terça-feira, 13 de dezembro de 2011

mais sobre livros com a temática: crianças




Opa!


Mais obras sobre crianças e infanto-juvenis

aqui no MEU cânone brasileiro …



Menino de Engenho” / 1932

(José Lins do Rego)


http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/11/sobre-menino-de-engenho-jose-lins-do.html




Capitães da Areia” / 1937

(Jorge Amado)


http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/12/sobre-capitaes-da-areia-de-jorge-amado.html





Meu Pé de Laranja Lima” / 1968

(Vasconcelos)

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/12/sobre-meu-pe-de-laranja-lima-1968.html



by LdeM


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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

sobre 'Os Meninos da Rua Paulo' - de Ferenc Molnár









Sobre “Os Meninos da Rua Paulo
(tradução de Paulo Rónai, em 1952)
(“A Pál-Utcai fiúk”, 1906)
do escritor húngaro Ferenc Molnár (1878-1952)


Quando as crianças aprendem sobre jogos e guerras
(
ou O fim da Infância)


Ainda em nosso tema 'Crianças na Literatura', em seguida às leituras de “Oliver Twist” (do inglês Charles Dickens) e “Aventuras de Tom Sawyer” / “Aventuras de Huckleberry Finn” (do norte-americano Mark Twain) escolhemos a interessante obra do autor húngaro Ferenc Molnár (que chegou até nós através da tradução pioneira de Paulo Rónai) que trata de crianças em transição, aprendendo as razões e desrazões adultas, entendendo que a vida é um jogo, onde uns poucos vencem e a maioria perde.


As crianças brincam mas já se organizam segundo regras (muitas inventadas por eles mesmos, outras 'adaptadas' do mundo adulto), já idealizam carreiras, se imaginam heróis, generais, vencedores de mil peripécias. É assim num mundo de competição, onde os maias fortes vencem, onde os perdedores são humilhados. Assim aprendem como 'funciona' o mundo adulto.


Se a vida é um jogo, para os meninos da Rua Paulo a vida pode ser uma batalha, e se organizam até militarmente para protegerem seus lugares de brincadeiras. Crianças-adultos assim como encontraremos na obra “Capitães da Areia” (1935) de Jorge Amado. Crianças que precocemente aprendem sobre amizade, companheirismo, confiança, obediência, traição, perda.


Através de competição, jogos, brigas, 'batalhas', os meninos demarcam territórios, elegem chefes, trocam confidências, tramam aventuras, inventam fortalezas e castelos nos ares. Tudo como uma imitação da vida adulta, da qual encontram-se excluídos. Assim olham os adultos com certa ironia, no momento em que percebem as contradições entre o que os adultos pregam e o que os adultos realmente fazem.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


Desde a primeira cena temos o mundo das crianças em relação ao mundo dos 'crescidos'. Os alunos e os professores. Os neófitos diante da Autoridade. É quando um dia de aula finda, e os meninos fogem da escola como se fugissem de uma prisão... a correria assim que ressoa o sinal de fim de aula ...


“Num instante, a sala se esvaziou. Começou uma correria feroz pelas escadas abaixo, no meio das colunas, a qual só se transformava em pressa moderada quando, entre a barulhenta multidão de meninos, aparecia a silhueta ereta de um professor. Então os que corriam detinham o passo, o zunzum se acalmava, mas logo que o professor desaparecia a uma volta do corredor, todos se punham novamente a precipitar-se escada abaixo.

O portão despejava um magote de meninos que se espalhavam metade à direita, metade à esquerda, tirando o chapéu à passagem de um ou outro professor. Depois dirigiam-se para casa, cansados e esfaimados, pela rua banhada de sol. Como outros tantos escravos, libertos de repente, cambaleavam naquela abundância de luz e de ar, ao retomar contato com a cidade viva, ruidosa, movimentada, essa mistura confusa de carros, bondes de burro, ruas e lojas, que eles deviam atravessar para chegarem a casa.”
pp. 12-13, I


Temos uma visão dos personagens da narrativa, cada um com uma característica que o identifica ao longo do texto. Uns mais exaltados, outros mais sarcásticos, outros mais reservados, introvertidos. Uns fortes, outros franzinos. Somente meninos, num colégio para meninos. (Nenhuma menina é nomeada ou tem papel secundário...) Mas o destacado aqui é o líder juvenil João Boka, desde o primeiro momento,


Iam abraçados, com Boka no meio, o qual explicava algo com gravidade em voz pausada, como de costume. Tinha quatorze anos e o seu rosto ostentava ainda poucos traços de maturidade. Quando abria boca, porém, ganhava alguns anos. Tinha uma voz funda, meiga e grave, e o que dizia parecia-se com a voz. Raramente dizia bobagens, e não mostrava nenhum jeito para valentão ou sabido. Não gostava de entrar em brigas, e quando o convidavam para árbitro, recusava-se. Já aprendera que, após a sentença, uma das partes dica sempre amargurada, irritada contra o juiz. Somente quando a briga já tomava proporções maiores, chegando quase a exigir a intervenção de um professor, é que ele intervinha para apaziguar. Pois aquele que apazigua, pelo menos , anão encoleriza nenhuma das partes. Numa palavra, Boka parecia um rapaz inteligente: dava a impressão de alguém que, mesmo que não fizesse carreira, desempenharia na vida um papel decente.” pp. 15-16, I


Também temos a descrição do 'mascote' da turma, o pequeno e curioso Nemecsek, franzino filho de um humilde alfaiate, que aparece de início a narrar uma ação nada amistosa de meninos de uma turma rival, os irmãos Pásztor, o que muito indigna seus colegas,


“Nemecsek ficava nervoso quando sentia estar dendo importante, o que raramente lhe acontecia. Ninguém ligava ao lourinho. 'Não dividia e não multiplicava', como se costuma dizer, assim como o um na aritmética. Simplesmente não contava. Era um guri franzino, insignificante e fraco; e foram provavelmente essas qualidades que o tomaram uma vítima excelente.” p. 17, I


e, também, percebemos a atitude de Nemecsek diante da 'disciplina rigorosa' que é exigida quando os meninos cuidam da defesa do 'forte', lá no terreno,

“E Nemecsek obedecia a todos com verdadeira felicidade. Há também guris assim, que gostam de obedecer a ordens. A maioria, no entanto, gosta de mandar. É bem humano isso. Eis porque não é de surpreender que no grund todos fossem oficiais, e apenas Nemecsek soldado raso.” p. 20, II


