segunda-feira, 22 de abril de 2013

sobre Pergunte ao Pó - de John Fante






Sobre Pergunte ao Pó (Ask the Dust, 1939)
do autor norte-americano John Fante (1909-1983)
(trad. Roberto Muggiati)


A Literatura que fermenta nas vivências pessoais


De pronto, encontramos o Prefácio do poeta iconoclasta Charles Bukowski, escrito em junho de 1979, quando desabafa, enquanto frequentador de biblioteca pública, também em Los Angeles: “Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava?” (p. 5) assim ele critica os autores que não vivem a vida autêntica, e não carregam suor & lágrimas para dentro dos livros, que não passam de volumes de tinta e papel, que não fedem nem cheiram, incapazes de emocionar e fazer despertar. Quanto a Bukowski, um confesso admirador de Fante, ele sempre entornou sangue & álcool em seus textos, e nunca foi indiferente ao lado noir da vida.

É preciso mergulhar na vida para escrever, para ter material para encher páginas e páginas, para testemunhar e retratar um mundo que possa ser compartilhado com os leitores ávidos voyeurs. O autor usa suas vivências como matéria-prima, como argamassa do edifício literário, usa como tijolos suas dores e privações, seus desejos e desilusões. Não que a ficcionalidade esteja ausente, mas se entrelaça com o factual, com o vivido, com o sofrido. O elemento imaginário está em um segundo nível.


Em Pergunte ao Pó temos a narrativa é em 1ª pessoa, a voz confessional do jovem Arturo Bandini, de 20 anos, que tenta ser escritor em Los Angeles, cidade demasiadamente grande para ele um jovem provinciano que vai para a metrópole, a ser percorrida por seu olhar de flâneur. “E assim cheguei à esquina da Quinta com Olive, onde os grandes bondes mastigavam os ouvidos da gente com o seu barulho e o cheiro de gasolina fazia a visão das palmeiras parecer triste e o pavimento negro ainda molhado do nevoeiro da noite anterior.” (p. 12, c. 1)

O sujeito que perambula e se sente sozinho diante da indiferença da cidade grande,

Los Angeles, dê-me um pouco de você! Los Angeles, venha a mim do jeito que eu vim a você, meus pés sobre suas ruas, bela cidade que adorei tanto, triste flor na areia, bela cidade.” (p. 13, c.1) (“Los Angeles, give me some of you! Los Angeles come to me the way I came to you, my feet over your streets, you pretty town I loved you so much, you sad flower in the sand, you pretty town!”)

O jovem precisa viver, experimentar, para então ter matéria para seus escritos. Para escrever sobre o amor, ele precisa vivenciar o amor. Ele se apaixona por uma garçonete mexicana, a caprichosa Camilla Lopez, “Oh, uma namorada mexicana! Eu pensava nela o tempo todo, minha garota mexicana. Não tinha nenhuma, mas as ruas estavam cheias delas, ...” (p. 16, c. 1)

Para conquistar uma garota, o jovem autor precisa de dinheiro – ele que só publicou um conto de sucesso, “O cachorrinho riu” (the little dog laughed) para ele um motivo de orgulho, de afirmação enquanto escritor. Em sua solidão na cidade, ele pensa na província (Colorado, estado do Centro-Oeste), onde está sua família, principalmente sua mãe que o apoia com modestas e providenciais remessas de dólares. E ele pensa também no editor, o Sr. Hackmuth, ‘o grande editor’, em Nova York a cuidar dos negócios literários, numa revista famosa (a The Atlantic Monthly?)

Para escrever sobre a vida, o escritor deve viver e viver todas as experiências, em suas perspectivas. Assim grandes autores sempre falam sobre suas vivências, suas vicissitudes, vejamos as obras de Melville, Hamsun, Jack London, Conrad, Hemingway, Fitzgerald, Jack Kerouac, Lima Barreto, para citar alguns mestres. Um escritor não pode viver apenas no mundo imaginário, no ficcional, deve ser um empirista, ao experimentar, sujar as mãos, estancar as sangrias. Então ter matéria-prima para a sua escrita.

Eu tinha vinte anos na época. Que diabo, eu dizia, não se apresse, Bandini. Você tem dez anos para escrever um livro, vá com calma, saia e aprenda sobre a vida, caminhe pelas ruas. Este é o seu problema: sua ignorância da vida.” (p.19, c. 2)


Ah, grande escritor este aqui! Como pode escrever sobre mulheres se nunca teve uma mulher? Ora, seu miserável farsante, seu mentiroso, não admira que não consiga escrever!” pois é essencial “escrever uma história de amor, aprender sobre a vida.” Ao demonstrar tal consciência, na própria escrita, o jovem autor entra em dissertações confessionais e metalinguísticas. “Os livros dizem não, a noite grita sim. Tenho vinte anos, cheguei à idade da razão, vou caminhar pelas ruas lá embaixo, procurando uma mulher.” (p. 21, c. 2)

Advindo da província, o jovem autor vive a tecer paralelos e comparações entre a cidade interiorana e a grande cidade (ao estilo das obras dos mineiros Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Aníbal Machado e Pedro Nava, dentre outros), como se pólos de uma vida em tensão, ora entediada, ora indiferente, quando o ser segue deslocado em ambas as cidades,

Então você caminha ao longo de Bunker Hill e sacode o punho para o céu e eu sei o que está pensando, Bandini. [...] fugiu da sua pequena cidade do Colorado porque era pobre, perambula pelas sarjetas de Los Angeles porque é pobre, esperando escrever um livro para ficar rico, porque aqueles que o odiavam lá no Colorado não vão odiá-lo se escrever um livro. [...]” (p. 21)

A partir da cidade, da metrópole, ele precisa extrair um enredo, uma boa estória para o próximo conto ou romance, em suma, precisa revirar a vida urbana e encontrar uma cena dramática ou pitoresca, desde que real, factual, vivencial. Só vale o ficcional a partir do vivido, “Eis aqui uma ideia com dinheiro: estes degraus, a cidade lá embaixo, as estrelas quase ao alcance da mão: ideia do tipo mocinho encontra mocinha, um bom enredo, ideia para dinheiro graúdo.” (p. 22, c.2)

É um jovem piedoso, honrado, com educação católica, com leituras materialistas, é ambíguo e contraditório, por exemplo, quando entra na igreja, reza para uma santa (Santa Teresa), e depois se justifica (perante si mesmo e os leitores),

Por motivos sentimentais apenas. Não li Lenin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo [nota: na verdade, frase de Marx]. Falando comigo mesmo nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu; li ‘O anticristo’ [de Nietzsche] e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A Igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatães.” (p. 24, c. 2)


Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo-Poderoso, vou jogar limpo nesta questão. Vou Lhe fazer uma proposta. Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja.” (p. 24)


A literatura deve se conectar à vida, a escrita se nutrir de vivências. Assim o autor não inventa, mas ficcionaliza o factual enquanto um testemunho. “Meu conselho para todos os jovens escritores é bastante simples. Eu lhes recomendaria que nunca evitassem uma nova experiência. Eu os instaria a viver a vida em estado bruto, a atracar-se com ela bravamente, a golpeá-la com os punhos nus.” e “O livro se baseia numa experiência real que me aconteceu certa noite em Los Angeles. Cada palavra daquele livro é verdadeira. Eu vivi aquele livro, eu o experimentei.” (p. 25, c. 2)

Bandini é um jovem meio antissocial, meio misógino, não tanto quanto o ‘homem do subsolo’, mas ao estilo de Raskólnikov, introspectivo tal qual estas personagens de Dostoiévski, “há algo errado com você, Arturo Bandini, você é um misantropo, sua vida inteira está condenada ao celibato, devia ter sido padre, [...]” (p. 27, c.2) Seres estes que vivem - e sobrevivem - no mundo dos livros. Nesta condição ele questiona os literatos, os que vivem da escrita, veículo de sua expressão e modo de afirmação no mundo indiferente aos seus dramas. Ele é ciente da situação do literato nos domínios do mercado, daí perceber o escritor enquanto mercenário, ou prostituto intelectual, tal como já vimos em Baudelaire (para quem o poeta deixou sua aura cair na lama), “Mas é [a puta] mais limpa do que eu, porque não tem nenhuma mente para vender, apenas aquela pobre carne.” (p. 29, c. 2)

