa e fala jamais se repetirá – eia a angústia. (O Existencialismo aprofundará a angústia ainda mais, cinquenta anos depois...) Somente não sofrem os medíocres, sem consciência,

“Por que nós sofremos assim? É que somos nascidos, sem dúvida, para viver segundo à matéria e menos segundo o espírito, mas, devido ao pensar, uma desproporção se fez entre o estado de nossa inteligência ampliada e as condições imutáveis de nossa vida.
“Olhe as pessoas medíocres: a menos que os grandes desastres caiam sobre elas, elas se acham satisfeitas, sem sofrer da desgraça comum. Os animais tampouco não a sentem.”
Pourquoi souffrons-nous ainsi? C'est que nous étions nés san doute pour vivre davantage selon la matière et moins selon l'esprit; mois, à force de penser, une desproportion s'est faite entre l'état de notre intelligence agrandie et les conditions immuables de notre vie.
“Regardez les gens médiocres: à moins de grands désastres tombait sur eux ils se trouvent satisfaits, sans souffrir du malheur commun, les bêtes non plus ne le sentent pas
.” pp. 164-65)

(Uma nota interessante: aqui o poeta menciona a querela românticos X naturalistas, sendo Maupassant o autor que se situa, estilistica e cronologicamente, entre Victor-Hugo e Émile Zola.)
Mas Duroy não se deixa abalar por semelhante tom sinistro, 'baudelairiano' de Norbert de Varenne. Duroy passa a tratar dos boatos, os escândalos da 'alta sociedade', da vida de celebridades – trabalho medíocre para tratar de medíocres. Ele observa os 'grã-finos' e sabe dos 'deslizes' de cada um, ali a zelar pela imagem, no jogo das aparências,

“Esse jogo o divertia muito, como se ele tivesse constatado, sob as aparências severas, a eterna e profunda infâmia do homem, e que isso o tivesse alegrado, excitado, consolado.
Pois ele pronuncia bem alto: 'Bando de hipócritas!'
“Ele via os homens de finanças cuja imensa fortuna tinha por origem um roubo, e eram recebidos em toda parte, nas mansões mais nobres, ...”
Ce jeu l'amusait beaucoup, comme s'il eût constaté, sous les sévères apparences, l'éternelle et profonde infamie de l'homme, et que cela l'eût réjoui, excité, consolé.
Puis il prononça tout haut: 'Tas d'hypocrites!'
“Il vit des hommes de finance dont l'immense fortune avait un vol pour origine, et qu'on recevait partout, dans les plus nobles maisons
, (...)” pp. 167-68)

Em sua ascensão, Duroy percebe os 'bastidores' das ascensões alheias, como se 'joga' no 'cassino' da alta sociedade, o campo de batalha dos interesses egoístas. (em comparação temos o fim das ilusões que atinge Julien Sorel, em “Le Rouge” e Lucien Chardon, em “Illusions Perdues”)

Mas diferente de Sorel e Chardon, aqui em Bel-Ami, Duroy não tem 'escrúpulos de consciência' ao 'subir na vida', ao 'possuir' a mulher do próximo – no caso, a Sra. de Marelle – e em jogar o jogo das aparências, a ponto de ir jantar na casa da amante e travar conversa com o marido traído! (Há toda uma ironia que encontramos no nosso clássico Machado de Assis, principalmente em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” - e trechos de “Dom Casmurro”)

No capítulo VI, da Primeira Parte, temos o 'campo de batalha' da redação do jornal e o 'campo de honra' de um duelo – duelo motivado por querelas entre jornalistas – afinal, a cena de duelo não pode faltar nos romances do século 19 – assim como as tramas de adultério. Temos a cena de duelo no “Eugênio Oniéguin” de Pushkin – o Autor que, ironias à parte, morreu num duelo! - temos o duelo de Julien Sorel, temos o duelo de Victor-Hugo (sim, o Autor!), temos o duelo em “Os Possessos” (ou “Os Demônios”) de Dostoiévski. Outro literato que viveu um duelo fora e dentro da ficção foi o russo Mikhail Lermontov (autor de “Um herói do nosso tempo”, 1840)

Mesmo achando arriscado e idiota aceitar tal duelo – vide também a reação de Julien Sorel, na obra de Stendhal – Duroy não rejeita o desafio,

“Como era besta tudo isso, essas coisas! O que isso provava? Um gatuno era menos gatuno após ter se batido? O que ganhava um homem honesto insultado que arriscava sua vida contra um crápula? E seu espírito vagabundeava neste escuro a se lembrar das coisas ditas por Norbert de Varenne sobre a pobreza do espírito dos homens, a mediocridade das ideias e preocupações deles, a ninharia da moralidade deles!” (“Comme c'était bête tout de même, ces choses-là! Qu'est-ce que ça prouvait? Un filou était-il moins un filou après s'être battu? Que gagnait un honnéte homme insulté à risquer sa vie contre une crapule? Et son esprit vagabondant dans le noir se rappela les choses dites par Norbert de Varenne sur la pauvreté d'esprit des hommes, la médiocrité de leurs idées et de leurs préoccupations, la niaiserie de leur morale!” p. 181)

Mas o duelo ocorre – somente para a volúvel emoção dos leitores – ou, quiçá, principalmente das leitoras. Ninguém é ferido.

O resultado do duelo é outro degrau na ascensão de Duroy. Os outros 'jornalistas' passa a respeitá-lo, e seu estilo é destacado – atinge, então, uma 'reputação'. Passa a morar no apartamento alugado pela amante – deixa assim, o 'cortiço' de subúrbio.

Nessa época, piora a saúde de Charles Forestier – o homem que ajudou Duroy a 'sair da lama' – e é bem possível que a real escritora Madeleine Forestier será em breve viúva. Duroy vai visitar o casal numa 'villa' de Cannes. Aqui as cenas de agonia representam - no plano dramático - a encenação dos devaneios metafísico de Norbert de Varenne em cena anterior (cap. VI) – a morte não é 'tematizada', é demonstrada.

