sábado, 5 de fevereiro de 2011

sobre 'As Flores do Mal' - de Baudelaire (1:2)





obras sobre Esteticismo / Simbolismo
Psiquismo Noir

Flores do Mal – Charles Baudelaire
Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde
Orlando – Virginia Woolf


sobre As Flores do Mal (Les Fleurs du Mal, 1857)
obra poética do francês
Charles Baudelaire (1821-1867)


A lírica dissonante da modernidade


As características marcantes da Poética moderna, arregimentada de modo a chocar o leitor, a alfinetar o público com testemunhos e denúncias, ao mesmo tempo em que exibe os artefatos da própria estética – ou anti-estética, o modus operandi de uma tentativa de comunicar ao mesmo tempo em que se conserva numa espécie de 'torre de marfim” do esteticismo, tudo isso está presente nos poetas malditos do pós-Romantismo e do Simbolismo.

Ao mesmo tempo em que apontam o dedo para o público leitor, os poetas se apegam ao slogan “Arte pela Arte” (l'Art pour l'Art) numa exploração dos recursos da linguagem, da fala e da escrita – não apenas 'líricas' – como modo de causar um determinado efeito sobre quem se depara com o 'eu-lírico', geralmente incompreendido (e incompreensível) e atormentado por culpas reais ou fictícias.

O Poeta, o Literato se percebe rotulado enquanto estranho, excêntrico, maldito, e aceita tal rótulo como uma benção-maldição por sua atuação artística, passa a considerar como parte do 'self' a aura de deslocado, de rejeitado, de rebelde, e introjeta o desprezo alheio numa parte de si-mesmo,o que gera Arte, mas também duplicidade, auto-desprezo, esquizofrenia.

Baudelaire, autor e personagem de si-mesmo, junto com o jovem sempre belo Dorian Gray, e o duplo-sexuado, ou sexualmente ambíguo, Orlando são ícones da busca do 'ideal estético', do prazer artístico e erótico, não medindo as consequências. Os nobres que descem até os subúrbios, até as zonas de prostituição, onde passam anônimos e impunes, a explorarem corpos e misérias alheios. Os artistas que se abrigam em 'torres de marfins' ou 'paraísos artificiais' imersos na alienação do que seja a realidade social.

Eles buscam prazeres, uma ânsia de diversão/alienação, mas devido ao crescimento da auto-consciência somente encontram um prazer efêmero, e seguido de culpa, remorso e auto-punição.



Abordamos o tema da duplicidade e esquizofrenia no artigo sobre “O Médico e o Monstro” (Stevenson) no blog sobre literatura, eis o link http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html


No Prefácio (um trecho de 'Baudelaire') o filósofo francês Jean-Paul Sartre relaciona a obra poética com o homem poeta, o quanto a obra reflete as condições existenciais do autor. A duplicidade mental de Baudelaire ao viver e descrever o próprio viver – o homem que se vê vivendo, o contemplar a si-mesmo, de modo narcisista e autopunitivo.

“O esforço de Baudelaire será para levar ao extremo este esboço abortado de dualidade que é a consciência reflexiva. Se ele é lúcido, originalmente, não é pra prestar contas exatas de suas faltas, é para ser dois. E se ele quer ser dois é para realizar nessa dupla a posse final do Eu pelo Eu. Ele exaspera assim a sua lucidez: ele não será sua própria testemunha, ele vai tentar tornar-se seu próprio carrasco: 'carrasco de si-mesmo'. Pois a tortura fez nascer uma dupla estreitamente unida na qual o carrasco se apropria da vítima. Desde que ele não tenha sucesso em si ver, ao memos se procura como o punhal procura a ferida, na esperança de alcançar essas 'solidões profundas' que constituem sua verdadeira natureza.

Eu sou a ferida e o punhal! /.. / E a vítima e o carrasco”


“L'effort de Baudelaire va être pour pousser à l'extreme cette exquisse avortée de dualité qu'est la conscience réflexive. S'il est lucide, originellement, ce n'est pas pour se rendre un compte exact de ses fautes, c'est pour être deux. Et s'il veut être deux c'est pour réaliser dans ce couple la possession finale du Moi par le Moi. Il exaspéra donc sa lucidité: il n'était que son propre témoin, il va tenter de devenir son propre bourreau: l'Héautontimorouménos. Car la torture fait naître un couple étroitement uni dans lequel le bourreau s'approprie la victime. Puisqu'il n'a pas réussi à se voir, du moins se fouillera-t-il comme le couteau fouille la plaie, dans l'espoir d'atteindre ces 'solitudes profondes' qui constituent sa vraie nature.

