quarta-feira, 26 de outubro de 2011

sobre 'Aventuras de Huckleberry Finn' - de Mark Twain









Sobre “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)
do escritor norte-americano Mark Twain
(Samuel Langhorne Clemens, 1835-1910)


Quando para a criança o mundo é uma grande aventura


Parte 2

Huckleberry Finn


O início de “Aventuras de Huckleberry Finn” apresenta um resumo do final de “Aventuras de Tom Sawyer” e mostra-se enquanto continuação das aventuras, contudo aqui o protagonista é o outro: é o menino Huckleberry. E mais: Huck é também o narrador, notamos logo, “Tom e eu encontramos” ou “A viúva Douglas levou-me para ser seu filho”, etc. Explica-se porque este livro tem uma linguagem mais coloquial.

Inclusive a personagem-narrador, quando se apresenta, chega a se referir ao Autor, como relativamente confiável, ai revelar que ele, Huck, aprontou fartas travessuras no enredo do livro anterior, ao lado do protagonista Tom,

“Sem você ter lido um livro chamado 'Aventuras de Tom Sawyer' você não sabe quem sou eu; mas não importa. Aquele livro foi escrito pelo Sr. Mark Twain, e ele disse a verdade, na maioria das vezes. Algumas coisas ele alongou demais, mas na maioria das vezes ele disse a verdade. Não importa. Nunca conheci alguém que não mentisse vez ou outra, exceto Tia Polly, ou a viúva, ou talvez Mary. Tia Polly – que é a tia de Tom – e Mary, e a viúva Douglas é sobre as quais trata este livro, que é principalmente um livro de verdade, com algumas digressões como já disse.” (trad. LdeM)
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You don't know about me without you have read a book by the name of The Adventures of Tom Sawyer; but that ain't no matter. That book was made by Mr. Mark Twain, and he told the truth, mainly. There was things which he stretched, but mainly he told the truth. That is nothing. I never seen anybody but lied one time or another, without it was Aunt Polly, or the widow, or maybe Mary. Aunt Polly--Tom's Aunt Polly, she is--and Mary, and the Widow Douglas is all told about in that book, which is mostly a true book, with some stretchers, as I said before.” p. 11, cap. 1


Agora Huckleberry frequenta a escola, onde até já aprendeu a ler. Não é mais aquele menino livre e solto, sem disciplina e sem horários, que todos os outros meninos do povoado acabavam por invejar... Nada disso. Agora temos um narrador das próprias aventuras – mérito que não encontramos nas “Aventuras de Tom Sawyer”, onde é o narrador-Autor quem tece considerações sobre Tom e sua turma.

“Agora o modo como terminou aquele livro: Tom e eu encontramos a grana que os bandidos esconderam na caverna, e ficamos ricos. Temos uns seis mil dólares – tudo em ouro. Foi uma tremenda visão de grana quando foi empilhado. Bem, o Juiz Thatcher levou o dinheiro aos seus cuidados, e nos repassa um dólar por dia ao longo do ano – mais do que alguém saberia o que fazer. A Viúva Douglas adotou-me como seu filho, e deixaram que ela me educasse; mas é dureza viver numa casa o tempo todo, considerando o quanto a viúva é regular e decente em sua rotina; e assim quando não podia aguentar mais eu dava o fora. Eu pegava de novo os meus trapos e meu cantil, e saía livre e contente. Mas Tom Saywer saiu ao meu encalço e disse que ele começaria uma gangue de bandoleiros, e eu deveria me juntar a eles se eu voltasse para a viúva e ser respeitável. Então eu voltei.”
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Now the way that the book winds up is this: Tom and me found the money that the robbers hid in the cave, and it made us rich. We got six thousand dollars apiece--all gold. It was an awful sight of money when it was piled up. Well, Judge Thatcher he took it and put it out at interest, and it fetched us a dollar a day apiece all the year round-- more than a body could tell what to do with. The Widow Douglas she took me for her son, and allowed she would sivilize me; but it was rough living in the house all the time, considering how dismal regular and decent the widow was in all her ways; and so when I couldn't stand it no longer I lit out. I got into my old rags and my sugar-hogshead again, and was free and satisfied. But Tom Sawyer he hunted me up and said he was going to start a band of robbers, and I might join if I would go back to the widow and be respectable. So I went back.” p. 11, cap. 1


Huck agora tem uma 'fortuna' – parte do 'tesouro' descoberto por ele e Tom numa caverna às margens do rio. E à 'adotado' pela viúva Douglas e a irmã dela, a Sra. Watson, que tentam ensinar crença e disciplina ao menino sem-limites. Para Huck é difícil esta aprendizagem, visto que ele não dispensa uma aventura, uma fuga para fora da ordem.

É o mesmo desejo de aventuras da 'gangue' de Tom Sawyer – os bandoleiros, os piratas, descobridores de tesouros – invejam os aventureiros fora-da-lei – isto é, os jovens procuram o excêntrico – os meninos se identificam mais com os marginais do que com as autoridades... O desejo dos jovens aventureiros de criarem grupos seletos, sociedade secretas. Fora a crueldade da imaginação infantil, segundo notamos nas palavras do líder Tom,

“Agora vamos começar este grupo de bandoleiros e chamado de Gangue do Tom Sawyer. Todos que quiserem se unir terá que fazer um juramento, e escrever sue nome com sangue.”

“Todos esperavam. Então Tom pegou um pedaço de papel onde ele escreveu o juramento, e leu. Cada menino juraria entrar pro grupo, e nunca dizer sobre os segredos; e se alguém fizesse algo a algum menino do grupo, qualquer outro menino devia matar a pessoa e sua família devia fazer isso, não deveria comer nem dormir até ele tê-los matado e marcado uma cruz em seus peitos, que era o sinal do grupo. E ninguém que não pertencesse ao grupo poderia usar aquela marca, e se ele fizesse deveria ser avisado; e se ele fizesse de novo ele deveria ser morto. E se alguém do grupo dissesse os segredos, deveria ter a garganta cortada, e então teria sua carcaça queimada e as cinzas espalhadas, e seu nome apagado da lista com sangue e nunca mencionado de novo pela gangue, mas terá uma maldição e será esquecido para sempre.

