sábado, 19 de fevereiro de 2011

sobre O Retrato de Dorian Gray - de Oscar Wilde (1/2)






Meu Cânone Ocidental
vol3

sobre “O Retrato de Dorian Gray
(The Picture of Dorian Gray, 1890/91)
do poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900)
Quando a Escrita simboliza o psiquismo narcisista
1/2

O que é a Obra de Arte? Quais os limites da Arte? Deve haver padrões, logo limites? O que vale numa Obra – sua mensagem ou sua estética? Seu conteúdo ou sua forma? O que deve nortear o Artista – o gosto pessoal ou os interesses coletivos? Eis algumas das questões que podemos encontrar na leitura do belo romance (o único) do poeta e literato Oscar Wilde, britânico, de origem irlandesa.

A Arte que se baseia em seus próprios princípios – não em parâmetros fora de si-mesma – onde a qualidade de uma Obra está em suas características intrínsecas, sua tessitura estética, não em mensagens filosóficas ou políticas. O valor do conteúdo não se sobrepõe às qualidades estéticas – o que importa é se a Obra é 'bem feita'. Nos interessa se o livro é 'bem escrito', não se o Autor é de direita ou de esquerda.

Esta visão esteticista – no sentido de “Arte pela Arte” (L'Art pour l'Art) – preocupa-se em não submeter a Escrita a imperativos de partidarismo, academicismo, mercantilismo que descaracterizariam a criação quando das mudanças de corrente política, valores acadêmicos ou oferta-e-demanda. A Arte antes de tudo é uma expressão da liberdade do Artista.

O poeta e literato britânico irlandês Oscar Wilde visualizava a Arte na materialização das Obras como uma conquista individual – ou da afirmação de uma individualidade meio ao coletivo – somente acessível a alguns 'eleitos' que conseguiam unir sentimento e metáforas, estilo e estética. A Obra significando em-si mesma e ao mesmo tempo um símbolo criado pelo Autor.

Neste sentido a Arte é total entrega para o pintor Basil – ao pintar o quadro de Dorian ele cria a sua obra-prima, que emociona Lorde Harry. Mas Basil não deseja expor o quadro – senão estaria expondo a si-mesmo aos olhares do público! Sua Arte é primeiramente a expressão de um Ego – só posteriormente (se o Artista o desejar) será útil para o prazer estético do público.

Encontramos o artista e o visitante diante de uma verdadeira obra-prima: o retrato de um jovem herdeiro, de insofismável beleza e graciosidade. Uma personificação de delicadeza e inocência, que agora é imortalizado pela Arte.

“'Harry', disse Basil Hallward, olhando-o diretamente, 'cada retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista, não do modelo. O modelo é meramente o acidente, a ocasião. Não é ele quem é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, na tela colorida, revela a si mesmo. A razão pela qual eu não exibirei esta pintura é que tenho medo de revelar o segredo de minha própria alma.”
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"Harry," said Basil Hallward, looking him straight in the face, "every portrait that is painted with feeling is a portrait of the artist, not of the sitter. The sitter is merely the accident, the occasion. It is not he who is revealed by the painter; it is rather the painter who, on the coloured canvas, reveals himself. The reason I will not exhibit this picture is that I am afraid that I have shown in it the secret of my own soul." p. 4
Basil descreve o encontro com o jovem Dorian Gray, que o marcou intimamente e enquanto artista – aqui Dorian seria a personificação masculina da Musa. O artista Basil ama a Arte pela Arte – não ambiciona os holofotes das exposições, as poses dos demais artistas (ou dos 'ditos' artistas...). Quando Harry ironiza os poetas em suas poses, Basil mostra o quanto despreza os falsos artistas,