“E Duroy de repente se lembra do que dizia Norbert de Varenne, algumas semanas antes: “Eu, agora, vejo a morte tão perto que é preciso estender os braços para afastá-la.” (“Et Duroy tout à coup se rappela ce que lui disait Norbert de Varenne, quelques semaines auparavant: 'Moi, maintenant, je vois la mort de si près que j'ai souvent envie d'étendre le bras pour la repousser... (...)” VIII, p. 206)

Presenciamos, enfim, a morte de Charles Forestier, as propostas de Duroy à recém-viúva Madeleine, e o encerramento da Primeira Parte do romance.


continua...




ago/set/10


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Bel-Ami (em francês) no Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Bel-Ami
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sábado, 9 de outubro de 2010

sobre O Fauno de Mármore - parte 2







Sobre O Fauno de Mármore
(The Marble Faun, 1860)
do escritor norte-americano
Nathaniel Hawthorne (1804-1864)


Entre a Arte e a Fé, entre a Estética e Ética



Parte 2


Este é um romance que teria melhor disposição se fosse dividido em 2 partes. [Foi dividido em dois volumes no Project Gutenberg.] O motivo? A mudança total de cenário, além de um tom ultra-romântico para um estilo mais bucólico, arcadista (como diríamos aqui nas Minas Gerais...) Há uma sensível mudança de vocabulário e vivências das personagens.


É no Cap XXIV que encontramos a mudança de cenário – saem as ruínas, surgem os campos e colinas. Estamos no Monte Beni. Lembramos que o subtítulo do livro é “O Romance de Monte Beni”, e agora entendemos o motivo. Se o capítulos 1 a 23 têm o foco em Roma, do 24 ao 50 teremos outros cenários, até o final novamente em Roma.

Encontramos, em pleno verão, Kenyon a cavalgar para a região dos Apeninos na Toscânia. Situa-se entre os outros anfitatros de arte na Itália. Toscania, Florença, Veneza. O verão ensolarado em contraste com o sombrio inverno em Roma. (roma que então recebe o fluxo de turistas de toda a Euroap e América...) No Monte Beni temos a descrição bucólica – arcadista em contraste com o ambiente quase gótico – barroco de antes (principalmente nos capítulos 16 a 21) O vocabulário sofre mudanças (muda o 'campo semântico': 'spacious valley', 'summer time', 'mountain-towns', 'hill-side', 'streamlet', 'landscape', 'Nature', etc) para se adpatar a um outro olhar (para onde é guiado o Leitor já cansado de ruínas...

Presenciamos a visita de Kenyon ao jovem Conde Donatello. (O Narrador faz questão de recordar o título do jovem italiano) Mas, ao chegar, Kenyon nota um diferente Donatello – não aquele jovem que conhecemos em Roma – não é mais o espontâneo e vivaz confundido com o Fauno de Praxíteles. Não há mais animação – agora um ar sério, um semblante de gravidade. Mas Donatello se alegra com a chegada do visitante, que aprecia a quase 'torre de marfim' do nobre – acima do mundo.

“Eu tenho te imaginado numa espécie de vida arcadista, degustando figos suculentos, e espremendo o suco de ensolaradas videiras, e dormindo ruidosamente toda a noite, após um dia de prazeres simples.” (“I have fancied you in a sort of Arcadian life, tasting rich figs, and squeezing the juice out of the sunniest grapes, and sleeping soundly all night, after a day of simple pleasures." p. 184/85)

Mas esta foi a vida de outrora – quando foi criança. “O tempo passa e deixa sombras.” (“Time flies over us, but leaves its shadow behind.") Este tema do carpe diem, de o tempo nos devora e tal, é nada original... , mas é original, peculiar em Donatello, toda esta 'fala grave', séria, fruto de angustiosa reflexão.


Mas adentremos a vida bucólica. A degustação de vinho produzido ali mesmo no vinhedo da propriedade. O refinado Sunshine – raio de sol – vinho do Monte Beni. E vinho lembra Baco, o deus festivo, sempre acompanhado pelas Bacantes, pelas ninfas e faunos. Um vinho não produzido para o mercado, para o lucro, mas para o prazer à mesa - um vinho para se oferecer aos convivas. O vinho enquanto símbolo da hospitalidade – no mais melhor degustar o vinho em sua (dele) própria terra, não adulterado pelo transporte.


Temos adescrição da propriedade rural, a imponência e rusticidade do casarão. “Nas paredes desenhos de caráter festivo e alegre, representando cenas arcadistas, onde ninfas, faunos, e sátiros se divertiam, meio aos jovens e donzelas mortais; e Pã, e o deus do vinho, e ele de luz solar e música, não desdenhava brilhar tal algum bricalhão silvestre com a raramente velada glória de suas presenças.” (“The designs were of a festive and joyous character, representing Arcadian scenes, where nymphs, fauns, and satyrs disported themselves among mortal youths and maidens; and Pan, and the god of wine, and he of sunshine and music, disdained not to brighten some sylvan merry-making with the scarcely veiled glory of their presence.” pp. 190/91)


Temos o ambiente alegre e agradável, de singeleza e bem-estar, de plena comunhão entre o homem e a Natureza. (como se tal fosse mesmo possível...) e o vocabulário novamente é adaptado, as palavras refletem um novo brilho ('brightness', 'festive', 'gorgeous', 'enlivening', 'splendour' , 'cheerfullest ideas ans emotions', 'harmonious glow and variety of color')

A vida no campo é constraste para a vida na cidade decrépita. Mas a vida no campo também está decadente, não é mais igual aos 'tempos de outrora', assim como os afrescos (desenhos) nas paredes. Desenhos que são antigos, estão desbotados, são agora “lembranças de um passado feliz”.


A decadência das imagens alegres mostra a “instabilidade das alegrias terrestres” (“instability of earthly joys”, p. 192) segundo diz Kenyon. De fato, Donatello está sombrio, pois concorda com o visitante, sim “sombrio, pensativo e penitente”, segundo as palavras de Kenyon. A proposta de Kenyon: fazer um busto do Conde. Afinal, o jovem nobre não se parece tanto com o ideal clássico arcadista – um fauno?

Donatello, no entanto, não se mostra muito animado, mas aceita. De repente, um tema reprimido (e de interesse de ambos) aparece: Miriam. E Kenyon revela que a pintora foi embora de Roma pouco depois da viagem do jovem nobre. O assunto é logo encerrado, os jovens conversam, num passeio. Mas a converssa é 'insatisfatória', cercada de “silêncios sombrios” - toda a graça peculiar de Donatello se perdeu, somente sobrou um homem entristecido. Se usarmos categorias do pensamento de Nietzsche, diríamos que Donatello deixou de ser dionisíaco – espontâneo, cheio de vivacidade – para tornar-se um apolíneo – agora pensativo, tímido, contido.


Temos a árvore genealógica, o 'pedigree' dos nobres do Monte Beni, que remota há pelo menos uns mil anos. Raízes que remotam à decadência do Império Romano. O peso da tradição, da venerável linhagem. Temos assim o interesse 'romântico' por antiguidades, ruínas cobertas por musgo, castigadas pelo Tempo inclemente... Tesouros de família que romotam às brumas da Idade Média... ou à 'eras imemoriais'.