Outros meninos são figurantes entre Boka e Nemecsek, dentre aqueles da Rua Paulo. São os 'oficiais' entre o general e soldado raso. Do outro lado, temos os meninos que frequentam o Jardim Botânico, que não têm um terreno deles para brincadeiras. Aliás, esta falta de um terreno será um dos motivos das disputas. Os meninos da Rua Paulo conservam uma área só deles. A descrição do 'Grund', uma espécie de terreno baldio, que se torna campo de batalha entre as turmas rivais, no ápice do enredo,


“Ó grund... Ó vós, belos e sadios estudantes da planície, aos quis basta dar um passo para vos encontrardes na estepe imensa, sob a admirável redoma azul que se chama firmamento, vós cujos olhos estão acostumados às grandes distâncias, aos longes, vós que não viveis apertados entre edifícios altos, nem podeis imaginar o que é para os guris de Budapeste um terreno baldio, um grund. É a sua planície, a sua estepe, o seu reino; é o infinito, é a liberdade. Um pedacinho de terra, limitado a um dos lados por uma cerca meio desmoronada, ao passo que pelos demais lados altos muros de edifícios o rodeiam. Atualmente o grund da Rua Paulo também já se encontra ocupado por um triste edifício, de quatro andares, cheio de moradores, nenhum dos quais sabe, talvez, que aquele pedacinho de terra significou a mocidade para alguns pobres estudantes de Budapeste.” pp. 18-19, II


Os adversários, prontos para a 'invasão', são igualmente meninos da cidade, igualmente alucinados por mil aventuras. Adiante temos uma descrição do líder da turma adversária, o Chico Áts, que 'reina' no território do Jardim Botânico, local público, percebemos.

A ideia de que os Pásztor podiam também estar por ali, Nemecsek sentiu calafrios na espinha. Já sabia o que era um encontro com os Pásztor. Quanto a Chico Áts, acabara de vê-lo de perto pela primeira vez. Ele o assustara bastante, sem, no entanto, desagradar-lhe. Pelo contrário, gostou daquele rapaz moreno, espadaúdo, de traços bonitos, em quem a camisa vermelha assentava às mil maravilhas. Aquela camisa vermelha dava-lhe um ar marcial, garibaldino. Os rapazes do Jardim Botânico, que o imitavam, usavam todos camisas dessa cor.” p. 21, II


Esta cor particular – o vermelho – como marca da turma de Chico Áts pode parecer uma distinção ideológica – seriam os subversivos? Os comunistas? Os filhos de proletários? - não ficam claro, e se assim fosse, os meninos da Rua Paulo seriam quem? Os filhos dos pequeno-burgueses? Os filhinhos-de-papai? Não, tais distinções baseadas em 'luta de classe' não se adequam aqui. Antes, a disputa é por território, não por ideias políticas. Uma guerra por território – numa época de colonialismo, quando os avanços imperialistas exaltavam os sentimentos nacionalistas. Aliás, por um território definido, como sabemos, o grund.


Aliás, a presença súbita de Chico Áts no grund explica-se como uma provocação aos meninos da Rua Paulo, como uma 'declaração de guerra', ainda mais quando uma das bandeirolas do 'forte' é subtraída. Assim, diante da provocação externa, todos os meninos se unem na disciplina e na obediência ao 'oficial' Boka, pois desejam defender o grund como se fosse o solo da Pátria!

Olharam para o terreno e para as pilhas de lenha, iluminadas pelo sol sereno da tarde primaveril. Via-se-lhes nos olhos que amavam aquele pedacinho de terra e estavam prontos a defendê-lo. Era uma espécie de patriotismo, como se ao gritarem – 'Viva o grund!' - tivessem gritado – 'Viva a pátria!' Os olhos brilhavam, os corações transbordavam” p. 26, II


De pronto, os meninos resolvem fazer uma 'excursão' até o terreno dos adversários – para mostrar que não têm medo de provocações. Mas quem será o corajoso que adentrará o covil inimigo? Dois meninos, Csónakos e Nemecsek, são voluntários para acompanharem o líder Boka. Assim, a 'tropa avançada' está formada. Sim, em muitos momentos a narrativa toma empréstimo de jargões da arte militar, ao comparar os meninos com soldados em campanha,


“[...] Mas desta vez não se assustaram mais. Sabiam que aquilo era o sinal para render as sentinelas. Por outro lado, sentiam-se no mais aceso da luta: já não se assustariam tão facilmente. Na verdadeira guerra, com os soldados de verdade, dá-se o mesmo. Enquanto não veem o inimigo, têm medo até das moitas do caminho. Mas quando as primeiras balas lhe passam, assobiando, perto do ouvido, criam coragem, sentem-se como que embriagados e esquecem que estão correndo para a morte.” p. 35, III


Muitas vezes a narrativa grandiloquente exagera um episódio puramente prosaico, uma brincadeira, mas lembremos que, para as crianças toda aquela ação era séria! Acreditavam realmente defender um 'forte', quando na verdade, ao olhar de um adulto, trata-se apenas de um mero terreno baldio. O Narrador adentra o mundo infantil quando apresenta tal perspectiva, compartilhando o olhar dos meninos,


Assim, decidiram a luta por motivo semelhante ao que desencadeia as guerras de verdade. Os russos precisavam de mar, por isso atacaram os japoneses. (*) Os camisas-vermelhas precisavam de um terreno para jogar péla, e como não havia outro jeito, iam recorrer à guerra.” pp. 36-37, III


Claro em toda ação há reação – e traição. Um dos meninos da Rua Paulo será visto em companhia dos meninos do Jardim Botânico, um daqueles de confiança de Boka, mas que se mostrará um miserável traidor da 'causa' – a defesa do grund. Em muitos momentos, parece-nos que o Narrador se inclina mais em defesa dos amigos de Boka – como se ele mesmo fosse um dos 'meninos da Rua Paulo' (**) – e traça um retrato pouco lisonjeiro dos comandados de Chico Átis.


Paralelo aos movimentos de guerra e guerrilha para defesa e conquista do grund, temos outra 'associação' de meninos – aqueles que ficam mascando uma espécie de resina, aqui traduzida como 'betume', daí a Sociedade do Betume, os Eleitos que devem zelar – com a própria saliva – para manter úmida um bocado do material, antes extraído dos encaixes das vidraças. Interessante aqui notar o quanto os meninos adoram se reunir em tais 'coletivos', são seres gregários que precisam defender algo, uma causa, nem que seja um bocado de betume!