O jovem autor sofre na miséria, passa fome, tanto quanto o protagonista-narrador de Fome, de Knut Hamsun, também se esforça para ser honesto, se resigna a viver de frutas doadas, de cafezinhos, sem refeições – e sem inspiração. Precisa sempre de uma ideia... O protagonista sente fome, se sente miserável, é meio masoquista, “Senti grande satisfação. Eu era a criatura mais miserável de Deus, forçado até a me torturar. Seguramente sobre esta terra nenhuma dor era maior do que a minha.” (p. 32, c. 3) Ele é ajudado por um vizinho idoso, obcecado por carne, e depois recebe alguns dólares da mãe, e algum adiantamento do editor... e vai vivendo, ou sobrevivendo. Enquanto isso perambula por Los Angeles... “Aqui está você, arrastando-se ao longo dos dias, um gênio passando fome, fiel à sua sagrada vocação. Que coragem você possui!” (p. 37, c. 3)

Link para ensaio sobre “Fome



É dentro de tal contexto, neste cenário urbano, que ele conhece a mocinha mexicana. Num café, o Columbia Buffet, na Spring Street, Arturo Bandini observa uma modesta garçonete mexicana, a deslizar entre as mesas, a usar rústicas sandálias (huaraches) e não sapatos femininos. Ele se interessa, mas despreza e maltrata a atendente. Não gosta do café barato, ‘Chama isso de café?’ e ‘Talvez nem seja café, mas a água onde ferveram seus sapatos sujos.’ Ele só consegue o ódio dela. Mas tudo é o começo de um jogo: de desejo e menosprezo, paixão e ódio. Ao sair ele derrama o café sobre a mesa. Depois descobriu o nome dela – Camilla Lopez. E deixa um exemplar da revista (com o conto ‘de sucesso’) para a mocinha. Mas quando a encontra novamente, ele se mostra inconveniente, ríspido, a ponto de ofendê-la. Ele se julga americano e humilha a mexicana.

Enquanto isso, temos mais descrições das ruas de Los Angeles, a cidade grande com seus cidadãos deslocados, os nativos e os forasteiros (os provincianos que buscam prosperidade na cidade grande), então o moço se refugia na ficção, nos livros, na introspecção, em trechos que lembram muito aquelas visões do poeta beat Allen Ginsberg em seu poema alucinado ‘Howl’, Uivo (traduzido no Brasil pelo poeta beatnik paulista.Claudio Willer).

Sabemos como ele chegou a Los Angeles, mais sobre o hotel, a modesta hospedaria, os hóspedes e seus dramas pessoais. Seus primeiros contatos na selva da cidade grande e os potenciais leitores. O que é um autor sem leitores? Enquanto isso a carta enviada ao editor Hackmuth é adaptada para conto – e publicada! E Bandini recebe um cheque de 175 dólares! Paga as dívidas e resolve fazer compras. Roupas novas para ficar apresentável. Mas, por fim, acaba saindo com as ruas velhas – mais familiares. De fato, ele não quer ser apresentável. Ele prefere o sofrido velho Bandini, o autor de (futuro) sucesso.

Ele volta ao Columbia Buffet para conquistar Camilla – mas só consegue deixa-la irritada. Ela que até usava sapatos brancos – e não os velhos huaraches. O escritor pobre e a garçonete mexicana tentam criar personas para impressionar um ao outro, mas acabam se hostilizando. Ele finge ser endinheirado, ela quer ser elegante. Ambos falseiam. Ela tem um carro, meio arruinado, mas é um carro – e podem sair pelas ruas. Ela vive um tanto à vontade, é caprichosa, e incomoda os demais motoristas – na década de 1930, uma época de Depressão econômica após as gastanças da Era do jazz, testemunhada por Fitzgerald. Eles decidem tomar um banho de mar – ele idealiza a cena, vive tudo como se preparando para escrever sobre o vivido (‘vendo aquilo escrito ao longo de uma página numa máquina de escrever’, p. 83, c. 9) – e não consegue relaxar, se divertir, levar na esportiva os caprichos dela. Estão fora de sintonia. Ele sente desejo quando ela o desafia ou se ausenta.

Depois, sozinho, recolhido à solidão, ele escreve a cena tal como gostaria que acontecesse. A literatura enquanto descrição do ideal. Mas é falso, ele rasga tudo. Ele tenta se reaproximar – mas sofre com os desprezos e ironias dela. Ele volta a perambular: ‘Errei através de multidões de párias maltrapilhos e famintos sem destino.’ (p. 89)

O resto do cap. 10 e os próximos (11 e 12) são digressões, onde Camilla é contornada – não esquecida – e Bandini procura um padre, frequenta dancings / boates, se relaciona com uma mulher que o assedia, então a visita em Long Beach, sobrevive a um terremoto, atinge L.A. com baixa escala, se entrega a meditações metafísicas de apóstata, “Eu soube o que tomara conta de mim. Foi uma grande cruz branca apontando para o meu cérebro e me dizendo que eu era um homem estúpido, porque ia morrer e nada havia que pudesse fazer a respeito.” (p. 119, c. 12) e “Você leu Nietzsche, você leu Voltaire, deveria saber. Mas o raciocínio não ajudava. Eu podia me livrar daquilo por meio do raciocínio, mas não era o meu sangue.” (p. 120, c. 12)

Continua a paranoia de Bandini com um novo terremoto, que destrua a grande cidade – ‘todos vão morrer’ – como uma punição final, um apocalipse. Se afasta de edifícios, dorme do lado de fora – medo de ser esmagado, sepultado vivo. “Los Angeles estava condenada. Era uma cidade amaldiçoada. [...] Certo, sou um covarde, mas sejam corajosos, seus lunáticos, vão em frente, sejam corajosos e caminhem debaixo desses grandes edifícios. Eles os matarão.” (p. 128) Pois “o mundo era pó e ao pó voltaria. Comecei a ir à missa de manhã. Fui à confissão. Recebi a sagrada comunhão.” (p. 130, c. 13)

Bandini volta a procurar Camilla no Columbia Buffet , onde ele tenta forçar um diálogo, constrangendo a moça e a si mesmo. Enfim, desiste. Então, o escritor volta ao trabalho. Nova publicação, outro cheque com dólares redentores. Paga dívidas, envia dinheiro para a mãe, e continua a escrever.

De repente, eis que a moça mexicana o procura. Ela quer algumas orientações de escrita para o amante dela, um dos barmen do Buffet. Mesmo enciumado, Bandini recebe os textos originais e tenta uma crítica. Primeiro quer humilhar o rival, depois resolve fazer uma resenha, ou revisão, séria e intelectual. Nada de passionalidades... Mas Camilla volta e toda charmosa para seduzir Bandini – mas não dá certo. Há hostilidade entre eles. “Ela era muito melhor do que eu, tão mais honesta que fiquei enojado de mim mesmo e não podia enfrentar seus olhos cálidos.” (p. 154)

A presença de Camilla constrange Arturo, que não consegue realizar tudo o que imaginou – a impossibilidade de ser romântico. Ele a decepciona e frustra a si mesmo. Ele se refugia no sonho: “[Ela] saiu sem falar de novo. Fiquei sentado num sonho de deleite, uma orgia de confiança confortável: o mundo era tão grande, tão cheio de coisas que eu podia dominar. Ah, Los Angeles, pó e névoa em tuas ruas solitárias, não me sinto mais solitário.” (p. 156, c. 15) Novas tentativas de aproximação. Eles precisam aceitar um ao outro do jeito como eles são. Ela precisa aceitar a introspecção dele, e ele a sedução caprichosa dela.

A escrita continua, “nada para fazer dia e noite a não ser escrever e pensar em literatura” (p. 161) Mas Camilla reaparece e quer a ajuda de Bandini para a ‘carreira literária’ de Sammy (Samuel Wiggins), que está realmente doente (tuberculose) e isolado num galpão em pleno deserto. Mas toda vez em que Bandini e Camilla se aproximam logo uma discussão se inicia. Até que ele descobre que ela usa droga (maconha) e quer reconquistar o amante.

A doença e isolamento de Sammy e o vício de Camilla dominam os capítulos finais, com o internamento (e a fuga) da moça e a misantropia de Sammy, enquanto Bandini escreve o romance de 200 páginas e se deixa perambular,

Era a vida ideal para um homem, perambular e parar e depois continuar, sempre seguindo a linha branca ao longo da costa errante, um tempo para relaxar ao volante, acender outro cigarro, e buscar estupidamente significados naquele desconcertante céu do deserto.” (p. 190, c. 17)

Em meio aos dramas pessoais do protagonista, temos algumas referências ao contexto de época, a superação da Grande Depressão, o rearmamento das potências imperialistas, uma ‘guerra na Europa, discurso de Hitler, confusão na Polônia’ (p. 182), que pouco importam para Bandini com suas carências afetivas e financeiras. Os dramas coletivos estão distantes, a miséria está por perto.