Todos disseram que era um belíssimo juramento e perguntaram a Tom se ele tirou da própria cabeça. Ele disse que algo sim, mas o resto era de livros de piratas e bandoleiros e toda gangue que era de respeito tinha um.”
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"Now, we'll start this band of robbers and call it Tom Sawyer's Gang. Everybody that wants to join has got to take an oath, and write his name in blood."

Everybody was willing. So Tom got out a sheet of paper that he had wrote the oath on, and read it. It swore every boy to stick to the band, and never tell any of the secrets; and if anybody done anything to any boy in the band, whichever boy was ordered to kill that person and his family must do it, and he mustn't eat and he mustn't sleep till he had killed them and hacked a cross in their breasts, which was the sign of the band. And nobody that didn't belong to the band could use that mark, and if he did he must be sued; and if he done it again he must be killed. And if anybody that belonged to the band told the secrets, he must have his throat cut, and then have his carcass burnt up and the ashes scattered all around, and his name blotted off of the list with blood and never mentioned again by the gang, but have a curse put on it and be forgot forever.

Everybody said it was a real beautiful oath, and asked Tom if he got it out of his own head. He said, some of it, but the rest was out of pirate-books and robber-books, and every gang that was high-toned had it.
” p. 17, cap.2


Mas claro que os 'bandoleiros' ficam só mesmo no sangrento 'juramento', pois são bons meninos que não ousariam emboscadas ou degolas, ou assaltos às carruagens, ou atos de pirataria e massacres do tipo. Tudo fica mesmo no 'plano discursivo', ou seja, na fantasia. Coisa de livros de aventura. Ainda bem.

Na realidade, além das aventuras, o menino Huckleberry tem outros problemas. Huck se sente ameaçado pelo próprio pai – um bêbado irascível – que espanca o menino. Pois este pai indesejado reaparece e 'captura' o menino para uma cabana – além de exigir a 'fortuna' de Huck – uma parte de um tesouro encontrado por ele e Tom, no final do livro anterior – e ainda quer que o menino abandone a escola!


“Acabei de fechar a porta. Então me voltei e ele estava lá. Costumava ficar assustado com ele o tempo todo, ele me batia muito. Eu reconheço que eu estava assustado agora, também; mas num instante eu vi que estava enganado – isto é, após o primeiro choque, como eu diria, quando minha respiração presa, ele sendo tão inesperado; mas logo depois eu vi que não estava com medo dele a ponto de preocupar com isto.

Ele passou dos cinquenta anos e tem mesmo aparência. Seu cabelo estava longo e embaraçado e grisalho, e caído, e você poderia ver os olhos dele brilhando através dos cabelos como se ele estivesse atrás de parreiras. Eram negros, não cinzentos; e assim eram suas costeletas. Sua face era pálida, onde estava à mostra; era pálida; não como a brancura de homem, mas uma palidez de adoecer, uma palidez de fazer arrepiar – uma brancura de rã, de barriga-de-peixe. Quanto às suas roupas – apenas trapos, eis tudo. Ele tinha um tornozelo descansado sobre o joelho; a bota daquele pé estava gasta, e dois de seus dedos vazavam, e ele os movia vez ou outra. Seu chapéu estava caído no chão – e um velho e escuro chapéu desleixado com o topo escavado, igual uma tampa.

Eu fiquei olhando pra ele; ele ficou lá olhando pra mim, com sua cadeira um pouco inclinada para trás. Eu abaixei a vela. Eu percebi que a janela estava aberta; então ele subira pelo galpão. Ele continuava me encarando todo.”

“I HAD shut the door to. Then I turned around and there he was. I used to be scared of him all the time, he tanned me so much. I reckoned I was scared now, too; but in a minute I see I was mistaken--that is, after the first jolt, as you may say, when my breath sort of hitched, he being so unexpected; but right away after I see I warn't scared of him worth bothring about.

He was most fifty, and he looked it. His hair was long and tangled and greasy, and hung down, and you could see his eyes shining through like he was behind vines. It was all black, no gray; so was his long, mixed-up whiskers. There warn't no color in his face, where his face showed; it was white; not like another man's white, but a white to make a body sick, a white to make a body's flesh crawl--a tree-toad white, a fish-belly white. As for his clothes--just rags, that was all. He had one ankle resting on t'other knee; the boot on that foot was busted, and two of his toes stuck through, and he worked them now and then. His hat was laying on the floor--an old black slouch with the top caved in, like a lid.

I stood a-looking at him; he set there a-looking at me, with his chair tilted back a little. I set the candle down. I noticed the window was up; so he had clumb in by the shed. He kept a-looking me all over.
” p. 29, cap. 5


É descrição do pai de Huck – o beberrão mal-humorado que não suporta que o filho frequente a escola e aprenda a ler! O pai ameaça o menino – pois quer o dinheiro que está sob os cuidados do Juiz Thatcher - até que resolve raptar o próprio filho. Como Huck suporta tal pai tirano , déspota? Por mais que agora – ao viver numa rústica cabana, sob tutela do pai - ele não precise mais obedecer a Sra. Watson ou ir à escola, de volta à vida ao ar livre, em pescarias e caçadas, Huck, ao não suportar a violência do pai, simplesmente, arquiteta uma fuga.

Sim, logo Huck planeja uma fuga – com um sangrento arrombamento – para que todos pensem que ele morreu. Um porco sangrado, um machado sujo de sangue... Um crime? Assim, ao menos, deve parecer. O menino considera que só Tom Sawyer seria mais esperto e ardiloso – e Huck sente como se Tom estivesse orgulhoso dele.

“Eu gostaria que Tom Sawyer estivesse aqui; sabia que ele teria interesse num lance destes, e com tanta imaginação. Ninguém poderia além de Tom Sawyer se dedicar a uma coisa como esta.” (“I did wish Tom Sawyer was there; I knowed he would take an interest in this kind of business, and throw in the fancy touches. Nobody could spread himself like Tom Sawyer in such a thing as that.” p. 44, cap. 7)


Então Huck foge da cabana e ruma rio abaixo – além da Ilha Jackson (ou Glasscock's Island, ver a aventura dos 'piratas' em “Aventuras de Tom Sawyer”). Aqui Huck seria uma espécie de 'Robinson Crusoé' numa ilha – até descobrir um 'Sexta-Feira' – o escravo fugitivo Jim (que também aparece em “Tom Sawyer”. Será algo assim uma paródia do enredo clássico de Daniel Defoe? (No clássico de Defoe, o que o solitário Robinson encontra é uma pegada na areia da praia... e percebe que a ilha não é assim tão solitária...)


