sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

sobre Lolita [1955] de Vladimir Nabokov - p 1





sobre Lolita (Lolita, 1955)
do escritor russo-norte-americano Vladimir Nabokov (1899-1977)
(tradução: Brenno Silveira / 1981)


Quando se apresenta a figura do narrador-pervertido

p 1


Para a melhor compreensão desta obra, considerada um clássico, ainda que polêmico e iconoclasta, é necessário nos atendermos ao papel do Narrador, aquela voz que diz ou sugere em cada frase, em cada parágrafo, a falar de si-mesmo e de outros, com palavras suas e palavras alheias. Quem é este ou esta que narra? O que pretende ao narrar? Poderia deixar de narrar se assim o desejasse? Esta a narrar por ser obrigatoriamente necessário e urgente? Pretende desabafar, revelar, nos emocionar, nos enganar?

No caso, temos a narração em 1ª pessoa, em profundo tom confessional, a tentar justificar, até liricamente, seu desejo por jovens garotas, um pedófilo cinicamente se apropriando de um discurso literário, se expressando, digamos, literariamente, com todas as metáforas e metonímias possíveis, com todas as ambiguidades, e não escrever um tratado psiquiátrico sobre a pedofilia, ou sobre a hipocrisia crônica de alguns pervertidos.


Segundo percebemos, nesta ambígua obra Lolita, obra-prima de Nabokov, o narrador quer se justificar perante os julgadores, “senhoras e senhores do júri”, mas, além de seus possíveis leitores, deve enfrentar sua consciência, ora demasiadamente lúcida ora cinicamente nublada. Aqui o narrador, que se chama Humbert Humbert, é um europeu, de família próspera e refinada, dada ao glamour e à cultura, criado na Riviera francesa, que veio morar em terras norte-americanas, plenas de espírito empreendedor e tabus conservadores. Sua infância rememorada com ares proustianos é plena de satisfações, que logo serão perdidas.

Cresci, criança saudável e feliz, num mundo brilhante de livros ilustrados, areias claras, laranjeiras, cães amigos, paisagens marinhas e rostos sorridentes. Ao meu redor, o esplêndido Hotel Mirana girava como uma espécie de universo privado, um cosmo caiado dentro do universo azul e maior que o cercava. p. 13

O cinismo e a auto-consciência do narrador erudito e refinado se assemelham aos traços característicos de Hannibal Lecter, o psiquiatra psicopata de O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1988, de Thomas Harris, EUA, 1940-), capaz de conciliar um bom-gosto e erudição com seu desejo de consumir carne humana, o canibal em nossa brilhante civilização de tabus e repressões.

Com seus conhecimentos literários (pois desde criança convivia com obras clássicas como Don Quixote e Os Miseráveis) ele nomeia seus amores com seres das Letras, a bela e jovem Annabel, saída dos versos do belo e trágico poema de Edgar Allan Poe (EUA, 1809-1849), a bela e amada Annabel que vivia à beira-mar e que morreu jovem, levado para junto dos anjos, que invejavam tão romântico amor.

poema Annabel Lee de Poe



Então quando o narrador conhece Dolores, a Lolita, ele logo se lembra de Annabel, que ele perdera tão cedo. Uma forma de compensação se apresenta? Dolores é a renascida Annabel ? Por que este fascínio com jovens garotas? Por que ele ficou preso no tempo d perda? Não concluiu seu luto & melancolia? Não é capaz de relacionar-se com mulheres maduras? São questões de ordem psicológica que extrapolam o literário, mas que se entrelaçam aqui.

As descrições de Annabel vão do idealismo ao sensualismo, ela é desejo corporificado, é um marco de descoberta sexual, a primeira namorada, jamais esquecida. O ideal romântico de unir corpo e alma é sempre evocado e sempre frustrado. Há sempre uma separação, sempre uma perda. Annabel morre muito jovem, sem que o narrador pudesse satisfazer seu desejo.

Folheio sem cessar estas miseráveis lembranças e pergunto repetidamente a mim mesmo se foi então, no brilho daquele verão remoto, que começou a brecha em minha vida – ou se acaso foi o meu excessivo desejo por aquela criança apenas a primeira manifestação de uma inerente singularidade? […] estou convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita começou com Annabel. [p. 17]


A paixão torrencial, a insatisfação e a perda em tão curto tempo e tão precoce idade terá gerado um trauma jamais superado e que resultou neste narrador pedófilo? É o que ele quer que nós, os leitores, pensemos. “Sei também que o choque causado pela morte de Annabel consolidou a frustração daquele verão de pesadelo, fazendo dele um obstáculo permanente a qualquer novo romance durante todos os frios anos de minha juventude.” [pp. 17-18] ele quer nos convencer que o germe da pedofilia está na perda da menina amada - que ele busca obsessivamente em outras meninas.

Sim, obsessivamente, pois as descrições são carregadas de fanatismo de um lirismo perturbado, ainda que válido. “Os dias de minha juventude, quando agora me volto para eles, parecem afastar-se de mim numa lufada de repetidos fragmentos, como aquelas nevadas matinais de papel-de-seda usado que um passageiro de trem vê redemoinhar na esteira do último vagão. “ [p. 20] Assim, como um Proust atormentado ou um Jean Genet amargurado. Um lirismo que se aproxima do Decadentismo, uma perversão com tons artísticos de Belle Èpoque. Conhecedor do tema proustiano e da poética inglesa, ele emprega uma retórica em eufemismos para o desejo por meninas.

As meninas por ele são classificadas em ninfetas [nymphets] e outras. Entre os nove e quatorze anos, as ninfetas são meninas com sinais de sexualidade precoce. São capazes de atrair e enfeitiçar o homem maduro. Não basta a beleza para ser ninfeta, mas um charme, um além-do-sensual, algo que só um especialista (um pedófilo?) identificaria. A ninfeta está além do belo e do gracioso, é um espécime raro. Para reconhecer uma ninfeta “é preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha” [p. 22] pois muitas vezes a ninfeta não tem consciência do feitiço de mulher que há em seu corpo de menina. Ou seja, se há atração é culpa (mesmo inconsciente) da menina. (Assim é a vítima que atrai o ataque do pedófilo?)


Para o narrador o fenômeno da ninfeta é melhor notado pelo distanciamento temporal, pois quanto maior a diferença de idade entre a menina e o homem maduro, maior a atração. Se há o desejo, a insatisfação seria, antes, culpa da sociedade que não permite o contato, pois “a ferida permaneceu em meio de uma civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma menina de dezesseis, mas não uma menina de doze.” [p. 23] Se há um desejo rumo a pedofilia, como pode a sociedade interferir? Criar maior repressão? Mas a repressão não aumenta o desejo? Afinal, o que é proibido é mais fascinante.

A tormenta íntima do narrador é explicitada: ele se relaciona com mulheres maduras, mas superficialmente, pois seu real desejo é por meninas, bem mais jovens, de puberdade precoce. Ele anda pelo mundo de ninfetas a serem encontradas e se esforça para ocultar sua perversão. Ele se sente estrangulado pelos tabus, tão denunciados pela psicanálise, pois ele deseja as ninfetas, mas elas são proibidas. E há casos de jovens prostitutas, de sexualidade precoce a despertar paixões, vide um Dante louco por uma menina Beatrice, então com apenas nove anos. E, mais, tribos não-civilizadas onde “velhos de oitenta anos copulam com meninas de oito anos e ninguém se importa”, pois lá não há semelhante tabu.

Todo este discurso visa dar uma racionalização ao seu delírio pedófilo. Ele espera que a justificação encubra seu crime, que seja absolvido. Mas é tudo discurso, pois se fundamenta em falácias nascidas do desejo. É um louco a justificar a própria loucura – sem ter acesso à razão. Humbert diz se esforçar para ser bom, mas na verdade ele apenas usa uma máscara no mundo social. Seu íntimo é iconoclasta e pervertido. Sem moralismos: ele é uma ambiguidade perigosa a transitar pelas ruas. Parece mesmo cínico quando diz que “tinha o máximo respeito pelas crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade, e em circunstância alguma teria interferido na inocência de uma criança, se houvesse o mínimo risco de se meter em barulho.” [p. 25] Ele se desvia do crime não por detestar o crime, mas temendo um escândalo. Tem aparência de bondade, pois assim ele evita a sanção social. É um hipócrita.


Um hipócrita bem-letrado. Pois tratamos aqui de qualidade literária, não de julgar moralmente o narrador. Sem a qualidade literária o livro seria um desfilar de desejos e fantasias sexuais, sendo um texto destinado mais a um especialista psiquiátrico do que a um crítico literário. Mas a ironia e autoconsciência salvam esta considerada amostra de libertinagem pedófila ou perversões confessadas. O que nos interessa seu fascínio por ninfetas? Por que nos identificaríamos com seus devaneios lúbricos? Em que tais confissões nos afetariam? As fantasias com belas meninas se perdem na vulgaridade dos negócios com jovens prostitutas. Daí um passo até negociar com madames que lucram com o comércio sexual de adolescentes. Nada mais a dizer.