Je suis la plaie et le couteau!
...

Et la victime et le bourreau!”


E depois conclui que há todo um 'projeto' que o Poeta perseguia: o de ser testemunha de si-mesmo. “Baudelaire, eis o homem que escolheu se ver como se fosse um outro: sua vida não é mais que a história deste fracasso.” (“Baudelaire, c'est l'homme qui a choisi de se voir comme s'il était un autre: sa vie n'est que l'histoire de cet échec.”) Há uma duplicidade criada por uma alteridade interiorizada – o Outro dentro do Eu – não apenas uma consciência do Outro em relação ao Eu.

A duplicidade de Baudelaire, para outros críticos, seria relacionada ao lado pessoal-espiritual, uma inclinação para os prazeres carnais, e um remorso de fundo religioso, platônico. Assim a idealização da mulher, ao mesmo tempo em que descreve a sedução das prostitutas. Há uma figura angélica em confronto com figuras diabólicas. A Mulher sublime dos ultra-românticos elevada assim das mulheres cotidianas, acessíveis e desfrutáveis. O Poeta quer alcançar a Mulher sublime, mas enquanto isso se diverte (até o remorso!) com as mulheres disponíveis no mercado do erotismo.

O Poeta é um albatroz, é um Ícaro, está pairando sobre a mediocridade do mundo, mas ao mesmo tempo está ciente deste mundo – impossível se isolar em qualquer 'torre de marfim'. Há um desejo constante de misturar-se – ainda que solitariamente – às multidões urbanas. Vê as mulheres do cotidiano – desejando e se recusando – e idealiza uma Mulher que está além do toque. Assim Baudelaire amava com afeto platônico uma madame nobre, a qual chamavam Presidenta, e ao mesmo tempo mantinha um vida erótica com uma vulgar Jeanne Duval.


Além da esfera pessoal, nos dediquemos aqui à obra poética. Há uma duplicidade igualmente. Há uma desejo de construir uma poesia de alto nível, em sonoridade e estética formal. Há um desejo de desmascarar as faces hediondas da grande cidade. Há uma estética (a busca do Belo) ao mesmo tempo que séries de imagens grotescas (a presença do feio).


No poema “O Albatroz” (L'Albatros) o Poeta é visto como um ser que, acostumado às alturas, tem dificuldades em andar no chão, em plena vida cotidiana. Se ele é um príncipe no alto de sua 'torre de marfim', do ideal estético, ao chegar ao rés-do-chão ele encontra uma vida de tumulto, onde é um deslocado, um 'gauche'. (1)

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


(“O Poeta é semelhante ao príncipe das nuvens / Que ousa a tormenta e se ri do arqueiro; / Exilado sobre o solo meio às vaias, / Suas asas de gigante lhe impedem de andar.” trad. LdeM)


ou de 'asas quebradas' por ter ousado abraçar as nuvens tal um Ícaro em pícaros de megalomania, de voar até o sol, segundo nos diz a primeira estrofe de “Os Lamentos de um Ícaro” (Les Plaintes d'un Icare)

Les amants des prostituées
Sont heureux, dispos et repus;
Quant à moi, mes bras sont rompus
Pour avoir étreint des nuées.

(“Os amantes das prostituídas / São felizes, dispostos e saciados; / Quanto a mim, meus braços estão quebrados / Por ter abraçado as nuvens.” trad. LdeM)



Diferente do 'beneditino' do poema do parnasiano Olavo Bilac, o artista moderno para Baudelaire é aquele que mergulha nas multidões – tal “o homem na multidão” de um conto de Edgar Allan Poe. Assim, Baudelaire visualiza o pintor Guys a adentrar os torvelinos da multidão, a 'coletar' imagens sensasoriais para a criação de seus quadros. Ele vivencia o tumulto e depois – então no recolhimento do ateliê – reconstrói de forma artística tudo aquilo que vivenciou.