Tudo isso fascina ao escultor – como forma de possível moldura ou explicação para a exótica semelhança de Donatello com uma entidade pagã – o fauno. Corre uma lenda que os nobre de Monte Beni se acreditavam descendentes de povos gregos, de origem asiática - “a mesma familia feliz e poética que habitavam na Arcádia” (“the same happy and poetic kindred who dwelt in Arcadia.” p. 197) e legaram as fábulas e mitos sobre as entidades da Natureza, os faunos, os sátiros, as ninfas.

Os mitos e as idealizações – bodas entre figuras míticas e humanos. Toda uma raça de homens com paternidade selvagem. “Eles eram fortes, ativos, geniais, radiantes tal o raio de sol, pasionais tal qual o tornado. Suas vidas eram jubilosas devido a uma pronta harmonia com a natureza.” (“They were strong, active, genial, cheerful as the sunshine, passionate as the tornado. Their lives were rendered blissful by an unsought harmony with nature.” p. 197)

Uma imagem idealizada, claro. Mas possível, se comparada com a cultura medieval, de penitência e sacrifício. Tempo de constantes guerras, ou pestes, a Itália dividida em reinos e cidades-Estados rivais, e assim desunida, alvo fácil para os invasores. (em 1860 se iniciava o processo de unificação da Itália, que prosseguiu até 1870-80)

O estilo predominante em dois-terços do capítulo XXVI é a dissertação, as digressões do escultor sobre as linhagens e tradições do local (Monte Beni).

A família nobre conserva qualidades tais como “simplicidade e naturalidade”, além de traços físicos e fisionômicos que o escultor percebe nos quadros e retratos. A curiosidade onívora de Kenyon abrange imagens e documentos. Papéis corroídos e mofados reconstiruem uma história – somadas às lendas narradas pelos serviçais, camponeses de longa data. Um olhar sobre a infância de Donatello – crinça ativa, esportiva, a brincar entre as outras crianças “um tanto rústicas”. Uma criança que não temia ferir-se, pois se integrava aos “elementos da natureza”.

“Numa palavra, tanto o que ele ouviu nestas lendas quanto outras, Kenyon poderia imaginar que aqueles vales e colinas ao redor dele era a verdadeira Arcádia. E que Donatello não foi apenas um fauno silvestre, mas o genial deus do vinho em pessoa.” ( “In a word, as he listened to such tales as these, Kenyon could have imagined that the valleys and hillsides about him were a veritable Arcadia; and that Donatello was not merely a sylvan faun, but the genial wine god in his very person.” p. 201)

O quanto Donatello mudou depois de voltar de Roma! Roma, “a cruel e miserável cidade”. Conversando com os serviçais e camponeses, Kenyon percebe que também eles notaram a tristeza do jovem Conde. E de como, agora, o mundo parece 'mais triste' (“the world is sadder now”). Pois atualmente – meados do século 19! - “O inteiro sistema dos negócios humanos, como atualmente estabelecido, está construído com o propósito de excluir a alma feliz e despreocupada” (“The entire system of man's affairs, as at present established, is built up purposely to exclude the careless and happy soul.” p. 202) Ou seja, a mesma 'denúncia' da contracultura de um século depois!


Pois “É a lei férrea em nossos dias exigir um objeto e um propósito na vida. Isto nos faz todos partes de um complicado esquema de progresso, o qual pode apenas resultar em nossa chegada a uma região mais fria e tediosa do que aquela em que nascemos.” (“It is the iron rule in our day to require an object and a purpose in life. It makes us all parts of a complicated scheme of progress, which can only result in our arrival at a colder and drearier region than we were born in.” p. 202)

Aqui fala o Artista em contraponto ao mundo do progrsso, da eficiência, da utilidade – como já notamos no capítulo XVI. Arte X Utilidade. Assim é impossível o jovem conde atual ser igual aos seus antepassados – em harmonia com a Natureza, numa época de transformações – principalmente na futura Itália. (Encontraremos esta temática em “Os Noivos” de Manzoni e “O Gatopardo” de Lampedusa, além de “A Bela Estação”, de Pavese, segundo veremos no panorama da Literatura Italiana.)


É este mundo antigo idealizado que os tradicionalistas, os fascistas, queriam resgatar com seus 'corporativismo'. Interessante que tal contraponto: Itália moderna X Itália clássica aparece em escritos de Goethe e Lord Byron – ambos apaixonados por uma Itália idealizada – ensolarada, vivaz, espontânea.

O jovem Conde desce de sua (dele) torre para passear com o visitante, o escultor. Paisagens bucólicas, lavouras, colinas, arvoredos, fontes. Lembramos sempre que Donatello simboliza a vida silvestre, o bucólico, o arcadismo. O jovem conde relembra a infância, os “recantos encantadores” das brincadeiras infantis – o momento de ser singelo, pois a criança ainda não se sente culpada. A infância é o momento de ser feliz – e para resgatar este momento de felicidade somente o poeta é capaz.


O cenário sempre surge cercado de uma moldura fantástica. Onde figuras míticas das lendas populares habitaram em tempos de outrora. Nestas paisagens de sonho e vida idílica habitavam os faunos e ninfas – símbolos da 'vida natural'. “Lendas selvagens” de “poderoso encanto”, segundo se entusiasma o escultor.


Não são lendas divertidas ou risíveis, mas alegorias até graves e sombrias. O que era natural à criança, é estranho ao adulto. O “homem natural” é aquele ser infantil (no bom sentido!) que vive anterior a 'sofisticação do intelecto humano', quando o ser humano podia 'ler' na Natureza os sinais e simpatias que garantiam uma espécie de irmandade. Essa é uma idealização – ao estilo 'bom selvagem' de Rousseau – pois não sabemos se em algum momento houve uma simbiose Humanos – Natureza. Desde quando a Natureza é 'amiga' do ser humano? Idealizamos a Natureza, mas ela sequer nos reconhece. Faz frio, faz sol, chove, o homem que se aqueça, ou se refresque, ou se abrige. O corpo do Homem é parte da Fauna...

[O que não havia é a forma 'industrial' de exploração e devastação de flora e fauna que existe nos últimos 500 anos. No mais, a população humana cresce em progressão geométrica, e os recursos renováveis em progressão aritmética (e Malthus disse algo parecido há 400 anos...), e os não-renováveis, o nome já diz – não se renovam, acabam, acabou-se.]

Donatello sabe que a Natureza não mais 'se comunica' com ele – até parece rejeitá-lo. Saberá a fauna e flora sobre o crime cometido junto às ruínas de Roma? Toda a angústia de Donatello se reflete na relação próxima com os seres naturais – toda a angústia se revela enfim ao atôntio escultor. “nenhum ser inocente se aproxima de mim” (“No innocent thing can come near me”), desespera-se o conde.