Por fim uma última tentativa de vida em comum, o sonho de Bandini se realiza? Não, infelizmente para ele. Pois ele aluga casa, a beira-mar, onde cuidar de Camilla, mas ela volta a procurar o Sammy, se humilhar para ser aceita, enquanto o doente a despreza. Percebe-se que o destino de Bandini é circular, ao fim volta ao início. Ele continua o flâneur que conhecemos no primeiro capítulo. “Saí para uma caminhada pelas ruas. Meu Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade.” (p. 200, c.18)

O romance [dentro do romance] que Bandini escrevera é finalmente publicado, e ele se deixa admirar a obra nas vitrines. Estará assim legitimado enquanto escritor? É quando recebe bilhete de Sammy, acusando a visita de Camilla. Ele a expulsa, e ela se perde no deserto. Bandini inutilmente a procura na extensão de dunas, e acaba por jogar na areia árida um exemplar do livro dedicado a ela. Ele teve sucesso enquanto autor, mas, melancolicamente, continua sozinho.


Com seu personagem Arturo Bandini, o autor John Fante conseguiu, satisfatoriamente, um meio de, através de um alter-ego, criar uma obra literária confessional, verossímil, com o entrelaçar de factual e ficcional, para melhor exemplificar a importância do vivencial na criação imaginativa. Este tom de literatura-verdade é que empolgou toda uma geração que viria a ser chamada Beat Generation, ou Beatnik, com seus romances & poemas viscerais & turbulentos nascidos da experiência pessoal de cada autor, seja Burroughs, Kerouac ou Ginsberg, todos em sintonia com a busca de Fante, o jovem autor que perambula pelas ruas, a se perder e a se encontrar.




Fonte: FANTE, John. Pergunte ao Pó. (Ask the dust) Trad. Roberto Muggiati. 5ª ed. Rio de Janeiro : José Olympio Ed., 2005.


fev/mar/13


Leonardo de Magalhaens




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segunda-feira, 15 de abril de 2013

sobre O LOBO DA ESTEPE - de Hermann Hesse / P 2






Sobre “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927)
do escritor alemão Hermann Hesse
(da trad. de Ivo Barroso)


A busca de si mesmo enquanto jornada literária

p2


Vivendo num mundo de leituras, o burguês-iconoclasta Haller é ainda um idealista. Assim na mesma condição de Emil Sinclair, no anterior “Demian”. O idealismo de Emil se manifesta até no plano da sexualidade, quando ele imagina uma amante ideal e evita contato com as garotas de sua idade e grupo social. Assim, como Harry Haller, o 'lobo da estepe', idolatra a bela Hermínia, que é uma projeção dele mesmo, o jovem Emil idolatra uma imagem, por ele mesmo desenhada, que denomina Beatrice, tal qual a musa das musas, a de Dante, poeta dos poetas. Muitas vezes as autodescrições do narrador Emil parecem-se com as ansiedades de um jovem 'lobo da estepe', como no momento em que ele lembra da obsessão pela imagem desenhada.


Impressionante como Hermínia conhece a vida (e os enigmas) de Haller, a ponto de ser uma amiga-mãe-conselheira, mesmo não se encaixando com a figura amoral, que vive da noite e na noite, que era desprezada pelo (ainda) moralista 'lobo da estepe',

Quero dizer-lhe hoje uma coisa que já sei há muito e que você também sabe, mas que talvez nunca a confessou a si mesmo. Quero dizer-lhe agora o que sei de mim, de você, de nosso destino. Você, Harry, sempre foi um artista e um pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre no encalço do grande e do eterno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais foi despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado destino, nada pôde ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura. Não é verdade, Harry? Não é este o seu destino?” ( pp. 162-63)

Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão. E, contudo, terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo...” (p. 164)

pois desde antes explicitava as relações de semelhança entre ambos, “Sou como você. Porque estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim mesmo quanto você; e, como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem conformar-se com sua estupidez e crueldade.” (p. 138)

Interessante a relação de Haller com o músico jazzista Pablo – a lembrar certa relação de Sinclair com o músico organista Pistórius, em “Demian” – que apresenta a música enquanto expressão e libertação dos instintos, em conexão com as harmonias universais, que devem ser captadas pelas mentes superiores, verdadeiramente ligadas com o macrocosmo. Mentes que devem adentrar mistérios, criar rituais e festividades, novas cerimônias coletivas, novos símbolos compartilhados, pois uma religião solitária não existe. Toda celebração é integrada a um contexto, uma força além do indivíduo, dos indivíduos.

Ao fim, numa série de cenas, que não sabemos serem reais, surreais ou alucinações, o protagonista se vê num baile de máscaras, e, logo depois, num 'teatro mágico' habitado por suas obsessões, delírios, desejos personificados, onde encontra velhos eruditos, gênios, tais como Mozart e Goethe, além de velhos burgueses em campos de batalha, em cenas de crueldade (a qual se acreditava banida da civilização ocidental...). Na mocinha Hermínia, Haller vê o amigo de infância Hermann, vê a si mesmo, vê um objeto de desejo. Meio ao ambiente festivo-delirante, o narrador sente sua própria despersonalização,

Mas hoje, nesta bendita noite, expandia eu mesmo, Harry, o Lobo da Estepe, aquele sorriso, agitava-me eu mesmo no doce sonho e na embriaguez da comunidade, da música, do ritmo, do vinho e dos prazeres do sexo, cuja exaltação ao descrever um baile eu ouvira na voz de qualquer estudante em outros tempos com um ar de mofa e pobre superioridade. Eu já não era eu mesmo, minha personalidade se dissolvera na embriaguez da festa como o sal na água.” (p. 183)

Havia perdido a noção do tempo, não sabia as horas ou os instantes que durava aquela felicidade embriagadora. Tampouco percebi que a festa, quanto mais animada se fazia, tanto mais se concentrava num espaço menor. (…) Eu não tinha pensamentos. Flutuava imponderável no torvelinho da dança, comovido pelos perfumes, os sons, os suspiros e as palavras, saudado por olhos estranhos, rodeado por estranhos rostos, lábios, braços, peitos, joelhos, levado daqui para ali ao compasso da música como uma onda.” (p. 184)
Haller sofre um processo de despersonalização, de fragmentação das identidades, vendo-se o que ele era, o que desejava ser, o que seria se seguisse um caminho na vida. Tudo num caleidoscópio de potencialidades, de possibilidades do ser, como vários Hallers em universos paralelos, ou alternados. Um jogo de espelho onde a imagem do Eu (a imagem que temos de nós mesmos) se distorce, se desfoca, para mostrar faces que desconhecemos ou não admitamos em nós mesmos.

[Pablo] manteve o espelho suspenso diante de meus olhos (lembrei-me de uns versos infantis: 'Espelhinho, espelhinho em minha mão') e vi, algo liquefeito e nebuloso, uma imagem inquietante, voltada sobre si mesma, auto-atormentada, trabalhando em si mesma – eu próprio, Harry Haller. E dentro desse Harry Haller, vi o lobo da Estepe, um lobo tímido, formoso, mas de olhar confuso e angustiado que ora faiscava com malignidade ora com tristeza, e essa figura de lobo corria incessante pelo corpo de Harry, como um afluente na correnteza do rio principal, com outra cor, turvo e agitado, lutando dolorido, devorando-se um ao outro pra preservar a sua forma. Triste, muito triste me contemplava o lobo fugidio e meio plasmado, com seus belos e tímidos olhos.” (p. 189)


No teatro dos sonhos, no mundo dos delírios, Haller encontrará a libertação de si mesmo? Pablo é o mestre-de-cerimônias no show de surrealismo, em bizarro mundo de imagens e deformações, desejos e desilusões,

Sem dúvida já terá adivinhado há algum tempo que o domínio do tempo, a libertação da realidade e tudo aquilo que deseja chamar de seu anseio não significam outra coisa senão o desejo de libertar-se de sua chamada personalidade. Tais são as prisões em que você se encontra. E se entrasse neste teatro assim como está, assim como é, acabaria por ver tudo com os olhos de Harry, com os velhos óculos do Lobo da Estepe. Por isso convido-o a despojar-se desses anteparos e deixar no vestíbulo a sua honrada personalidade, onde estará a sua disposição a qualquer momento que assim o desejar. A maravilhosa noite de baile da qual acabam de vir, o Tratado do Lobo da Estepe e, por fim, os estimulantes que acabamos de tomar devem tê-lo preparado suficientemente.” (p. 190)

Num espelho reflete-se as mil possibilidades de ser, as mil personalidades que se abrigam num único indivíduo – como bem explicitou Walt Whitman e Fernando Pessoa em seus poemas onde se manifestam multidões de possíveis Eus – em várias situações, circunstâncias, momentos da existência, a ponto de Haller se imaginar um esquizofrênico, um louco de fato.