Eis um trecho do ensaio de Baudelaire, “O Pintor da Vida Moderna” (Le peintre de la vie moderne). O artista primeiramente vivencia, se farta de vida plena, se envolve com multidões e mantendo sua individualidade é capaz de percebermos pormenores e emoções que aos demais são inacessíveis ou incompreensíveis. O artista não é apenas aquele que tem capacidade VER o mundo, o cotidiano ao redor, mas senti-lo, absorver e gravar a ponto de testemunhar, de reproduzi-lo, de outro modo, na forma de obra de arte. Seja pintura, bordado, texto, palavra, canção, monumentos.

Vivencia, depois se recolhe para criar, com pressa, pois tem medo de que a inspiração acabe, que as imagens dilatadas nas pupilas se evanesçam no dia seguinte, que os êxtases não passem de lembranças sem foco,


“É o medo de não ser suficientemente rápido, de deixar escapar o fantasma antes que a síntese seja extraída; é este terrível medo que toma posse todos os grandes artistas e faz com que desejem tão ardentemente apropriar-se de todos os meios de expressão, para que jamais as ordens de espírito sejam alteradas pelas hesitações da mão; para que finalmente a execução ideal, torne-se assim inconsciente, assim fluente tanto quanto a digestão para o cérebro do homem que jantou bem. O Sr. G. [Guys] começa pelas ligeiras à lápis, que ao menos marcam o lugar que os objetos devem ocupar no espaço. Os planos principais são indicados em seguida pelas tintas lavadas, massas vagamente, ligeiramente coloridas de início, mas retomadas mais tarde e carregadas de cores mais intensas. Ao fim, o contorno dos objetos é definitivamente delimitado pelas tintas. [...]”

.
C’est la peur de n’aller pas assez vite, de laisser échapper le fantôme avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie ; c’est cette terrible peur qui possède tous les grands artistes et qui leur fait désirer si ardemment de s’approprier tous les moyens d’expression, pour que jamais les ordres de l’esprit ne soient altérés par les hésitations de la main ; pour que finalement l’exécution, l’exécution idéale, devienne aussi inconsciente, aussi coulante que l’est la digestion pour le cerveau de l’homme bien portant qui a dîné. M. G. commence par de légères indications au crayon, qui ne marquent guère que la place que les objets doivent tenir dans l’espace. Les plans principaux sont indiqués ensuite par des teintes au lavis, des masses vaguement, légèrement colorées d’abord, mais reprises plus tard et chargées successivement de couleurs plus intenses. Au dernier moment, le contour des objets est définitivement cerné par de l’encre.


O artista que em solidão recria o mundo – ou o observado no/ influenciado pelo mundo – num ritual consigo mesmo, uma luta a qual a obra de arte não deve exibir, um esboço que apenas se subentende, mas vem apresentar-se como fruto de uma inspiração (o mesmo que espera Bilac ao aconselhar ao poeta que o 'esforço' não se mostre – não haveria nenhuma beleza nos rascunhos, nas emendas? Os sonetos de Byron com centenas de esboços com dezenas de variantes?...)

links para vida e obra do pintor Constantin Guys
http://fr.wikipedia.org/wiki/Constantin_Guys
http://www.artcyclopedia.com/artists/guys_constantin.html
http://www.dandyism.net/?p=138
http://www.dandyism.net/?p=138


Entre o ideal de vida lírico e a vida cotidiana na grande metrópole, entre o idealizado e o vivenciado surge um hiato, um descompasso. A forma do texto reflete uma técnica, uma estética, uma criação, enquanto o mundo aí-está, concreto, ao redor, anti-lírico, demasiadamente prosaico. Há um hiato entre forma e conteúdo, entre texto e contexto, uma bela forma, com toda a harmonia possível em rimas e métricas, se mantém para falar de um mundo feio e disforme.