“Os poetas não são tão escrupulosos como você é. Eles sabem como usar a paixão para ter publicação. Hoje em dia um coração ferido faz rodar muitas edições.
“Eu os odeio por isso,” gritou Hallward. “Um artista deveria criar coisas belas, mas não deveria colocar algo de sua própria vida nelas. Vivemos numa época quando os homens tratam a arte como se fosse uma forma de autobiografia. Temos perdido o senso abstrato de beleza. Algum dia eu mostrarei ao mundo o que é; e por esta razão o mundo jamais verá o meu retrato de Dorian Gray.”
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"Poets are not so scrupulous as you are. They know how useful passion is for publication. Nowadays a broken heart will run to many editions."
"I hate them for it," cried Hallward. "An artist should create beautiful things, but should put nothing of his own life into them. We live in an age when men treat art as if it were meant to be a form of autobiography. We have lost the abstract sense of beauty. Some day I will show the world what it is; and for that reason the world shall never see my portrait of Dorian Gray." pp. 8/9

Dorian aparece no ateliê para contemplar a própria beleza representada em traços e cores sobre a tela – a representação do Ego, por excelência. Eis a pintura em eterna juventude, enquanto ele sabe que seu destino é envelhecer...

O quanto Dorian acredita - e é influenciado – pelas ideias-ironias de Harry? O próprio jovem indaga ao Lorde criador de epigramas (hábito também do Autor Wilde)

“Você realmente tem uma má influência, Lord Henry? Tão má quanto Basil diz?
“Não existe tal coisa como boa influência, Sr. Gray. Toda influência é imoral – imoral de um ponto-de-vista científico.
“Por que?
“Porque influenciar alguém é entregar-lhe a própria alma. Ele não pensa os próprios pensamentos, ou arde nas próprias paixões. Suas virtudes não são reais para ele. Os seus pecados, se é que há mesmo pecado, são emprestados. Ele torna-se um eco da música de um outro alguém, um ator que atua numa peça não escrita por ele. O objetivo da vida é o auto-desenvolvimento. Entender perfeitamente a própria natureza – eis para o que estamos todos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia.”
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“Have you really a very bad influence, Lord Henry? As bad as Basil Says?
“There is no such thing as a good influence, Mr. Gray. All influence is immoral – immmoral from the scientific point of view.”
“Why?
“Because to influence a person is to give him one's own soul. He does not think his natural thoughts, or burn with his natural passions. His virtues are not real to him. His sins, if there are such things as sins, are borrowed. He becomes an echo of some one else's music, an actor of a part that has not been written for him. The aim of life is self-development. To realise one's nature perfectly – that is what each of us is here for. People are afraid of themselves, nowadays
. [...]” p. 9

As ideias estéticas e heréticas de Lorde Henry começam a influenciar o jovem Dorian Gray – tão influenciável quanto o jovem Donatello diante de Miriam, no clássico “The Marble Faun” de N. Hawthorne, como vimos.

Lord Henry para o lisonjeado Dorian, a cultuar a Beleza, “E a Beleza é uma forma de Gênio – é uma mais elevada, realmente, do que o Gênio, quando não precisa de explicação.” (“And Beauty is a form of Genius – is a higher, indeed, than Genius, as it needs no explanation.”)

e Harry lembra o quanto a juventude é efêmera, fugaz, vitimada pelo escoar do tempo, sempre inclemente,

“Cada mês que se escoa carrega você para mais perto de algo temível. O Tempo tem inveja de você, e batalha contra os seus lírios e rosas. Você ficará pálido, face encovada, e olhos sem brilho. Você vai sofrer muito... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto ainda a tem.” (“Every month as it wanes brings you nearer to something dreadful. Time is jealous of you, and wars against your lilies and you roses. You will become sallow, and hollow-cheeked, and dull-eyed. You will suffer horribly... Ah! Realize your youth while you have it.” p. 16)