Os primeiros a se levantarem contra as 'sociedades' são obviamente os adultos, aqui, no caso, na instituição Escola, será o professor, que não admite estas 'sociedades secretas' na turma. Afinal, só deve haver o Estado – que ele, o Professor na Escola representa. Nenhuma autoridade além do Estado, que tudo vigia. Nada de partidos, de gangues, ou facções, ou bandos, ou cabalas, tudo deve ser administrado e catalogado pelo Estado, que dá autoridade ao Professor.

“-Soube que vocês andaram fundando uma sociedade. Estou a par do caso. É uma Sociedade do Betume, ao que parece. Quem me informou, deu-me também a lista dos sócios. São vocês, não é verdade?

Ninguém respondeu. Permaneceram imóveis, cabisbaixos, demonstrando assim que a acusação era justa.

-Vamos por ordem – continuou o Sr. Professor –Quero saber, antes de tudo, quem foi que fundou a sociedade, apesar de eu ter dito claramente que não admitia sociedade alguma na turma
.” p. 43, IV


Realmente, os meninos criaram uma sociedade bem nacionalista, com direito a bandeira e versos patriotas. Para 'defender' um bocado de betume, as crianças criam regras, formalidades, cerimônias, cargos oficiais, hierarquias! Ironia é o que não falta aqui! Os meninos querem ser adultos - mas assim imitam o que há de pior nos adultos! Querem logo seguir regras e obedecer burocracias! Seguir líderes e marchar para a morte! (Crianças sempre crianças, como é Peter Pan, ironizam essas coisas! Contudo, bem que Peter Pan não abre mão de ser o líder dos 'Meninos Perdidos'...)

sobre 'Peter Pan'
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/12/sobre-peter-pan-ensaio.html


Não é mera impressão que em vários momentos a narrativa se prenda ao pequeno Nemecsek – mas não seria exato dizer que ele seja o protagonista – em suas aventuras, para provar a coragem diante dos maiores (que são sempre os oficiais...), o que leva o leitor a acompanhar o menino com mais atenção e participação. Nemecsek precisa provar que é corajoso – eis a missão aqui. Ele aparecerá em vários momentos essenciais da narrativa – ora para confundi-la, ora para resolvê-la. Mas toda a ação dele depende dos outros – ele apenas aproveita as oportunidades. Ou tem muita sorte!

O que não evita que Nemecsek seja excluído ou vitimado por algum mal-entendido. Os meninos maiores não hesitam em encontrar um 'bode expiatório' para as próprias falhas. Qualquer deslize e o menorzinho é logo rotulado de 'traidor' (enquanto nós, os leitores, sabemos quem é o traidor, quem realmente está tramando contra os meninos da Rua Paulo) e excluem o menino daquela Sociedade do Betume (assim como os 'marginais' são excluídos da 'nossa' sociedade...)


Atento a cosmovisão infantil, o Narrador não pode evitar, vez ou outra, comentários sobre o quanto as crianças se encontram indefesas no mundo dos adultos. O que as crianças julgam ser o mundo delas é apenas mais um terreno com dono, com direitos de proprietário, que pode negociar o grund como apenas mais uma fonte de renda.

De dentro ouvia-se o barulho alegre dos garotos jogando péla e, depois, o estrondo de uma aclamação: os da Sociedade do Betume festejavam o novo presidente... Ali dentro ninguém suspeitava que aquele pedaço de terra talvez nem lhes pertencesse mais. Aquele pedacinho estéril de Budapeste, cheio de altos e baixos, aquela planiciezinha confinada entre dois edifícios que para suas almas juvenis significava o infinito, a liberdade; prairie americana de manhã, estepe húngara de tarde, oceano quando chovia, pólo norte pelo inverno – em suma, o amigo de todos eles, que se transformava naquilo que eles queriam, só para diverti-los...” p. 54, IV


Precisamos lembrar também da época. É um drama entre crianças que ocorreu nos fins do século 19, antes das Guerras Mundiais que começaram na Europa e assolaram os povos – também os húngaros – ali entre alemães e austríacos, entre nazistas e estalinistas – e acabaram todo resto de inocência que aquele povo teria.

Neste sentido, o menino-moço Chico Átis não tem inocência. Ele é o líder sem escrúpulos, sem idealismos. Não quer conferências, nem negociações. Quer conquistar o grund através da força bruta. Ele quer guerra. Poderia ser um revolucionário de direita ou guerrilheiro de esquerda. O traidor apenas vem trazer uma melhor descrição dos pontos-fracos da defesa inimiga. Assim, o traidor é uma peça logo fora do baralho. Só merece mesmo o desprezo. (Agora desprezo duplo, tanto dos amigos de antes, quanto dos inimigos. O traidor jamais merece confiança...)


Enquanto o traidor somente afunda em indignidades (querem maior indignidade do que ser desprezado pelos meninos da Rua Paulo?), por outro lado, o pequeno Nemecsek dá provas de coragem – ao se insinuar no próprio covil do inimigo ! - a ponto de trair a admiração do severo Chico Áts. É inversamente proporcional, quanto mais o traidor entra em decadência, mais o menorzinho do grupo alcança ascensão – até a apoteose final, como veremos.


(O traidor, chamado Geréb, ainda recebe um foco, pouco antes da 'batalha', mas não a ponto de prender a atenção. Ele está em cima do muro, ao trair, ao pedir perdão, ao querer voltar para a tropa. Boka até perdoa, mas não aceita no grupo. É preciso uma intervenção externa – a presença do pai de Geréb – para que os meninos da Rua Paulo o aceitem. E o que mais ressaltamos é a generosidade de Nemecsek em não reafirmar diante do pai que o filho é um traidor dos amigos.)