Este descompasso cria uma dissonância que é apontada como relevante nos ensaios do crítico alemão Hugo Friedrich, principalmente a obra 'Estrutura da Lírica Moderna', onde é ressaltada toda uma “dramaticidade agressiva do poetar moderno” que se impõe quando “gera um efeito de choque, cuja vítima é o leitor”; a principiar com a poesia em “categorias negativas” nos poetas mauditos (poètes maudits) e principalmente em Lautréamont, onde o leitor percebe “angústias, confusões, degradações, trejeitos, domínio da exceção e do extraordinário, obscuridade, fantasia ardente,o escuro e o sombrio, dilaceração em opostos extremos, inclinação ao Nada.” (p. 21)

As categorias negativas são usadas para 'definir' a poesia dos modernos, na qual há uma dissonância entre o eu e o mundo, o ideal individual e o Zeitgeist [espírito de época] coletivo, no ágon [embate estético] entre autor e leitores, no que se notam os seguintes aspectos de

desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver astigmático, estranhamento...” (p. 22)

Assim pelo 'negativo' os conhecerei! O que há de desencontro entre que espera o leitor (as expectativas) e a carga poética (o poema em si) é o que cria este desconforto que caracteriza a obra poética dos 'poètes maudits' – o que esperamos de lírico não há, o que rejeitamos como lírico é o que transborda, mas numa linguagem que recria o lírico com os elementos do não-lírico!

Este é óbvio em Lautréamont, onde o horror está presente em poemas em prosa cheios de uma voz lírica ao contrário – mostra-se com imagens negativas de si mesma, em auto-desprezo, em auto-depreciação, mas sem perder a voz lírica (afinal, é um 'eu lírico') que revela o caráter poético do que em outra linguagem seria meramente prosaico. O doentio está carregado de 'beletrismo' assim como o beletrismo pode ser doentio...


um trecho de Chant de Maldoror
je suis sale” (no Canto 4)
http://www.florilege.free.fr/florilege/lautream/chantqua.htm

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=jpICPB4Dtpo

obra poética e prosa de Lautréamont
na Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Auteur:Comte_de_Lautréamont



O excesso vem se juntar ao incompleto, o grotesco apresenta-se ao lado do sublime, todo um mundo de opostos está presente no desarmônico do lirismo moderno, onde os sentidos estão sempre superexcitados por sensações – a poesia procura as 'correspondências' na forma de sinestesias – e por entorpecimentos – o uso de droga (seja vinho ou ópio, uísque ou cocaína) por literatos não é sem motivo.


La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.
.
(“A Natureza é um templo onde vivos pilares / Deixam às vezes sair confusas palavras; / O Homem atravessa florestas de símbolos / Que o observam com olhares familiares.” Trad. LdeM)

O belo ao lado do feio cria não apenas uma dissonância, mas também uma espécie de provocação irônica, de um 'humor negro'. O poeta rebelado contra o mundo e diante de si-mesmo refletido no espelho. Ele é o Rebelde, é o Anjo caído, que continua a olhar para as alturas sublimes, o Albatroz que segue trôpego a sofrer as zombarias. Vejamos o poema “O Rebelde” ( Le Rebelle),

Tel est l'Amour! Avant que ton coeur ne se blase,
À la gloire de Dieu rallume ton extase;
C'est la Volupté vraie aux durables appas!»

Et l'Ange, châtiant autant, ma foi! qu'il aime,
De ses poings de géant torture l'anathème;
Mais le damné répond toujours: «Je ne veux pas!»

.
(“Assim o Amor! Antes que teu peito não se arruine, / À glória de Deus ilumine teu êxtase; / É a volúpia real aos prazeres eternos!” // E o Anjo, cantando também, creia! Que ama / Cujos punhos de gigante tortura o infiel; / Mas o condenado responde sempre: “Não quero!”” trad. LdeM)


A figura do Amor é central na lírica – vide as baladas e canções trovadorescas – e não é poupado na poética baudelaireana com um tom dúbio e irônico. O Amor é algo que o Poeta almeja, mas ao mesmo tempo desconfia que tal Graal realmente exista para um simples mortal.

Seja o Amor sentimento ou idealização (corporificada na figura do deus grego Amor ou Cupido), segundo percebemos no poema O Amor e o Crânio (L'Amour et le Crâne, CXVII)


L'Amour est assis sur le crâne
De l'Humanité,
Et sur ce trône le profane,
Au rire effronté,

...

