segunda-feira, 17 de setembro de 2012

sobre 'Folhas de Relva' (P2) - de W. Whitman




sobreFolhas de Relva(Leaves of Grass, 1955 / ed.)
do poeta norte-americano Walt Whitman
(1819-1892)

Folhas poéticas enquanto vozes da pluralidade


Parte 2

No contato com o outro, o contato na leitura, o contato no toque, no corpo-a-corpo, realiza-se uma nova dimensão do estar-junto, com a percepção, a descoberta do ser sexual, o despontar da sexualidade consigo mesmo, com o outro, com a multidão de outros, todos amantes em potencial para o Eu ávido de conhecer, sentir, descobrir.

Whitman vem para proclamar uma sensualidade libertada de tabus, com a plena valorização do corpo, do próprio corpo, enquanto sagrado, e a igualdade de gênero, tanto homens quanto mulheres na santidade do sexo,

Eu sou o poeta do corpo e sou o poeta da alma,
As prazeres do Céu estão comigo e as dores do inferno estão comigo,
O primeiro eu planto e amplio em mim, o outro eu traduzo em novo idioma.

Eu sou o poeta da mulher tanto quanto do homem,
E digo que é tão grande ser uma mulher quanto um homem,
E digo que nada é maior que ser a mãe de homens.

I am the poet of the Body and I am the poet of the Soul,
The pleasures of heaven are with me and the pains of hell are with me,
The first I graft and increase upon myself, the latter I translate into a new tongue.

I am the poet of the woman the same as the man,
And I say it is as great to be a woman as to be a man,
And I say there is nothing greater than the mother of men.

(Song of Myself)

e

O cheiro destas axilas um aroma mais fino do que de orações.
Esta cabeça mais do que igrejas, bíblias e todas as crenças.
The scent of these arm-pits aroma finer than prayer,
This head more than churches, bibles, and all the creeds.

(Song of Myself)

também

É isto então um toque? Estremecendo-me até nova identidade,
Chamas e éter transtornando minhas veias,
Traiçoeiro pedaço de mim alcançando e povoando para ajudá-los,
Minha carne e sangue jogando raios para golpear o que é dificilmente
diferente de mim mesmo,
De todos os lados lúbricos provocadores entorpecendo meus membros,
Puxando o úbere de meu coração por seu fluido interno,
Comportando-se licenciosamente diante de mim, não aceitando recusa,

Is this then a touch? quivering me to a new identity,
Flames and ether making a rush for my veins,
Treacherous tip of me reaching and crowding to help them,
My flesh and blood playing out lightning to strike what is hardly different from myself,
On all sides prurient provokers stiffening my limbs,
Straining the udder of my heart for its withheld drip,
Behaving licentious toward me, taking no denial,

(Song of Myself)

A relação entre corpo e alma que no cristianismo é carregada de valorizações teológicas e morais, com a hierarquia superior do espiritual sobre o físico, numa relação platônica (segundo o filósofo grego que separava o mundo da percepção do mundo das Ideias), onde uma clara depreciação do corporal, do físico, do sensual. É contra tão desprezo ao físico que se volta a voz poética,

Eu tenho dito que a alma não é mais que o corpo,
E tenho dito que o corpo não é mais que a alma,
E nada, nem Deus, é maior para alguém do que este
alguém é para si mesmo,

I have said that the soul is not more than the body,
And I have said that the body is not more than the soul,
And nothing, not God, is greater to one than ones self is,

(Song of Myself)

e

O amor do corpo masculino ou do feminino passa da contao corpo em si mesmo passa da conta;
Que o do macho é perfeito, e que o da fêmea é perfeito.

The love of the Body of man or woman balks accountthe body itself balks account;
That of the male is perfect, and that of the female is perfect.

(I Sing the Body Electric)

e também

O corpo do homem é sagrado, e o corpo da mulher é sagrado;
Não importa quem seja, é sagrado;

The mans body is sacred, and the womans body is sacred;
No matter who it is, it is sacred ;

(I Sing the Body Electric)


Com a sacralidade do corpo liricamente restaurada, o poeta busca na sensualidade, seja idealizada ou alcançada, o complemento para suas próprias virtudes, onde o sexo não é menosprezo nem dominação, antes o encontro, a comunhão, e a compreensão, sem pudores e moralismos que apenas segmentam, afastam,

Uma mulher espera por mim, ela que contém tudo, nada
faltando,
Ainda tudo estaria faltando se sexo faltasse, ou se a mistura
do homem faltasse.