No que muito se assemelha ao drama de Miriam na primeira metade do Romance. A 'maldição' de Miriam se transmitiu a Donatello – e bem que ela tinha avisado. (vide o cap. XVI, Passeio ao Luar) Kenyon tenta consolar o amigo, “todos nós, quando crescemos, perdemos algo de nossa proximidade com a natureza. É o preço que nós pagamos pela experiência.” ( "We all of us, as we grow older," rejoined Kenyon, "lose somewhat of our proximity to nature. It is the price we pay for experience." XXVII, p. 212)

Ao que Donatello responde, se recuperando, “É um pesado preço, então.” nesta cena enquanto alegoria à um paralelo com a perda do Paraíso, quando Adão sabe demais. Meio a toda esta alegoria / teologia, percebemos que o Narrador – quando não o Autor – tem claros objetivos moralistas. Este 'moralismo' rompe com a estética arcadista em muitos ângulos. Pesa e oprime o Leitor com metafísicas em plena natureza.

Kenyon quer conhecer a torre onde mora o Conde. A torre onde se refugia o solitário, o meditativo, o poeta – acima dos 'mortais'. Referência à Lord Byron, “Qualquer homem seria um poeta, tanto quanto Byron, com semelhante vinho e semelhante tema. Mas, vamos subir à tua torre?” (“Any man might be a poet, as well as Byron, with such wine and such a theme,” rejoined the sculptor. “But, shall we climb your tower?” XXVIII, p. 214)

Aqui a torre surge como um microcosmo gótico meio a um macrocosmo bucólico. Em muitas obras, há o terror a invadir o mundo rural – é o gótico a destruir a 'singeleza' do bucólico – vide “A Abadia de Northanger “ de Jane Austen (veremos em breve) A torre é símbolo da reclusão, do isolamento, da prisão, da vida monástica, ali habitada por mochos e espectros, a torre é 'unheimliche' – o sinistro, o indomesticável.

As corujas são as únicas criaturas a não abandonarem o sombrio Donatello. Mas isso apenas reforça a metamorfose do jovem Conde, “Quando eu era criança selbagem e brincalhona, as corujas não gostvam tanto de mim” (“When I was a wild, playful boy, the owls did not love me half so well.” p. 216) Para Donatello, a torre é mais prisão do que reclusão, ele que não se penitencia, mas oculta um pecado...


Nesta cena, pela primeira vez, uma distinção 'católico' e 'herético' (isto é, protestante) é evidenciada. De repente, lembramos que a Arte é o único 'denominador comum' entre os dois personagens. Um é nobre, italiano, católico, e o outro um auto-exilado artista note-americano, protestante. “Você herege, eu sei, tenta rezar sem mesmo ter um crucifixo diante do qual se ajoelhar.”, recrimina o católico nobre.

Kenyon mostra que sofre menos com a ideia de ser mortal, pois prefere acreditar nas 'esperanças imortais'. “É absurdamente monstruoso, meu amigo, jogar assim o peso mortal de nossa mortalidade sobre nossas esperanças imortais.” (“It is absurdly monstrous, my dear friend, thus to fling the dead weight of our mortality upon our immortal hopes.” p. 217) O peso aqui é aquele da culpa. Pois os antepassados de Donatello sempre amaram a vitalidade e abominavam qualquer 'pensamento de morte'.


Se o interior da torre é 'gótico', a visão exterior é 'bucólica' – colinas, vinhedos, olivais, aldeias, conventos, capelas, rios – num constraste dentro X fora, miséria X fartura – que se entende melhor com a alegoria – Moisés a observar a Terra prometida, ao estar numa condição precária a admirar uma promessa de bem-aventurança, materializada na ampla paisagem de uma planície ensolarada.

É a beleza da Natureza que desperta a reverência religiosa em Kenyon – não o medo da morte, ou a culpa. É preciso 'ler' a Natureza tal qual um livro sagrado; mas sem recorrer às palavras, à linguagem humana. “É um grande mal-entendido tentar colocar nossos melhores pensamentos em linguagem humana” (“It is a great mistake to try to put our best thoughts into human language”, p. 219) diz o escultor. O importante aqui é elevar-se em meditações, em 'voo espiritual' diante da paisagem contemplada. [Há vários quadros de pessoas a contemplarem paisagens na tradição romântica – as pinturas de Turner, de Gaspar David, de Bierstadt, etc.]

Contraponto – altura X precipício. As alturas seduzem e fascinam Kenyon. Enquanto os abismo causam funesta atração. A simples referência ao precipício que atrai, feita por Kenyon, traz horror ao pobre Donatello que relembra um outro precipício – e um corpo que cai... É uma terrível forma de morrer. A queda, o choque, os ossos quebrados... Kenyon até se asssusta com o horror passional do amigo – não sabe que o outro DESCREVE o crime !

Kenyon aliás teme que o amigo sofra – por acidente ou intenção – uma queda do alto da torre. Mas Donatello considera-se muito covarde para agir assim, isto é, para jogar-se dali de cima. O escultor passa a ter pena do nobre amigo, de feliz nascimento, dadivosa ascendência e agora vitimado por sombrios pensamentos aflitivos – mas qual o motivo da Culpa?

Não há mais aquela 'simplicidade' no espontâneo jovem, mas uma sensibilidade atormentada, “uma inteligência que começava a lidar com assuntos elevados, embora de um modo débil e infantil.” (“an intelligence that began to deal with high subjects, though in a feeble and childish way”, XXIX, p. 222) A culpa traz consciência e meditação: traz, então, alguma compensação. Uma lição que vem através da aflição, mas uma lição que já está em nós. (“the instruction comes without the sorrow; and oftener the sorrow teaches comes without the sorrow; and oftener the sorrow teaches no lesson that abides with us.” p. 222) E pior para Donatello: ao não falar francamente, ninguém pode ajudá-lo a enfrentar o remorso. E parece que o jovem até gosta de torturar-se...

Mas no estilo notamos que a 'narrativa' (o récit) é o que menos importa. O enredo é apenas uma 'desculpa' para o Autor (confundido com o Narrador) tecer longas digressões sobre 'assuntos elevados', o pecado, a culpa, a redenção – no que muito se aproxima de Lord Byron (nos Cantos III e IV de “Childe Harold”, e vários trechos de “Don Juan”), de Proust, de V Woolf, e Clarice Lispector. A narrativa serve à filosofia (ilustrando-a), enquanto as personagens servem à simbologia /alegoria.