E vi, durante um brevíssimo instante, o Harry que eu conhecia, mas com uma fisionomia inusitada, de bom humor, luminosa e sorridente. Mal o reconheci, porém, desfez-se em pedaços, dele saltando uma segunda figura, uma terceira e logo dez ou vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de Harrys e de fragmentos de Harrys, infinitos Harrys, cada um dos quais eu olhava e reconhecia em um momento instantâneo como um relâmpago. Alguns daqueles Harrys eram tão velhos quanto eu, outros muito mais, alguns velhíssimos, outros muito jovens, rapazes, meninos, crianças de escola, garotos, molecotes. Harrys de cinquenta e de vinte anos corriam e saltavam uns atrás dos outros, de trinta e de cinco anos, sérios e divertidos, dignos e cômicos, bem-vestidos e esfarrapados e também completamente despidos, e todos eram eu mesmo, e cada qual era visto e reconhecido por mim e logo desaparecia com a velocidade do raio, corriam em todas as direções, para a direita, a esquerda, para o fundo do espelho e até saíam dele.” (p. 193)

        No mundo dos delírios, Haller pode ter a mulher que deseja, pode dirigir automóveis em alta velocidade, pode testemunhar o duelo da máquina versus o ser humano, pode realizar anseios ocultos reprimidos, pode visitar campanhas de batalhas, pode inclusive fazer parte das carnificinas! A guerra enquanto loucura coletiva, onde até os mais sensatos, mais eruditos, professores, estudantes, oficiais, podem se tornar assassinos compulsivos a dispararem projéteis sobre quem parece ao alcance do tiro, não passando de alvo numa mira, não um ser igual, não um 'próximo' a quem a religião postula que amemos como se fosse nós mesmos.

A guerra é o grande drama que Demian, na obra anterior, profetiza, ou pressente, é o mesmo grande conflito que Nietzsche esperava para o fim da civilização (tal como se conhecia), o mesmo conflito que ceifou a vida de poetas e jovens estudantes, além de personagens, como bem lembramos de Hans Castorp, do clássico “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924) de Thomas Mann, que morre ao fim do romance, após uma vida retirada (e algo meditativa e digressiva) num sanatório no alto das montanhas, longe dos dramas da planície, com sua mesquinharia e competição.

Quando a grande guerra finalmente começa, em fins de 1914, Demian se apresenta como oficial, e segue junto aos milhares, depois milhões, de jovens rumo ao front e a morte violenta. Alemães, austríacos, turcos matam, e se deixam morrer, em batalhas com britânicos, franceses, russos, sérvios, árabes, depois norte-americanos, brasileiros, etc. Nacionalismos e ideologias se combatem nos campos de sangue, entre arame farpado e tiroteios, matando toda uma geração de jovens tradicionalistas ou idealistas.

Podemos imaginar os poetas alemães, franceses, ingleses, cada um lutando por sua pátria, a matarem uns aos outros, entre euforia e melancolia, assim um Erich Remarque atirando num Alain-Fournier, ou num Céline; ou Ernst Jünger metralhando um Wilfred Owen, ou um Rupert Brooke, num drama de cenário despedaçado e ensanguentado. Lembramos poemas de Georg Trakl, de Edward Thomas, de Siegfried Sassoon, que tematizam a guerra ao mesmo tempo em que a sofrem, enquanto findam junto com as marchas e metralhas.


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No campo de batalha o livre-pensador vislumbra o quanto os seres humanos estão dispostos a morrer por ideais, mesmo que não sejam ideais deles, mas de um sistema político ou classe social. A matança não é algo apenas externo, mas antes uma projeção do desejo de morte, da autodestruição interna, que Freud já diagnosticara, em contraponto ao ‘princípio do prazer’.


Enquanto participam da guerra, em cena bizarra e surreal, além de trágica, Haller e um professor discutem filosofia, quando tecem seus comentários metafísicos sobre a nossa doentia civilização. Explica-se o professor, ou ex-professor, agora no papel de combatente ou terrorista, tomado por uma obsessão de destruição autodestrutiva, uma demonstração do princípio de morte, diagnosticado por Sigmund Freud,

A noção de dever me é inteiramente desconhecida. Antes, em decorrência de minha profissão, tinha muito a ver com ela; era professor de Teologia. Além disso, fui soldado e tomei parte na guerra. O que me parecia o dever e o que as autoridades e as leis me haviam ordenado não era realmente bom, e de boa vontade teria feito exatamente o contrário. Mas embora admita que o conceito do dever não mais me atinja, conheço contudo o conceito da culpa; talvez sejam a mesma coisa. Desde o instante em que nasci, já era culpado, condenado a viver, obrigado a pertencer a um Estado, a ser soldado, a matar, a pagar impostos para comprarem armas. E agora, neste exato momento, o delito de haver nascido me força a matar, como na guerra. E desta vez não mato com repugnância; estou resignado à minha culpa, nada tenho a opor que este mundo imbecil e obtuso se faça em pedaços, e colaboro com gosto na tarefa, e prazerosamente sucumbirei com ele.” (pp. 200-01)

         O ex-professor justifica a violência com o pulsar do instinto, como uma explosão de selvageria, como uma 'infantilidade', como uma consequência da superpopulação, como um embate de ideais, tudo isso entre um tiro e outro, uma tirada irônica e outra. Mil outras aventuras, mil outros desejos se afiguram diante dos olhos do 'lobo da estepe' ávido por experiências de despersonalização, onde ele pode assumir várias identidades e satisfazer vários delírios egoístas, mesquinhos, hedonistas. Taras sexuais, gulodices, mantras, espiritualismos ritualísticos, tudo à mão, tudo acessível, tudo à venda, basta que o indivíduo – ou consumidor – tenha o passe, o desejo, o dinheiro, o cartão de crédito.


         A questão da guerra como absurdo e que nos faz ter consciência da efemeridade da vida é uma pulsões principais para que autores grandes como Hermann Hesse e Thomas Mann tenham escrito obras tão existenciais quanto “Demian”, “O Lobo da Estepe” e “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924) onde o ser humano está no limite, a questionar sua presença e participação neste mundo tão inexplicável. O senso comum simplesmente 'aceita o mundo como ele é', e reproduz a ignorância e a inércia social.



Desde Freud (ou Dostoiévski?), com sua psicanálise, sabemos que o ser humano não é uma unidade psíquica, mas uma criatura segmentada em camadas psíquicas, do profundo Id ao socializado SuperEgo, em contradições e incoerências, muitos Eus num só ser catalogado, numerado pelos trâmites do Estado. Vem daí a impressão de ser uma pessoa, quando, em verdade, somos muitas personas, em espantosa diversidade. Diz Pablo ao protagonista, textual e metaforicamente, sobre o fenômeno das personalidades, ou da pluralidade de personas num único indivíduo,

O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou para esse fenômeno a designação de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multiplicidade dos egos subordinados. Esse erro da ciência acarreta consequências desagradáveis; sua única vantagem reside na simplificação do trabalho dos mestres e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em consequência deste erro, muitos homens que passam por 'normais', e até por valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da alma. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio eu, que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jogo da vida. Assim como o dramaturgo cria um drama a partir de um punhado de personagens, assim construímos, com as peças de nosso eu despedaçado, novos grupos com novos jogos e atrações, com situações eternamente novas.” (pp. 207-08)

No teatro mágico temos o apogeu, o clímax da dramaticidade na cena de ares expressionistas, até góticos, de novela noir, onde Harry Haller destrói a sua 'cara-metade', a parte-de-si-mesmo, personificada na bela e enigmática Hermínia,

Abri. O que encontrei foi uma cena bela e simples. Num tapete que recobria o solo vi duas figuras desnudas, a bela Hermínia e o formoso Pablo, uma ao lado da outra, adormecidas profundamente, totalmente esgotadas pelo jogo do amor, que tão insaciável parece e, contudo, tão logo nos sacia. Formosas, formosíssimas criaturas, soberba imagem, corpos maravilhosos! Sob o seio esquerdo de Hermínia havia uma mancha redonda e fresca, que começava a roxear – uma dentada amorosa dos alvos dentes de Pablo. Ali onde havia a marca, cravei meu punhal até o cabo. O sangue correu sobre a pele branca e delicada de Hermínia. Eu teria beijado aquele sangue cem, mil vezes, se tudo tivesse corrido um pouco diferente. Agora já não havia lugar para isso; olhava apenas como o sangue fluía e vi seus olhos se abrirem por um momento, cheios de dor, profundamente assombrados. 'Por que se espanta?', pensei. Então me ocorreu que eu teria que cerrar-lhe os olhos. Mas estes se cerraram por si sós. E tudo estava feito. Só se voltou um pouco de lado, e desde a axila até o seio vi correr uma delicada e fina sombra, que pareceu querer recordar-me algo, mas não atinava com o que era. Logo jazeu imóvel.