J'entends le crâne à chaque bulle
Prier et gémir:
—«Ce jeu féroce et ridicule,
Quand doit-il finir?
.
(“O Amor se assenta sobre o crânio / Da Humanidade, / E sobre esse trono o profana, / Ao rir descarado, / [...] Ouço o crânio à cada bolha / Rezar e gemer: / -'Esse jogo ridículo e feroz , / quando deve findar?'” trad. LdeM)


e também o poema A Fonte de Sangue (La Fontaine de Sang),

J'ai demandé souvent à des vins captieux
D'endormir pour un jour la terreur qui me mine;
Le vin rend l'oeil plus clair et l'oreille plus fine!

J'ai cherché dans l'amour un sommeil oublieux;
Mais l'amour n'est pour moi qu'un matelas d'aiguilles
Fait pour donner à boire à ces cruelles filles!


(“Eu roguei ao vinho sedutor muitas vezes / Que ao menos por um dia entorpecesse o terror que me arruina; / O vinho deixa o olhar mais claro e o ouvido mais apurado! // Eu procurei no amor um sono de esquecimento; / Mas o amor é nada além de um colchão de agulhas / Feito para embebedar estas putas cruéis!” Trad. LdeM)



Baudelaire (em “O pintor da vida moderna”) diz que muitos amam tanto a beleza geral que chegam a esquecer da “beleza particular, a beleza de circunstância e o traço de costumes”, pois acabam por submeter o Belo a um Ideal. E assim não testemunham (e não descrevem) o mundo real com seus traços de belo e feio, sublime e grotesco, testemunho que deveria ser o esforço do 'artista moderno', ao criar um 'mundo poético'.

Que mundo poético? Um mundo ideal a partir do mundo cotidiano, do tocável, do grotesco. Os opostos se atraem e se completam. Vejamos. O poema “Une Charogne” por mais que tematize o horror da decomposição, da putrefação dos seres, tem toda uma estrutura métrica e de rimas, em suas doze estrofes de 4 versos cada, em rimas alternadas (ABAB), com versos de 12 sílabas alternados com versos de 8 sílabas. Eis o belo formal e o grotesco temático – assim os poemas de Rimbaud, Poe, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos.

Haroldo de Campos, poeta e tradutor, lembra o quanto a 'revolução baudelaireana' ocorre dentro de uma “estrofação regular e, em particular, da forma fixa do soneto, cuja beauté pythagorique fascinava o poeta.” e lembra o esforço de leitura feita pelo pensador judeu-alemão Walter Benjamin, que julgou o poeta francês como um “lírico na era do capitalismo avançado”, ao analisar as temáticas presentes nas “Flores do Mal”.

Aí estão os temas do flâneur, do esgrimista, do poeta na multidão, da degradação da grande cidade, do poeta-Caim, “apache” e trapeiro; os motivos da caducidade, da ruína e da “mímeses da morte”, rastreados em poemas onde “a modernidade heróica revela-se como tragédia em que o papel do herói está disponível.”

Campos ainda aponta os descompassos entre o lírico e o descritivo, a linguagem e o testemunho, onde o poeta está na transição (e em tensão!) entre o mundo poético e a realidade prosaica.

“O traço estilístico revolucionário desses poemas estaria no dispositivo de choque engendrado pelo uso da palavra prosaica e urbana, pela “discrepância entre a imagem e a coisa” (Gide), pelo poeano “cálculo de efeitos”, enfim, pelo desmascaramento crítico, que indigita a “sensação da modernidade” como perda da “auréola” do poeta, “dissolução da aura na vivência do choque”. Assim, o vocabulário lírico usual se confronta com inusitadas citações “alegóricas”, que irrompem no texto à maneira de um “ato de violência”.”

A leitura de Benjamin está no longo artigo “Charles Baudelaire – Um Lírico no auge do Capitalismo”, do qual fizemos uma leitura na tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, nas “Obras Escolhidas” editads pela Brasiliense. O artigo é um preâmbulo para as traduções de poemas da seção “Quadros parisienses” (Tableaux Parisiens) de “Flores do Mal”, traduções que são verdadeiras tentativas do pensador alemão em 'captar' e 'verter' o sentido e a sonoridade das peças poéticas do poeta francês.


A figura do Flâneur


O flâneur é aquele que percorre as ruas, adentra as passagens – as galerias – entre as ruas movimentadas da Paris meados do século 19, é aquele que se permite observar as multidões, o tumulto da grande cidade moderna, ali enquanto testemunha participante da diversidade da vida social.