Até diante das maiores humilhações, quando obrigado a mergulhar no lago frio, o pequeno Nemecsek mantém-se firme e altivo, e desafia os adversários. Prefere ser um 'sapo' nas águas frias do lago do que ser o traidor dos amigos. O menorzinho mostra coragem diante dos 'inimigos',

Não tenho medo de nenhum de vocês. E se vierem à Rua Paulo tomar-nos o nosso terreno, lá estaremos. Lá, verão que, quando nós também somos dez, sabemos falar em outro tom. Comigo a briga não foi difícil ! Vence quem é mais forte.” (p. 59, V)

De fato haverá uma guerra pela posse ou defesa do grund, aquele terreno baldio que torna-se um símbolo do solo sagrado da Pátria. Uma guerra com Regras – com diplomatas, embaixadores, patrulhas avançadas, honra e cavalheirismo, e declaração oficial – pois ainda estamos antes da 'guerra total', tal como se manifestou nas Guerras Mundiais (a Primeira, 1914-18, e a Segunda, 1939-1945), onde não havia sequer declaração de guerra, mas ofensivas-surpresa, saques, destruição em massa, bombardeio de civis, gases tóxicos, assassinato em escala industrial, bombas atômicas.


O esperto Boka arquiteta todo um plano de batalha – digno de um Alexandre ou Napoleão – para defender o amado grund, aquele terreno que significa tanto para os meninos – tanto pessoalmente, quando coletivamente. Significava algo deles e um lugar da infância.

“Boka sentia que nesse momento tudo dependia dele – o bem-estar daquela minúscula sociedade, as tardes alegres, as partidas de péla e de outros jogos, os divertimentos de seus amigos – e enchia-se de orgulho por ter-se encarregado de uma tarefa tão bela.

-Sim – disse consigo mesmo – defendê-los-ei.

Envolveu num olhar o querido grund. Olhou em direção das pilhas de lenha, por trás das quais se levantava curiosa a esbelta chaminé da serraria, cuspindo as brancas nuvenzinhas de vapor com alegria tão sossegada como se aquele dia fosse como os outros, como se tudo não estivesse em perigo...

Sim, Boka sentia-se como um grande capitão pouco antes da batalha decisiva. Pensava em Napoleão... Depois os seus pensamentos se aventuraram pelo futuro a dentro. Como seria? Que fim levaria ele? Acabaria soldado de verdade, capitão a comandar um exército fardado, em algum lugar longínquo, num verdadeiro campo de batalha... para defender não um pedacinho de terra tão pequeno como o grund, mas aquela grande porção de terra querida que se chama pátria? Ou acabaria médico, enfrentando diariamente as enfermidades numa grande batalha, séria e renhida?
” p. 69, VI


A batalha mesmo somente ocorre dois dias depois. Os preparativos, enquanto isso, são minuciosamente descritos. Esquemas das tropas, posicionamentos dos reservas, áreas da ofensiva e da retirada, assim todo um vocabulário militar com o qual os meninos demonstram uma estranha familiaridade – como se a guerra fosse assunto de crianças! A 'guerra' em si ocupa muitas páginas e uma atenção especial do Narrador (o Autor certamente terá vivenciado e participado da batalha...)


Mas não é nosso interesse resumir aqui os movimentos bélicos dos meninos. Mas, antes, a questão da infância. De como é possível aos meninos se relacionarem em termos militares – onde um à amigo e o outro inimigo, onde um é fiel e o outro traidor. Todos estes conceitos de honra são próprios do mundo adulto. As crianças seguem – e incorporam - tais conceitos, apenas para reproduzirem a violência. Principalmente, as relações entre jogo e guerra são ressaltadas, além dos 'níveis semânticos' compartilhados (i.e. quando o vocabulário usado é de origem militar),


Correspondentes de guerra verdadeiros que assistiram a batalhas de verdade, dizem que o maior perigo que ameaça um exército é a confusão. Os generais têm menos receio de centenas de canhões que de uma confusãozinha de anda, que pode em poucos instantes transformar-se num verdadeiro caos. Pois se a confusão enfraquece um exército de verdade, armado de fuzis e de canhões, como é que uns soldadinhos de infantaria, cujo uniforme consistia apenas em camisas-de-esporte vermelhas, poderiam resistir a esse perigo?” p. 93, VIII


O mais importante, em nossa leitura, acha-se mais para o fim da 'batalha', quando o pequeno Nemecsek, mesmo adoentado, vem, digamos, 'salvar a pátria', e deixa o 'campo de batalha' com honras militares. É quando o foco da narrativa vai do coletivo para o individual, na parte final, quando o menino, doente e agonizante, recebe a atenção digna de um protagonista. Todos os olhares se voltam para ele – tanto de amigos quanto 'inimigos' – seu nome é 'reabilitado' diante dos meninos da Rua Paulo, sua coragem é louvada até pelos adultos.


Diante da casa humilde do menino Nemecsek, os dois rivais – João Boka e Chico Áts – se encontram, sem esperar, na dor compartilhada,

E os dois generais fitaram-se dos dois lados da rua.

Pela primeira vez na vida deles se encontravam assim a sós, cara a cara, diante daquela casinha triste, um trazido pelo coração, outro pela consciência. Fitaram-se sem uma palavra. Depois Chico Áts recomeçou o seu vaivém diante da casa. Andou muito tempo, até que o porteiro saiu do quintal escuro para fechar o portão. Então Chico Áts tirou o chapéu e perguntou-lhe algo baixinho. A resposta do porteiro chegou até Boka. Era apenas esta palavra: -Mal.

E o homem bateu com o portão pesado. O barulho quebrou o silêncio da rua, mas apagou-se logo depois como o trovão no meio das montanhas
.” p. 104, VIII


E a prova de coragem do pequeno Nemeseck – e o consequente sacrifício da saúde física – é o momento marcante, no fechamento do livro. O menino prova a todos que ele sempre foi do mesmo nível - e até acima -, e assim ele não aceita o fato de que sempre o vejam como um 'soldado raso'. Esta necessidade de provar que é do mesmo nível (e até superior) é um exemplo dos 'ritos de passagem' que as crianças sofrem durante a pré-adolescência. Ser aceito no grupo, ser respeitado, ser amado, ser correspondido nos afetos.


Num desfecho triste, o menino resigna-se, 'nunca mais verei o grund', justo ele que considerava semelhante a uma 'pátria' aquele terreno de brincadeiras; e, junto aos familiares e os amigos, finalmente morre. E, felizmente, ele não vê a perda do grund, o terreno baldio que será destinado a novas construções na cidade em crescimento. Por fim, é o líder Boka sofre com o fim do 'solo sagrado' da infância e com o fim da infância.


A terra girava aos olhos de Boka. Desta vez as lágrimas brotaram. Estugou o passo, foi correndo ao portão, fugindo daquele pedaço de terra infiel que eles haviam defendido com tamanho sofrimento, tamanho heroísmo, e que ia deixá-los para carregar um imóvel nas costas para sempre.