Temos aqui o tema do carpe diem – seize the day, aproveite o dia – é um convite ao Hedonismo – usufruir da beleza e da juventude. A mocidade passa, a beleza há-de murchar, então que o jovem e elegante Dorian não hesite em ter todos os prazeres. Pois “é tão fugaz o tempo de sua juventude!” e mais: 'Juventude é a única coisa que vale a pena ter' (“Youth is the only thing worth having”, p. 19, c. 2)

“Viva plenamente a maravilhosa vida que está em você! Não desperdice nada. Sempre pronto para novas sensações. Sem ter medo... Um novo Hedonismo – eis o que o nosso século deseja. Você será o símbolo visível. Com a sua personalidade nada há que você não possa fazer. O mundo pertence a você por uma temporada...”
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Live the wonderful life that is in you! Let nothing be lost upon you. Be always searching for new sensations. Be afraid of nothing.... A new Hedonism – that is what our century wants. You might be its visible symbol. With your personality there is nothing you could not do. The world belongs to you for a season....” pp. 16-17

Ao ouvir o grandioso elogio à Juventude, Dorian Gray toma consciência da própria beleza,

“O senso de sua própria beleza veio-lhe como uma revelação. Ele nunca sentira isto antes. Os elogios de Basil Hallward tinha parecido-lhe meramente o exagero gentil de um amigo. Ele ouvia, ria disso e depois esquecia. Os elogios não o influenciavam. Então veio o Lorde Henry Wotton com sua estranha louvação sobre a juventude, seu terrível aviso sobre a brevidade. [...] sim, haveria o dia quando sua face se encheria de rugas e meio flácido, e os olhos vagos e sem brilho, toda a graciosidade de sua aparência estaria acabada e deformada. O tom rubro desapareceria de seus lábios e o brilho dourado seria tirado dos cabelos. A vida que criaria sua alma, haveria de deformar-lhe o corpo. Ele ficaria horrível, repulsivo e grotesco.”
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The sense of his own beauty came on him like a revelation. He had never felt it before. Basil Hallward's compliments had seemed to him to be merely the charming exageration of friendship. He had listened to them, laughed at them, forgotten them. They had not influenced his nature. Then had come Lord Henry Wotton with his strange panegyric on youth, his terrible warning of its brevity. [...] Yes, there would be a day when his face would be wrinkled and wizen, his eyes dim and colourless, the grace of his figure broken and deformed. The scarlet would pass away from his lips and the gold steal from his hair. The life that was to make his soul would mar his body. He would become dreadful, hideous, and uncouth. pp.18-19

Dorian Gray profundamente abalado com a consciência do envelhecimento (isto é, fim da Beleza) profere um desabafo diante do quadro,

“'Quão triste isto era!' murmurou Dorian Gray com seus olhos ainda fixos em seu próprio retrato. 'Quão triste isto era! Eu ficarei velho, e horrível, e repulsivo. Mas este retrato será sempre jovem. Nunca será mais velho que este dia de Junho... Se fosse de outro modo! Se fosse eu quem fosse sempre jovem, e o retrato que ficasse mais velho! Para isto – para isto – eu daria tudo! Sim, nada há no mundo inteiro que eu não daria! Eu daria a minha alma para isto!'”
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"How sad it is!" murmured Dorian Gray with his eyes still fixed upon his own portrait. "How sad it is! I shall grow old, and horrible, and dreadful. But this picture will remain always young. It will never be older than this particular day of June.... If it were only the other way! If it were I who was to be always young, and the picture that was to grow old! For that – for that – I would give everything! Yes, there is nothing in the whole world I would not give! I would give my soul for that!" p. 19

O fato é que Dorian passa a ter inveja e ciúme da pintura, do retrato que não envelhece, e se indigna diante de Basil e Henry, pois a velhice é detestável, daí ser melhor a morte. “Seu retrato tem me ensinado isto. Lorde Henry Wotton está perfeitamente certo. A juventude é a única coisa que vale a pena ter. Quando eu perceber que estou envelhecendo, eu me matarei.” (“Your pinture has taught me that. Lord Henry Wotton is perfectly right. Youth is the only thing worth having. When I find that I am growing old, I shall kill myself.” p. 19)