Enquanto isso Kenyon nutre seu amor por Hilda – uma imagem sacra de idealizações. A mulher enquanto objeto de culto mais do que objeto erótico. Enquanto isso – e saberemos no cap. XXXVII – Hilda pensa em Kenyon. O amante vê na Amada o que deseja ver, assim como dois observadores de uma determinada nuvem pode encontrar nesta imagem a Mulher desejada.

No mais, Donatello revela sua ideia de trocar a torre por uma cela, isto é, a vida monástica – o que muito surpreende Kenyon, “O que? Tornar-se monge? Ideia horrível!” Kenyon despreza a miséria da vida monástica. Kenyon prefere ser 'filantropo' – os católicos preferem penitências, peregrinações, oferendas, enquanto os protestantes fazem campanhas de donativos, e doam fortunas para fundações filantrópicas. Mas Donatello pensa que é bem próprio de um 'herege'... e na expressão do jovem ressurge um fulgor do Fauno de outrora.


O escultor dedica-se a trabalhar no busto de Donateelo, pois almeja apresntar as feições exteriores e também as características pessoais. Processo que envolve muita interpretação. Muito do projeto inicial, idealizado por Kenyon, deve ser alterado – tanto quanto mudado está o 'modelo'. Pretende, assim, retratar o drama moral através de um traço fisionômico! “Vã expectativa!”


A escultura nãoa grada ao artista nem ao modelo – até que Kenyon cria, sem intenção, um aspecto distorcido à argila, “uma aparência distorcida e violenta, a combinar a ferocidade animal com ódio consciente” (“a distorted and violent look, combining animal fierceness with intelligent hatred”, XXX, p. 231) É esta aparência desarmônica que o modelo prefere: a marca do crime. [Esta cena do escultor e o modelo diante da obra de arte, lembra-me as cenas do pintor Basil e o jovem Dorian Gray no clássico de Oscar Wilde..]


Mas Kenyon se recusa a eternizar a imagem do remorso. “É necessário que voc atravesse o vale das sombras” (“It was needful for you to pass through that dark valley”, p. 231) Kenyon prefere a espontaneidade o 'Fauno' de outrora do que o jovem atormentado por pensamentos de culpa. Enquanto não trabalha na escultura, Kenyon passeia pelos campos e vinhedos do vale italiano, deliciando-se com a vida rural, onde pode encontrar jovens saudáveis e bronzeados, ali junto as terras do Monte Beni que muito se assemelha aos “habitantes de uma não-sofisticada Arcádia”. Faltam apenas os faunos ou o própri Baco... E , ao mesmo tempo, compara o encanto de Monte Beni à imagem bíblica do antigo Éden, de onde Adão e Eva foram expulsos, na lenda hebraica.

Então temos Miriam novamente na narrativa. Durante sete vapítulos – umas 55 páginas – convivemos com Kenyon e Donatello, rodeados por vida burocrática. A senhorita espera o escultor na capela da 'villa'. Lá estão peças de arte da propriedade de Monte Beni.

Ao encontrar a pálida Miriam, no salão da capela, o escultor até imagina que Srta está doente. A Miriam retorna como uma autêntica heroína de romance gótico – repentina, pálida, dramática. Ela parece mais um 'herói byroniano' num corpo feminino. Infortunado aquele que se aproximam de sua vida e enigma.

O sofrer de Miriam nada mais é do que o ruminar da culpa, o corroer do remorso, o definhar da misantropia. E o horror de Miriam aumenta quando ela percebe a mágoa de Donatello. Mas Kenyon acredita que ainda há paixão possível entre a Srta e o jovem conde. Donatello sabe sobre a presença de Miriam – mas continua a punir a si-mesmo ao evitar qualquer contato com ela.

Assim explica o escultor, e a visitante se acalma. Enquanto isso, Kenyon descreve a 'metamorfose' íntima do jovem Conde. “O mundo do pensar se abre para a visão interior” do Adão expulso do Paraíso. Miriam pretende ajudá-lo, ela que partilha a mesma culpa; mas teme as atitudes passionais que pode despertar. Kenyon pretende convidar Donatello para uma excursão, na qual Miriam poderá oportunamente se encontrar. A srta sugere a grande praça de Perugia, cidade turística.

A excursão até Perugia segue através da vida bucólica no norte italiano – a toscania. Eis o 'encanto de Arcádia' das regiões silvícolas. Daí o estilo do cap. XXXII em pleno tom arcadista, em contraponto a cena claustrofóbica na capela, no capítulo anterior. Assim sentimos melhor o 'espaço aberto' porque acabamos de sair de um 'espaço fechado'.

Aqui os camponeses ('contadini') fazem parte da paisagem. Em nenhum momento o Narrador apresenta um retrato realista da vida dos camponeses. O excesso de idealização encobre o processo de dominação, esconde os conflitos de interesses. Os casebres são contemplados junto com os olivais, a miséria não sofre um 'olhar radiográfico' – característico no clássico de Victor-Hugo, “Os Miseráveis”.

As descrições se prendem ao caráter estético – 'narrow street', 'grim ugliness of the houses', 'stone built, gray, dilapited', 'dark and half-ruinous habitation', 'hideous scene' – que obviamente revelam um 'olhar estrangeiro' – o Narrador certamente NÂO é italiano. Compara os camponeses italianos com aqueles da Nova Inglaterra. Na verdade, o olhar aqui é o de 'turista' – superficial, não adentra a realidade social.


No mais, elementos destoam. A penitência, o sacrifício, a auto-tortura da vida religiosa destoa do 'bucolismo'. É um olhar de protestante que deita-se sobre a tradição católica, sobre a identidade cultural italiana. O Narrador compartilha aqui os sentimentos de Kenyon – chega a referir-se ao jovem conde como “nosso pobre Donatello” - tal qual Kenyon em outros momentos.

Seguem-se outras cenas em campo aberto em contraponto aos vitrais das igrejas góticas. Caminhadas e visitas às igrejas. As cidades e suas arquiteturas tradicionais, em tantas comparações entre a Itália e a New England. A arquitetura gótica provoca tristeza e temor, enquanto o verdadeiro templo – a Natureza – resplandece diante de todos... A religião é sombria em sua ambientação gótica, causa mais temor do que júbilo. Daí citar obra de John Milton, com traços de Barroco. [Lembramos que entre Milton e Byron – os séculos 17 e 18 – está a Augustan Age, na Inglaterra, numa espécie de 'neoclassicismo', e também pré-romantismo, com os Graveyard Poets].