É um prólogo que mais entedia do que escandaliza. Ele tenta substituir a amada Annabel por outras jovens amantes, mas em vão. É tragicômica sua perversão. Nada de novo. Depois dos desastres na Europa – às vésperas de outra Grande Guerra, com a ascensão nazista – o narrador Humbert resolve se abrigar na nova pátria dos imigrantes, a terra abençoada pela Estátua da Liberdade. Mas a cultura norte-americana se mostra mais conservadora do que a europeia. Ele espera a nossa cumplicidade de leitor para compartilhar sua vida de insatisfações. Em busca de tédio e sanidade ele até se aventura a uma expedição pelo Ártico! Trata-se de uma longa digressão que só consegue deixar o leitor mais intrigado. Pois a história de Lolita começa mesmo é no capítulo 10 (Parte I).

Tudo começa quando o intelectual de meia-idade vai ser morador-hóspede na residência da Sra. Haze, mulher de uns trinta nos e cidadã comum, que tem uma filha, Dolores, ou Lo, que passa a ser o centro do mundo do hóspede. A mulher não desperta interesse, mas com a filha é um fascínio imediato e contínuo. O narrador se entedia, o mundo é um tédio, mas de súbito a beleza arrebatadora de uma ninfeta pode trazer a magia de volta!

[…] e, de repente, sem o mínimo aviso, uma onda de mar, azul, engrossou sob o meu coração: sobre uma esteira, numa poça de sol, meio despida, ajoelhada e voltando-se sobre os joelhos para olhar-me através dos óculos, lá estava o meu amor da Riviera.

Era a mesma criança: os mesmos ombros frágeis, cor-de-mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanho-avermelhados. O mesmo lenço de cabeça, pintalgado de preto, atado em torno do peito, ocultava de meus olhos de macaco velho, mas não da névoa de minha lembrança de rapaz, os seios juvenis que eu acariciara num dia imortal. […] p. 52

O narrador confessa tudo: seu espanto, sua lembrança resgatada, pelo delírio de desejo. Nem tem condições de se expressar, quanto mais de se explicar... “É-me sumamente difícil exprimir com suficiente ênfase aquele clarão, aquele calafrio, aquele impacto de apaixonado reconhecimento.” [p. 53] É desse espanto que nasce sua (des)ventura, pois ser hóspede da Sra. Haze é estar próximo da Dolores, ou reencarnação da Annabel. “Pouco depois, por certo, essa nouvelle, essa Lolita, minha Lolita, iria eclipsar completamente o seu modelo. Tudo o que desejo ressaltar é que aquela minha descoberta era uma consequência fatal daquele 'principado junto ao mar' de meu angustiado passado.” [p. 53] Recomeça o seu martírio constante de desejar e ocultar o desejo.

Para entendermos sua epopeia lúbrica o narrador apresenta seu diário de pervertido. O que ele viveu e sofreu no 'principado' da bela ninfeta Dolores, Lo ou Lolita, é agora de domínio público – para convencer seus juízes. Temos acesso ao seu diário (ele assim o garante) e passamos a acompanhar todo o drama como bons voyeurs / voyeuristas que somos. Para que possa ficar próximo de sua Lolita o narrador deve ser um cordial hóspede da mãe, a Sra. Haze, com quem ele precisa trocar frases comuns e pensamentos mumificados, enquanto todo o seu desejo se volta para a criança que de nada pode desconfiar.

O diário não é literatura, certamente, mas está inserido numa obra literária. É um romance que aceita lirismo e cartas prosaicas, que se adere a conceitos psiquiátricos e tece meditações sobre a condição humana. Ele idolatra a menina desejada e ao mesmo tempo sempre se humilha e se deprecia. Ela é um ninfa, bela e perfeita, e ele é um fauno, peludo, desajeitado, medonho. “Sou esguio, ossudo Humbert Humbert de peito cabeludo, sobrancelhas negras e espessas, sotaque esquisito e uma cloaca de monstros a apodrecer atrás de seu estúpido sorriso de menino.” [p. 60]

Lolita passa a ser uma idealização, um contraponto ao hipócrita narrador, ela personifica o desejo não satisfeito, inalcançável. “E o mais singular ainda é que ela, esta Lolita, a minha Lolita, personificou a antiga lascívia de quem traça estas linhas, de modo que, antes e acima de tudo, existe apenas... Lolita.” [p.60] Toda idealização é perigosa, ainda mais em volta de uma quase adolescente. Para ficar cada vez mais próximo do objeto de desejo, o Sr. Humbert se aproxima mais da mãe da garota, a Sra. Haze, a quem ele profundamente despreza.

Mais desprezível é Humbert a narrar seus golpes de mestres, suas trocas de máscaras, suas carícias ocultas, seus desejos proibidos. Enquanto isso ele traça um retrato de uma criança caprichosa, mimada, voluntariosa, avançada para a idade. Uma sexualidade precoce é até sugerida. Até mesmo “uma criança moderna”, com os consumos e vícios de adulto. Quer o narrador que encontremos certa 'culpa' na vítima? Que Lolita seduzia mesmo sem o saber? Que ele foi fisgado? Nos filmes os diretores escolheram meninas-moças para protagonizarem, com gestos sensuais e olhares sedutores. Mas não seria ajudar a desculpa de que a vítima provoca o violentador?

O cinismo derrama-se em cada parágrafo, quando se dirige aos juízes, aos jurados (“senhores do júri”), aos editores (“eruditos editores”) ou aos leitores (“erudito leitor” ou “cultos leitores”), como uma amostra do tom de superioridade que ele adota quando fala aos normais, aos ordinários, aos padronizados do senso-comum, pois somente ele está acima, o pervertido, o sarcástico narrador. Um sujeito lírico, com boas dosagens de poesia simbolista ou chanson romântica,

Segunda-feira. Manhã chuvosa. 'Ces matins gris si doux...' Meu pijama branco tem lilases desenhadas nas costas. Sou como uma dessas aranhas estofadas e pálidas que a gente vê nos velhos jardins. Sentada no meio de uma teia luminosa, a dar ligeiros puxões neste ou naquele fio. Minha teia estende-se por toda a casa, enquanto fico à escuta, da cadeira em que estou sentado, como um feiticeiro ardiloso. Estará Lo, acaso, em seu quarto? Delicadamente, puxo o fio de seda. Não está. [p. 67]

Tudo em torno da bela menina torna-se motivo de atenção, seno adoração. Suas roupas, seus hábitos, os nomes dos colegas de classe. Tal obsessão, por si só, já caracteriza a doença. O sentido da existência passa a ser o Outro, o receptáculo do Desejo. E tudo se move ao redor, como luas em torno do planeta, sem remissão. Não podendo realizar o ato, ele só nutre fantasias. E ele continua a esboçar seu quadro de personalidade, sujeito tímido e romântico! “Apesar de meu aspecto viril, sou terrivelmente tímido. Minha alma, romântica, fica toda pegajosa e trêmula ante a ideia de deparar com algum terrível e indecente contratempo.” [p. 72]

Todo um diário (ou reconstrução de um diário) para concluir rotulando a menina Lolita como “minha querida pubescente e fogosa”, quando não 'sarcástica'. É assim que o cínico narrador Humbert, o condenado, tenta jogar a culpa para cima da vítima. A menina é que fogosa, falta ele dizer que ela o seduziu! Mas o enredo se complica, pois o cinismo do narrador vai ao ponto de seduzir a mãe da menina. Assim, tendo um caso com Sra. Haze ele terá um livre acesso a sua futura … enteada. Monsieur ou Herr Humbert é um hóspede que vai se demorar.


Em jogos disfarçadamente sexuais com a menina, o narrador narra sua permanência no lar das Haze, mãe e filha. Ele precisa simular sempre, mesmo quando avança sobre a inocência sedutora da sua Lolita. Como ele mesmo diz é uma relação oculta, escondida, entre 'a bela e a fera', onde ele sabe bem ser a fera, mas com garras aveludadas. As descrições de Lolita são carregadas de lirismo obsessivo, “O implícito sol pulsava nos providos choupos; estávamos fantástica e divinamente sós; eu a observara, rósea, empoeirada de sol, além do véu do meu controlado deleite, inconsciente dele, alheio a ele, e o sol estava em seus lábios, e seus lábios ainda estavam, ao que parecia, formando as palavras da cantiga [...]” [pp. 81-82]


O narrador descreve suas experiências e sabe que fazem parte de seu sonho “ardente, ignóbil e pecaminoso” ao desejar uma Lolita que é abstração idealizada de uma Annabel que, enfim, são encarnações do fenômeno sedutor chamado 'ninfeta'. “O que eu loucamente possuíra não era ela. Mas minha própria criação, uma outra e fantasiosa Lolita; sobrepondo-se a ela, envolvendo-a; flutuando entre mim e ela, sem vontade e sem consciência e, com efeito, sem vida própria.” [p. 84] Trata-se tudo, em sua perversão, de um exercício de idealização, sem tocar a real Lolita, personificação de seu ideal. “A criança nada soube. Eu nada lhe fizera.” [p. 84] o pedófilo tenta se justificar. Quer possuir a fruta sem dilacerar a fina casca.

Vez ou outra, o narrador vem lembrar que está narrando, e que alguém está lendo. Não apenas os juízes e os jurados, mas nós, bons leitores. “Como dizem os grandes escritores: 'os leitores que imaginem', etc. Mas, pensando melhor, acho que bem posso dar um pontapé no fundilho de suas imaginações.” [p. 88], pois ele conta com a nossa cumplicidade (ou escândalo!) no ato de prosseguir a leitura de suas confissões impublicáveis.