Do portão voltou-se mais uma vez, como quem abandona de vez a pátria. Para a grande dor que, a essa ideia, lhe apertava o coração, só encontrava uma consolação bem fraca. Coitado do Nemecsek! Se não vivera bastante para receber a delegação da Sociedade do Betume pedindo perdão, pelo menos também não vira arrancarem-lhe a pátria pela qual morrera
.” p. 120, X


O terreno da infância se perde, a própria infância se vai, restam as reminiscências – e a narrativa que acabamos de ler. As crianças adentram o mundo normatizado e oficializado pelos adultos. O Autor-Narrador demonstra amargura, ele que possivelmente lá esteve, junto aos corajosos e destemidos meninos da Rua Paulo, meninos em muitos aspectos semelhantes aos vários meninos de várias ruas em todo o mundo.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


nov/11

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/




Notas:


(*) Para os críticos historicistas eis um prato-feito! Por que o Autor fala em russos versus japoneses? Ora, a obra é de 1906, e o contexto é a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), que empolgou nacionalistas de ambos os impérios, até a vitória nipônica, e a eclosão da Revolução de 1905 contra o Czar.

(**) Aliás, o tradutor Paulo Rónai apresenta duas marcas textuais, consideradas involuntárias, que possibilitam uma leitura na qual o Autor tenha participado da turma da Rua Paulo. Assim, na página 19, II, temos um “Nós, meninos da cidade, não queríamos saber de outro. O grund da Rua Paulo era chão e representava para nós as savanas americanas.” e também, na página 90 , VIII, “Os nossos receberam-nos firmes como se quisessem aceitar a batalha, mas isso durou apenas alguns segundos:” Onde o Narrador se inclui no grupo de meninos.)


artigos sobre “Os Meninos da Rua Paulo
http://www.tellesdasilva.com/crmeninos.html



filmes baseado no romance de Molnár

A Pál-Utcai fiúk”(The Boys of the Paul Street, 1969)
http://www.youtube.com/watch?v=yleSDV47o3M&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9UM7liecYQs
http://www.youtube.com/watch?v=yKo1TczV-UM&feature=related


I Ragazzi della Via Pal (TV, 2003)
http://www.youtube.com/watch?v=ynJZ5Nx3lkc
http://www.youtube.com/watch?v=JONEir2hErI&feature=related



LdeM

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

sobre 'Aventuras de Huckleberry Finn' - de Mark Twain









Sobre “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)
do escritor norte-americano Mark Twain
(Samuel Langhorne Clemens, 1835-1910)


Quando para a criança o mundo é uma grande aventura


Parte 2

Huckleberry Finn


O início de “Aventuras de Huckleberry Finn” apresenta um resumo do final de “Aventuras de Tom Sawyer” e mostra-se enquanto continuação das aventuras, contudo aqui o protagonista é o outro: é o menino Huckleberry. E mais: Huck é também o narrador, notamos logo, “Tom e eu encontramos” ou “A viúva Douglas levou-me para ser seu filho”, etc. Explica-se porque este livro tem uma linguagem mais coloquial.

Inclusive a personagem-narrador, quando se apresenta, chega a se referir ao Autor, como relativamente confiável, ai revelar que ele, Huck, aprontou fartas travessuras no enredo do livro anterior, ao lado do protagonista Tom,

“Sem você ter lido um livro chamado 'Aventuras de Tom Sawyer' você não sabe quem sou eu; mas não importa. Aquele livro foi escrito pelo Sr. Mark Twain, e ele disse a verdade, na maioria das vezes. Algumas coisas ele alongou demais, mas na maioria das vezes ele disse a verdade. Não importa. Nunca conheci alguém que não mentisse vez ou outra, exceto Tia Polly, ou a viúva, ou talvez Mary. Tia Polly – que é a tia de Tom – e Mary, e a viúva Douglas é sobre as quais trata este livro, que é principalmente um livro de verdade, com algumas digressões como já disse.” (trad. LdeM)
.
You don't know about me without you have read a book by the name of The Adventures of Tom Sawyer; but that ain't no matter. That book was made by Mr. Mark Twain, and he told the truth, mainly. There was things which he stretched, but mainly he told the truth. That is nothing. I never seen anybody but lied one time or another, without it was Aunt Polly, or the widow, or maybe Mary. Aunt Polly--Tom's Aunt Polly, she is--and Mary, and the Widow Douglas is all told about in that book, which is mostly a true book, with some stretchers, as I said before.” p. 11, cap. 1


Agora Huckleberry frequenta a escola, onde até já aprendeu a ler. Não é mais aquele menino livre e solto, sem disciplina e sem horários, que todos os outros meninos do povoado acabavam por invejar... Nada disso. Agora temos um narrador das próprias aventuras – mérito que não encontramos nas “Aventuras de Tom Sawyer”, onde é o narrador-Autor quem tece considerações sobre Tom e sua turma.

“Agora o modo como terminou aquele livro: Tom e eu encontramos a grana que os bandidos esconderam na caverna, e ficamos ricos. Temos uns seis mil dólares – tudo em ouro. Foi uma tremenda visão de grana quando foi empilhado. Bem, o Juiz Thatcher levou o dinheiro aos seus cuidados, e nos repassa um dólar por dia ao longo do ano – mais do que alguém saberia o que fazer. A Viúva Douglas adotou-me como seu filho, e deixaram que ela me educasse; mas é dureza viver numa casa o tempo todo, considerando o quanto a viúva é regular e decente em sua rotina; e assim quando não podia aguentar mais eu dava o fora. Eu pegava de novo os meus trapos e meu cantil, e saía livre e contente. Mas Tom Saywer saiu ao meu encalço e disse que ele começaria uma gangue de bandoleiros, e eu deveria me juntar a eles se eu voltasse para a viúva e ser respeitável. Então eu voltei.”
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Now the way that the book winds up is this: Tom and me found the money that the robbers hid in the cave, and it made us rich. We got six thousand dollars apiece--all gold. It was an awful sight of money when it was piled up. Well, Judge Thatcher he took it and put it out at interest, and it fetched us a dollar a day apiece all the year round-- more than a body could tell what to do with. The Widow Douglas she took me for her son, and allowed she would sivilize me; but it was rough living in the house all the time, considering how dismal regular and decent the widow was in all her ways; and so when I couldn't stand it no longer I lit out. I got into my old rags and my sugar-hogshead again, and was free and satisfied. But Tom Sawyer he hunted me up and said he was going to start a band of robbers, and I might join if I would go back to the widow and be respectable. So I went back.” p. 11, cap. 1


Huck agora tem uma 'fortuna' – parte do 'tesouro' descoberto por ele e Tom numa caverna às margens do rio. E à 'adotado' pela viúva Douglas e a irmã dela, a Sra. Watson, que tentam ensinar crença e disciplina ao menino sem-limites. Para Huck é difícil esta aprendizagem, visto que ele não dispensa uma aventura, uma fuga para fora da ordem.