Para Kenyon, há na cultura italiana um maior peso da tradição. Mas, em tudo, Donatello continua sombrio. Pouco se assemelha ao resignado Adão, parece antes o angustiado Caim (aquele do poema-drama de Lord Byron, segundo já vimos)

http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/09/sobre-obra-poetica-de-lord-byron-12.html


Os capítulos XXXII e XXXIII só se explicam por serem escritos por um estrangeiro: um norte-americano protestante tentando entender a cultura italiana católica. As questões do pecado e penitência são constantes. No capítulo XXXIV temos a chegada à cidade de Perugia. Situada na Umbria, ao sul da Toscania.

Em Perugia destacam-se os afrescos, e também o mercado, a feira-livre na cidade. O comércio de mercadorias, artesanatos, mercadores, hortigranjeiros. O Narrador se permite ser menos grave, até ousando 'pilhérias' com humor britânico, “todos tão loquazes que mais palavras foram gastas em Perugia, neste dia de mercado, do que na praça mais ruidosa de Roma expressaria durante um mês.” (“everybody so loquacious, that more words were wasted in Perugia on this one market-day, than the noisiest piazza of Rome would utter in a month” , XXXIV, p. 265)

Miriam, junto a estátua na praça de Perugia, revela-se a Kenyon. Mas hesita em abordar Donatello. Miriam prefere falar sobre a 'reclusão' de Hilda. Finalmente, Donatello percebe a presença de Miriam, que sente a mudança daquele ao qual se uniu em 'crime mútuo'. (Nestes momentos 'românticos' temos o tom dos clássicos de Jane Austen, Lord Byron, Emily Brontë, isto é, os clássicos do 'sofrer de amor' que atravessaram o século 19.)

Mas um fato é importante na Narrativa. Nós, os leitores, sabemos sobre o crime mútuo de Miriam e Donatello, mas Kenyon não sabe. (ou finge não saber – caso ele seja o Narrador?) Kenyon deixa os amantes reconciliados e segue para Roma, onde deseja consolar a pobre Hilda. Assim, o foco narrativo volta para a “Cidade Eterna” onde está a 'torre de Hilda'.

No capítulo XXXVI, o Narrador volta a descrever o 'cadáver' de Roma – a decadência, as ruínas... a Cidade Eterna só conserva ruínas do antigo esplendor. Voltamos ao cenário dos primeiros capítulos – saímos totalmente da atmosfera bucólica da 'torre de Donatello' lá nos Apeninos.

Vários símbolos aparecem para ilustrar o 'plano alegórico' da Narrativa. Fartura de imagens religiosas: Hilda e a Virgem. Paraíso, Eden, e expulsão (de Adão e Eva) . Todo o estilo narrativo tem inúmeras referências – porém não mais que em outra obra carregada de drama religioso, “A Letra Escarlate” (como já citamos). O Narrador usa sempre o pronome coletivo 'we' (nós) mais frequentemente que nos primeiros capítulos – e não usou nos capítulos 24 a 36. este NÓS representa mais de um Narrador OU a junção Narrador + Leitor?

O crime de Miriam e Donatello contamina o cúmplice Donatello e transtorna a testemunha Hilda. Somente Kenyon permanece 'acima' de tudo e todos – e pode ser mesmo o Narrador. O único 'ponto fraco' de Kenyon é a idealização de Hilda. (Mas o que o amor não faz?) Se Kenyon é o Narrador – em algum momento ele deverá saber do crime.

A testemunha sofre. Hilda sente a solidão enquanto visita as galerias de arte na velha Roma. Lá onde – sob o peso da autoridade, da tradição – é preciso seguir em reverência aos 'old masters'. Toda uma tradição que conserva a Arte e ao mesmo tem sofre o ataque dos inovadores – que se tornarão os conservadores de amanhã... Uma tradição que foi seguida no Barroco, no Neoclassicismo, no Romantismo, mas recusada no Simbolismo, no Modernismo... Contra a tradição, o artista se martiriza pela Arte! Aquele ousa ser o pioneiro sofre as consequências. O admirador comum apenas deixa-se render, submeter-se à força da obra de Arte.

“Deixe a tela brilhar como deve, você deve olhar com os olhos da fé, ou sua sublime excelência foge a você.” (“Let the canvas glow as it may, you must look with the eye of faith, or its highest excellence escapes you” , XXXVII, p. 285) O admirador deve usar e ampliar a sensibilidade e a imaginação. Muitas obras brilham mais ao tocar a percepção do admirador do que em si mesmas, ou mérito do Autor.

O Narrador, por sua vez, envolvesse numa digressão sobre as obras de Arte, principalmente pinturas. Os motivos, os temas, os mestres, as tradições. Personalidades, imagens religiosas, figuras mitológicas. Podemos até rastrear a questão Autor X Obra aqui neste Narrador: é preciso valorizar as Obras, não os Autores (expressam idealizações de si-mesmos e suas ideias), “eles [os autores] tentam expressar ao mundo o que eles não têm em suas próprias almas.” (“they essayed to express to the world what they had not in their own souls.” XXXVI, p. 288)

Por outro lado, o Narrador sempre a buscar a cumplicidade do Leitor ('nós damos expressão' ou 'nós lembramos também que'), a referir-se a Hilda ora com ternura, ora com piedade ('pobre Hilda'). Sim, a Hilda se sente desiludida em suas visitas. É o 'demônio da fadiga', um Mefistófeles (vide o Faust, de J W Goethe) que destrói toda a outra magia. “Ele aniquila cor, calor, e mais especificamente, sentimento e paixão, com um toque.” (p. 285)


A obra de Arte pode não passar de artifício, um polido esmalte... Homens nada santos ousam pintar, representar a santidade e a pureza... Hilda começa a sentir isso. A Arte enquanto artifício, não autêntica, sendo até hipócrita, e se deixa deprimir. A moça sofria a melancolia ao perambular pela vastidão da galeria. Onde o fulgor da Arte, que ela antes sentia? Galerias de palácios romanos – que mais parecem corredores de prisão... algumas partes até retomam o tema 'ruínas da glória antiga', “Ó medonhas ruas, palácios, igrejas e sepulcros imperiais da quente e empoeirada Roma, atravessada pelo enlameado Tibre, em redemoinhos, e não um ribeiro dourado.” (p. 291)) Aqui a escrita quer ser pintura: a ânsia do romancista em ousar ser um pintor! Pintor X poeta – imagem X palavra: quem é mais puro, mais sagrado?

O Narrador busca compartilhar responsabilidades com o leitor? “Não devemos trair a segredo de Hilda” - e qual segredo? Ah, as saudades que ela sente do escultor! Ela espera aliviar o próprio fardo, ao compartilhar com ele o terrível segredo ( o crime testemunhado) E na mesma tarde kenyon sentiu que devia voltar à Roma, “Naquela mesma tarde, como o leitor deve se lembrar” (“that very afternoo, as the reader may remember,”) quando ele sentiu também uma saudade... (refere-se ao capítulo XXIX) Hilda olha de Roma para os montes, onde Kenyon olha na direção de Roma – mais romântico, impossível.