No capítulo 3, há um jantar na residência de aristocratas, onde a fina ironia de Harry (Lord Henry) fere as formalidades. Para melhor relembrar a juventude convém até repetir os erros da 'imaturidade'! Que a humanidade conservasse a juventude, até os 'deslizes' da juventude. Pois a 'seriedade' (o que Nietzsche vai chamar de 'espírito de gravidade' e Sartre, de 'espírito de seriedade') é um peso (ou uma culpa) que impede o riso. (1)

“A Humanidade se leva muito à sério. É o pecado original do mundo. Se os homens das cavernas soubessem rir, a História teria sido diferente.” (“Humanity takes itself too seriously. It is the world's original sin. If the caveman had known how to laugh, History would have been different.”)

Em todos os diálogos entre Harry e Dorian – a começar por aquele sobre a Beleza, a Juventude, o Hedonismo – é sempre carregado de malabarismo metafóricos, sinestésicos, plenos de símbolos físicos, eróticos e estéticos. É uma verdadeira sedução verbal, retórica, antes de uma possível posse amorosa. Há, sobretudo, a questão da MORAL.

Se em Dostoiévski (“Os Irmãos Karamázovi”) encontramos a máxima consequência de “tudo é permitido, já que Deus não existe”, quando se perde a moral cristã e não se coloca outra moral em prática. Vemos o quanto Smierdiákov é fraco moralmente e leva 'ao pé da letra' o amoralismo de Ivan Karamázov.

No romance de Wilde, encontramos Dorian a agir amoralmente ao dar ouvidos ao Lorde Henry (Harry) que “o único meio de se livrar da tentação é ceder a ela” (“The only way to get rid of a temptation is to yield to it.” , c. 2), que não se deve renunciar aos prazeres, mas degustar um por um. É evidente que Lorde Henry adota uma filosofia de vida guiada pelo amoralismo, pelo individualismo, pelo hedonismo, tudo resultando em cinismo, “o prazer é a única coisa sobre a qual vale a pensa ter uma teoria” (“pleasure is the only thing worth having a theory about” c.6)

A questão moral é preocupação do pensador alemão Nietzsche, como sabemos. Em Nietzsche, em seus muitos fragmentos e aforismas, compreendemos que o ser humano perde espontaneidade ao se enfraquecer sob o domínio de uma moral; é quando se torna 'doentio e culpado'. Todo um 'racionalismo' é montado encima deste 'sentimento de culpa' para apaziguar a febre dos instintos, e para justificar as renúncias diante dos prazeres. Passamos a ter medo do prazer.

Dorian passa a ignorar a moral cristã, passar a violar a moral de sua sociedade (lembramos o moralismo da 'era vitoriana' denunciado por Freud...) e para Dorian somente há uma 'ética', a da busca de prazeres. (2)

Atento às próprias sensações – como um bom 'simbolista', envolto e imerso em 'sinestesias' inebriantes - Dorian se descreve meio a multidão londrina. É no capítulo 4 onde temos mais epigramas cínicos do Lorde Henry, longe, bem longe do hoje 'politicamente correto'. Também aqui encontramos a primeira menção sobre a jovem atriz Sibyl Vane, que atraiu a atenção de Dorian Gray, motivo suficiente para Harry zombar da condição da mulher; mas Gray descreve suas sensações de flâneur e hedonista,