...

Sem pudor o homem que eu gosto sabe e confessa
a delícia de seu sexo,
Sem pudor a mulher que eu gosto conhece e confessa
a si mesma.

(A Woman waits for Me)


Até uma comunhão com indisfarçável voyeurismo em The Sleepers / Os Adormecidos, onde o eu-lírico vagueia desperto pela noite e observa os adormecidos em seus leitos na privacidade liricamente invadida, quando o poeta deseja ver, tocar, insinuar-se entre os outros Eus, que nada desconfiam de sua cobiça sensual, tal um vampiro de sensações em busca de cúmplices, a se identificar com os desejo alheios,

Eu sou ela que se adorna e ajeita seu cabelo em espera,
Meu jovial amante chega, e escurece.

Redobre-se e receba, trevas!
Receba-me e meu amante tambémnão não me deixará ir sem ele,
Dou voltas sobre ele, assim sobre a camaeu me entrego ao crepúsculo.

I am she who adornd herself and folded her hair expectantly,
My truant lover has come, and it is dark.

Double yourself and receive me, darkness!
Receive me and my lover toohe will not let me go without him.
I roll myself upon you, as upon a bedI resign myself to the dusk.


Particularmente a parteCálamo, emFolhas da Relva, se desenvolve a temática do amoracima de gêneros e preferências sexuais, sejam hetero ou homoafetivascomo uma interação que engrandece enquanto expressão, contato e compreensão, não apenas um desejo ou ato sexual em si mesmo. O estar-com-o-outro no momento de compreensão e cumplicidade é a verdadeira alegria da sexualidade.

Meu espírito passou compassivo e determinado ao redor da Terra,
E tenho procurado por iguais e amantes e encontrado-os prontos para mim
em todos os países,
Penso que uma relação divina harmonizou-me com eles.

My spirit has pass'd in compassion and determination around the whole earth,
I
have look'd for equals and lovers and found them ready for me in
     
all lands,
I
think some divine rapport has equalized me with them.

(Salute au monde!)

e

Neste momento ansioso e pensativo sentado aqui sozinho,
A mim parece que outros homens em outras terras
também ansiosos e pensativos,

A
mim parece que poderia eu observar cada um deles
na Alemanha, Itália, França, Espanha,
Ou mais longe, distante, na China, ou na Rússia ou Japão,
falando outros dialetos,
A mim parece como se eu pudesse conhecer estes homens e
pudesse me comunicar com eles tanto quanto aos homens
de minha terra,
Ó eu sei que deveríamos ser irmãos e amantes,
Eu sei que seria feliz junto a eles.

(This moment yearning and thoughtful sitting alone)

e também,

Nós dois garotos juntos agarrando-se,
Nunca deixando um ao outro,
Seguindo pra baixo e pra cima nas estradas,
para o norte e para o sul em excursões,
Desfrutando poder, ombros esticados, dedos apertados,
Armados e destemidos, comendo, bebendo, dormindo, amando,

(We two boys together clinging,)


A vozou as vozesque ressoa(m) nos poemas precisa(m) ecoar nas mentes e corações dos leitores, caso contrário são apenas palavras numa página, enchendo folhas num livro. A compreensão é um elemento essencial para se seguir em frente nas estradas e ilhas do mundo de Whitman, que está sempre em andanças, em viagens, servindo em plena guerra civil, peregrinando pelas paisagens norte-americanas, em busca de algo ou alguém,, ou de si mesmo, enquanto reescreve sua obraFolhas de Relva, aumentando-a a cada nova edição.

O mundo na estrada é uma realização do estar-livre assim como um convite a que os leitores se libertem e acompanhem o eu-lirico em viagens de descobertas, aprendizagens e auto-conhecimento, onde o ' na estrada' é o aprender constante no exercício de superação – inclusive superar a si mesmo,

A e de coração leve eu pego a estrada aberta
Saudável, livre, o mundo diante de mim,
A longa trilha diante de mim conduzindo-me
aonde quer que eu escolha.