O consolo da fé poderia atrair a desconsolada Hilda (criada no puritanismo da Nova Inglaterra) A religião promete consolo e remédio para todos as carências humanas... ainda mais o Catolicismo, com pompa e rituais, altares e incensos... Cercada de templos, ao visitar igrejas, Hilda pode se deixar seduzir. O Catolicismo, num sistema de ritualismo, enquanto exagero – aqui o barroquismo, p. ex. - de pinturas, vitrais, mosaicos, colunas, esculturas, arcadas, etc, enquanto o puritanismo destaca-se pela simplicidade, ascetismo. Existem capelas para cada devoção... E prece e culto é o que não falta na capital do Catolicismo – a magnificiência feita para que o fiel se sinta insignificante, e assim submisso ao poder do Clero.

Imagens sacras de mulheres – Maria (Virgem) , Eva – em relação ao Salvador. Eva fez nascer o pecado; enquanto a Virgem Maria fez nascer o Salvador. Hilda, a virgem, deve buscar o consolo da Virgem católica? Pensmentos religiosos se mesclam às descrições da Catedral de São Pedro – quanto ouro roubado da Cristandade para se construir tal prepotência...! “Onde milhares de adoradores se ajoelham juntos”. É sempre um modo comparativo: o Catolicismo em relação ao Puritanismo. Ou um puritano a observar o mundo católico...

Cada personagem tem uma temática e um estilo. Ainda a acompanhar Hilda, o tema é religioso, a descrição do mundo religioso – a arquitetura e o idealismo. Descrição da 'catedral do mundo', a de Basílica de São Pedro. A santidade, a devoção: estar separado do mundo terreno. Não se procura uma transformação do mundo, mas alcançar um outro mundo, além, acima.

A Fé que traz consolo – perdão para os pecados que a própria religião cria... Aqui, Hilda sente-se 'herege' – afinal, ela é protestante – mas resolve confessar-se! Assim, ela ao menos desabafa o crime que testemunhou. E a encontrar um alívio. Mas o padre percebe que é a primeira confissão da 'devota', e ela declara ser da Nova Inglaterra, criada como uma 'herege'. E o padre – ah, as coincidências de romance! - revela ser da mesma região. Ele questionma a súbita procura por 'perdão e absolvição'. Ela não crê que a Igreja possa fazer o que só Deus pode – perdoar e absolver. O padre não entende. Ela só desejava desabafar (ah, se já existissem os psicanalistas...)

Mas o padre não pretende guardar segredo da confissão – a moça não é católica! Ela suplica ao padre que conserve o segredo entre ele e Deus. O padre inssite para que a moça entre na 'verdadeira igreja' – ela recusa, 'sou filha de puritanos'. Mas aceita, de joelhos, a benção do sacerdote católico. (Insistimos: sempre presente aqui o contraponto Catolicismo X Puritanismo. Lembrar que a visão do mundo puritano é o foco central em “The Scarlet Letter”, uma espécie de Madame Bovary transposto para a Nova Inglaterra)

sobre A Letra Escarlate em
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2394

interessante artigo sobre o adultério na cultura ocidental e na literatura
http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/010807/trecho_monogamia.html


É no capítulo XL, no ciclo final do romance que Hilda vai reencontrar Kenyon. Afinal, quem testemunha a confissão de Hilda na Catedral? Um indivíduo junto ao altar... Ninguém menos que o escultor Kenyon (que sabemos, no capítulo XXXV, seguia para Roma...) Parece que Kenyon se assume enquanto observador de seus amigos...

Kenyon já encontra Hilda reconfortada, mas em paz consigo mesma. A descrição de Hilda é romântica, idílica, idealizada. A diferença entre a angústia de momentos antes e a 'beatitude' de agora – é evidente ; em relação a ela quem está sombrio é o Kenyon. Ele quer saber porque antes angustiada, e o que a fez ficar aliviada. Enquanto ela não precisa mais desabafar com ele, e assim revelar o crime. A confissão foi um alívio, como se tirasse um fardo do peito, umpeso da consciência.

De início, Kenyon não elogia o catolicismo, ao contrário, “Hilda, você jogou sua pureza angelical na massa de indescritível corrupção, a Igreja Romana?” (“Hilda, have you flung your angelic purity into that mass of unspeakable corruption, the Roman Church?” XL, p. 310) O escultor reprova a exibição de pompa arquitetônica (antes, no capítulo XXXIII, ele diz o mesmo a Donatello, ao desprezar os vitrais góticos)

Kenyon acaba por reprovar a presença de Hilda no confessório. Mas se ele tivesse chegado no dia anterior, ela se confessaria a ele. Foi o pecado de outros que a levou ao confessório – ela admira a exuberância, mas despreza a iniquidade dos sacerdotes... Pois ela reverencia a pompa que ele ridiculariza. (A questão aqui: A fé precisa de templos e monumentos?) No fundo, Kenyon não é tão irreverente quanto parece. (Kenyon não é um 'herói byroniano'. Aliás, o Byron aqui, usaria saias, seria a enigmática Miriam, que atrai o singelo Donatello ao abismo... No mais, Byron é lembrado, em Marble Faun, quando se descreve as ruínas.)


Após um período de torpor, agora Hilda 'renasce' para a alegria. Parece mais uma criança (bipolar: depressão – euforia ou alegria – melancolia) Hilda pensa em voltar para casa... “Em Roma, há algo sombrio e assustador, do qual não podemos escapar” (“In Rome, there is something dreary and awful, which we can never quite escape.” p. 315) Para Kenyon, é indiferente o local. Para ele, Hilda está sempre elevada – inalcançável. É a mulher idealizada – um contraponto a byroniana Miriam. O que para Hilda é amizade, para Kenyon é amor.

O Narrador se permite analisar o casal. Distancia-se de Kenyon, refere-se a ele com o simples 'escultor' – não se identifica com Kenyon. Há um método de 'imparcialidade'? Aqui, é ela quem hesita em amar, enquanto ele admira a mocidade e a beleza. Ela retorna à pintura, aos passeios, e ele volta às esculturas – o busto de Cleópatra – e aos passeios. Passeios em Roma, nos quais os dois se encontram.

Aliás, o cenário volta a ser tematizado. Começa a temporada de turismo em roma – descrição de ambiente é o que não falta. O olhar de turista: as casas romanas desprovidas de aquecimento, o quanto os latinos são despreparados para o inverno... Mas o inverno mediterrâneo é agradável aos turistas do Norte.