“Você me encheu com todo um desejo ardente de saber tudo sobre a vida. Pois, dias depois que eu te encontrei, algo parecia pulsar em minhas veias. Quando eu relaxava no parque, ou perambulava por Piccadilly, eu acostumava olhar cada um que passava por mim e queria saber, com louca curiosidade, que tipo de vida elas levavam. Algumas delas me fascinavam. Outras enchiam-me de terror. Havia um veneno sutil no ar. Eu tinha uma paixão por sensações... Bem, uma tarde, lá pelas 7 horas, eu seguia determinado em encontrar alguma aventura. Eu sentia que nesta nossa cinzenta e monstruosa Londres , com sua população de milhares, os sórdidos pecadores, e seus esplêndidos pecados, como você dizia, tinha algo reservado pra mim. Fantasiava sobre mil coisas. O mero perigo me dava um senso de prazer. Eu me lembrava do que você havia dito para mim naquela tarde maravilhosa quando primeiramente jantamos juntos, sobre a procura da beleza sendo a verdadeiro segredo da vida.”
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“[...] You filled me with a wild desire to know everything about life. For days after I met you, something seemed to throb in my veins. As I lounged in the park, or strolled down Piccadilly, I used to look at every one who passed me and wonder, with a mad curiosity, what sort of lives they led. Some of them fascinated me. Others filled me with terror. There was an exquisite poison in the air. I had a passion for sensations.... Well, one evening about seven o'clock, I determined to go out in search of some adventure. I felt that this grey monstrous London of ours, with its myriads of people, its sordid sinners, and its splendid sins, as you once phrased it, must have something in store for me. I fancied a thousand things. The mere danger gave me a sense of delight. I remembered what you had said to me on that wonderful evening when we first dined together, about the search for beauty being the real secret of life. [...]” p. 35
Encarnando a figura do dândi , que com elegância e pose aristocrática, vem atualizar a figura do flâneur, dos tempos de Baudelaire – meados do século 19 – Dorian Gray segue em andanças pela metrópole, onde ofertas de prazeres convivem com amostras de misérias. Jovens drogados, moças que se entregam ao 'comércio do sexo', velhos que traficam bebidas e poções.

A figura do flâneur é evidente na obra de Baudelaire, segundo apontada por Walter Benjamin, base para o meu ensaio (no blog Meu Cânone Ocidental)
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/02/sobre-as-flores-do-mal-de-baudelaire-12.html
Em suas andanças, Dorian Gray encontra um teatro popular, onde é encenada a peça “Romeo and Juliet”, onde se destaca a 'Juliet” Sibyl Vane,

Na cena do jardim [são duas, com Romeo e Julieta: Ato II cena 2 e Ato III cena 5] havia todo o êxtase que se ouve logo ao amanhecer quando os rouxinóis cantam. [...] Mulheres comuns nunca apelam à imaginação. Elas são limitadas ao próprio século. Nenhum encanto pode transfigurá-las. [...] Mas uma atriz! Quão diferente ela é! Harry! Por que não me disse antes que uma atriz é a única coisa que vale ser amada?”
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"In the garden-scene it had all the tremulous ecstasy that one hears just before dawn when nightingales are singing. [...] Ordinary women never appeal to one's imagination. They are limited to their century. No glamour ever transfigures them. [...] But an actress! How different an actress is! Harry! why didn't you tell me that the only thing worth loving is an actress?" c. 4, p. 37

Mas, não é de se estranhar, Harry é ainda irônico, “Quando alguém está apaixonado, sempre começa por se iludir, e sempre termina por iludir os outros. Eis o que o mundo chama de romance.” (“When one is in love, one always begins by deceiving one's self, and one always ends by deceiving others. That is what the world calls a romance.” p. 38)

Podemos dizer que há um Dorian Gray antes e depois da desilusão amorosa com a jovem atriz Sibyl Vane – que passa a significar a Amada, aquela mulher que encanta e merece homenagem, tão presente nas canções trovadorescas. Dorian idealiza a jovem atriz Sibyl, e, como sabemos, idealização causa desilusão,

“Ela enlouquecerá o mundo assim como me enlouqueceu. [...] Ela não tem arte meramente, consumado instinto artístico, em si, mas também personalidade; e você me disse frequentemente que são personalidades, e não princípios que movem uma época.” (“She will make the world as mad as she has made me. [...] She has not merely art, consummate art-instinct, in her, but she has personality also; and you have often told me that it is personalities, not principles, that move the age.” p. 40)

É justamente Harry quem tece elogios ao individualismo, ao mesmo tempo em que ironiza o egocentrismo estufado dos artistas. Diferencia talento de personalidade – afinal, uns tem exibido obras talentosas, mas são pessoalmente discretos; enquanto outros se exibem, a si-mesmos, sem qualquer obra que mereça atenção.