De agora em diante eu não questiono sobre a boa-sorte,
eu mesmo sou a boa-sorte, ...

('Canção da Estrada Aberta' / Song of the Open Road)

mais,

Allons! Vamos! a estrada está diante de nós!
Ela está salvatenho a experimentadomeu próprios pés
a experimentaram bem -
não chegue atrasado!
Deixe o papel ficar não-escrito sobre a mesa, e o livro não-aberto
na prateleira!
Deixe as ferramentas ficarem na oficina! Deixe o dinheiro
continuar não-acumulado!
Deixe a escola ficar lá! Não se importe com o grito do professor!
Deixe o pregador pregar no púlpito! Deixa o advogado a defender causa
na corte, e o juiz expor a lei.

Camarada, dou uma mãozinha a você!
Dou a você meu amor mais precioso que o dinheiro,
Dou a você eu mesmo antes de pregações ou leis;
Você me dará você mesmo/a? Você virá viajar comigo?
Deveremos nos juntar um ao outro enquanto nós vivermos?

('Canção da Estrada Aberta' / Song of the Open Road)


Sim, a estrada está aberta, disponível, entregue, à espera dos passos ansiosos do viajante, do andarilho de mente poética em sintonia com tudo e todos, do poeta e do anunciador, mas é uma peregrinação incomunicável, pois cada leitor deve fazer sua viagem, ninguém pode seguir a trilha em lugar de outro, pois as experiências de conhecimento e superação são individuais, do 'conhece-te a ti mesmo' socrático,

Não eu, não outro alguém pode viajar esta estrada por você,
Você deve viajar por você mesmo,

Não é distante, está ao alcance,
Talvez você está nela desde que você nasceu e não sabia,
Talvez esteja em todo lugar sobre água e terra.

Not I, not any one else can travel that road for you,
You must travel it for yourself.

It is not far, it is within reach,
Perhaps you have been on it since you were born and did not know,
Perhaps it is everywhere on water and on land.

(Song of Myself)


Whitman, enquanto poeta das multidões, fala em coletivo mas cada indivíduo vai se identificar ali dentro do universo de folhas poéticas como se recebessem cartas com seus nomes por extenso nos envelopes. A voz messiânica quer se expressar para cada um, não importa sexo, idade, classe social, nacionalidade, nada destas segmentações que servem para estatísticas que instrumentalizam tais segmentos, uma vez separadas as pessoas em grupos de amostragens, sejam consumidores em potencial, como público-alvo, sejam selecionados eleitores para eleições.

O poeta sabe intimamente que a obra é tal um cultivo, uma plantação que ele rega e deixa brotar a cada diatanto que escreveu poemas para novas edições do livroLeaves of Grassdurante 35 anospara que outros possam colher convenientemente uma vez que o artista pode passar desapercebido em sua época (afinal, quantos poetas não nasceram póstumos?), e ao lerem possam fazer renascer os versos derramados em cada folha, eis o legado poético do grande bardo norte-americano.


Nenhuma máquina para poupar trabalho,
Nenhuma descoberta eu fiz,
Nem deixarei após mim algum rico legado para
hospital ou biblioteca,
Nem lembrança de algum ato de coragem pela América,
Nem sucesso literário ou intelectual; nem livro para estantes,
Mas umas poucas odes vibrando no ar eu deixo,
para os camaradas e amantes.

(No labor-saving machine)

e

Eu me planto na lama para crescer, com a relva que eu amo,
quando me quiseres novamente, é me procurarem sob
a sola de seus sapatos.

Dificilmente saberás que quem eu sou, o que quero dizer,
mas serei saúde para vocês
dando ao vosso sangue pureza e frescor.

Se não me encontrarem logo, paciência,
se eu não estiver num lugar, procurem-me outro,
em algum lugar, estarei à espera.
(Song of Myself)



(*)aqui todas as citações de poemas traduzidas por LdeM



ago/12


Leonardo de Magalhaens





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'Saudação a Walt Whitman' de Fernando Pessoa



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