“A última estrofe - “Essa boêmia – ela é tudo para mim” - inclui despreocupadamente essa criatura na irmandade da boêmia. Baudelaire sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira; pensa que é para olhar, mas, na verdade, já é para procurar um comprador.” (p. 30)

Defendo sua solidão, mas no meio da multidão, o flâneur em suas andanças sempre recolhe as imagens múltiplas de Outros, que são digeridos na auto-imagem, sugando belezas de vitrines e madames, enquanto tece poemas para si-mesmo, ou esboça pinturas mentais que depois verterá nas telas.

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes.” (p. 35)


Observador das multidões, o flâneur é comparado ao 'homem na multidão' do célebre conto de Edgar Allan Poe, onde o homem solitário experimenta o abrigo da multidão, o anonimato, a dissolução no coletivo – mas sente-se ainda solitário, sozinho meio a tanta gente. Por que a influência sobre Baudelaire? Isto porque “Baudelaire amava a solidão, mas a queria na multidão.”

A famosa novela (conto) de Poe, “O Homem da Multidão”, é algo como a radiografia de um romance policial. Nele, o invólucro que representa o crime foi suprimido; permanece a simples armadura: o perseguidor, a multidão, um desconhecido que estabelece seu trajeto através da Londres de modo a ficar sempre no seu centro. Esse desconhecido é o flâneur. Também Baudelaire o entende assim quando, em seu ensaio sobre Guys, denominou o flâneur “o homem das multidões” [em “O Pintor da Vida Moderna”]. Porém a descrição que Poe faz dessa figura está livre da conivência que Baudelaire lhe empresta. Para Poe, o flâneur é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Por isso busca a multidão; e não é preciso ir muito longe para achar a razão por que se esconde nela. A diferença entre o anti-social e o flâneur é deliberadamente apagada em Poe. [...]” (p. 45)



para ler online
The Man of the Crowd
http://www.online-literature.com/poe/2198/


O olhar daquele que se perde e se encontra em andanças, no mundo que transborda chamativos e seduções, em peregrinação em círculos por ruas e vielas, e ladeiras e avenidas, meditando passo a passo sobre as passagens em Paris, as galerias onde os transeuntes podiam 'flanar' sem preocupar-se com carruagens, no trânsito que já tumultuava as cidades.

Ainda se apreciavam as galerias, onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos que não admitem o pedestre como concorrente. Havia o transeunte, que se enfia na multidão, ms havia também o flâneur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas. Protesta igualmente contra a sua industriosidade. [...]” (p. 50)


O desafio é justamente manter a individualidade meio ao coletivo. Até porque a individualidade é uma estorinha que contamos para nós mesmos. Criamos categorias metafísicas para explicar o mundo. Indivíduo é uma categoria por demais histórica, trata-se de um 'construto social'. O indivíduo não é uma criação de si-mesmo, é dado pelo coletivo, em relação ao coletivo. Observa-se que os artistas são os 'flutuantes' que resistem mais tempo em abrir mão de um modo peculiar – digamos, individual – de ver o mundo.

Na multidão, o ser anônimo se conserva ao sentir-se numa 'solidão' povoada, do modo que exerça o ideal de 'eu que não sou os outros', com a consciência de ser UM na multidão, como esclarecem outras citações de Benjamin,

“A multidão não é apenas o mais novo refúgio do proscrito; é também o mais novo entorpecente do abandonado. O flâneur é um abandonado na multidão.” (p. 51)

“Para o flâneur, um véu cobre essa imagem [a cidade enquanto inferno]. A masa é esse véu; ela ondeia nos 'franzidos meandros das velhas capitais.” Faz com que o pavoroso atue sobre ele como um encantamento. Só quando esse véu se rasga e mostra ao flâneur 'uma dessas praças populosas que, durante os combates, ficam vazias de gente' – só então, também ele vê a cidade sem disfarces.
” (p. 56)


Um dos três poemas de Quadros Parisienses [Tableaux Parisiens] dedicados a Victor Hugo começa com uma invocação à cidade superpovoada – 'Cidade a fervilhar, cheia de sonhos...'; outro persegue as velhinhas no 'ébrio cenário' da cidade através da multidão. A multidão é um objeto novo na poesia lírica. [...]” (p. 56)


Diferente dos demais transeuntes, o flâneur é aquele auto-consciente que mantém a individualidade meio à multidão. Um ser consciente de si mesmo e do turbilhão da cidade – até que ponto o flâneur é o auto-retrato do poeta Baudelaire? Afinal, ele se eleva sobre a multidão para refletir sobre a mesma. Está li enquanto observador, não observado; está li enquanto um eu-lírico em contraponto à massa, um flâneur em contraste com o basbaque.