Os únicos artistas que tenho conhecido, que são pessoalmente agradáveis, são péssimos artistas. Bons artistas existem simplesmente no que eles criam, e por consequência são perfeitamente desinteressantes no que eles são. Um grande poeta, um poeta realmente grande, é a mais não-lírica das criaturas. Mas os poetas medíocres são absolutamente fascinantes” (“The only artists I have ever know, who are personally delightful, are bad artists. Good artists exist simply in what they make, and consequently are perfectly uninteresting in what they are. A great poet, a really great poet, is the most unpoetical of all creatures. But inferior poets are absolutely fascinating” p. 41)

Sempre admirado, Harry vem comentar a 'precocidade' de Dorian Gray,

“As pessoas comuns esperavam até que a vida lhes revelasse os seus segredos, mas aos poucos, aos eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes que o véu se afastasse. Às vezes por efeito da arte, e principalmente da arte literária, que atua imediatamente com as paixões e o intelecto. Mas vez por outra uma personalidade complexa tomava lugar e assumia função da arte, era realmente, deste modo, uma verdadeira obra de arte, pois avida tem também obras-primas, assim como a poesia tem, ou a escultura, ou a pintura.”
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“[...] Ordinary people waited till life disclosed to them its secrets, but to the few, to the elect, the mysteries of life were revealed before the veil was drawn away. Sometimes this was the effect of art, and chiefly of the art of literature, which dealt immediately with the passions and the intellect. But now and then a complex personality took the place and assumed the office of art, was indeed, in its way, a real work of art, life having its elaborate masterpieces, just as poetry has, or sculpture, or painting.” p. 42

Dorian não ama Sibyl, mas uma idealização (quando a atriz desiste da 'atuação', ela perde o 'brilho' aos olhos dele). O 'amor' de Dorian Gray brota de um egoísmo – é a imagem que ele projeta sobre a jovem atriz.

Sabendo dos limites do 'amor', dos interesses do ser apaixonado, Harry continua a tecer seu elogio do individualismo. Aqui o ultra-individualismo, que resvala na indiferença com os interesses dos outros – pois a nossa liberdade acaba quando começa a do outro.

Mas para o nobre hedonista, “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo.” (“to be good is to be in harmony with one's self.” p. 57), sem se importar com interesses e bem-estar alheios. Afinal de contas, “Discórdia é ser forçado a estar em harmonia com os outros. A própria vida - eis o que importa.” (“Discord is to be forced to be in harmony with others. One's own life – that is the important thing.”)

E mais: “Além disso, o individualismo tem realmente objetivos elevados. A moralidade moderna consiste em se aceitar o padrão da época. Considero que um homem de cultura aceitar o padrão de sua época seja uma forma da mais alta imoralidade.” (“Besides, individualism has really the higher aim. Modern morality consists in accepting the standard of one's age. I consider that for any man of culture to accept the standard of his age is a form of the grossest immorality." p. 57)
E comentando as 'divisões de classes': “Imagino que a real tragédia dos pobres é que eles não podem fazer nada além de auto-renunciar. Os belos pecados, assim como as coisas belas, são o privilégio dos ricos.” (“I should fancy that the real tragedy of the poor is that they can afford nothing but self-denial. Beautiful sins, like beautiful things, are the privilege of the rich.” p. 58)

A questão do individualismo X coletivismo é bem evidente nesta Obra de Oscar Wilde, que também abordou a temática em seu livro “A Alma do Homem sob o Socialismo”, onde as ambições do indivíduo entram em contradição com o imperativo coletivo. A preocupação se localiza na dicotomia liberdade X controle. Há liberdade e espontaneidade no Socialismo? Ou em qualquer outro Coletivismo? No modelo estatista russo (da ex-URSS) não foi possível. Sempre houve disciplina e repressão.