Meu ensaio sobre “Robinson Crusoé
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/01/sobre-robinson-crusoe-de-d-defoe.html


“Bem, eu fui de bobeira pros fundos da floresta até que pensei que não estava muito longe da base da ilha. Estava com a minha arma, mas não atirei em nada; era pra me proteger; apesar de que eu poderia matar alguma caça perto de casa. Por este tempo eu poderia me aproximar de uma serpente de bom-tamanho, e ela deslizava por entre relva e flores, e depois eu tentava, tentando atirar nela. E seguia adiante, e de repente me deparei com umas brasas de fogueira que ainda fumegava.

Meu coração deu um salto no meu peito. Nunca que eu esperaria pra procurar mais, mas deixei a arma em prontidão e voltei furtivamente na ponta dos pés tão rápido como eu podia. Vez ou outra eu parava uns segundos entre as folhas grossas e ouvia, mas eu ofegava tanto que eu nem ouvia nada mais. Eu me movia furtivamente mais um trecho, então ouvia de novo; e assim de novo, e de novo. E se eu via um toco, eu achava que era um homem; se eu tropeçava num galho e o quebrava, me fazia sentir como uma pessoa tivesse cortado meu fôlego em dois e eu ficasse só com a metade, e a mais curta delas, além disso.”
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“Well, I went fooling along in the deep woods till I judged I warn't far from the foot of the island. I had my gun along, but I hadn't shot nothing; it was for protection; thought I would kill some game nigh home. About this time I mighty near stepped on a good-sized snake, and it went sliding off through the grass and flowers, and I after it, trying to get a shot at it. I clipped along, and all of a sudden I bounded right on to the ashes of a camp fire that was still smoking.

My heart jumped up amongst my lungs. I never waited for to look further, but uncocked my gun and went sneaking back on my tiptoes as fast as ever I could. Every now and then I stopped a second amongst the thick leaves and listened, but my breath come so hard I couldn't hear nothing else. I slunk along another piece further, then listened again; and so on, and so on. If I see a stump, I took it for a man; if I trod on a stick and broke it, it made me feel like a person had cut one of my breaths in two and I only got half, and the short half, too.
” p. 51, cap. 8


Huck se aflige com a presença de outra pessoa na ilha 'deserta' – será que o pai ainda o procura? - enquanto Jim se assusta com a presença de Huck, a quem ele julga morto. (Aquela ideia de simular o arrombamento e assassínio brutal até que deu certo...) Jim é o escravo que fugiu da Sra. Watson, que encontramos no livro sobre Tom Sawyer.

Destaque aqui para a fala sulista dialetal nigger do escravo Jim, até difícil de decifrar, onde temos bekase (= because), doan' (don't), alwuz (always), noth'n' (nothing), ole (old), for'em (for them), mostrando as diferenças étnicas e culturais no seio do país da liberdade – de braços abertos para os imigrantes, mas mantendo os escravos sob correntes. (Como sabemos, as lutas por igualdade social e racial se intensificaram no século 20 com as vozes de Martin Luther King Jr. e Malcolm X em protestos em prol dos direitos humanos.)

Assim é importante a questão do abolicionismo – que chegou a causar uma guerra civil nos EUA entre 1861-65, a Guerra de Secessão, que provocou a morte de quase um milhão de cidadãos – pois é uma questão de consciência se Huck deve denunciar o escravo. O fato é que o menino gosta do escravo Jim, e a amizade entre eles está cima das condições sociais do escravismo. Mas o menino Huck fica hesitante – ele foge, mas o escravo também tem o direito de fugir? Huck se sente, finalmente, um homem livre – mas e quanto ao Jim? Ele pode dizer o mesmo?

Lembrar que a narração é em 1ª ps. e que é o próprio Huck quem pensa sobre a fuga e sobre o escravo Jim. Por isso só sabemos o que Huck sabe – e ele desconhece muita coisa. Por exemplo, na cena da casa que desce o rio abaixo, na correnteza após a tempestade, Jim encontra um homem morto. Quem? Jim não revela – e os leitores desconhecem. Até que a cena adquire maior importância no desfecho do enredo.


É hilária a cena – no Capítulo 11 – na qual Huck se disfarça de senhorita – usando roupas encontradas naquela casa à deriva – para ir ao povoado mais próximo, na margem de Illinois, saber sobre as novidades, se ainda há ameaças. No povoado, Huck – ou Srta. Sarah Williams - fica sabendo mais sobre a morte brutal de... Huck! (De fato, o estratagema deu certo!) Mas há um problema: realmente todos acreditam que o escravo Jim seja o criminoso!

Huck precisa avisar Jim – imediatamente! A fuga continua – eles passam por St. Louis – uma cidade grande em relação ao povoado de St. Petersburgo, dos meninos Tom e Huck. O menino descreve a viagem, a lenta navegação, a paisagem, os povoados, em suma, é o nosso guia turístico pelas águas do Mississipi – antes da guerra entre nortistas e sulistas.

“Na quinta noite abaixo de St. Louis enfrentamos uma tempestade após meia-noite, com força de trovão e raios, e a chuva caía num jorro. E ficamos na tenda e deixamos a jangada por si mesma. Quando o raio iluminava lá fora podíamos ver um imenso rio adiante, e altas e rochosas ravinas de ambos os lados. Logo eu disse, “Ei-a, Jim, veja lá!” Era um barco a vapor que se destruíra num rochedo. Nós estávamos à deriva diretamente para ele. O raio mostrou-o bem distintamente. Estava inclinado, com uma parte do convés acima d'água, e você poderia ver cada pequeno arame da chaminé total e claramente, e uma cadeira junto ao grande sino, com um velho chapéu dependurado nas costas dela, quando aparecia o raio.”