É o mesmo desejo de aventuras da 'gangue' de Tom Sawyer – os bandoleiros, os piratas, descobridores de tesouros – invejam os aventureiros fora-da-lei – isto é, os jovens procuram o excêntrico – os meninos se identificam mais com os marginais do que com as autoridades... O desejo dos jovens aventureiros de criarem grupos seletos, sociedade secretas. Fora a crueldade da imaginação infantil, segundo notamos nas palavras do líder Tom,

“Agora vamos começar este grupo de bandoleiros e chamado de Gangue do Tom Sawyer. Todos que quiserem se unir terá que fazer um juramento, e escrever sue nome com sangue.”

“Todos esperavam. Então Tom pegou um pedaço de papel onde ele escreveu o juramento, e leu. Cada menino juraria entrar pro grupo, e nunca dizer sobre os segredos; e se alguém fizesse algo a algum menino do grupo, qualquer outro menino devia matar a pessoa e sua família devia fazer isso, não deveria comer nem dormir até ele tê-los matado e marcado uma cruz em seus peitos, que era o sinal do grupo. E ninguém que não pertencesse ao grupo poderia usar aquela marca, e se ele fizesse deveria ser avisado; e se ele fizesse de novo ele deveria ser morto. E se alguém do grupo dissesse os segredos, deveria ter a garganta cortada, e então teria sua carcaça queimada e as cinzas espalhadas, e seu nome apagado da lista com sangue e nunca mencionado de novo pela gangue, mas terá uma maldição e será esquecido para sempre.

Todos disseram que era um belíssimo juramento e perguntaram a Tom se ele tirou da própria cabeça. Ele disse que algo sim, mas o resto era de livros de piratas e bandoleiros e toda gangue que era de respeito tinha um.”
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"Now, we'll start this band of robbers and call it Tom Sawyer's Gang. Everybody that wants to join has got to take an oath, and write his name in blood."

Everybody was willing. So Tom got out a sheet of paper that he had wrote the oath on, and read it. It swore every boy to stick to the band, and never tell any of the secrets; and if anybody done anything to any boy in the band, whichever boy was ordered to kill that person and his family must do it, and he mustn't eat and he mustn't sleep till he had killed them and hacked a cross in their breasts, which was the sign of the band. And nobody that didn't belong to the band could use that mark, and if he did he must be sued; and if he done it again he must be killed. And if anybody that belonged to the band told the secrets, he must have his throat cut, and then have his carcass burnt up and the ashes scattered all around, and his name blotted off of the list with blood and never mentioned again by the gang, but have a curse put on it and be forgot forever.

Everybody said it was a real beautiful oath, and asked Tom if he got it out of his own head. He said, some of it, but the rest was out of pirate-books and robber-books, and every gang that was high-toned had it.
” p. 17, cap.2


Mas claro que os 'bandoleiros' ficam só mesmo no sangrento 'juramento', pois são bons meninos que não ousariam emboscadas ou degolas, ou assaltos às carruagens, ou atos de pirataria e massacres do tipo. Tudo fica mesmo no 'plano discursivo', ou seja, na fantasia. Coisa de livros de aventura. Ainda bem.

Na realidade, além das aventuras, o menino Huckleberry tem outros problemas. Huck se sente ameaçado pelo próprio pai – um bêbado irascível – que espanca o menino. Pois este pai indesejado reaparece e 'captura' o menino para uma cabana – além de exigir a 'fortuna' de Huck – uma parte de um tesouro encontrado por ele e Tom, no final do livro anterior – e ainda quer que o menino abandone a escola!


“Acabei de fechar a porta. Então me voltei e ele estava lá. Costumava ficar assustado com ele o tempo todo, ele me batia muito. Eu reconheço que eu estava assustado agora, também; mas num instante eu vi que estava enganado – isto é, após o primeiro choque, como eu diria, quando minha respiração presa, ele sendo tão inesperado; mas logo depois eu vi que não estava com medo dele a ponto de preocupar com isto.

Ele passou dos cinquenta anos e tem mesmo aparência. Seu cabelo estava longo e embaraçado e grisalho, e caído, e você poderia ver os olhos dele brilhando através dos cabelos como se ele estivesse atrás de parreiras. Eram negros, não cinzentos; e assim eram suas costeletas. Sua face era pálida, onde estava à mostra; era pálida; não como a brancura de homem, mas uma palidez de adoecer, uma palidez de fazer arrepiar – uma brancura de rã, de barriga-de-peixe. Quanto às suas roupas – apenas trapos, eis tudo. Ele tinha um tornozelo descansado sobre o joelho; a bota daquele pé estava gasta, e dois de seus dedos vazavam, e ele os movia vez ou outra. Seu chapéu estava caído no chão – e um velho e escuro chapéu desleixado com o topo escavado, igual uma tampa.

Eu fiquei olhando pra ele; ele ficou lá olhando pra mim, com sua cadeira um pouco inclinada para trás. Eu abaixei a vela. Eu percebi que a janela estava aberta; então ele subira pelo galpão. Ele continuava me encarando todo.”

“I HAD shut the door to. Then I turned around and there he was. I used to be scared of him all the time, he tanned me so much. I reckoned I was scared now, too; but in a minute I see I was mistaken--that is, after the first jolt, as you may say, when my breath sort of hitched, he being so unexpected; but right away after I see I warn't scared of him worth bothring about.

He was most fifty, and he looked it. His hair was long and tangled and greasy, and hung down, and you could see his eyes shining through like he was behind vines. It was all black, no gray; so was his long, mixed-up whiskers. There warn't no color in his face, where his face showed; it was white; not like another man's white, but a white to make a body sick, a white to make a body's flesh crawl--a tree-toad white, a fish-belly white. As for his clothes--just rags, that was all. He had one ankle resting on t'other knee; the boot on that foot was busted, and two of his toes stuck through, and he worked them now and then. His hat was laying on the floor--an old black slouch with the top caved in, like a lid.