O Leninismo seguiu um modelo de 'socialismo taylorista', preocupado com disciplina (dever + controle) e eficiência (ordem e produção), tudo sob um rígido aparato burocrata. O Estalinismo levou tudo ao paroxismo da repressão, militarização, coletivização estatista, terror. E tudo para criar produção industrial e uma nova classe de parasitas sociais.

Tampouco no Capitalismo tem-se liberdade. Condicionados por renda, status, local de moradia e trabalho, acesso aos meios culturais, os cidadãos se 'encaixam' em classes sociais, onde uns são mais privilegiados do que outros. Diferenças de renda criam diferenças de educação e acesso ao saber. Uns educados para o trabalho, outros para 'administrarem' ou 'vigiarem' os trabalhos alheios.

A Liberdade é um conceito metafísico muito complexo para abordá-lo aqui. Outros já o fizeram com mais êxito. Muitos procuram liberdade – não apenas poliica ou econômica. Temos libertários de esquerda – os anarquistas – e os libertários de direita – os conservadores do 'Dont Tread on Me' – onde ambos os grupos de libertários odeiam pura e simplesmente a existência do aparato estatal.

Para Oscar Wilde o interesse coletivo não deve abafar as aspirações individuais – sejam elas vaidade, egoísmo, talento artístico. Qualquer controle impede a espontaneidade e cria indivíduos padronizados, sem vivenciarem a exaltação poética ou o pensamento filosófico. O Socialismo seria aceitável e elogiável se mantivesse abertas as portas para as potencialidades dos indivíduos.
Voltemos ao enredo. Harry muito cinicamente sabe porque ele incomoda os hipócritas, “Eu represento para você todos os pecados que você nunca teve a coragem de cometer.” (“I represent to you all the sins you have never had the courage to commit.” p. 58) e assume a personalidade do transgressor – assim como a Era Vitoriana devia ver o próprio Wilde que dizia os epigramas mais 'desaforados' e passava impune (até que num deslize deu motivo para os hipócritas o crucificarem – o caso com o jovem nobre Alfred Douglas, em 1895.)

Desiludido com a 'musa' Sibyl, que não 'corresponde às expectativas', Dorian Gray percebe que não ama a atriz, mas uma idealização da heroína dramática quando ela era Julieta, ou Ophélia, ou Desdêmona, e é até cruel com a jovem, ao dizer que não mais a ama,

“'Sim,' ele gritou, 'você matou o meu amor. Você acostumava excitar a minha imaginação. Agora nem sequer anima a minha curiosidade. Você sequer tem qualquer efeito. Eu amava você porque você era maravilhosa, porque tinha gênio e intelecto, porque você compreendia os sonhos dos grandes poetas e dava forma e substância às sombras da arte. Você jogou tudo fora. Você é frívola e estúpida. [...] Você tirou o romance de minha vida. Quão pouco você entende de amor, se você diz que o amor prejudica a sua arte! Sem a sua arte, você é nada.”
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"Yes," he cried, "you have killed my love. You used to stir my imagination. Now you don't even stir my curiosity. You simply produce no effect. I loved you because you were marvellous, because you had genius and intellect, because you realised the dreams of great poets and gave shape and substance to the shadows of art. You have thrown it all away. You are shallow and stupid. [...] You have spoiled the romance of my life. How little you can know of love, if you say it mars your art! Without your art, you are nothing." pp. 63-64, c. 7