The fifth night below St. Louis we had a big storm after midnight, with a power of thunder and lightning, and the rain poured down in a solid sheet. We stayed in the wigwam and let the raft take care of itself. When the lightning glared out we could see a big straight river ahead, and high, rocky bluffs on both sides. By and by says I, "Hel-LO, Jim, looky yonder!" It was a steamboat that had killed herself on a rock. We was drifting straight down for her. The lightning showed her very distinct. She was leaning over, with part of her upper deck above water, and you could see every little chimbly-guy clean and clear, and a chair by the big bell, with an old slouch hat hanging on the back of it, when the flashes come.” p. 79, cap. 12


Outras vicissitudes e aventuras sempre rodeiam o protagonista – afinal é um livro que hoje diríamos 'infanto-juvenil' – com altos-e-baixos que prendem o leitor – nunca ameaçado de tédio. Numa página, a jangada com a tenda escapa de um naufrágio, noutra é Jim que desaparece nas águas e no nevoeiro. Em outro momento, Huck é 'tentado' a denunciar o escravo Jim, mas desiste, ao lembra da amizade que une branco e negro, que une as pessoas além de mero padrão de cor da pele.

Outras narrativas dentro da narrativa 'incham' as aventuras de Huck: um enredo digno de “Romeu e Julieta”, com a luta de famílias rivais – os Grangerfords e os Shepherdsons - se hostilizando e matando mutuamente, enquanto um casal – ela da primeira família, ele da outra – tenta se unir, apesar do ódio. E sempre a presença de Huck – ora para complicar, ora para agir como um pequeno herói. Mas sempre achando estranhíssimo o 'mundo adulto'.

E para 'apimentar' ainda mais as aventuras – será que uma criança do interior sulista no século 19 teria tantas estórias pra contar ? - aparecem outras figuras – realmente bons 'figurantes' – na narrativa. São dois atores, ou melhor, dois vigaristas – o Rei e o Duque – que não hesitam em mil trapaças para arranjarem uma grana. É o espírito de livre-iniciativa norte-americano? (Esperemos que não...)

Os pilantras – atores de talento ridículo com segundas intenções – se apresentam nas povoações ribeirinhas, ou fingem se apresentar e dão o calote nas bilheterias e na plateia enganada. Isso é o de menos! Em dado momento, os dois vigaristas se fazem passar por parentes de um rico recém-falecido. Chegam na cidadezinha para exigirem a herança – até que são oportunamente desmascarados, por intervenção do protagonista-narrador Huck.

Estas narrativas dentro da narrativa são pouco producentes se o interesse fosse verossimilhança, mas sendo uma obra ficcional, vale tudo. O estilo prolixo bem que aceita uma ou outra adaptação – assim fizeram Paulo Mendes Campos e Carlos Heitor Cony, dentre outros - para edições infanto-juvenis no Brasil, nos anos 1970 e 1980. Adaptações que 'podaram' o excesso de diálogos e narrativas-dentro-de-narrativas.

Mas, consideremos, não temos bons personagens – os adultos são pouco desenvolvidos, muitas vezes aparecem de forma caricatural (ou são 'tipos': a tia, o padre, o pastor, a viúva, o advogado, o beberrão, etc) - exceto o narrador Huck (mas será que um menino recém-alfabetizado conseguiria escrever/dizer tanto? E deste modo 'literário'?) e o escravo Jim, que formam a verdadeira 'dupla dinâmica' do livro.

A parceria de um menino branco e um escravo negro – numa amizade que atravessa todo o romance – já seria uma ousadia e tanto naquela época – vamos pensar de forma historicista – onde o negro era propriedade do branco, num sistema racista de exploração. (Os nazistas tinham em quem se inspirar afinal...)

Quando, quase no fim do romance, Jim é preso, para desespero do praticamente 'abolicionista' Huck - os amigos, quando o menino-herói Tom Sawyer reaparece neste livro, armam planos para libertar o amigo negro. E planos ao estilo de Tom, com planos difíceis e mirabolantes – para dar mais emoção, como ele queria. Cavar túneis, desviar atenções, fugir no meio da noite. Claro que não vamos aqui revelar se eles conseguiram se dar bem nestas aventuras.

No mais, Huck sempre reconheceu que Tom era mais engenhoso, mais imaginoso, que sabia narrar melhor, ao arquitetar planos, ou seduzir os amigos para as aventuras,

“E então Tom ele falava e falava muito, e dizia, vamos nós três dar o fora daqui uma noite dessas e conseguir umas provisões, e seguir para aventuras loucas junto aos Injus, por todo o território, por uma ou duas semanas; e eu disse, tudo bem, apoiado, mas não tenho grana pra comprar estas provisões, e calculo que não poderia conseguir de ninguém lá em casa, pois é como se papai voltasse agora, e tirasse tudo do Juiz Thatcher e fosse se embebedar.”
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And then Tom he talked along and talked along, and says, le's all three slide out of here one of these nights and get an outfit, and go for howling adventures amongst the Injuns, over in the Territory, for a couple of weeks or two; and I says, all right, that suits me, but I ain't got no money for to buy the outfit, and I reckon I couldn't get none from home, because it's likely pap's been back before now, and got it all away from Judge Thatcher and drunk it up.” p. 316


Claro que Huckleberry – e nem nós, leitores – sabe que o pai Finn está morto. Pois somente agora, nos parágrafos finais, o ex-escravo Jim lembra daquela casa à deriva no rio, na qual havia um cadáver – anônimo até agora – que, sem dúvida, para Jim que o descobriu, era o pai de Huck. Só faltava o menino suspirar aliviado. E tratar de por um ponto final no livro.

“e assim nada há mais a escrever, e estou danado de contente de terminar, pois se soubesse que problema que era isso de fazer livro eu não teria mexido com isto, e nem pretendo mais não. Mas acho que vou dar o fora para os territórios do Oeste a frente do resto, pois a Tia Sally vai me adotar e me educar, e não posso aguentar isso. Já estive nisso antes.”
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and so there ain't nothing more to write about, and I am rotten glad of it, because if I'd a knowed what a trouble it was to make a book I wouldn't a tackled it, and ain't a-going to no more. But I reckon I got to light out for the Territory ahead of the rest, because Aunt Sally she's going to adopt me and sivilize me, and I can't stand it. I been there before.” p. 316, cap. 43


Não é o objetivo aqui um resumo da obra. É desnecessário. O importante é ler o livro. Comentamos aqui apenas os motivos pelos quais a obra vale a pena ser lida – porque ela merece adentrar num “Cânone Ocidental”. As obras de Mark Twain apresentam os heróis ianques – de certa forma, inaugura a figura do norte-americano na literatura norte-americana.