I stood a-looking at him; he set there a-looking at me, with his chair tilted back a little. I set the candle down. I noticed the window was up; so he had clumb in by the shed. He kept a-looking me all over.
” p. 29, cap. 5


É descrição do pai de Huck – o beberrão mal-humorado que não suporta que o filho frequente a escola e aprenda a ler! O pai ameaça o menino – pois quer o dinheiro que está sob os cuidados do Juiz Thatcher - até que resolve raptar o próprio filho. Como Huck suporta tal pai tirano , déspota? Por mais que agora – ao viver numa rústica cabana, sob tutela do pai - ele não precise mais obedecer a Sra. Watson ou ir à escola, de volta à vida ao ar livre, em pescarias e caçadas, Huck, ao não suportar a violência do pai, simplesmente, arquiteta uma fuga.

Sim, logo Huck planeja uma fuga – com um sangrento arrombamento – para que todos pensem que ele morreu. Um porco sangrado, um machado sujo de sangue... Um crime? Assim, ao menos, deve parecer. O menino considera que só Tom Sawyer seria mais esperto e ardiloso – e Huck sente como se Tom estivesse orgulhoso dele.

“Eu gostaria que Tom Sawyer estivesse aqui; sabia que ele teria interesse num lance destes, e com tanta imaginação. Ninguém poderia além de Tom Sawyer se dedicar a uma coisa como esta.” (“I did wish Tom Sawyer was there; I knowed he would take an interest in this kind of business, and throw in the fancy touches. Nobody could spread himself like Tom Sawyer in such a thing as that.” p. 44, cap. 7)


Então Huck foge da cabana e ruma rio abaixo – além da Ilha Jackson (ou Glasscock's Island, ver a aventura dos 'piratas' em “Aventuras de Tom Sawyer”). Aqui Huck seria uma espécie de 'Robinson Crusoé' numa ilha – até descobrir um 'Sexta-Feira' – o escravo fugitivo Jim (que também aparece em “Tom Sawyer”. Será algo assim uma paródia do enredo clássico de Daniel Defoe? (No clássico de Defoe, o que o solitário Robinson encontra é uma pegada na areia da praia... e percebe que a ilha não é assim tão solitária...)


Meu ensaio sobre “Robinson Crusoé
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/01/sobre-robinson-crusoe-de-d-defoe.html


“Bem, eu fui de bobeira pros fundos da floresta até que pensei que não estava muito longe da base da ilha. Estava com a minha arma, mas não atirei em nada; era pra me proteger; apesar de que eu poderia matar alguma caça perto de casa. Por este tempo eu poderia me aproximar de uma serpente de bom-tamanho, e ela deslizava por entre relva e flores, e depois eu tentava, tentando atirar nela. E seguia adiante, e de repente me deparei com umas brasas de fogueira que ainda fumegava.

Meu coração deu um salto no meu peito. Nunca que eu esperaria pra procurar mais, mas deixei a arma em prontidão e voltei furtivamente na ponta dos pés tão rápido como eu podia. Vez ou outra eu parava uns segundos entre as folhas grossas e ouvia, mas eu ofegava tanto que eu nem ouvia nada mais. Eu me movia furtivamente mais um trecho, então ouvia de novo; e assim de novo, e de novo. E se eu via um toco, eu achava que era um homem; se eu tropeçava num galho e o quebrava, me fazia sentir como uma pessoa tivesse cortado meu fôlego em dois e eu ficasse só com a metade, e a mais curta delas, além disso.”
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“Well, I went fooling along in the deep woods till I judged I warn't far from the foot of the island. I had my gun along, but I hadn't shot nothing; it was for protection; thought I would kill some game nigh home. About this time I mighty near stepped on a good-sized snake, and it went sliding off through the grass and flowers, and I after it, trying to get a shot at it. I clipped along, and all of a sudden I bounded right on to the ashes of a camp fire that was still smoking.

My heart jumped up amongst my lungs. I never waited for to look further, but uncocked my gun and went sneaking back on my tiptoes as fast as ever I could. Every now and then I stopped a second amongst the thick leaves and listened, but my breath come so hard I couldn't hear nothing else. I slunk along another piece further, then listened again; and so on, and so on. If I see a stump, I took it for a man; if I trod on a stick and broke it, it made me feel like a person had cut one of my breaths in two and I only got half, and the short half, too.
” p. 51, cap. 8


Huck se aflige com a presença de outra pessoa na ilha 'deserta' – será que o pai ainda o procura? - enquanto Jim se assusta com a presença de Huck, a quem ele julga morto. (Aquela ideia de simular o arrombamento e assassínio brutal até que deu certo...) Jim é o escravo que fugiu da Sra. Watson, que encontramos no livro sobre Tom Sawyer.

Destaque aqui para a fala sulista dialetal nigger do escravo Jim, até difícil de decifrar, onde temos bekase (= because), doan' (don't), alwuz (always), noth'n' (nothing), ole (old), for'em (for them), mostrando as diferenças étnicas e culturais no seio do país da liberdade – de braços abertos para os imigrantes, mas mantendo os escravos sob correntes. (Como sabemos, as lutas por igualdade social e racial se intensificaram no século 20 com as vozes de Martin Luther King Jr. e Malcolm X em protestos em prol dos direitos humanos.)

Assim é importante a questão do abolicionismo – que chegou a causar uma guerra civil nos EUA entre 1861-65, a Guerra de Secessão, que provocou a morte de quase um milhão de cidadãos – pois é uma questão de consciência se Huck deve denunciar o escravo. O fato é que o menino gosta do escravo Jim, e a amizade entre eles está cima das condições sociais do escravismo. Mas o menino Huck fica hesitante – ele foge, mas o escravo também tem o direito de fugir? Huck se sente, finalmente, um homem livre – mas e quanto ao Jim? Ele pode dizer o mesmo?

Lembrar que a narração é em 1ª ps. e que é o próprio Huck quem pensa sobre a fuga e sobre o escravo Jim. Por isso só sabemos o que Huck sabe – e ele desconhece muita coisa. Por exemplo, na cena da casa que desce o rio abaixo, na correnteza após a tempestade, Jim encontra um homem morto. Quem? Jim não revela – e os leitores desconhecem. Até que a cena adquire maior importância no desfecho do enredo.