Em Roma os dois eixos temáticos se encontram – a Arte e a Fé – pois a 'Cidade Eterna' é a cidade da Arte – um centro com elementos do passado classiscita, e depois renascentista (isto é, neoclassicista) – e ao mesmo tempo, a capital da fé católica, é um centro religioso. Há, portanto, em toda a narrativa uma dicotomia : estética x fé .

Ao determos o foco sobre as personagens, os dois casais permitem uma comparação. A paixão de Miriam e Donatello é turbulenta, tem crime e cumplicidade. Já o amor-amizade de Kenyon e Hilda é romântico, idílico, idealizado. Por exemplo, temos a cena de Kenyon e Hilda, no estúdio de escultor, diante do busto de Cleópatra – uma repetição, mas em contraponto do capítulo 13, onde Miriam faz uma visita a Kenyon.

Assim, tanto no cap. XLI quanto no XIII são tematizadas a Arte pensada e a obra realizada: há uma distância/lacuna. A obra não é tal como foi idealizada. Os admiradores veem a obra pronta, consideram-na uma 'obra-prima' – mas não sabem sobre o 'original' imaginado. A inspiração primeira do artista. Hilda acha que o Artista tem o mérito de 'sugerir' – os admiradores imaginam mais a partir da imaginação artística.

No busto de Donatello, a sensível Hilda percebe uma expressão diferente – uma perda da inocência, do caráter selvagem do 'jovem fauno'. O que ela denomina 'crescimento intelectual e moral' advem da culpa e remorso. Hilda deve suspeitar sobre a mudança de Donatello – ela testemunhou o crime – Kenyon desconfia que ela sabe, por isso ela antes se angustiava. Mas não sabemos – nós, os leitores – o que ele sabe.

Kenyon revela que conversou com Miriam – a motivar Hilda a também falar sobre o 'enigma' – ele diz que o crime resultou no amor de dois amigos. Hilda revolta-se, não admite tal confusão entre Certo e Errado, Bem e Mal. Na fé de Hilda, o Mal é Mal e Bem é Bem. Não há meio-termo, ou mistura. Kenyon insiste que a 'natureza humana' não é assim. Nas ações humanas encontra-se misturados o Bem e o Mal. Um ato que pretende ser bom – pode ser errado, e vice-versa. Hilda revela-se 'juiz severo' – sem compaixão. E se entristece novamente. Hilda lembra-se de Miriam.


Mas qual Miriam? Nos capítulos finais, as personagens – após uma radical 'carnavalização' – estão demasiadamente transmutadas! São OUTRAS em relação com as que presenciámos nos capítulos iniciais. Assim como Adão e Eva são diferentes antes e depois da Queda, do Pecado. Lembremos o simbolismo.


Simbologias preenchem as entrelinhas, elaboram um 'outro nível de leitura' – igualmente acontece com os contos de Kafka – onde o realismo é também uma alegoria. Miriam é Miriam, certo. Mas é também Eva, é ninfa, é imagem de mistério, segredo.Donatelo é Donatello, e também Adão, e também Fauno, o espírito singelo, jovial, no mundo bucólico, não o corrompido ambiente das cidades. O pecado de Miriam-Eva e Donatello-Adão é o mesmo de Caim, a morte do próximo, o homicídio. E Hilda é a Virgem Maria, ou a Beatrice, de Dante Alighieri, sempre numa castidade mantida acima (ela vive numa torre). E Kenyon? Ele é o Artista, o Observador dos amigos e do mundo ao redor, está na posição de ser (posivelmente) o Narrador.

A carnavalização é evidente no capítulo XLVII onde temos o camponês Donatello e a camponesa (contadina) Miriam que sabem algo sobre o destino de Hilda. A mesma Hilda que então era inalcançável ao escultor – que sente a ausência da mulher idealizada, e peregrina em busca da Amada. A busca tem algo de um andarilho medieval a seguir para a terra da noiva prometida. Um seguir até o ser amado.


A sucessão de eventos – a própria história, uma sequência de altos e baixos, impérios sobem e entram em decadência. O homem atravessa esse museu de escombros e ruínas e descobre que agora é atração turística! A geração de hoje se apossa dos bens das gerações passadas – o mármore de um túmulo pode ser a estátua de um palacete atual. “Este antigo esplendor há muito tinha sido roubado dos mortos, para decorar os palácios e igrejas dos vivos.” (“This antique splendor has long since been stolen from the dead, to decorate the palaces and churches of the living.” XLVI, p. 356)

Tudo começa a se desvelar. As personagens – principalmente – abordam o simbolismo da Obra. “Tenho prazer em meditar à beira desse grande mistério. A história da queda do homem! Não está ela repetida no nosso romance de Monte Beni?” (“I delight to brood on the verge of this great mystery, ... The story of the fall of man! Is it not repeated in our romance of Monte Beni?” p. 369) Lembramos que “Romance de Monte Beni” é o subtítulo do livro, ainda mais se comparmos com o trecho no capítulo XXXV, em Perúgia. E então o foco recai sobre o 'novo' Donatello – que após o 'pecado' passou a ter consciência do 'Bem e do Mal'.


“Mas aqui, Miriam, está alguém a quem uma terrível desventura começou a educar; ela o tirou, e por sua atuação, de uma condição selvagem e feliz que, dentro de limites circunscritos, deu-lhe alegrias que ele já não pode encontrar em nenhum outro lugar sobre a terra.” ("But here, Miriam, is one whom a terrible misfortune has begun to educate; it has taken him, and through your agency, out of a wild and happy state, which, within circumscribed limits, gave him joys that he cannot elsewhere find on earth.” XXXV, p. 269)


O 'bom selvagem' (ver os escritos de Rousseau) assume 'consciência' devido ao remorso pelo pecado – também em obras de James Joyce, “remordimento íntimo da consciência” (agenbite of innerwit) quando a personagem se depara com os limites religiosos e cria consciência de si-mesma quando ultrapassa tais limites.

O romance Fauno de Mármore, de Hawthorne é, assim, uma fábula sobre a condição humana ao tomar consciência depois de sofrer. A ponto de praticamente se ligitimar o sofrer – pois dizemos que o 'sofrer é que nos faz crescer'. É assim que moralizamos o sofrimento, e religiosamente nos resignamos. Ou então criamos Arte.
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jul/ago/10
digt. set/10
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Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
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Marble Faun online (Project Gutenberg)
vol 1
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1448192

vol 2
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1448195

Marble Faun no Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/The_Marble_Faun
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