Enquanto isso, quem deseja a atenção do hóspede é a Sra. Haze, que deve achar o erudito europeu muito sedutor. A mãe de Lolita deseja manter a criança num acampamento, enquanto pode ficar a sós com o cavalheiro. A ideia do acampamento não agrada ao narrador, pois ficará longe da menina (a menina que vai crescer e deixar de ser uma ninfeta...), “Como poderia dar-me ao luxo de não a ver durante dois meses de insônia de verão?” e “Dois meses de beleza, dois meses de ternura, estariam desperdiçados para sempre e eu nada poderia fazer a respeito.... mas nada, mais rien.” [p. 89]

Até uma carta o narrador recebe da Sra. Haze, Charlotte, a declarar seu amor. O tempo todo em que ele se dedicava a seduzir a menina, ele não percebia o quanto 'seduzia' inconscientemente a mãe da menina! “Sei quão reservado o senhor é, quão britânico. Sua reticência europeia, seu senso de decoro, talvez possam sentir-se chocados pela ousadia de uma moça americana! O senhor, que oculta os seus sentimentos mais fortes, deve julgar-me uma idiotazinha despudorada, por abrir assim o meu pobre e dorido coração.” [p. 92] O que fará o narrador: fugirá da megera ou ficará próximo da ninfeta? O que acham que ele fará? Ele se perde em digressões, máscaras, delírios, “minha narração é bastante confusa”, para remodelar seus planos, de ficar na casa do Sra. Haze, como um bom e prestativo marido, a dar carinho a sua bela e caprichosa enteada Lolita.

Assim, Humbert se deixara cair nos braços da mãe para melhor seduzir a filha! Que belo enredo construtivo e demasiadamente humano! Mas a literatura não pode ser avaliado com variáveis moralistas: o texto tem um valor qualitativo em si-mesmo. Cinismo, lirismo obsessivo, drama & ambiguidade : tudo se mistura & condensa. É lírico e perverso, sobriamente lunático, a menosprezar a mãe e desejar a filha (ele que agora pode se permitir deixar de insultar a 'pobre Charlotte'), liricamente fanático, ainda que não seja um poeta, mas um homem a contemplar amargamente seu passado (“sou um memoralista consciencioso”).

De modo que Humbert, o Íncubo, sonhava e fazia planos – e o sol vermelho do desejo e a decisão (as duas coisas que criam um mundo vivo) se erguiam cada vez mais alto, enquanto que, numa sucessão de balcões, uma sucessão de libertinos, de taças cintilantes nas mãos, brindava pela felicidade de noites passadas e futuras. Então, falando figuradamente, parti minha taça, e ousadamente imaginei (pois que, a essa altura, eu estava embriagado por tais visões e subestimava a delicadeza de minha natureza) de que modo poderia, eventualmente, fazer uma chantagem (não, essa palavra é demasiado forte), manobrar a Haze adulta no sentido de permitir que eu privasse com a pequena Haze, ameaçando delicadamente de deserção a Grande Pomba pintada, caso ela procurasse impedir-me de brincar com a minha enteada legal. Em suma, diante de tão Surpreendente Proposta, de tão vastas e variadas perspectivas, me sentia tão indefeso quanto Adão diante da avant-première de sua remota história oriental, na miragem de seu pomar de maçãs... [pp. 96-97]


Assim, logo o hóspede torna-se marido, um homem de princípios para uma mulher de princípios (pois “fiquei sabendo que ela era uma mulher de princípios”), e passa a coabitar com a mãe da bela Lolita, na condição de cidadão e marido, o Sr. Edgar H. Humbert, fiel cumpridor dos deveres maritais e comunitários. Ele passa por uma promoção, “de inquilino a amante”, e continua sua conspiração para desfrutar da ninfeta. Nenhum remorso aqui.

Prossigamos com este curioso relato”, diz ele. Sabemos que uma tragédia poderá acontecer, é até previsível. Afinal, ele foi descoberto, ele foi preso. Está se defendendo! Mas não convém entrar em detalhes, pois esta história não vale pela originalidade, por ser diferente. Mas vale o modo como é narrada, como é analisada por quem ousa narrar. Por exemplo ao descrever a mãe, se somente o faz em relação à filha. “Aquele era o alvo ventre dentro do qual a minha nymphet fora um pequeno feto recurvo em 1934. Aqueles cabelos cuidadosamente pintados, tão estéreis para os meus sentidos de tato e olfato, adquiriam, em certos momentos, à luz do abajur do criado-mudo, se não a contextura, pelo menos o matiz dos cabelos ondulados de Lolita.” [p. 103] Ele procura na mãe a figura da filha, para conseguir desempenhar seu novo papel.

Em seu tom sabidamente 'proustiano', o narrador relembra sua vida ao lado de Charlotte Haze, sua 'pobre esposa', como ele mesmo não se proíbe dizer. “Por mais que me esforce, não consigo dizer quão gentil, quão comovedora, era a minha pobre esposa.” [p. 104] A importância de Charlotte é apenas devida a um fato: ser mãe de Lolita. E o casamento até rejuvenesceu a viúva: “eu, ao casar com a mãe da criança que amava, houvesse permitido à minha esposa readquirir, por procuração, abundante juventude.” [p. 105] Assim, todos se davam bem? Ele reanimava a esposa e usufruía da filha-enteada?

Não, tal enredo não pode ter desfecho além do trágico. É máscara demais, hipocrisia demais. O europeu despreza a vizinhança conservadora norte-americana, zomba dos hábitos e dramas, menospreza o provincianismo. Afinal, a Europa é que detém a cultura. Cultura que a agora Sra. Humbert admira e deseja conhecer melhor, ciumenta do passado dele. Quantas amantes ele teve? Quão vulgares e desprezíveis eram? Aqui sinceridade e hipocrisia se misturam, mais do que se contrastam: trata-se de um teatro. Confessa-se falsidades de dor ficcional com nobres oratórias. “Nunca em minha vida confessei tanto ou recebi tantas confissões.” [p. 108]


É para ficar próximo da Lolita que o Sr. Humbert casou com a Sra. Humbert, mas descobre que a Sra. Humbert está entre (é obstáculo!) Humbert e a sua Lolita (pois ela deseja enviar a filha para um internato!), logo (não podendo ser convencida) a única solução é ser eliminada! Mas será Humbert um assassino? Um frio e cruel homicida? Não, ele tem oportunidade mas não é assassino, é um sujeito inofensivo. Pedófilo, mas inofensivo. Não mataria uma mosca. E ele não vai esperar muito : o destino cuidará disso, como veremos adiante.

Ele sempre quer a cumplicidade do/a leitor/a, em suas confissões, aos 'camaradas', 'meus amigos' que somos nós aqueles & aquelas que 'dão uma espiadinha' na sua vida. Ele que se considera um erudito e até educador!, sim, um escritor, um poeta lírico. E poetas, segundo ele, são inofensivos. Ele – um inofensivo. Não será ele quem se livrará de Charlotte agora Humbert, mas um acidente. Um banal acidente de subúrbio – a senhora sai de casa e atravessa a rua e então é atropelada. Mas por que isso?

Antes, a Sra. Humbert descobre o diário de Humbert – aquele trancado na mesinha do quarto-escritório. Após ler o diário do marido Charlotte percebe enfim que ele é um farsante e logo o expulsa, enquanto escreve febrilmente algumas cartas. Ele recupera o diário e prepara um drink para ambos. Em seguida, ao telefone, um vizinho avisa que a Sra. Humbert foi atropelada! Simples assim. Humbert se livra de ser expulso e denunciado, quando seria afastado da menina Lolita.

Então continua a farsa (e o romance). Pois Humbert finge um luto, “senhoras e senhores do júri – chorei.”, menciona um affair com Charlotte nos idos de 1934, de modo que os amigos acreditem que ele é o verdadeiro pai de Dolores/Lolita. Cumpre o ritual, de permite mostrar tristeza e abandono, e abusa de metalinguagem,

Não sei se, nestas trágicas notas, ressaltei suficientemente a particular atração que o agradável aspecto físico que o autor destas notas – pseudocéltico, atraentemente simiesco, juvenilmente másculo – exercia sobre as mulheres de todas as idades e condições sociais. Claro que tais declarações, feitas na primeira pessoa, talvez possam parecer ridículas. Mas, de quando em quando, devo recordar ao leitor a minha aparência, do mesmo modo que um novelista profissional, que atribui a uma sua personagem ou a um cão algum maneirismo, tem de continuar a apresentar esse cão ou o dito maneirismo todas as vezes que a personagem surge no decorrer do livro. Talvez haja mais coisas a dizer-se a respeito, no presente caso. Para que minha história possa ser bem compreendida, é preciso ter-se em mente o meu sombrio e atraente aspecto. [p. 141]


Tal aspecto sombrio e sedutor do “novíssimo cidadão americano de obscura origem europeia” continua a fazer vítimas. Ele prossegue em seus planos e resolve buscar a Dolores / Lo / Lolita no acampamento de férias. Entre digressões e telefonemas ele degusta previamente o reencontro com a menina, “oh, Lolita, você é a minha namorada, como Virgínia o era de Poe e Beatriz de Dante.” [p. 145] ou “eu podia, naturalmente, evocar a figura de Lolita com uma nitidez de alucinação” [p. 146] pois ele está sentimental, até piegas, “que cômico, desajeitado, hesitante Príncipe”, sim, “oh, permitam-me que seja, por esta vez, sentimental ! Estou tão cansado de ser cínico!” [p. 148]



continua …

 
dez/13

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com.br/



NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981




mais sobre o autor & obra









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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

sobre O Grande Gatsby / P 2 - de Fitzgerald


 


Sobre O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 1925)
romance de F. Scott Fitzgerald (1896-1940)
(trad. de Roberto Muggiati)


Testemunhando que depois da euforia vem a depressão


Parte 2



O reencontro de Gatsby e Daisy acontece no Capítulo 5 com uma cena marcante sob a narrativa surpreendida de Nick, ali entre os dois apaixonados de outrora. Sabemos mais sobre a vaidade de Gatsby, sua necessidade de auto-afirmação para compensar a timidez e sentimento de inferioridade, sabemos o quanto Daisy ainda se lembra do querido de outrora – afinal passaram-se cinco anos (lembramos que as tropas norte-americanas entraram na PGM, ao lados dos britânicos e franceses, em 1917...).