Contemplei-a por longo tempo. (…)

Seu desejo se havia cumprido. Antes que fosse inteiramente minha, havia matado o meu amor. Fizera o impensado, e então me ajoelhei diante dela e fitei-a fixamente e não sabia o que esta ação significava, se fora justa e boa ou totalmente o contrário. (…)

Cada vez refulgia-a mais rubra a boca pintada no rosto apagado. Assim fora toda a minha vida. Minha parca felicidade e amor tinham sido como aquela boca pasma: um pouco de carmim numa máscara mortuária.

E do rosto morto, dos brancos ombros mortos, dos mortos braços alvos exalava um horror, que se aproximava lentamente, uma solitude e um deserto hibernal, um frio que crescia lenta e lentamente, no qual se iam tornando hirtos os lábios e as mãos. Terei apagado o sol? Matei o coração de toda a vida? O frio da morte estender-se-á por todo o universo?” (pp. 226-27)


Toda esta pungente cena lembra aquele dolorido poema de Oscar Wilde, a Balada no Cárcere de Reading, “No entanto, cada um mata o que ama”. Segue-se a execução de Harry – após ter matado no teatro dos sonhos (e em si mesmo) a sua cara-metade Hermínia – em toda uma encenação, daquelas de tribunal, que tanto empolgam os que adoram julgar, apontar dedos para os pecados alheios. O juiz é algo caricato e pedante, como se é de esperar numa obra com uma sensível ironia,

Meus senhores, em vossa presença está Harry haller, acusado e julgado culpado de uso fraudulento de nosso teatro mágico. Harry não só ultrajou a arte sublime, confundindo nossa formosa casa de imagens com a chamada realidade, matando uma jovem ilusória com um punhal ilusório, com também demonstrou sua intenção de servir-se de nosso teatro como de uma máquina de suicídio, sem nenhum humor. Em consequência, condenamos o mencionado Sr. Haller à pena de vida eterna e a proibição por doze horas de entrar em nosso teatro. Tampouco poderemos perdoar ao condenado o castigo de lhe rirmos na cara.

Ao três todos os presentes prorromperam numa gargalhada unânime, uma gargalhada em coro elevado, uma gargalhada do além, dificilmente suportável pelos ouvidos humanos.” (p. 232)


Assim, teatralmente, o livro se encerra com uma risada geral. Pablo, Mozart e o ‘lobo da estepe’ Harry Haller, todos a rirem de sua dramática autoconsciência. Tanto em sua obra anterior, “Demian”, quanto em “O Lobo da Estepe”, o autor Hermann Hesse apresenta os dilemas do intelectual numa sociedade massificada, onde os bens espirituais são também comercializados, e o bom senso é mercantilizado como outra etiqueta no catálogo, sem consideração pela dignidade ou pela elevação cultural, tudo numa busca de efemeridades que apenas alienam o ser pensante e empobrecem suas potencialidades de entendimento e da expressão. A tarefa do intelectual é observar o mundo, superar o isolamento, evitar o anonimato na multidão, mas participar dos dramas, testemunhar o vivenciado e alertar para que as perdas e os horrores não se repitam.



Fonte: HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. Trad. Ivo Barroso. RJ: Record, 2010.



nov/12 & mar/13


Leonardo de Magalhaens





Sobre o autor Hermann Hesse :

Contista, poeta e ensaísta, Hermann Hesse nasceu em 2 de julho de 1877 na pequena cidade de Calw, na Alemanha. Filho de um pregador pietista, estudou Latim e Teologia no seminário de Maulbronner, do qual fugiu em 1891. trabalhou como livreiro e antiquário, dedicando-se exclusivamente à literatura a partir de 1903. entre seus títulos mais conhecidos estão O Lobo da Estepe, Demian e Sidarta. Hermann Hesse foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, e morreu em 9 de agosto de 1962.”


O tradutor Ivo Barroso sobre a vida e obra de Hesse:

Cabe uma palavra final sobre a atitude de Hesse em relação à guerra e à comunidade. Pode parecer hoje um tanto superado o desprezo pela coletividade demonstrado por Sinclair, passível de confundir-se com um sucedâneo da torre de marfim. Mas o que Hesse realmente ataca é a aceitação do rebanho, permeável a influências externas, capaz de ser levado à guerra na ilusão de estar praticando um ato heróico. A atitude não está certamente isenta de alguma aristocracia intelectual, mas formulada antes do sentido do culto do individualismo enquanto útil, capaz de encontrar o destino, do que no isolamento gratuito e inaplicável. Hesse rebela-se contra a uniformização; não é a massa que o impressiona, mas os processos de submissão, de estandardização a que ela se submete. Ergue um canto de glorificação ao indivíduo consciente de si mesmo e de seu próprio caminho e execra o morticínio capaz de destruir com uma simples bala esse experimento único e insubstituível da natureza : o homem.”

fonte: Record, 2006.



Mais info sobre “O Lobo da Estepe



wikipedia


filme
(1974, diretor Fred Haines )



artigo de Bernardo Carvalho

ensaio de Sandro Nasser

sobre a Contracultura

Hermann Hesse
curta biografia (inglês)



Referências


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do Subsolo. Trad. Maria Aparecida B. Soares. L&PM Ed. 2009.


HESSE, Hermann. Demian. Trad. Ivo Barroso. 37ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2006.

_______ . O Lobo da Estepe. Trad. Ivo Barroso. 35ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.

MAUGHAM, W. Somerset. O Fio da Navalha. (The Razor's Edge, 1944) Trad. Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Nova Cultural, 1986.


terça-feira, 9 de abril de 2013

sobre O LOBO DA ESTEPE - de Hermann Hesse / P1





Sobre “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927)
do escritor alemão Hermann Hesse [1877-1962]
(da trad. de Ivo Barroso)


A busca de si mesmo enquanto jornada literária


A Época

A contracultura foi um movimentou que atingiu um ápice nos anos 1960, com as revoltas da juventude, das massas de estudantes em grandes cidades e capitais do mundo ocidental. Mas antes deste ápice existem várias preparações, desde os horrores das crises econômicas e guerras mundiais, até as hegemonias dos tabus que frustravam sexualmente as novas gerações.

Mas o descontentamento com a cultura ocidental vinha desde meados do século 19, com as descobertas do orientalismo, o mundo dos brâmanes e budistas, quando os britânicos se dedicaram à colonização da Índia, quando filósofos se voltaram para leituras de clássicos orientais, vide G. W. Hegel, A . Schopenhauer, F. Nietzsche, estes inclinados aos pensamentos de Buda, o Iluminado. Um olhar sobre o estranho e exótico, na forma de pensar o irracional, o que não era parte do pensar acadêmico eurocêntrico.

Na América outras mentes procuraram alternativas, vejamos R. W. Emerson, H. D. Thoreau, W. Whitman, arautos da vida livre, da integração com a Natureza e repúdio ao mundo de consumo e competição. Na Rússia, sob a opressão dos Czares e a intromissão dos ocidentais, haviam escritores que apoiavam ideias eslavófilas e libertárias, ora místicas ora utópicas, basta lermos L. Tolstoi, F. Dostoiévski, M. Bakunin, etc. Como um antídoto ao capitalismo competitivo do mundo ocidental que ameaça a vida de um país ainda agrário e feudal.

No início do século 20 vários autores já digeriam em suas obras os ideais libertários, mesclados de orientalismo (principalmente budismo) que eram motivo de estudos dos filósofos de meio século antes. Assim se explicam as obras de surrealistas e expressionistas, que ironizam o cientificismo e adotavam temáticas místicas, contra o pensamento racionalizante (ou razão instrumental) do mundo ocidental. Era mais uma busca de alternativas, vivências outras, meio a dominação do capitalismo que mercantilizava a vida humana sem hesitações.