Antes de Twain temos referenciais europeus, mas com o autor de “Aventuras de Tom Sawyer”, o menino-herói, os Estados Unidos podem começar a criar algo próprio – só faltava mesmo um Walt Whitman , com uma poesia pró-Democracia, para legitimar o estilo norte-americano na literatura e nas artes (não confundir com o 'american way of life', fenômeno mais materialista-consumista do que idealista-cultural)

Ressaltamos uma diferença entre as duas “Aventuras”. O fato de no primeiro livro o Narrador (o Autor) apresentar a vida aventureira do menino Tom Sawyer, que praticamente dá a volta ao mundo entre o fundo do quintal e a beira do rio. No segundo livro, o narrador é um dos personagens do primeiro, o menino, antes anti-herói, Huckleberry Finn.

Nas “Aventuras de Huckleberry Finn” é Huck quem lê – e não Tom. Huck ouvia antes as fábulas dos livros, agora ele lê para os outros. “Eu li para Jim sobre reis e duques e condes e tais” (p. 90, cap. 14) Mas, lembremos, em “Aventuras de Tom Sawyer”, Huck era iletrado e rústico – aqui ele tem novo status, digamos, visto ser ninguém menos que o Narrador. Enquanto Tom não narra as próprias aventuras. (Em que medida o Autor se identifica com o menino Tom? Ou com o menino Huck?)

Não sabemos as intenções autorais – são inacessíveis – e temos de ler sem sabê-las. Mas enquanto leitor, uma opinião é de que seria deveras interessante um outro livro, onde o engenhoso Tom Sawyer narrasse ele mesmo suas aventuras infantis no povoado de St. Petersburgo (ou Hannibal) junto ao grande rio Mississipi que corre altivo para o mar.



Out/11


Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com/



fontes:

TWAIN, Mark. The Adventures of Huckleberry Finn. New York: Airmont Books, 1962


Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/The_Adventures_of_Huckleberry_Finn


Wikipedia
http://en.wikipedia.org/wiki/Adventures_of_Huckleberry_Finn


pequeno glossário
para Huckleberry Finn

http://iota.hifm.no/phf/engelsk/Huck%20Finn%20glossary.htm


filmes baseados em Huckleberry Finn

Huckleberry Finn and his Friends” (TV Series, 1979)
http://www.youtube.com/watch?v=KCRiLyL0koc




LdeM


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

sobre "As Aventuras de Tom Sawyer" - de Mark Twain








Sobre “As Aventuras de Tom Sawyer” (1876) e
As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)
do escritor norte-americano Mark Twain
(Samuel L. Clemens, 1835-1910)


Quando para a criança o mundo é uma grande aventura


Parte 1

Tom Sawyer


As Aventuras de Tom Sawyer são um clássico nos Estados Unidos, desnecessário dizer que se trata de um país que reverencia suas origens, preserva a história – pelo menos até o governo Nixon... - e que sabe transformar um protagonista de literatura em ícone nacional.


O menino Tom Sawyer passou a representar a ingenuidade do norte-americano das pequenas cidades, não contaminadas pelo consumismo e violência das metrópoles. Assim como se contrapõe o sul lírico com o norte prosaico, não apenas em tempos de Guerra de Secessão (conflito entre nortistas e sulistas entre 1861-65), aquele interior sulista onde os grandes navios-vapores passam apitando, rumo ao oceano.


O autor Mark Twain (que tinha este apelido por trabalhar nas embarcações do rio Mississipi, onde se marcava a profundidade de duas (twain=two) jardas) conseguiu unir à literatura norte-americana em formação um olhar mais coloquial, mais popular, ao narrar aventuras de jovens do meio rural.


A linguagem é coloquial, o sotaque é centro-sulista, do vale do rio Mississipi, é até difícil traduzir – principalmente as falas de Huckleberry Finn, do negro Jim, também dos criminosos Muff Potter e Injun Joe. Para traduzir estas obras de Twain precisaríamos recorrer ao 'léxico' da fala caipira do sudeste brasileiro. Traduzir a fala do negro Jim seria utilizar a fala híbrida dos filhos de escravos no litoral da Bahia (no final do século 19...).


Considerando-se que além das ações do enredo – as aventuras em si-mesmas – temos os geniais e bem-humorados comentários do Narrador (ninguém menos que o Autor) que tece considerações sobre as personagens e seus aprendizados (ou ignorância), num olhar mais adulto a repensar os sonhos e as decepções das crianças.


As fontes das citações são a Wikisource e a edição “The Adventures of Tom Sawyer”, New York, Collier Books, 1962. As traduções são minhas (LdeM)


“Em dois minutos, ou menos, ele esquecera seus problemas. Não porque seus problemas fossem um pouco menos pesados e amargos para ele do que para os homens, mas porque um novo e poderoso interesse os abafou e os afastou da mente naquele momento – apenas que as desventuras dos homens são esquecidas na excitação de novas aventuras. Este novo interesse foi uma novidade de valor em assobiar, que ele aprendera de um negro, e ele sofria para repeti-lo corretamente. Consistia numa peculiar linha melódica de ave, um tipo de gorjeio líquido, produzido ao se tocar a língua no céu da boca a curtos intervalos no meio da música – o leitor provavelmente lembra-se como fazer isso, se ele já foi menino. Dedicação e atenção logo lhe deram o truque disso, e ele correu rua afora com a boca cheia de harmonia e a alma cheia de gratidão. Ele se sentia como um astrônomo sente que descobriu um novo planeta – sem dúvida, tão mais forte, profundo, amalgamado prazer é sentido, a vantagem estava com o menino, não com o astrônomo.”
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“Within two minutes, or even less, he had forgotten all his troubles. Not because his troubles were one whit less heavy and bitter to him than a man's are to a man, but because a new and powerful interest bore them down and drove them out of his mind for the time -- just as men's misfortunes are forgotten in the excitement of new enterprises. This new interest was a valued novelty in whistling, which he had just acquired from a negro, and he was suffering to practise it undisturbed. It consisted in a peculiar bird-like turn, a sort of liquid warble, produced by touching the tongue to the roof of the mouth at short intervals in the midst of the music -- the reader probably remembers how to do it, if he has ever been a boy. Diligence and attention soon gave him the knack of it, and he strode down the street with his mouth full of harmony and his soul full of gratitude. He felt much as an astronomer feels who has discovered a new planet -- no doubt, as far as strong, deep, unalloyed pleasure is concerned, the advantage was with the boy, not the astronomer.” pp. 31-32, Cap.I