Entre Daisy e Gatsby passou-se mais coisa do que suponha o narrador (e os leitores...) e não há um pleno esclarecimento, é preciso ligar as tessituras, a fala de Jordan, o que Gatsby deixou vazar, os olhares de Daisy, todo um mosaico de sugestões que explicita a paixão antiga entre eles. Deixando a casa de Nick, onde ocorrera o reencontro, o trio segue para a mansão de Gatsby, agora tão diferente sem as festanças.

Era estranho chegar aos degraus de mármore e não encontrar nenhum farfalhar de vestidos coloridos entrando e saindo pela porta e não ouvir nenhum som além daquele das vozes dos pássaros nas árvores.

No interior da casa, enquanto passeávamos por salões de música estilo Maria Antonieta e salões Restauração, senti que havia convidados escondidos atrás de cada sofá e de cada mesa, sob a ordem de se manterem em silêncio, a ponto de prender a respiração, até que tivéssemos passado. Quando Gatsby fechou a porta da Biblioteca da UNIVERSIDADE Merton eu podia jurar que ouvira o homem de olhos de coruja irromper numa gargalhada espectral.” (pp. 99-100)

Em seguida, a 'cena das camisas', muito emblemática nos filmes, quando Gatsby abre os guarda-roupas, diante dos olhares admirados de Daisy, e retira várias camisas elegantes, finas e caras, a exibir seu poder de compra, “Tirou uma pilha de camisas e começou a arremessá-las uma a uma diante de nós, camisas de puro linho, de seda espessa e de fina flanela, que perdiam suas rugas ao cair e cobriam a mesa numa desordem multicolorida.” (p. 101), o que provoca lágrimas em Daisy, inclinada sobre as camisas, visivelmente emocionada, “Isso me deixa triste, porque nunca vi camisas tão bonitas assim.”.


A cena não é cômica nem trágica, é uma amostra do estilo de Fitzgerald, entre o realismo e o romantismo, diluído na narrativa de Nick, entre protagonistas, o mocinho e a mocinha, “Tentei ir embora então, mas eles não queriam saber daquilo; talvez minha presença os deixasse mais satisfatoriamente a sós.” (p. 103) a perceber o quanto de idealização existe numa relação amorosa, visto o quanto Gatsby idealizou Daisy. Sob o olhar de Nick, o realista, o honesto, a cena que seria romântica perde o tom idealizado,

Quando me aproximei para me despedir, vi que a expressão de perplexidade tinha voltado ao rosto de Gatsby, como se uma leve dúvida lhe tivesse ocorrido em relação à qualidade de sua felicidade atual. Quase cinco anos! Deviam ter ocorrido momentos, mesmo naquela tarde, em que Daisy deixou de preencher os seus sonhos – não por culpa sua, mas por causa da vitalidade colossal da ilusão de Gatsby. Fora além dela, fora além de tudo. Ele se jogara naquilo com uma paixão criativa, acrescentando algo o tempo todo, embelezando o seu sonho com cada plumagem colorida que surgisse em seu caminho. Nenhuma quantidade de fogo ou de frescor podia competir com aquilo que um homem é capaz de armazenar no seu coração fantasmagórico.” (p. 105)

Em dado momento, Gatsby perde o controle sobre a sua imagem. É agora, após tantas festanças, após sua figura de anfitrião, uma pessoa famosa, e mais curiosidades borbulham ao seu redor. De onde veio aquele novo rico? O que nutre sua riqueza assim esbanjada em festins? “A notoriedade de Gatsby, propagada pelas centenas de pessoas que aceitaram sua hospitalidade e se tornaram autoridades em relação ao seu passado, aumentara durante todo o verão, a ponto de transformá-lo em notícia.” (p. 107)


Assim Gatsby encontra-se exposto aos holofotes, em seus minutos de fama, o que o incomoda, por seu passado não exatamente esclarecido. Lendas e boatos envolvem seu nome em atividades nada legalizadas, o que deixa sua imagem borrada imagina-se sempre aos olhos de Daisy. Ela aprova sua fortuna? Saberá quem é Jay Gatsby? Ou que ele é mesmo James Gatz? Na verdade, Gatsby é uma invenção do jovem Gatz ?

Suponho que, mesmo na época, já tivesse o nome pronto há algum tempo. Seus pais eram lavradores incapazes e fracassados – sua imaginação nunca os aceitara realmente como pais. A verdade é que Jay Gatsby, de West Egg, Long Island, nasceu da sua concepção platônica de si mesmo. Era um filho de Deus – frase que, se significa algo, significa justamente isso – e devia se dedicar ao Serviço de Seu Pai, o serviço de uma beleza vasta, vulgar e ilusória. Inventou então o tipo exato de Jay Gatsby que se esperava que um garoto de dezessete anos inventasse e foi fiel a esta concepção até o fim.” (p. 108)

Então todo o passado de Gatz / Gatsby é recomposto, é explicitado, em reconstituição feita pelo narrador. Como ele conseguiu todos os dados? O próprio Gatsby teceu um desabafo sobre sua juventude de arrivista? Afinal, dias antes ele falara longamente sobre sua atuação como oficial nas batalhas da PGM, motivo de promoção e uma condecoração. Por que não entregaria suas memórias todas afinal? De fato, foi mesmo Gatsby quem entregou tudo, o narrador o revela em seguida, “Ele me contou tudo isto muito tempo depois, mas eu coloco aqui no papel com a finalidade de explodir aqueles primeiros rumores sobre seus antecedentes, que não eram sequer vagamente verdadeiros. Além do mais, contou-me aquilo numa época de confusão, quando eu tinha chegado ao ponto de acreditar tudo e nada sobre ele.” (p. 111)

O narrador fica algum tempo afastado do protagonista, mas, quando volta a encontrá-lo, pode presenciar uma cena inusitada. Uma breve visita de Tom Buchanan a propriedade de Gatsby. Uma visita arrogante ou indiferente, mas ainda uma visita. Promessas de novas festas. Mas os ricaços da vizinhança consideram Gatsby um mero excêntrico, uma 'figura estranha'. Mas finalmente o casal Tom e Daisy Buchanan comparecem na festança de Gatsby. Será que os ricaços já aceitam a presença do novo rico? Nick narra o episódio com certa emoção, indisfarçada.

Tom ficou evidentemente perturbado com as saídas de Daisy e na noite do sábado seguinte veio com ela à festa de Gatsby. Talvez a sua presença desse à noitada a sua qualidade peculiar de opressão – ela se destaca na minha memória das outras festas de Gatsby naquele verão. Havia as mesmas pessoas, ou pelo menos o mesmo tipo de pessoas, a mesma profusão de champanhe, as mesmas comoções de muitas cores e de muitos sons, mas eu sentia algo desagradável no ar, uma aspereza persistente que nunca estivera ali antes. Ou talvez eu tivesse simplesmente me acostumado àquilo, aprendido a aceitar West Egg como um mundo completo em si mesmo, com seus próprios padrões e suas próprias figuras, inferior a nada porque não tinha sequer consciência de que o era, e agora eu o estivesse vendo de novo através dos olhos de Daisy. É invariavelmente entristecedor olhar com novos olhos coisas sobre as quais consumimos nossos próprios poderes de ajustamento.” (pp. 114-115)

Claramente o Sr. Buchanan despreza os convivas, mesmo que alguns sejam 'celebridades'. Não são da mesma classe, destoam da Elite, que mora de um lado da baía, além do mais são um tanto 'excêntricos'. Para serem aceitos precisam ter bom gosto além de sólidas fortunas. Agora, o que seja 'bom gosto', ou 'sólida fortuna', não sabemos. Serviçais, pobres, arrivistas, e novos ricos não são aceitos. Para ele, os novos ricos não passam de 'contrabandistas de bebidas', assim Tom mantém-se distante, enquanto Daisy tenta se divertir. E Nick se sente incomodado, ele ali a suportar bebedeiras e hilaridades. Contudo ele observa, colhe impressões, afinal é quem narra, é que testemunha. Se mantive uma indiferença, o que seria capaz de narrar?