Dorian despreza o remorso de Sibyl, as lágrimas da amada de ontem agora são 'melodramáticas'. “Há sempre algo ridículo com as emoções das pessoas que deixamos de amar. Sibyl Vane parecia-lhe ser absurdamente melodramática. Suas lágrimas e soluços o entediavam.” (“There is always something ridiculous about the emotions of people whom one has ceased to love. Sibyl Vane seemed to him to be absurdly melodramatic. Her tears and sobs annoyed him.” p. 64)

De súbito, surge o primeiro traço de crueldade na pintura, para a perplexidade do modelo,

“Ele sentou-se e começou a pensar. De repente relampejou em sua mente o que ele havia dito no estúdio de Basil Hallward no dia em que a pintura fora terminada. Sim, ele se lembrava perfeitamente. Ele tivera um louco desejo para permanecer jovem, enquanto o retrato envelheceria; que a sua própria beleza ficaria intocada, e que a face na tela carregaria os fardos de suas paixões e pecados; que a imagem pintada seria marcada com as linhas do sofrer e do meditar, que ele se manteria em toda a delicada florescência e graciosidade de sua consciente mocidade. Certamente seu desejo não fora satisfeito? Tais coisas eram impossíveis. Parecia monstruoso sequer pensar nisso. E, ainda, havia o retrato diante dele, com o toque de crueldade ao redor dos lábios.”
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He threw himself into a chair and began to think. Suddenly there flashed across his mind what he had said in Basil Hallward's studio the day the picture had been finished. Yes, he remembered it perfectly. He had uttered a mad wish that he himself might remain young, and the portrait grow old; that his own beauty might be untarnished, and the face on the canvas bear the burden of his passions and his sins; that the painted image might be seared with the lines of suffering and thought, and that he might keep all the delicate bloom and loveliness of his then just conscious boyhood. Surely his wish had not been fulfilled? Such things were impossible. It seemed monstrous even to think of them. And, yet, there was the picture before him, with the touch of cruelty in the mouth. p. 66
É quando Dorian tem consciência da própria crueldade – e ele ainda nem sabe sobre o suicídio da jovem atriz – e quer ser um 'bom moço', mas ele não evita a influência iconoclasta de Lorde Henry, justamente quem vem anunciar a tragédia. Ele que até escreveu uma carta, e até pensava em se casar com a jovem atriz. Ele, afinal, se culpava – mesmo que cinicamente sabendo que “há certa volúpia em se auto-reprovar” (“there is a luxury in self-reproach”) ao golpear-se e reconhecer seu impulso cruel, “Pobre criança! Ele tinha sido egoísta e cruel com ela” (“Poor child! He had been selfish and cruel to her.”)




continua...






Leonardo de Magalhaens








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Um comentário:

  1. Bela resenha. Gostaria de te dar uma chave para compreender o romance. Oscar Wilde era grande admirador dos sonetos de Shakespeare (escreveu inclusive um conto sobre eles, "The Portrait of Mr W.H.") e o grande modelo para Dorian seria, em minha opinião, o "fair youth" dos sonetos de Shakespeare, outro garoto louro, jovem e inocente.
    Compare as palavras de Henry:
    "Time is jealous of you, and wars against your lilies and you roses. You will become sallow, and hollow-cheeked"
    Com os versos de Shakespeare:
    Devouring Time, (...) O, carve not with thy hours my love's fair brow,
    Nor draw no lines there with thine antique pen (soneto 19)
    ou:
    From fairest creatures we desire increase,
    That thereby beauty's rose might never die, (soneto 1)
    When forty winters shall besiege thy brow,
    And dig deep trenches in thy beauty's field,
    Thy youth's proud livery so gazed on now,
    Will be a tatter'd weed of small worth held (soneto 2)
    etc

    A diferença é que Shakespeare diz "Beleza não dura, então case e tenha filhos, que você viverá neles e também eternamente em meus versos" enquanto Wilde diz "Beleza não dura, carpe diem".

    Boa leitura!

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