Capaz de percorrer a 'massa' sem deixar de ser um EU pensante, o poeta-flâneur tem total consciência do quanto a poesia sofreria uma resistência, e o quanto seria uma resistência em relação ao cotidiano. Como falar liricamente do mundo, como ser lírico diante das imagens de pobreza, miséria, prostituição, ou seja, diante do 'lixo social'? Transformar o 'lixo' em matéria poética reciclada.

Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um tipo vulgar. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou a Baudelaire tão assiduamente.” (p. 78)


Aqui Benjamin faz uma referêndia ao poema “O vinho dos trapeiros” (Le Vin des Chiffonniers)

Se dressent devant eux, solennelle magie!
Et dans l'étourdissante et lumineuse orgie
Des clairons, du soleil, des cris et du tambour,
Ils apportent la gloire au peuple ivre d'amour!

C'est ainsi qu'à travers l'Humanité frivole
Le vin roule de l'or, éblouissant Pactole;
Par le gosier de l'homme il chante ses exploits
Et règne par ses dons ainsi que les vrais rois.

Pour noyer la rancoeur et bercer l'indolence
De tous ces vieux maudits qui meurent en silence,
Dieu, touché de remords, avait fait le sommeil;
L'Homme ajouta le Vin, fils sacré du Soleil!
.

(“Se ergue diante deles, solene magia! / E numa louca e luzente orgia / De clarões, sol, gritos e tambor, / Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor! // É assim que através da Humanidade frívola / O vinho flui do ouro, ofuscante Pactole; / Nas goelas dos homens ele canta seus males / E reina pelos dons assim tal qual os verdadeiros reis. // Para entorpecer o rancor e acariciar a indolência / De todos esses velhos malditos que morrem em silêncio, / Deus, tocado de remorso, tem dado o sono; / O Homem ajunta o vinho, filho sagrado do Sol!” trad. LdeM)


A cidade oferece suas figuras graciosas e grotescas, e o poeta tal um trapeiro, tal um catador-de-papel, um agente da reciclagem, vai recolhendo os brilhos e destroços para compor sua arte em palavras-imagens. As imagens da cidade se fundem em versos líricos e personagens grotescos – mendigos, trapeiros, velhinhas, cegos, prostitutas, velhos burgueses – que são assimétricos entre si, tal qual a 'divisão social do trabalho'. Que tenha olhos de ver, que veja!


Contemple-les, mon âme; ils sont vraiment affreux!
Pareils aux mannequins; vaguement ridicules;
Terribles, singuliers comme les somnambules;
Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux.
...

Ils traversent ainsi le noir illimité,
Ce frère du silence éternel. Ô cité!
Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles,

Eprise du plaisir jusqu'à l'atrocité,
Vois! je me traîne aussi! mais, plus qu'eux hébété,
Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?

.
(“Contempla-os, minh'alma; eles são mesmo feiosos! / Iguais aos manequins; vagamente ridículos; / Terríveis, singulares, como os sonâmbulos; Lançando não sei onde seus globos tenebrosos. [...] Eles atravessam assim o escuro ilimitado, / Esse irmão do silêncio eterno. Ó cidade! / Enquanto ao redor de nós cantas, ris e uivas, // Louca do prazer até a atrocidade, / Veja! Eu me arrasto assim! Mas, mais do que eles entorpecido, / eu digo: Que buscam ele no Céu, esses cegos?” trad. LdeM)


As figuras do cegos (no poema “Os cegos / Les Aveugles”) são os deficientes visuais ou são os cidadãos que seguem inconscientes pelas ruas? Onde o denotativo e onde o conotativo, onde o real e onde o simbólico neste poema?