Por que Gatsby idealizara tanto a jovem Daisy? Por que Gatsby não se apaixonou pelas belas jovens que frequentam suas festas? Nick se pergunta, enquanto Tom promete pesquisar mais sobre Gatsby e sua riqueza. Não acredita que ele seja dono de drogarias, etc. Sempre a rivalidade entre Tom e Gatsby é insinuada, com olhares e expressões, ali as figuras de um ricaço e um novo rico se medindo, se avaliando. Afinal, no mundo da Elites, vale mais quem tem mais, quem exerce mais influência, ao exibir e ampliar riqueza. É todo um mundo de luxo e luxúria que Larry Darell recusa em The Razor's Edge, quando, ao voltar da Guerra, prefere pensar, sentir, ler filosofia, viajar, seguir gurus místicos. (Abordamos a obra de Maugham no ensaio sobre O Lobo da Estepe, em Meu Cânone Ocidental.)


No capítulo 7 sabemos que se acabaram as festanças na mansão de Gatsby, e que este segue juntamente com Nick para um almoço na mansão dos Buchanan. Nick presente que algo acontecerá. Ao chegar, as mulheres murmuram que a amante de Tom está ao telefone. Nick assegura que não. Sabe que é o marido traído, o mecânico. Enquanto isso, Daisy é toda atenção e afeto para com Gatsby. Será que acontecerá um rompimento? Não. Levantam-se todos e descem de carro até a cidade [Nova York]. Tom, com ares de desafio, decide ir no carro de Gatsby, com Nick e Jordan, enquanto Daisy prefere ir no outro carro com Gatsby. Assim, Nick e Jordan ficam sabendo que Tom sabe, pois investigou sobre o passado do protagonista e sua ligação com sua Daisy. Não é tão idiota quanto pensam!

Com o carro de Gatsby, Tom para no posto de gasolina de Wilson, o marido traído. O mecânico não está bem, parece abalado. O narrador julga que o marido descobriu a traição, uma vez que deseja deixar a região. “Ele [Wilson] descobrira que Myrtle tinha uma espécie de vida à parte, num outro mundo, e o choque o deixara fisicamente abalado. Olhei para ele e a seguir para Tom, que fizera uma descoberta paralela menos de uma hora antes – e ocorreu-me que não havia diferença entre os homens, de inteligência ou raça, tão profunda como a diferença entre os doentes e os saudáveis. Wilson estava tão doente que parecia culpado, imperdoavelmente culpado [...]” (p. 137) Assim, tanto Tom quanto Wilson se perceberam traídos – e ligados por laços de infidelidade. Esta é a ironia, e o narrador bem percebe.

Uma teia de mal-entendidos é entretecida, com a infiel Myrtle vendo Jordan ao lado de Tom, e julgando que é a esposa; com o carro de Gatsby sendo apresentado como o carro novo de Tom; com o esportista ricaço perdendo controle sobre a esposa e a amante. Por fim acabam todos numa suíte de grande hotel, em busca do alívio do calor, mas de modo que nem o narrador sabe. Pois sabe apenas que o clima ficou tenso entre o casal e o novo rico. Entre eles Nick e Jordan aparando as provocações e palavras mordazes entre Tom e Gatsby. Tom, enervado, expõe seu pensamento conservador e hipócrita. É contra o casamento misto, é defensor da família, mas é contraditório, uma vez que ele tem um affair com uma mulher casada. Tudo não passa de um 'duelo' entre Tom e Gatsby pela posse de Daisy, o troféu.

Na luta pela posse do troféu, Tom não hesita em destruir a imagem de Gatsby, ao lembrar o passado do novo rico, seus 'negócios', suas aventuras na ilegalidade. Daisy não defende Gatsby e não desafia Tom, que assim é o vencedor. A ruína de Gatsby ao ver que Daisy hesita em deixar o Sr. Buchanan. No meio do drama percebemos que o narrador está do lado de Gatsby e descobrimos que Nick está completando 30 anos. É quando Nick começa a falar sobre si mesmo. “Trinta anos – a promessa de uma década de solidão, uma lista com menos colegas solteiros, uma pasta de trabalho com menos entusiasmo, menos cabelos. Mas havia Jordan ao meu lado que, ao contrário de Daisy, era esperta o suficiente para não carregar sonhos esquecidos de uma época para outra.” (p. 150)

Mas eis que acontece a tragédia que levará a mais tragédia. Wilson, o marido traído, tranca a esposa infiel, Myrtle, no quarto, mas ela foge e corre pela auto-estrada, bem a tempo de ser atropelada pelo carro de Gatsby (o mesmo carro que Tom dirigia ao seguir para NY). Gatsby é o culpado? Não, logo Nick descobre que Daisy é quem dirigia em alta velocidade o carro amarelo. Sem saber, ela atropelara a amante do marido! É a teia de confusões na qual se perderá o protagonista, o misterioso Gatsby que deixa de ser mistério no capítulo seguinte, quando relata ao narrador aquilo tudo que ele já nos adiantou dois capítulos antes. O teor do diálogo franco entre protagonista e narrador já foi condensado no capítulo 6, sobre a paixão de Gatsby e Daisy na época da Primeira Grande Guerra.

E mais: quem é Daisy, a jovem rica? Por que tão idealizada por Gatsby? Um sonho americano? Afinal, Daisy significa a personificação da beleza e a riqueza da Elite americana ao olhar do jovem convocado, futuro oficial e condecorado no conflito, glorioso na guerra, mas longe da glória da alta sociedade.

Mal sabia que estava na casa de Daisy por um acidente colossal. Por mais glorioso que pudesse ser o seu futuro como Jay Gatsby, era naquele momento um jovem sem vintém e sem passado e a qualquer momento o manto invisível do seu uniforme poderia escorregar dos seus ombros. Por isso, aproveitou ao máximo o seu tempo. Apossou-se de tudo o que podia, com voracidade e sem escrúpulos – finalmente apossou-se da própria Daisy numa noite quieta de outubro, porque não tinha nenhum direito real de tocar sequer em sua mão.” (p. 165)

A tragédia de Gatsby faz com que o narrador tenha certa simpatia pelo protagonista, ainda que o reprove. É o fim de Gatsby que confere um ar de trágico a uma vida de banalidades e descompassos. Por que conquistar a riqueza (até ilegalmente) se não se pode voltar no tempo, não se pode (re)conquistar um amor de outrora? O narrador Nick volta a sua vida de venda de ações, de cirandas das finanças, de encontros e desencontros com a Srta. Baker, isto enquanto uma ideia de crime aparece na mente do marido traído que sente o choque da morte da mulher infiel. Terá ela sido morta pelo amante? Aquele que dirigia o carro amarelo? Será que o Sr. Wilson desconfia de Tom, aquele que dirigia? (Mas no momento do acidente, outro dirigia, como sabemos). Pois de quem é o carro assassino? De um tal de Gatsby, novo rico, que dava festas sensacionais... Como Wilson chegou até Gatsby? Aliás, o romance precisava de tal desfecho? Ou somente tal desfecho dá aquele tom trágico que fecha o túmulo do protagonista antes censurável ? Ou do retrato de uma época temos o retrato de um homicídio? Aliás, uma queda mais para o romance policial noir...

A narrativa toma ares noir, com descrições cinzentas, amargas, do narrador, que sabe que algo de cruel sobrevirá para fechar o relato – ele que está narrando após a conclusão da tragédia, dois anos depois, tentando entender o que aconteceu realmente. Que imensa somatória de mal-entendidos, que montanha de incompreensões, que abismos entre as pessoas! Somam-se desencontros e toda riqueza esbanjada é em vão. Os empregados – e Nick – encontram o corpo de Gatsby morto na piscina. “Foi quando carregávamos Gatsby para a casa que o jardineiro viu o corpo de Wilson um pouco adiante no gramado. E o holocausto estava completo.” (p. 179)

Como encerrar a narrativa sem cair numa de folhetim de escândalos? Será que o fim de Gatsby é ser considerado um amante de mulher casada e que terminou seus dias assassinado pelo marido traído enquanto descansava na piscina. Tragédia entregue em prato cheio para os tablóides sensacionalistas. Em busca de uma manchete o que não fazem os jornalistas mercenários? Afinal, há um louco que perambula em busca de vingança – que mata e se mata. Um desfecho sangrento para um romance de época de euforia pré-Depressão.