Trabalho ou diversão? Tom Sawyer sabe como tornar divertido o simples trabalho de pintar uma cerca. Os colegas acreditam que é mesmo 'divertido' e fazem todo o trabalho para o menino! Assim, ele ainda ganha vários 'agrados' para isso – brinquedos, bugigangas, uma maçã já mordida...


“Tom dizia a si mesmo que isso não era um fim de mundo, afinal. Ele descobrira uma grande lei da motivação humana, até sem saber disso – que de modo a fazer um homem ou menino ambicionar por algo é apenas necessário fazer com que a coisa seja difícil de obter. Se ele fosse um grande e sábio filósofo, tal qual o escritor deste livro, ele compreenderia agora que Trabalho consiste de tudo aquilo que alguém é obrigado a fazer, e que Diversão é tudo aquilo que alguém não é obrigado a fazer.
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“Tom said to himself that it was not such a hollow world, after all. He had discovered a great law of human action, without knowing it -- namely, that in order to make a man or a boy covet a thing, it is only necessary to make the thing difficult to attain. If he had been a great and wise philosopher, like the writer of this book, he would now have comprehended that Work consists of whatever a body is obliged to do, and that Play consists of whatever a body is not obliged to do.” p. 44, Cap. II



Tom tem momentos de aventuras e também de meditação, de lirismo. A descoberta do amor é também importante para o jovem. Um sentimento também com jeito de aventura – descobrir quem é aquela nova garota – que o fez esquecer a paixão anterior. (Somente uma paixão para 'abafar' outra paixão...) De onde vem tanta emoção quando ele acha alguém interessante? Até recolher uma flor - jogada pela garota! - é uma aventura...

“O menino correu por ali e parou perto da flor, e então, com a mão fazendo sombra sobre os olhos, ele começou a procurar se havia algo interessante naquela direção. Em seguida ele arrancou uma palha e tentou equilibrá-la sobre o nariz, com a cabeça inclinada pra trás; e como ele se movia de lado, em seus esforços, ele se aproximava mais da flor amor-perfeito; finalmente seu pé descalço repousou sobre ela, seus dedos flexíveis a agarraram, e ele saltitou para longe com o tesouro e desapareceu ao dobrar a esquina. Mas apenas por um minuto – apenas enquanto ele pudesse abotoar a flor dentro da jaqueta, próximo ao coração – ou próximo ao estômago, possivelmente, pois ele não era muito bom em anatomia, e nem tão crítico, de qualquer modo.”
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“The boy ran around and stopped within a foot or two of the flower, and then shaded his eyes with his hand and began to look down street as if he had discovered something of interest going on in that direction. Presently he picked up a straw and began trying to balance it on his nose, with his head tilted far back; and as he moved from side to side, in his efforts, he edged nearer and nearer toward the pansy; finally his bare foot rested upon it, his pliant toes closed upon it, and he hopped away with the treasure and disappeared round the corner. But only for a minute -- only while he could button the flower inside his jacket, next his heart -- or next his stomach, possibly, for he was not much posted in anatomy, and not hypercritical, anyway.” p. 48, Cap. III


O narrador de “Aventuras de Tom Sawyer” é um adulto a observar as crianças e os demais adultos, com ironia e bom-humor (às vezes, meio amargo), e com um distanciamento de algumas décadas ( o narrador está em 1876 e os fatos narrados entre 1845 e 1855, antes da Guerra de Secessão, e, portanto, da abolição da escravatura. O próprio autor revela esse 'delay' num prefácio, ao lembrar que a época do enredo se situa “trinta ou quarenta anos atrás”.


O narrador busca a cumplicidade do(s) leitor(es) ao dizer afetuosamente sobre o protagonista (“o nosso amigo Tom”), afinal, já estamos afeiçoados ao maroto Tom Sawyer, a criança ao mesmo tempo ingênua e sabida, sincera e oportunista, para quem só importa a diversão, única solução no mundo tedioso e fatigante dos adultos. Aliás, é o olhar da criança que revela as contradições do mundo dos adultos.



Hilárias também as cenas no culto religioso, onde Tom se distrai do tédio do sermão com atividades bem juvenis – contar as folhas do discurso, brincar com um besouro, observar um cão em brincadeiras... “Tom contava as páginas do sermão; depois da igreja ele sempre sabia quantas páginas foram, mas ele raramente sabia sobre o quê havia sido o discurso.” (“Tom counted the pages of the sermon; after church he always knew how many pages there had been, but he seldom knew anything else about the discourse.” Cap. V)

Eis que aparece o menino Huckleberry Finn, ainda figurante em “Tom Saywer” mas depois o protagonista do próximo livro. O menino Huckleberry é uma espécie de menino impulsivo, espontâneo e iletrado, quase um Pedro Malasartes, por sua vez, Tom Sawyer é um menino que se deixa vagar em ideias ao ler os livros, “Quanto mais dificilmente Tom tentava concentrar sua mente no seu livro, mais as suas ideias vagueavam.” (“The harder Tom tried to fasten his mind on his book, the more his ideas wandered.” p. 89, cap. VII) Tom gosta de aventuras de 'letrados', é um Dom Quixote juvenil, gosta de livros de Robin Hood, piratas, de ilhas desertas e tesouros escondidos.