A parte de Flores do Mal que mais seduziu Benjamin foi certamente Tableaux Parisiens, os Quadros Parisienses, onde Baudelaire pretendia pintar na forma de versos belos e grotescos as imagens da 'vida moderna' na cidade grande.

São os poemas numerados de LXXXVI (Paysage) a CIII (Le Crépuscule du Matin), com destaques para os poemas “Le soleil”, “Une Mendiante rousse”, “Les Aveugles”, “A Une Passant”, e “Rêve Parisien”.

O poema Sonho Parisiense é uma obra-prima. É dedicado ao 'pintor da vida moderna' Constantin Guys, é pretende fazer uma tela, um mosaico de imagens em forma de versos, de palavras. Há uma paisagem a ser descrita e os tons podem ser claros ou sombrios, as pinceladas podem ser mais febris ou melancólicas – dependem do 'ânimo' do artista (o holandês Van Gogh que o diga!) ou do inconsciente nebuloso que engendra pesadelos (as gravuras de um Beardsley nos demonstram!)


link para pinturas de Van Gogh
http://www.vangoghgallery.com/
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link para gravuras de Beardsley
http://beardsley.artpassions.net/
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A descrição poética de paisagem é 'contaminada' pela presença da vida prosaica – o mundo tal como ele é – assim como uma pintura de uma rosa tem que incluir os espinhos (“every rose has its thorn”, como se diz). A beleza da maquilagem, a beleza da artificialidade – assim como admiramos hoje os shopping centers, regulares e assépticos, não mais os 'mercados centrais'.

Et, peintre fier de mon génie,
Je savourais dans mon tableau
L'enivrante monotonie
Du métal, du marbre et de l'eau.

...

Non d'arbres, mais de colonnades
Les étangs dormants s'entouraient
Où de gigantesques naïades,
Comme des femmes, se miraient.

...

Et tout, même la couleur noire,
Semblait fourbi, clair, irisé;
Le liquide enchâssait sa gloire
Dans le rayon cristallisé.

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(“E, pintor altivo de meu gênio, / Degustaria em meu quadro / A inebriante monotonia / Do metal, mármore e água. // Nada de árvores, mas colunas / Cercando os lagos dormentes, / Onde gigantescas naiádes, / Como mulheres se observam. // E tudo, mesmo a cor negra, / Parecia polido, claro, radiado; / O líquido inseria sua glória / No raio cristalizado.” trad. LdeM)


Mas o poeta inebriado pela cidade – a apoteose do artificial – vem a encontrar-se recluso em seu casebre, sua miséria. O mundo não foi criado para ele...

En rouvrant mes yeux pleins de flamme
J'ai vu l'horreur de mon taudis,
Et senti, rentrant dans mon âme,
La pointe des soucis maudits;

La pendule aux accents funèbres
Sonnait brutalement midi,
Et le ciel versait des ténèbres
Sur le triste monde engourdi.

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(“Reabrindo meus olhos em chamas / Eu vi o horror de meu casebre / E senti, adentrando minha alma / A ponta de aflições malditas; // O relógio de acentos fúnebres / Soava brutalmente ao meio-dia, / E o céu vertia as trevas / Sobre o mundo triste e dopado.” Trad. LdeM)



Para esquecer suas misérias – reais e imaginárias – o Poeta sente que precisa estar sempre bêbado - “É preciso estar sempre bêbado” ( Il faut être toujours ivre.), sempre ébrio de vinho, ópio, poesia, não importa, mas o desejo de embriaguez é mais que um desejo dionisíaco – como desejaria um Nietzsche – é mais uma busca de esquecimento, como se o vinho fosse uma gota do Lethes. Daí a exaltação do vinho – aqui o próprio 'eu-lírico' ! - no poema “A Alma do Vinho” (L'Âme du Vin, CIV)


Un soir, l'âme du vin chantait dans les bouteilles:
«Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité!

...

Car j'éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d'un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.
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(“Assim a alma do vinho cantava nas garrafas: / 'Homem desamparado, a ti ofereço, de verdade, / Desta prisão de vidro que agora me abafa, / Um canto de luz e de fraternidade! [...] 'Pois muito me alegra quando desço / Goela adentro dum homem cansado, / E que doce tumba é o peito que aqueço, / Bem melhor do que nas adegas guardado.” trad. LdeM)



continua...



por
Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com

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