Enquanto o drama termina com a morte do protagonista, o que se passa com os demais figurantes? Para onde se debandaram Tom e Daisy? Para onde poderá o dinheiro levá-los? Onde estão os amigos de Gatsby? Onde está o Sr. Wolfshiem, que tem negócios com o morto? Quem ficará para chorar a morte tão gratuita e chocante? Um novo rico encontrado morto na piscina de sua magnífica mansão onde pululavam festanças! Três dias depois, aparece o pai de Gatsby, o Sr. Henry Gatz, de Minnesota. “Estava à beira de desmaiar e o levei até até a sala de música e o fiz sentar-se enquanto providenciava algo para comer. Mas não quis comer e derramou leite do copo que tremia nas suas mãos. “Vi a notícia num jornal de Chicago', disse. 'Estava tudo lá. No jornal de Chicago. Parti imediatamente.' ” (p. 185)

A tragédia chega às lágrimas quando o pai de Gatz mostra a face da desolação, ainda que orgulhoso das conquistas do filho.”Tinha chegado a uma idade em que a morte não tem mais aquela qualidade de surpresa medonha e quando olhou ao redor agora pela primeira vez e viu a altura e o esplendor do salão e das grandes salas que se abriam a partir dele para outros aposentos seu sofrimento começou a se misturar com uma admiração orgulhosa.” (p. 186) O Sr. Gatz tinha grandes esperanças pelo futuro do filho, que 'estava fadado a vencer'. O jovem poderia ter sido um grande homem, a 'construir o país', se tivesse erguido sua fortuna com nobreza e paciência. Não uma riqueza sem lastro para diversões fúteis. Imaginamos todas as fortunas gastas e pedidas em jogos de finanças no cassino do Mercado – a culminarem na Grande Depressão de 1929, consequência de todo o delírio especulativo.

Afinal, quem, dentre os convidados (ou não) das festanças estará no cortejo fúnebre do 'Grande' Gatsby ? Quem dentre os 'amigos' estará presente? Ou o grande anfitrião, o magnífico e festivo magnata será entregue ao pó em plena solidão? Ninguém haverá de chorar por ele? Nenhum dos amigos comprados ou vendidos? Que escárnio final, que insulto derradeiro contra a memória de um novo rico! Tanto barulho por nada, como diria o Bardo inglês. E mais detalhes da vida passada de Gatz/Gatsby é revelada, com afigura dúbia do Sr. Wolfshiem, envolvido em negociatas, que alega ter ajudado o jovem 'da sarjeta'. É um amigo do morto, mas se nega a 'se envolver', não deseja aparecer em público, num enterro. Aliás, ninguém apareceu. Gatsby foi enterrado pelo pai e pelo amigo, além de um sacerdote. E depois o homem 'com olhos de coruja' que estava na biblioteca, incrédulo entre os livros com tão requintadas encadernações.

Triste fim para um protagonista que é adjetivado como 'grande'. E então o narrador novamente volta para si mesmo. Suas decepções com a vida no Leste, afinal ele, igual aos outros personagens, veio do Oeste, mostra um linha de distinção entre os que trabalham realmente, a gerarem riquezas, com valores reais, e aqueles que operam a riqueza em contas bancárias e transações financeiras, com riquezas voláteis e impalpáveis. Vidas de luxo sem qualquer sentido – além da ostentação. “Vejo agora que esta foi uma história do Oeste, afinal de contas – Tom e Gatsby, Daisy, Jordan e eu, éramos todos do Oeste e talvez possuíssemos alguma deficiência em comum que nos tornava sutilmente inadaptados para a vida no leste.” (p. 195) Nada mais que os excessos vazios do Leste contra as cidades pacatas e laboriosas do Oeste. “Depois da morte de Gatsby, o Leste ficou assombrado para mim, distorcido além dos poderes de correção de meus olhos. Por isso, quando a fumaça azul das folhas quebradiças pairava no ar e o vento soprava as roupas molhadas penduradas nos varais, decidi voltar para casa.” (p. 196)

Assim, é pelo olhar do narrador – tão dentro quanto fora – que temos a figura de Gatsby, igualmente e dentro e fora do mundo luxurioso da Costa Leste. Para notar os contrastes e desmascarar as aparências só mesmo um jovem do Oeste com parentes no Leste, que observa a vida de um jovem arrivista que, por mais que se esforçou, não conseguiu adentrar o mundo dos ricaços da metrópole. Antes de deixar o Leste, Nick se despede de Jordan, que também não o compreendeu. E se depara com Tom, que revela como Wilson descobriu o nome Gatsby – simples: Tom o 'denunciou' para o viúvo alucinado. Para Nick nada a mais a dizer. Ele apenas faz uma última visita ao casarão inútil e fracassado que antes, durante o verão, se animara com tantas festas.

Eu passava minhas noites de sábado em Nova York porque aquelas suas festas cintilantes e deslumbrantes estavam tão vívidas em minha memória que ainda podia ouvir a música e os risos remotos e incessantes do seu jardim e os carros entrando e saindo. Certa noite, ouvi chegar um carro de verdade e vi seus faróis pararem ao lado dos degraus da frente da casa. Mas não investiguei. Talvez fosse um último conviva que estivera em viagem aos confins da terra e ainda não soubesse que a festa tinha acabado.” (p. 199)


Realmente a festa acabou. Não em 1925, quando Fitzgerald lançou sua obra magistral, que somente seria reconhecida e admirada tempos depois. Não em 1925, ainda época de euforia e festanças ao som de jazz, mas em 1929 quando o sonho acabou no mundo das cirandas financeiras, das especulações, no mundo desvairado de Wall Street, o inferno de capital onde uns poucos lucram e a maioria perde tudo – propriedades, sonhos, futuro. Assim o capitalismo entregue a si mesmo é um imenso monstro canibal a comer os próprios membros, a espera de ser resgatado pelo Estado regulador (vide a obra do economista John M. Keynes e o New Deal em 1933 do presidente F. D. Roosevelt). Depois da euforia vem a depressão, e o narrador, afinal, é um sobrevivente. Ele sobrevive ao protagonista e assim pode testemunhar que o otimismo não vitima apenas os otimistas.


fonte: FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. Trad. Roberto Muggiati. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.



jul/ago/13

Leonardo de Magalhaens




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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sobre O Grande Gatsby - de Fitzgerald / p1


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Sobre O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 1925)
romance de F. Scott Fitzgerald (1896-1940)
(trad. de Roberto Muggiati)


Testemunhando que depois da euforia vem a depressão


Parte 1

Quando a literatura elege certos momentos da História para captar temas e elencar figuras, é geralmente por fixações e temores do autor, que ao escolher um tema e momento se sente particularmente afetado, demasiadamente incluído . Suas atribulações estão dissolvidas ou concentradas na obra, que soa como um testemunho do vivido/ sofrido. Suas convicções estão em uma ou outra personagem, assim como seu desprezo. Uma época imediatamente anterior aquela em que a obra é reconhecida, pois é preciso toda uma geração adiante para que os olhos se voltem para aquela geração que deixou marcas.

Assim acontece com F. Scott Fitzgerald que viveu e sofreu na euforia da Era do jazz e das finanças na década de 1920, 'os loucos anos 20', na euforia antes da Grande Depressão, quando os jovens e investidores ganham montes de dinheiro e se afogavam no fundo de bebedeiras. Tanto desvario deu um nome a esta geração norte-americana do início do século 20, que vivia entre luxo e embriaguez, tanto na América quanto na Europa (de preferência na França pós-Grande Guerra), assim a 'Geração Perdida' (Lost Generation) que incluía além de Fitzgerald os escritores E. Hemingway, Gertrud Stein, John Dos Passos, Nabokov, dentre outros, absortos em si mesmos e na prosperidade volátil.

O Grande Gatsby testemunha sobre a geração dos anos 1920, no mundo ocidental, assim como Pergunte ao Pó e A Náusea descreve os anos 1930 e On The Road / Pé na Estrada aborda os anos 1960, com suas personagens e situações pitorescas, com ironia e admiração, entre o desejo e a amargura, pois cada obra testemunha o ápice e a queda da geração que abriga o autor. Quem narra está intimamente ligado ao narrado, tem cicatrizes a serem fechadas, tem dramas a serem desbloqueados. Mesmo que o autor não se apresente, deixando na linha de frente um narrador. Nada de visão onisciente de uma narrativa em 3ª pessoa, mas de alguém situado nos fatos narrados, mas que não sabe de tudo, antes descobre à medida em que se dedica a narrar.


Em O Grande Gatsby, por algum motivo, o narrador se manifesta, lembra que temos em mãos um livro, sobre um exótico protagonista, que merece nossa volátil atenção. Nada sabemos além do que Nick nos relata, nem porque ele se impressionara tanto a ponto de narrar. É ao longo da narrativas, com suas tessituras e entrelinhas, que descobrimos, pouco a pouco.

Apenas Gatsby, o homem que dá seu nome a este livro, estava isento da minha reação – Gatsby que representava tudo aquilo por que sinto um desprezo sincero. Se a personalidade é uma série ininterrupta de gestos bem-sucedidos, então havia algo magnífico nele, uma sensibilidade exacerbada diante das promessas da vida, como se estivesse ligado a uma daquelas máquinas intricadas que registram terremotos a quinze mil quilômetros de distância.” (p. 6)


Sabemos mais sobre o narrador, que lutou com as tropas norte-americanas na Primeira Guerra Mundial (aqui denominada ironicamente “aquela migração teutônica protelada”) em 1917 – o mesmo tendo acontecido com o jovem Larry Darrell de The Razor's Edge, 1944, de Somerset Maugham, segundo comentado no ensaio sobre O Lobo da Estepe, de H. Hesse.