“Pouco depois, Tom se encontrou com o jovem pária da vila, Huckleberry Finn, filho de um bêbado da cidade. Huckleberry era cordialmente odiado e temido por todas as mães da cidade, pois ele era preguiçoso e sem-lei e vulgar e mau – e porque todas as crianças o admiravam, e se divertiam na sua companhia proibida, e desejavam ser ousadas iguais a ele. Tom era igual ao resto dos meninos respeitáveis, no que ele invejava Huckleberry a tal condição de escandoloso pária, e estava sob estritas ordens para não brincar com ele. Assim ele brincava com Finn toda vez que tinha chance. Huckleberry estava sempre vestido com roupas usadas de adultos, e estava sempre num perene florir e agitar de trapos. Seu chapéu estava em ruínas com uma parte pendida da aba; seu paletó, quando ele vestia um, balançava quase até nos calcanhares, e com os botões às avessas; mas um suspensório segurava suas calças; o fundo das calças sobrava e sem nada, as franjas das pernas todas sujas quando não enroladas.

Huckleberry andava pra cima e pra baixo, todo livre. Dormia nos vãos das portas na época de clima bom e barris vazios quando chovia; ele não precisava ir à escola ou à igreja, ou chamar alguém de mestre ou obedecer alguém; ele podia pescar e nadar quando ele bem quisesse, e ficar lá até quando o agradasse; ninguém o proibia de brigar; ele podia se levantar quando lhe agradasse; ele era sempre o primeiro menino a andar de pés descalços na primavera e o último a recolocar sapato no inverno; ele nunca se lavava, nem usava roupas limpas; ele podia fazer juras à vontade. Em resumo, tinha tudo o que poderia fazer preciosa a vida daquele menino. Assim pensava cada menino contido, tolhido e respeitável em São Petersburgo.”

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“Shortly Tom came upon the juvenile pariah of the village, Huckleberry Finn, son of the town drunkard. Huckleberry was cordially hated and dreaded by all the mothers of the town, because he was idle and lawless and vulgar and bad -- and because all their children admired him so, and delighted in his forbidden society, and wished they dared to be like him. Tom was like the rest of the respectable boys, in that he envied Huckleberry his gaudy outcast condition, and was under strict orders not to play with him. So he played with him every time he got a chance. Huckleberry was always dressed in the cast-off clothes of full-grown men, and they were in perennial bloom and fluttering with rags. His hat was a vast ruin with a wide crescent lopped out of its brim; his coat, when he wore one, hung nearly to his heels and had the rearward buttons far down the back; but one suspender supported his trousers; the seat of the trousers bagged low and contained nothing, the fringed legs dragged in the dirt when not rolled up.

Huckleberry came and went, at his own free will. He slept on doorsteps in fine weather and in empty hogsheads in wet; he did not have to go to school or to church, or call any being master or obey anybody; he could go fishing or swimming when and where he chose, and stay as long as it suited him; nobody forbade him to fight; he could sit up as late as he pleased; he was always the first boy that went barefoot in the spring and the last to resume leather in the fall; he never had to wash, nor put on clean clothes; he could swear wonderfully. In a word, everything that goes to make life precious that boy had. So thought every harassed, hampered, respectable boy in St. Petersburg.”
pp. 78-79, Cap. VI


Enquanto não está em aventuras, Tom experimenta os primeiros aprendizados da paixão com a menina Becky Thatcher - semanas antes era com a Amy Lawrence – ah, quão volúvel é o coração juvenil... Como um menino corajoso e a aventureiro vê as meninas, que, ainda mais naquela época, viviam recolhidas, reclusas, para o ambiente pacato da vida doméstica? Eis outra leitura que poderíamos fazer.


Em Tom Sawyer encontramos várias contradições e arbitrariedades do mundo adulto na perspectiva do olhar infantil. Como as crianças quase jovens vêem a injustiça, a desonestidade e os privilégios dos adultos? Dos mesmos adultos que se dizem ‘exemplos’...

Os adultos que pregam (e exigem) honestidade, justiça, honra, dignidade, são os mesmos a pisarem tudo isso em razão de interesses, de ambições individuais, que perturbam a desejada ‘paz social’.

Numa aventura, em pleno cemitério à noite, Tom e Huck são testemunhas de um crime e de como um dos bandidos incrimina o outro – a ponto da própria ‘justiça’ ser confundida e deturpada – as crianças descobrem que o mundo adulto não é mesmo perfeito.


Sem a devoção de Becky Thatcher, Tom Sawyer volta a se dedicar à ‘pirataria’ – vai para uma ilha fluvial – a ilha Jackson – junto com outros meninos-piratas, Huck, o Mão Rubra e Joe Harper, o Terror dos Mares – onde assume o medonho nome de Vingador Sombrio do Caribe.

As aventuras de Pirata – que conhecemos das páginas de Peter Pan - os meninos 'piratas' de Tom Sawyer inspiraram os 'meninos perdidos' de Peter Pan – ou os piratas são um patrimônio universal na literatura? Vejamos o sucesso de “Ilha do Tesouro” de R. L. Stevenson, em 1883,


“Ele seria um pirata! Eis então! Agora o seu futuro estava diante dele, brilhando com inimaginável esplendor. Como o seu nome encheria o mundo, e faria as pessoas se arrepiarem! Quão gloriosamente ele saquearia os mares dançantes, em seu imenso navio sombrio, o Espírito da Tormenta, com sua pavorosa bandeira esvoaçando no mastro! E no zênite da fama, como ele apareceria, subitamente, no velho vilarejo e adentraria a igreja, todo bronzeado e abatido pelas intempéries, vestido com jaquetão e calções escuros, e grandes botas, e uma bandana rubra, carregando pistolas no cinturão, seu cutelo já desgastado pelos crimes, seu desleixado chapéu com plumas ondulantes, sua bandeira sombria desfraldada, com a imagem do crânio e ossos cruzados, e ouvindo com êxtase crescente os sussurros, “Pois é o Tom Sawyer, o Pirata! – O Vingador Sombrio do Caribe!” “
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“He would be a pirate! That was it! Now his future lay plain before him, and glowing with unimaginable splendor. How his name would fill the world, and make people shudder! How gloriously he would go plowing the dancing seas, in his long, low, black-hulled racer, the Spirit of the Storm, with his grisly flag flying at the fore! And at the zenith of his fame, how he would suddenly appear at the old village and stalk into church, brown and weather-beaten, in his black velvet doublet and trunks, his great jack-boots, his crimson sash, his belt bristling with horse-pistols, his crime-rusted cutlass at his side, his slouch hat with waving plumes, his black flag unfurled, with the skull and crossbones on it, and hear with swelling ecstasy the whisperings, "It's Tom Sawyer the Pirate! -- the Black Avenger of the Spanish Main!" ” p. 98-99, Cap. VIII


Enquanto isso, os familiares supõem a morte dos rapazes, possivelmente afogados no rio. Becky soluça, suspira, a sentir a falta do ‘exibido’ Tom Sawyer. Outros moradores do povoado também sentem a falta do menino que antes ‘infernizava’ meio mundo.