Entende-se assim a obra “O Lobo da Estepe” em pleno período entreguerras, com uma mensagem que seria lida durante todo o século 20 e teria um período de plena 'sensação' entre os arautos da contracultura cerca de meio século depois. Lido ao lado de “A Náusea” (J-P. Sartre), “Viagem ao Fim da Noite” (L-F. Céline), “O Estrangeiro” (A. Camus), “O Processo” (F. Kafka), “A Condição Humana” (A. Maulraux), “Admirável Mundo Novo” (A. Huxley), “ na Estrada / On The Road” (J. Kerouac), “O Livro do Desassossego” (Bernardo Soares/ Fernando Pessoa), dentre outros títulos que tematizam a solidão humana no mundo de despersonalização / desumanização em prol do lucro de uma elite hipócrita e mesquinha.

Apareceram as figuras dos outsiders, seres sem rumo, que sabiam apenas negar a ordem burguesa, em desejo de destruí-la, quando não se autodestruíam. Podiam ser os andarilhos, os hipsters (ou hippies), os Beats ou beatniks, os dharma bums, os neomísticos, que perambulavam às margens da sociedade de consumo. O ser consciente que anda solitário no seio das cidades populosas, ou nas orlas dos desertos, e observa as incongruências da vida moderna – cheia de promessas e, portanto, decepções, insatisfações.




A Obra

O prólogo de “O Lobo da Estepe” é assinado pelo tradutor Ivo Barroso, que destaca os focos narrativos diversos dentro da obra, que é múltipla em perspectivas e leituras, sem que necessariamente identifiquemos o autor com o protagonista ou com o narrador,

É curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que, na figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe, relata o breve conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do próprio personagem, Harry Haller, cujo nome aliterativo já é uma insinuação de ser ele o alter ego do escritor. […] E a terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagandista ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico e contém o estudo do comportamento de um 'lobo da estepe', que é o retrato em corpo e alma inteiros dele mesmo.” (pp. 7-8)

O tradutor Barroso aponta ainda elementos de surrealismo (antes da vanguarda, daí ser avant la lettre), de freudismo, de existencialismo, com um protagonista antibelicista, ecológico, libertário, ainda que com seus preconceitos, tudo isso num romance que é um Bildungsroman [romance de formação] ao contrário. Dentro da cultura alemã (ou melhor, germânica, para incluirmos a austríaca e a suíça) a presença iconoclasta de Lobo da Estepe é inconteste, ainda mais se comparadas às outras obras da época, ora de discurso esquerdista, ora fanaticamente nacionalista-racista. A obra de Hesse é crítica, meditativa e pluralista. Visa fazer pensar, não doutrinar.


No aspecto narrativo, realmente várias vozes se articulam, e somente uma delas é a do protagonista, que se crê o ‘lobo da estepe’. Temos o 'editor', na condição de sobrinho da senhoria de Haller, considera o protagonista um sujeito excêntrico e inclassificável, com bom comportamento, mas como se estivesse 'atuando' para os demais. É um homem já vivido em plena solidão, com poucos amigos, e vida social nula. Vive entre livros e leituras, observando a vida e tolerando o mundo burguês. Na verdade, tolerando e admirando o mundo burguês, ou pequeno-burguês, onde foi criado. Um pensador que vem criticar a sociedade ocidental europeia na qual foi criado.

Tal dualidade livre-pensador versus mundo burguês, que é problematizado pelo Harry Lobo da Estepe, está igualmente dramatizado em “Demian”, livro escrito em 1919, uma década antes, onde o protagonista-narrador Emil Sinclair se mostra consciente de suas diferenças quanto a própria família, ao mundo cômoda do lar, onde passou toda a infância. Revela o editor, em Lobo da Estepe: “De um modo geral, deu-nos a ideia de alguém que tivesse chegado de um mundo estranho, talvez de países de além-mar, e encontrasse aqui tudo perfeitamente agradável, mas ao mesmo tempo um tanto cômico. Era, não se pode negar, cortês e até mesmo amável;” (p. 15) e também sobre seu caráter excêntrico, em

Quando se falava com ele e, o que não era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, de vez que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade.” (pp. 18-19)


E vejamos esta dialética em “Demian”, onde o narrador Sinclair recorda-se de sua educação numa família burguesa, ele, agora um livre-pensador, enquanto filho transviado do mundo burguês, é fascinado pelo mundo não-burguês, não-familiar:

Às vezes, me dava conta de que meu objetivo na vida era o de chegar a ser como meus pais, tão claro e puro, tão reflexivo e ordenado. Mas o caminho que conduzia àquela meta era demasiadamente comprido; para chegar a ele, era necessário passar por muitas aulas, havia que sofrer e estudar para muitas provas e muitos exames; além disso, o caminho seguia sempre bordejando aquele outro mundo mais escuro e às vezes nele penetrava, não sendo de todo impossível que nele alguém permanecesse e sumisse em suas sombras proibidas. Havia histórias assim, de filhos transviados, que eu lia com verdadeira paixão.” (p. 21) e “Eu me considerava muito mais próximo do mundo obscuro, e o contato com o mal se fazia sentir em mim muitas vezes por uma dolorosa angústia.” (Demian, p. 22, trad. Ivo Barroso)



A partir do olhar e dos comentários do editor temos uma apreensão da singularidade e do sofrimento que caracteriza o protagonista, antes que este mesmo narre sua história,

Convenci-me de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido das várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era o desprezo do mundo, mas antes o desprezo de si mesmo, pois, podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.” (p. 21)


e também, sobre o convívio social,

No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amá-los, para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o 'Amarás teu próximo!' estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.” (p. 22)


Haller despreza em si mesmo a figura do burguês, o homem ‘pouco-a-pouco’ (como disse também o autor brasileiro Mário de Andrade, em sua “Ode ao Burguês”, “É sempre um cauteloso pouco-a-pouco”), esta figuração do burguês enquanto mediano, medíocre, temeroso de ações radicais, para o benefício ou para o malefício, está mais explícita, mais adiante, no folheto “só para os loucos”,

O 'burguês', como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. (…) O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio-termo. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, (…) em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu.” (pp. 62-63)


Percebemos uma certa ambiguidade de Haller em relação ao mundo burguês – admiração e desprezo – que demonstra um duplo movimento de convívio e de isolamento, “Mas cada vez mais pude ver que, na realidade, nosso pequeno mundo burguês era querido e admirado da distância de seu espaço vazio, da sua estranheza e da sua condição de lobo, como algo sólido e seguro, como algo distante e inatingível para ele, como o lar e a paz, aos quais nenhum caminho o poderia levar.” (p. 27) e diante do curioso burguês, o próprio Haller se denomina 'Lobo da Estepe', o que muito admira o 'editor', “Um lobo da estepe, perdido em meio à gente, à cidade e à vida do rebanhonenhum outro epíteto poderia definir com mais exatidão aquele ser, seu tímido isolamento, sua natureza selvagem, sua inquietude, seu doloroso anseio por um lar, sua falta absoluta de um lar.” (p. 28)


O ‘editor’ encontra o manuscrito do próprio Haller – não sabe o quanto ali é ficcional – e dentro da narrativa está o panfleto “Tratado do Lobo da Estepe para loucos”, pois tem noção do que seja viver sem aprovação social – o grande temor do burguês é ser visto como insociável – e sabe sobre filósofos, que ao pensarem demais, se distanciaram da vida cotidiana. Vivem em conflito com a própria época, encontram incompreensão e inimizades, assim foi com o pensador Nietzsche, que filosofava com o martelo,

Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam perdidas para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da mesma maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar sozinho e incompreendido é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres humanos.” (p. 33)

Em seguida, a narrativa passa para a 1ª pessoa na segunda parte, quando as anotações de Harry Haller são editadas pelo sobrinho da senhoria – assim tudo até agora foi apenas o “Prefácio do Editor”, onde uma voz fala sobre o 'Lobo da Estepe', que agora terá direito a expressar-se por si mesmo. Haller deseja uma vida com vivacidade, entusiasmo, euforia, desregramento, até selvageria, não uma comodidade de moral burguesa,

arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo (…) pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem-cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.” (p. 37)

O ‘Lobo da Estepe’ sente-se pouco à vontade no mundo burguês, local de hierarquia e menosprezo, “o mundo dos homens e da chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética” (p. 36) onde o comodismo entorpece as mentes, “mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante.” (pp. 36-37)

O protagonista odeia o mundo burguês, mas vive meio ao 'ar decente' da burguesia, que muito lembra o ambiente da infância (aqui o lar é um símbolo de acolhimento e cuidado, que o adulto perdeu ao perambular pelo mundo). Ele diz não lamentar o passado, mas é sensível sua perda, quando compara o hoje com o ontem. Parece sempre que o tempo de outrora foi melhor, havia música erudita, e não o embalo do jazz, havia a arte erudita não as vanguardas iconoclastas, havia um tempo de leitura e meditação e não a correria em busca do lucro. Sobre tais aspectos parece-nos que há um romantismo reacionário no 'lobo da estepe', que não adere a qualquer projeto de luta coletiva (em prol do socialismo, por exemplo).