Links para o Meu Cânone Ocidental

sobre a Geração Perdida e a Era do jazz


O narrador, um novato no mundo dos negócios e da especulação, é quem nos conduz ao mundo excêntrico de Gatsby, o Grande, que é o oposto do seu próprio, uma vez que o jovem Nick Carraway é um sujeito mais reservado e leitor de bons livros, em suma, alguém que não vive a aventura, mas está apto a escrevê-la. Até porque ele é um ótimo observador, cuja erudição entrega densidade às descrições de personagens e situações (o que seria diferente caso o narrador fosse o protagonista Gatsby...),

Eu era um tanto chegado à literatura na universidade – um ano escrevi uma série de editoriais muito solenes e óbvios para o Yale News – e agora ia trazer de volta todas as aquelas coisas para minha vida e me tornar de novo aquele mais limitado dos especialistas, o homem 'cultivado'. Isto não é apenas um epigrama – afinal, pode-se ver bem melhor a vida observando-a através de uma única janela.” (pp. 8-9)


Descrições de ambientes e pessoas são marcantes em detalhes e observações irônicas. É o narrador, juntamente com o que é narrado, que cria a estética magistral de The Great Gatsby. O narrador está fora e também dentro, sendo parente (primo) de uma das protagonistas, da encantadora Daisy, casada com o ricaço, herdeiro de várias gerações, Tom Buchanan, daí ser agora a Sra. Buchanan. O que faz Daisy ser especial é o fato de ser uma antiga paixão do agora milionário excêntrico, promotor de festanças, o Sr. Gatsby, o novo rico que mora do outro lado da baía.

A descrição do casal Buchanan é repleta de ironias e humor ácido, pois eles são familiares e ao mesmo tempo contrários. Eles levam a vida luxuosa que Nick não pode ter, ou não pretende ter, o que permite que ele tenha julgamento para observá-los e melhor julgar. Uma vida de ricaços, luxuriosa e ao mesmo tempo vazia e inútil, entre encontros sociais, esportes e festanças. Como uma nobreza apartada do povo, em época de pós-guerra, antes da Grande Depressão econômica (1929-1933). Estando o narrador fora e dentro, ele avalia o jovem casal, e se interessa pela visitante, a bela e fatal Srta. Baker. Ele faz uma visita social que logo se torna de interesse amoroso, de reafirmação amorosa. O interesse pela Srta. Baker é imediato, “Gostei de observá-la. Era uma garota esguia de seios pequenos com um porte ereto que acentuava jogando os ombros para trás como um jovem cadete. Seus olhos cinzentos, contraídos pelo sol retribuíram-me o olhar com uma curiosidade recíproca e educada num rosto pálido, encantador e insatisfeito. Ocorreu-me agora que eu já a tinha visto, ou a um retrato dela, em algum lugar.” (pp. 15-16)


Quanto a Tom Buchanan, o esportista de família rica, é um tipo conservador, um racista quase um nazi-fascista, ao abordar temas como raça dominante branca e nórdica, em

'A civilização está caindo aos pedaços', interrompeu Tom violentamente. 'Acabei me tornando um pessimista terrível em relação às coisas. Vocês leram A ascensão dos impérios de cor, escrita por este sujeito, Goddard?

'Não', respondi um tanto surpreso com o seu modo.

'Bem, é um livro excelente que todo mundo devia ler. A ideia é que, se não prestarmos atenção, a raça branca será... ficará totalmente sumersa. É tudo coisa científica; foi tudo provado.' (pp. 17-18)



mais sobre Gatsby e a decadência em


Sua bela esposa Daisy é cínica, assim mesmo ela se define ao primo Nick, que anda boquiaberto com tanto luxo e vazio,

'É verdade.' Ela hesitou. 'Bem, passei por uma fase muito difícil, Nick, e fiquei um tanto cínica em relação a tudo.'

Era evidente que tinha motivo para ser cínica. Esperei, mas ela não falou mais nada e, depois de um momento, voltou sem muita convicção ao assunto de sua filha.” (p. 22)


Logo em seguida Nick descobre que Tom vive a trair sua prima Daisy com uma mulher casada, esposa de um mecânico da autoestrada. E não hesita em apresentar a amante ao narrador! “'Vamos descer!', insistiu. 'Quero que conheça minha garota.' Acho que ele tinha bebido bastante no almoço e sua determinação em contar com a minha companhia beirava a violência. A suposição soberba era de que numa tarde de domingo eu não devia ter nada melhor a fazer.” (p. 28)

Nas conversas entre o casal e a Srta Baker é mencionada uma das festas de Gatsby, sempre grandiosas, “Estive lá numa festa há cerca de um mês. Na casa de um homem chamado Gatsby. Você o conhece?” (p. 37) Festas que Gatsby oferece a uma multidão de gente que ele sequer conhece, e que nem se importa em conhecê-lo. Afinal, é apenas um novo rico. Mais sobre as festas de Gatsby circula em outra festa, quando Nick se embriaga, ou se vê obrigado a se embriagar, no apartamento da amante de Tom, em companhia de gente que definitivamente não é da classe do ricaço. Nick presencia o desregramento e o delírio num apartamento, onde ele está dentro e fora, bêbado e sóbrio para perceber-se bêbado, e pronto para presenciar um ápice do nonsense: a violência contra a mulher: Tom agride a amante, quando esta ofende a esposa Daisy. “Num movimento breve e preciso, Tom Buchanan quebrou o nariz dela com um tapa.” p. 42

Mais é no capítulo 3 que saberemos mais sobre as festanças do Sr. Gatsby, descritas em detalhes, entre o realismo e o surrealismo pelo narrador Nick, um dos (realmente) convidados. Aliás, parece ser ele o único convidado. O resto dos loucos, artistas, playboys, mulheres da vida, empresários, jogadores, dançarinas, ricos e novos ricos, aparecem em carros em alta velocidade vindos de toda parte da metrópole.

Eu ouvia música da casa do meu vizinho durante as noites de verão. Em seus jardins azuis homens e garotas iam e vinham como mariposas entre os sussurros e o champanhe e as estrelas. Na maré alta da tarde eu observava seus convidados mergulhando da torre da sua balsa ou tomando sol na areia quente de sua praia enquanto suas duas lanchas a motor cortavam as águas do Estreito, puxando aquaplanos sobre cataratas de espuma.” (p. 45)


O bar está no auge da animação e rodadas flutuantes de coquetéis permeiam os jardins até que o ar fica cheio de conversas e risos, insinuações casuais e apresentações esquecidas em um instante, e encontros entusiasmados entre mulheres que jamais ouviram o nome uma da outra.

As luzes ganham brilho à medida que a terra se afasta do sol e agora a orquestra toca música de coquetel melancólica e a ópera de vozes atinge um tom mais agudo. Os risos se tornam mais fáceis a cada minuto, derramados com prodigalidade, provocados por uma palavra jocosa. Os grupos mudam mais rapidamente, são engrossados por novas chegadas, dissolvem-se e formam-se num mesmo instante – já existem garotas nômades e confiantes que circulavam aqui e ali entre as mais robustas e mais estáveis e então, excitadas por seu triunfo, deslizam através da maré de rostos, vozes e cores debaixo da luz em contínuo câmbio. “ (pp. 46-47)


É assim que é desperdiçado o dinheiro fácil em épocas anteriores à Depressão (causada justamente pela especulação...), o que vem a atrair o jovem Nick para a metrópole, onde pretende se encaixar no circo da grana-fácil, e lucrar como muitos julgam lucrar. “Eu tinha certeza de que estavam todos vendendo alguma coisa: títulos, seguros ou automóveis. Tinham, pelo menos, uma noção muito precisa do dinheiro fácil que existia naquela vizinhança e estavam convencidos de que aquele dinheiro seria seu mediante umas poucas palavras na tecla certa.” (p. 48)

Circulavam boatos sobre a figura de Gatsby. O que ele seria? Um assassino? Um espião? De onde vem toda a sua riqueza? Por que tanta generosidade? Aliás, onde estava o anfitrião Gatsby? Ninguém conhece Gatsby, ninguém foi convidado por Gatsby. “Todos nos viramos e olhamos ao redor em busca de Gatsby. Uma prova da especulação romântica que inspirava é que havia cochichos sobre ele até da parte de pessoas que jamais sentiram necessidade de cochichar sobre nada neste mundo.” (p. 50)

Enquanto não encontra o anfitrião-protagonista, o narrador Nick perambula pela mansão em festa e delírio, a encontrar exóticos 'convidados'. Jovens sem rumos, damas bêbadas, um excêntrico 'leitor' na ampla biblioteca, todos impressionados com a riqueza e o esbanjamento, com a festa e a figura (anônima) do anfitrião. É de verdade a decoração e os pratos requintados. É de verdade os grossos volumes na biblioteca. O sujeito esbanja riqueza e bom gosto, se dedica à leitura! (Ou aparenta se dedicar à leitura...)

Mas é apenas quase ao fim da festa que o narrador se vê diante do anfitrião, ali meio aos 'convidados', flanando entre as mesas, a observar os risos e sorrisos, a contemplar o efeito de sua generosidade festiva. De súbito, um dos homens inicia uma conversa com o narrador, sobre fatos da guerra anterior, a Primeira Guerra Mundial, uma vez que ambos dela participaram. Mas quem é o homem que sobreviveu à guerra? Ele se apresenta, é Gatsby!