Mas os meninos se divertem, como bons ‘piratas’ que são, a pescar, acampar, viver no meio hostil da ilha. Mas, claro, logo eles começam a sentir saudades do povoado e das aventuras que lá tramavam. Claro, imaginam o que os parentes estão sentindo...

Mas em pleno velório, quando todos julgavam os meninos no fundo do rio, os meninos-piratas reaparecem! Tudo ideia de Tom: voltar para casa e presenciarem o próprio funeral...! (Tom desertara da ilha antes, fazendo uma secreta ‘visita’ aos familiares enlutados – claro que o menino diz, depois, que sonhou com o pranto dos parentes...)

Tom e seus amigos ‘piratas’ voltam triunfantes para a vida do vilarejo. O menino, logo vaidoso, esnoba a esnobe Becky – e aprende os primeiros truques da conquista amorosa. Afinal, tudo para o jovem Tom tem uma pitada de aventura – a ‘pirataria’ – na Ilha Jackson, mesmo com o sofrimento dos familiares. A brincadeira sempre inconseqüente pode trazer problemas e sofrimentos aos demais ... Tia Polly recrimina o menino: “Você nunca pensa em algo, exceto em seu próprio egoísmo” (Cap. 19)

Sempre vaidoso e aventureiro, Tom não oculta certo desprezo pelas meninas, sempre covardes e lamurientas, mas adora se mostrar (show off) para elas, ou atrair a atenção delas – principalmente de Becky. Tom não hesita em assumir a culpa de Becky – quando ela rasga um livro do professor – apenas para sentir o olhar de gratidão da menina.


Sempre com ares de herói, em busca de aprovação, Tom entra para a ordem dos “Cadetes da Temperança” – “Ele prometeu se abster de fumar, mascar e profanidade enq2uanto ele permanecesse um membro.” (“He promised to abstain from smoking, chewing, and profanity as long as he remained a member.” p. 211, Cap. 22) mas, por isso mesmo, nunca sentiu antes tanta vontade de fumar, mascar e praguejar!


“Tom logo percebeu-se atormentado com o desejo de beber e praguejar; o desejo crescia tão intenso que nada exceto a esperança de mostrar-se em faixa rubra fazia-o desistir da ordem”
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“Tom soon found himself tormented with a desire to drink and swear; the desire grew to be so intense that nothing but the hope of a chance to display himself in his red sash kept him from withdrawing from the order.” p. 211


Tom percebe, assim, outra característica do comportamento humano – quanto mais se quer abstêmio, mas vontade de voltar ao vício, quanto mais se deseja ser santo, mais inclinado ao pecado. Assim, eis a raiz de todos os males, todos os crimes.


Inclusive o crime de Injun Joe volta ao enredo. Afinal, todo este tempo, os meninos mantiveram o silêncio. Huckleberry manteve a promessa de calar-se. E – culpados – os meninos levam um pouco de tabaco e fósforos para o pobre prisioneiro Muff Potter, o injustiçado.


No tribunal, os meninos resolvem revelar a verdade – a voz das crianças é sempre ouvida com atenção pela comunidade, ou porque as crianças são sinceras ou porque vêem algo que os adultos não percebem. E Tom é novamente reconhecido como o herói da vila.


(Tom é sempre a figura dúbia do herói – anti-herói , quanto Huck Finn é o anti-herói, um Pedro Malasartes, que somente conheceremos, de verdade, no livro a ele dedicado, “As Aventuras de Huckleberry Finn”. Há diferenças entre Tom e Huck, quanto ao tipo de aventura que preferem. Enquanto Tom Sawyer se inspira para suas aventuras em leituras, Huckleberry é letrado, prefere a espontaneidade, desconhece as aventuras dos livros, não sabe quem foi Robin Hood... )


Na busca de mais aventuras, Tom decide sair com uma pá para escavar tesouros enterrados por piratas – o que não faz o excesso de leitura ? – e consegue convencer o desconfiado Huck – desde quando Tom sabe onde piratas enterram tesouros? Mas enquanto perambulam em busca de tesouros enterrados, os meninos encontram uma casa abandonada, e acabam por descobrir o paradeiro do foragido Injun Joe...


Assim de aventura em aventura, que não vamos revelar aqui, Tom e seus amigos fogem de bandidos, fazem piquenique, desbravam cavernas, se perdem entre galerias e estalactites, mergulham em lagos profundos, conhecem outras saídas nas margens fluviais, em suma, são crianças descobrindo aquele mundo natural, de interior sulista, à beira de um grande rio, onde, rumo ao oceano, no Golfo do México, passam apitando os navios-vapores.



(continua no ensaio sobre “As Aventuras de Huckleberry Finn”)


out/11

Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/



As fontes das citações são a Wikisource e a edição “The Adventures of Tom Sawyer”, New York, Collier Books, 1962. As traduções são minhas (LdeM)



fontes
http://en.wikisource.org/wiki/The_Adventures_of_Tom_Sawyer

Wikipedia

http://en.wikipedia.org/wiki/The_Adventures_of_Tom_Sawyer



filmes baseados em Tom Sawyer

The Adventures of Tom Sawyer
http://www.youtube.com/watch?v=7D4oDKTe3rk&feature=related

Tom Sawyer” (1973)
http://www.youtube.com/watch?v=8l3rAGMDU2I&feature=related




LdeM


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