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezesaquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.” (p. 41) mas o 'Lobo da estepe' não é apenas um selvagem, antes um nostálgico, até um visionário ou místico, “Quem tinha o coração repleto de seu encanto num mundo a elas estranho?Quem lia à noite, sobre o Reno, a inscrição que as nuvens formavam na névoa? O Lobo da Estepe. E quem buscava entre os escombros da vida o seu significado esvoaçante, quem sofria com a aparente insensatez, quem vivia com o que parecia louco, quem esperava em segredo no último e confuso abismo a revelação de Deus e sua vinda?” (p. 46)

É um visionário solitário e amargurado que não suporta o mundo moderno, “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.” (p. 48) É o louco enquanto apreciador da cultura, a autêntica, não o que chamam modernamente de cultura, assim a contracultura seria a 'cultura alternativa' contra Cultura (Kultur) oficial, tradicional, que tornou-se parte da mesmice cotidiana. “O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, morto muito, e considerado vivo e verdadeiro por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?” (p. 49)

A autêntica cultura está no passado? Ou numa superação da atual cultura? Afinal, tanto anarquismo quanto futurismo manifestavam o desejo de queimar as bibliotecas, e começar tudo de novo. A cultura – nossa civilização ocidental – está caduca e hipócrita, não é realmente a imagem que faz de si mesma, assim em decadência,

Nosso mundo cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e Sócrates, ali estavam Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam de nomes meio apagados numa placa de metal enferrujada, rodeada de assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo para continuar acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para eles; que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras de tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só sabiam em vez disso rodear o túmulo, gesticulantes e forçados.” (p. 88)



Assim é a visão do sujeito em relação à sociedade, mas qual a visão do indivíduo sobre si mesmo? No opúsculo “Tratado do Lobo da Estepe” o protagonista toma contato com um 'estudo' sobre ele mesmo, onde percebe a dualidade de alma, meio humana, meio lobo, ou seja, civilizada e selvagem, no mesmo corpo. Os instintos todos domesticados, e anestesiados, que propiciam a inserção do ser humano no meio social, na cultura. Domar o corpo para melhor desenvolver o espírito – eis o que criou as repressões e sublimações, apontadas por Sigmund Freud. Contudo, temos um 'tênue verniz de civilização', pois os instintos podem explodir em transgressões, crimes, violências, guerras.

O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro.” (p. 52) Eis a dualidade que ele sofre dentro de si, onde o lado civilizado é ironizado pelo lado selvagem, e o selvagem é menosprezado pelo civilizado, mas ambas não se separam, é uma 'natureza dual', apenas se manifestam alternadamente, em comportamento excêntrico, ora amável, ora agressivo, enquanto no círculo social, alguns gostam do lado humano, outros preferem o lado selvagem, e o duelo continua, sem um vencedor. Devido a sua alma com 'dupla-face', divina e satânica, Haller poderia ser um artista, como muitos excêntricos são; mas o protagonista aqui é um pensador solitário, nostálgico de uma cultura erudita que é gradativamente eclipsada pela massificação que hoje denominamos cultura pop.


A interessante obra do escritor britânico W. Somerset Maugham, “O Fio da Navalha”, de 1944, é também um romance sobre alguém excêntrico que busca iluminação espiritual numa modernidade materialista. Um jovem que serviu na aviação durante a Primeira Guerra Mundial, traumatizante como todos sabem (basta ler outras obras sobre o massacre europeu, tais como “Nada de Novo no Front”, de Remarque, ou “Viagem ao Fim da Noite”, de Céline) e que deixa um vazio na alma do cidadão quando retorna ao lar, nos Estados Unidos.

O enredo trata do comportamento e viagens deste jovem protagonista, conhecido do narrador-autor, que mostra o quanto a excentricidade de um jovem, Larry Darrell (não tem mais que vinte anos) tão promissor faz com que ele se afaste de seu círculo social, desista de um casamento, com uma prendada noiva de classe alta, também ignore propostas de emprego, a deixar-se dedicado às leituras de psicologia e espiritualidade, até seguir em viagens, para conhecer, através da Europa, ou para meditar, até o interior da Índia, onde será discípulo de um guru. Os outros personagens, ao redor do protagonista ('um igual a qualquer outro' pois 'ele era tão normal antes da guerra!'), não entendem porque o rapaz não se entrega a vida comum ('seguir o caminho que os outros trilham'), ou seja, viver para o lucro e o progresso da nação norte-americana.

A vida de perambulações, de país a país, na Europa do pós-Primeira Guerra, trabalhando em fazendas, dormindo em estábulos, percorrendo estradas meio aos bosques, é uma vida que fora ansiada por um Thoreau e seria idealizada por um Kerouac. A busca de santidade meio ao mundo moderno é insustentável, logo se deve entregar ao sacrifício de abandono, de desapego e de meditação, não exatamente em mosteiros, mas meio aos simples e humildes, os trabalhadores e artistas, nunca meio aos hipócritas da 'alta sociedade'. Aliás, as elites não tardam a sofrer com as falências e bancarrotas do caos da crise financeira de 1929, marcada pela Quebra da Bolsa de Valores de Nova York.

No final, após meditar com o iluminado guru sobre o Mal e a Finitude, e alcançar sua própria Iluminação, Larry volta para os Estados Unidos, adota a profissão de caminhoneiro apenas para poder melhor percorrer o extenso país, atrás de novas experiências e disposto a divulgar seus aprendizados zen. Temos assim um preâmbulo de “On The Road” / “ na Estrada”, de 1954, do autor Beat Jack Kerouac, onde o peregrino é o andarilho que desafia o senso comum e a cultura de consumo e desperdício de uma vida num mundo capitalista que se autodevora.

Tal qual o jovem Darrell, que retornara do inferno da guerra, Haller bem que tenta frequentar ambiente de burguesia, debater arte europeia e demonstrar bom gosto, mas tudo se aparenta uma atitude deveras falsa, hipócrita, deslocada, alienada num contexto de conflito, imperialismo, guerra total e outras explorações do homem pelo homem. Num contraponto ao burguês não temos o proletário – que pouco aparece nesta obra – mas o bom e velho boêmio, o artista. Fenômeno bem notado pelo poeta Oswald de Andrade (“o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio!) que se esforçava de forma iconoclasta para superar o tradicional 'bom gosto', o medíocre padrão estético que se mantinha por inércia e ignorância.

Deixando o ambiente burguês, os salões da 'boa sociedade', o 'lobo da estepe' busca abrigo nos antros da boêmia, nos bares, entre um gole e outro de algum veneno alcoólico para entorpecer suas culpas e auto-recriminações. Haller defende os mesmos 'ídolos' defendidos pela burguesia, seja o literato Goethe, seja a civilização, seja a vida limpa e ordenada, mas julga a classe dominante como atrasada.

No bar, o Águia Negra, o protagonista encontra uma estranha senhorita, com vivacidade e ironia para mostrar ao deprimido pensador como ele se deixa prender numa prisão por ele mesmo construída. O quanto espera do mundo, o quanto se deixa dilacerar por opiniões alheias, quando devia rir, ironizar ou humilhar o oponente. As figuras venerandas, as quais o 'lobo da estepe' leva tão a sério, não se mostram, afinal, tão 'acima' do lugar-comum, assim aparecem nos sonhos e delírios as personagens de Goethe e Mozart, os símbolos da cultura europeia, e por extensão do mundo ocidental.