Sorriu com um ar de compreensão – muito mais do que compreensão. Era um daqueles sorrisos raros com uma qualidade de eterna reafirmação, que a gente encontra umas quatro ou cinco vezes na vida. Ele se defrontava – ou parecia se defrontar – com todo o mundo externo por um instante e então se concentrava em você com uma parcialidade irresistível a seu favor. Ele o entendia na medida em que você desejava ser entendido, acreditava em você como você desejaria acreditar em si mesmo e lhe garantia que guardava de você a impressão que, à melhor maneira, você esperava transmitir. Precisamente naquele ponto ele se evaporava – e eu estava procurando um elegante jovem casca grossa, um ano ou dois além dos trinta, cuja elaborada formalidade de fala beirava o absurdo. Algum tempo antes de se apresentar, teve uma forte impressão de que escolhia suas palavras com cuidado.” (pp. 54-55)


O que temos, afinal, é uma descrição de Gatsby segundo as impressões de Nick, ali bem impressionado, meio sem rumos, dentro e fora da festança,

[...] meus olhos caíram sobre Gatsby, sozinho no pé nos degraus de mármore, olhando de um grupo para outro com um ar de aprovação. Sua pele bronzeada era atraentemente lisa no rosto e os cabelos curtos pareciam ser aparados todo dia. Eu nada conseguia ver de sinistro nele. Imaginei se o fato de não estar bebendo ajudava a distanciá-lo dos convidados, pois me parecia que ele se tornava mais correto à medida que a hilaridade fraternal aumentava.” (pp. 56-57)

Depois o narrador tece considerações sobre a própria narrativa, relendo suas impressões após as noites de festa, “Relendo o que escrevi até agora, vejo que dei a impressão de que os acontecimentos de três noites, separadas entre si por várias semanas, foi tudo o que me absorveu. Ao contrário, foram acontecimentos meramente ocasionais num verão tumultuado e, a não ser muito depois, me absorveram infinitamente menos do que meus afazeres pessoais.” (p. 63)

Quais afazeres pessoais? De fato, é agora que ficamos sabendo mais sobre o seu trabalho, no ramo de finanças (em corretora de títulos) em Manhattan, Nova York.

A maior parte do tempo eu trabalhava. De manhã cedo o sol projetava minha sombra para oeste enquanto eu seguia apressado pelas ravinas brancas da parte baixa de Nova York em direção da Firma. Conhecia os outros funcionários e jovens corretores de títulos pelo primeiro nome, almoçava com eles em restaurantes escuros e lotados […] Eu jantava geralmente no Yale Club – por algum motivo era o acontecimento mais sombrio do meu dia – e então subia à biblioteca e estudava investimentos e títulos durante uma hora conscienciosa. Havia quase sempre alguns bagunceiros por lá, mas nunca vinham à biblioteca, por isso era um bom lugar para se estudar. Depois, se a noite era branda, eu seguia a pé pela Madison Avenue, passando pelo velho Murray Hill Hotel e atravessando a rua 33 até a Estação Pensilvânia.” (pp. 63-64)


Nosso narrador, Nick Carraway, perambula pela noite nova-iorquina no começo dos anos 1920, a sentir-se solitário meio às multidões, e aos olhares, e às luzes néons, e aos turbilhões de carros e promessas de prazeres, assim cerca de uns trinta anos do jovem Holden Caulfield de Catcher in the rye, de J.D. Salinger [1919-2010], que narra uma caminhada pela Big Apple, congelada na época do Natal, a carregar “The Great Gatsby” como uma de suas leituras de referência.

Link para o ensaio em Meu Cânone Ocidental



Nick, o solitário, vê-se interessado na jovem esportista Jordan Baker, que ele conhecera n casa de Daisy e Tom. Como ele vê a Srta. Baker, que tanto o atrai?

Jordan Baker evitava instintivamente homens perspicazes e agora eu via que isto acontecia porque ela se sentia mais segura num plano em que qualquer divergência de um código seria julgada impossível. Ela era uma desonesta sem cura. Não era capaz de suportar uma posição de desvantagem e, considerando esta resistência, imagino que ela começara a lidar com subterfúgios ainda bem jovem a fim de manter aquele sorriso insolente voltado para o mundo e, ainda assim, satisfazer as demandas do seu corpo vigoroso e elegante.” (p. 65)

Ao contrário de Jordan, Nick se considera uma pessoa honesta, como declara no último parágrafo do capítulo 3. Será que opostos se atraem? “Todo mundo suspeita de si mesmo que possui pelo menos uma das virtudes cardeais e esta é a minha: sou uma das poucas pessoas honestas que já cheguei a conhecer.” (p. 66)


A relação do narrador com o protagonista da narrativa é a mesma de admiração e distanciamento que encontramos em obras como “The Razor's Edge”, onde o autor-narrador Maugham focaliza a vida de Larry Darell, ou ainda “Doktor Faustus”, de Thomas Mann, onde Serenus Zeitbloom observa as vicissitudes de Adrian Leverkühn. São naradores que estão dentro da narrativa, mas numa zona limítrofe com o fora. Eles sabem que servem apenas para narrar a estória, não interferir na mesma. Sabem que o protagonista deve ser o foco de tudo – mesmo sendo sob a objetiva do narrador, com suas perspectivas e preconceitos. Afinal, não há um narrador do 'ponto-de-vista divino', isto é, onisciente, onipresente. O narrador não sabe tudo sobre o protagonista, mas sabe o suficiente para deixar dúvidas e enigmas para torturar a curiosidade de cada leitor.

Enigmas que continuam. O que faz Gatsby? Qual a fonte de sua riqueza? Ele é contrabandista? Um mafioso? Nada é esclarecido. Enquanto isso os convidados zombam de sua farta hospitalidade. Aqueles que desfrutam de suas festas não hesitam em apontá-lo como espião ou contrabandista de bebidas. Dizem e acusam, ali no jardim, enquanto bebem e comem às suas custas! Um Gatsby que é tão misterioso - e também enérgico e impulsivo. Sempre em movimento, sempre se reafirmando.

Descobrimos, nós, os atentos leitores, que o protagonista é 'construído' ao longo da narrativa, em pequenos recortes, em algumas situações, jamais descrito completamente, mas gradativamente, peça por peça, assim como o Leopold Bloom de Ulisses (James Joyce) ou o Darell de The Razor's Edge (de Maugham) ou o Harry Haller de O Lobo da Estepe (de Hesse). Protagonista densos e que se desenvolvem durante a narrativa, sempre ao olhar de um outro (do narrador e de outros figurantes). Em alguns momentos, o que protagonista pensa de si mesmo, Gatsby por Gatsby, Gatsby na Guerra, Gatsby que deu a volta por cima. Mas a perspectiva ainda é de Gatsby pelo olhar de Nick, ou o protagonista na voz do narrador.

No mais, Gatsby está ciente dos boatos e estórias que circulam sobre a sua vida e sua riqueza. Que os convidados traficam impressões enquanto degustam os petiscos do banquete. Enquanto anfitrião ele sabe das mentiras e meias-verdades. E o que passa a ser curioso é o seguinte: por que Gatsby se aproxima de Nick? Por que ele é o primo de Daisy? Como Gatsby soubera? Como sabia sobre o vizinho? Ou ainda: por que narrador e protagonista se atraem? Afinal, o narrador Nick é bem crítico quanto às amizades de Gatsby e seu círculo de festivos. Quem seria um tal Wolfshiem, com jeito de mafioso? Um jogador trapaceiro? Ou ainda, o que Gatsby sente com relação a Tom Buchanan é só rivalidade? Ou também inferioridade? O que acontecera realmente entre Gatsby e Daisy alguns anos antes?

Enquanto as perguntas não são respondidas, o caso amoroso entre Nick e Jordan prossegue. Daí o narrador adentrar ainda mais o círculo de amizades do casal Daisy e Tom, e adentrar mais o labirinto das especulações. Por que o Sr. Gatsby é o protagonista? Por sua figura de romântico fora de época? E seu ar de galã ? Ou de homem que enriqueceu, um self-made man ? É quando reaparece a esportista Jordan Baker, a conceder algumas respostas. Sabemos mais sobre o romance entre Daisy e Jay Gatsby, a chegada da Guerra, a jornada militar de Gatsby, então, após o Armistício, o casamento de Daisy com Tom, devido às questões de classe, e o retorno do homem em busca de sua paixão do passado. Então é isso: uma história de amor. Tudo o que Gatsby faz é para atrair a atenção de Daisy! Ela que nunca aparecera sequer a uma das festanças!

Sabemos que a amizade de Gatsby por Nick é algo interesseira, uma vez que ele deseja é rever a querida Daisy. É por isso que Gatsby tem uma proposta para Nick, no propósito de ganhar mais dinheiro. Mas qual a fonte de renda do Sr. Gatsby? Finanças ou contrabando? Nick desconhece. Sabe que, segundo o dono, o novo rico trabalhou três anos para poder comprar a mansão das festanças. (Em dado momento, Gatsby se refere a um rendimento com drogarias e petróleo, mas nada mais é esclarecido. É comércio legalizado? Ele é acionista? É especulador?) Enquanto isso, Gatsby cuida da decoração da casa de Nick, pois espera que Daisy visite o primo, uma vez que foi convidada. Ela nem sabe o que a espera...


continua ...


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fonte: FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. Trad. Roberto Muggiati. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.



jul/ago/13

Leonardo de Magalhaens




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