De súbito, Haller está deveras interessado pela exótica mocinha, dona de uma força e magia que ele desconhece e admira, que se sentara junto a ele certa noite. E sem ela , o protagonista volta aos pensamentos de suicídio, “o mundo me parecia então novamente vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltavam a envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída daquele inferno silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada agradável para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror. Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem, como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um verdadeiro paraíso.” (p. 116)

Como Haller vê a si mesmo em tamanha autoconsciência ? Qual a imagem do Ego que o atrai narcisisticamente? É preciso que ele se depare com o ser que se reflete no espelho,

Via a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão. Poderia dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a concatenação e os motivos do meu padecimento, da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso.” (p. 117)

E a nova amiga de Haller deseja apenas que ele se liberte, se divirta, aprenda dançar um estilo da moda (trata-se do foxtrote), que ele não veja o mundo com olhares tão tradicionalistas – tão como fazem os burgueses que ele despreza. Certamente, o protagonista tem prazer em obedecer a bela senhorita, pois Hermínia (agora sabemos o nome) é uma moça sadia, animada, caprichosa, que promete levar Haller para uma vida mais diversa e divertida. É como se Hermínia fosse uma projeção da alma do narrador,

Uma parte de minha alma bebeu suas palavras e acreditou nelas, mas a outra acudiu conciliadora e veio assegurar-me que também esta prudente, sadia e segura Hermínia tinha seus momentos de devaneio e seus estados nebulosos.” (p. 123) e “Hermínia era como a própria vida: não se podia antecipá-la, era sempre o momento presente. (…) Aquela mulher, que tão completamente havia penetrado em mim, que parecia saber mais a respeito da vida do que todos os sábios, continuava menina, continuava vivendo cada minuto com tal arte que havia feito de mim um discípulo incondicional.” (p. 124)

Hermínia acha que a figura do 'lobo da estepe' não passa de uma ilusão, de uma ' ilusão poética'. O que a mocinha sabe sobre o protagonista? “Hermínia lera o artigo e por ele se informara que Harry Haller era um inseto nocivo e um homem que renegava sua própria pátria e que naturalmente esta não poderia suportar a existência de homens semelhantes e permitir a difusão de tais pensamentos que inclinavam a juventude para ideias sentimentais de humanitarismo em vez de nela suscitar um bélico furor contra o inimigo secular.” (pp. 128-29) Sabe-se assim que Haller escrevera artigos nos jornais contra o nacionalismo, os orçamentos para armamentos, o culto do imperialismo que levou tantos jovens à morte nos campos de batalha. Ele é um pacifista a irritar as autoridades militaristas e os burgueses que lucram com as guerras. Aliás, outra guerra se aproxima!

Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar pela parte de culpa que lhe cabe nessa desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram : para mim não existe 'pátria', não existe 'ideal' algum. Tudo isso não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina.” (p. 130)

Os amigos de Hermínia também são exóticos e temperamentais, são caprichosos que mostram o quanto Haller é ainda um burguês ensimesmado e rancoroso. Eles representam a pluralidade de desejos e anseios, de personalidades possíveis, de estilos de vida alternativos. Daí assustar tanto ao lado burguês de Haller, que tenta salvaguardar uma certa personalidade. Mas é em vão. Quantas 'almas' numa pessoa? Quantas identidades superpostas no 'lobo da estepe'? Como assumir as identidades em potencial ?

Assim como o gramofone viciava a atmosfera de espiritualidade ascética do meu estúdio, e também os ritmos americanos, estranhos e perturbadores, destrutivos, penetravam em meu cultivado mundo musical, assim irrompiam por todas as partes coisas novas, temidas, libertadoras, em minha vida até agora tão rígida e tão severamente delimitada. O Tratado do Lobo da Estepe e Hermínia tinham razão em sua teoria das mil almas; amiúde surgiam em mil, junto a todas as antigas, algumas novas almas, com suas pretensões, alvoroçadas, e agora via claramente, como um quadro posto diante de mim, o processo de minha personalidade até então. As poucas habilidades e matérias em que casualmente era forte haviam ocupado toda a minha atenção, e eu pintara de mim a imagem de uma pessoa que não passava de um estudioso e refinado especialista em poesia, música e filosofia; e como tal tinha vivido, deixando o resto de mim mesmo ser um caos de potencialidades, instintos e impulsos que me pareciam um transtorno e por isso os encobria com o nome de Lobo da Estepe.

Todavia essa reversão de minha quimera, essa libertação de minha personalidade não constituíam , de modo algum, uma aventura agradável e divertida, mas, ao contrário, era frequentemente amarga e dolorosa e não raro quase insuportável.” (p. 141)

Haller imagina-se ser livre, autônomo e inimigo das autoridades, mas é um burguês que vive no conforto e renda mantida em banco. Era um pacifista que nada fez – além de falar – para impedir os conflitos. Temos aqui outro trecho de autodescrição,

O Sr. Haller de até então, escritor de talento, conhecedor de Mozart e de Goethe, autor de observações dignas de ler-se sobre a metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a humanidade – o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de fazer sua autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. “ e “Harry Haller se atribuíra um prodigioso papel de idealista e desprezador do mundo, de melancólico solitário e de profeta tonitruante, mas no íntimo era um burguês, capaz de censurar uma vida como a de Hermínia; lamentava-se das noites perdidas nos restaurantes e do dinheiro que neles gastara; tinha remorsos e suspirava não exatamente por sua emancipação e aperfeiçoamento, mas ao contrário para voltar aos velhos tempos em que seus problemas espirituais ainda lhe causavam prazer e lhe traziam fama.” (p. 142)

Boêmios contra burgueses mais do que idealistas versus tradicionalistas é o foco das cenas seguintes, onde o pensador passava a conviver, no ambiente de happy hour, ao som de jazz, tal qual os expressionistas (do Entreguerras, antes do Nazismo no poder), com Hermínia e seus amigos, os músicos, os bailarinos, os que vivem de Arte, tanto existencial quanto materialmente. O artista vive de Arte, ao vender migalhas de Arte para os burgueses entediados, que deixam seus escritórios e ousam noitadas nas zonas boêmias, para esquecer a vida normatizada e limitada.

Afinal, para o conformado, aquilo que desvia do ‘normal’ é rotulado como vício e pecado. No romance anterior de Hesse, Demian deseja mostrar, ao amigo Sinclair, que o conceito de pecado, de algo não permitido, é sempre relativo, varia de situação e cultura, e de época para época, assim não é eterno. A cada um convém um limite diferente, um permitido e um não-permitido, e que pecado é apenas não se permitir as próprias potencialidades, reprimir a si mesmo. (Algo que também encontramos nas falas do Lord Harry em “O Retrato de Dorian Gray”, de Wilde, onde não se deve arrepender por praticar pecados, mas evitar arrepender-se por não haver praticado. )


links para ensaio sobre Dorian Gray




Um artista, um músico está mais próximo do desvio, e logo do pecado? Ainda mais um artista do mundo moderno, que deixa o belo, e se dedica ao ritmo, ao efêmero? Por que um músico de jazz seria menor que Mozart? Por que uma encenação de teatro popular seria menor que uma peça de Goethe? O que serve como avaliação para o erudito e para o popular? Como um erudito encara a arte pop ? Tais são as questões que podemos levantar aqui. Assim diz o músico Pablo (o contraponto ao músico clássico Mozart) :

De se fazer música, Sr. Haller, de se fazer música tão boa e tão abundante quanto possível e com toda a intensidade de que alguém é capaz. Aí é que está a coisa, monsieur. Ainda que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as coisas mais admiráveis a respeito delas, isso não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e toco um shimmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue. Isto e somente isto é o que importa.” (p. 145)

Com a ardente Maria o protagonista – antes lobo solitário – encontra uma paixão física marcante, que poderá degelar seu hábito de ermitão. A relação sexual e afetiva com uma artista, com tão ênfase, ressalta enfim as diferença entre os mundos burguês e boêmio. “[os artistas] estavam à vontade nele [o mundo boêmio] e conheciam todos os seus caminhos. Amavam um champanha ou um prato especial num grillroom, como nós outros amamos um compositor ou um poeta, e punham numa dança da moda ou na canção sentimental e melosa de um cantor de jazz o mesmo entusiasmos, a mesma emoção e ternura que um de nós devotava a Nietzsche ou a Hamsun” (p. 152) Aqui as referências ao filósofo-filólogo iconoclasta alemão e o romancista norueguês (futuro ganhador de Prêmio Nobel, que depois se envolveria com colaboracionismos) mostram as leituras do próprio autor Hesse, ao apresentar o panorama cultural da época – quais os autores eram referência.


continua...


fonte: HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. (trad. Ivo Barroso) RJ: Record, 2010.








Leonardo de Magalhaens

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