É hilária a cena – no Capítulo 11 – na qual Huck se disfarça de senhorita – usando roupas encontradas naquela casa à deriva – para ir ao povoado mais próximo, na margem de Illinois, saber sobre as novidades, se ainda há ameaças. No povoado, Huck – ou Srta. Sarah Williams - fica sabendo mais sobre a morte brutal de... Huck! (De fato, o estratagema deu certo!) Mas há um problema: realmente todos acreditam que o escravo Jim seja o criminoso!

Huck precisa avisar Jim – imediatamente! A fuga continua – eles passam por St. Louis – uma cidade grande em relação ao povoado de St. Petersburgo, dos meninos Tom e Huck. O menino descreve a viagem, a lenta navegação, a paisagem, os povoados, em suma, é o nosso guia turístico pelas águas do Mississipi – antes da guerra entre nortistas e sulistas.

“Na quinta noite abaixo de St. Louis enfrentamos uma tempestade após meia-noite, com força de trovão e raios, e a chuva caía num jorro. E ficamos na tenda e deixamos a jangada por si mesma. Quando o raio iluminava lá fora podíamos ver um imenso rio adiante, e altas e rochosas ravinas de ambos os lados. Logo eu disse, “Ei-a, Jim, veja lá!” Era um barco a vapor que se destruíra num rochedo. Nós estávamos à deriva diretamente para ele. O raio mostrou-o bem distintamente. Estava inclinado, com uma parte do convés acima d'água, e você poderia ver cada pequeno arame da chaminé total e claramente, e uma cadeira junto ao grande sino, com um velho chapéu dependurado nas costas dela, quando aparecia o raio.”

The fifth night below St. Louis we had a big storm after midnight, with a power of thunder and lightning, and the rain poured down in a solid sheet. We stayed in the wigwam and let the raft take care of itself. When the lightning glared out we could see a big straight river ahead, and high, rocky bluffs on both sides. By and by says I, "Hel-LO, Jim, looky yonder!" It was a steamboat that had killed herself on a rock. We was drifting straight down for her. The lightning showed her very distinct. She was leaning over, with part of her upper deck above water, and you could see every little chimbly-guy clean and clear, and a chair by the big bell, with an old slouch hat hanging on the back of it, when the flashes come.” p. 79, cap. 12


Outras vicissitudes e aventuras sempre rodeiam o protagonista – afinal é um livro que hoje diríamos 'infanto-juvenil' – com altos-e-baixos que prendem o leitor – nunca ameaçado de tédio. Numa página, a jangada com a tenda escapa de um naufrágio, noutra é Jim que desaparece nas águas e no nevoeiro. Em outro momento, Huck é 'tentado' a denunciar o escravo Jim, mas desiste, ao lembra da amizade que une branco e negro, que une as pessoas além de mero padrão de cor da pele.

Outras narrativas dentro da narrativa 'incham' as aventuras de Huck: um enredo digno de “Romeu e Julieta”, com a luta de famílias rivais – os Grangerfords e os Shepherdsons - se hostilizando e matando mutuamente, enquanto um casal – ela da primeira família, ele da outra – tenta se unir, apesar do ódio. E sempre a presença de Huck – ora para complicar, ora para agir como um pequeno herói. Mas sempre achando estranhíssimo o 'mundo adulto'.

E para 'apimentar' ainda mais as aventuras – será que uma criança do interior sulista no século 19 teria tantas estórias pra contar ? - aparecem outras figuras – realmente bons 'figurantes' – na narrativa. São dois atores, ou melhor, dois vigaristas – o Rei e o Duque – que não hesitam em mil trapaças para arranjarem uma grana. É o espírito de livre-iniciativa norte-americano? (Esperemos que não...)

Os pilantras – atores de talento ridículo com segundas intenções – se apresentam nas povoações ribeirinhas, ou fingem se apresentar e dão o calote nas bilheterias e na plateia enganada. Isso é o de menos! Em dado momento, os dois vigaristas se fazem passar por parentes de um rico recém-falecido. Chegam na cidadezinha para exigirem a herança – até que são oportunamente desmascarados, por intervenção do protagonista-narrador Huck.

Estas narrativas dentro da narrativa são pouco producentes se o interesse fosse verossimilhança, mas sendo uma obra ficcional, vale tudo. O estilo prolixo bem que aceita uma ou outra adaptação – assim fizeram Paulo Mendes Campos e Carlos Heitor Cony, dentre outros - para edições infanto-juvenis no Brasil, nos anos 1970 e 1980. Adaptações que 'podaram' o excesso de diálogos e narrativas-dentro-de-narrativas.

Mas, consideremos, não temos bons personagens – os adultos são pouco desenvolvidos, muitas vezes aparecem de forma caricatural (ou são 'tipos': a tia, o padre, o pastor, a viúva, o advogado, o beberrão, etc) - exceto o narrador Huck (mas será que um menino recém-alfabetizado conseguiria escrever/dizer tanto? E deste modo 'literário'?) e o escravo Jim, que formam a verdadeira 'dupla dinâmica' do livro.

A parceria de um menino branco e um escravo negro – numa amizade que atravessa todo o romance – já seria uma ousadia e tanto naquela época – vamos pensar de forma historicista – onde o negro era propriedade do branco, num sistema racista de exploração. (Os nazistas tinham em quem se inspirar afinal...)

Quando, quase no fim do romance, Jim é preso, para desespero do praticamente 'abolicionista' Huck - os amigos, quando o menino-herói Tom Sawyer reaparece neste livro, armam planos para libertar o amigo negro. E planos ao estilo de Tom, com planos difíceis e mirabolantes – para dar mais emoção, como ele queria. Cavar túneis, desviar atenções, fugir no meio da noite. Claro que não vamos aqui revelar se eles conseguiram se dar bem nestas aventuras.

No mais, Huck sempre reconheceu que Tom era mais engenhoso, mais imaginoso, que sabia narrar melhor, ao arquitetar planos, ou seduzir os amigos para as aventuras,

“E então Tom ele falava e falava muito, e dizia, vamos nós três dar o fora daqui uma noite dessas e conseguir umas provisões, e seguir para aventuras loucas junto aos Injus, por todo o território, por uma ou duas semanas; e eu disse, tudo bem, apoiado, mas não tenho grana pra comprar estas provisões, e calculo que não poderia conseguir de ninguém lá em casa, pois é como se papai voltasse agora, e tirasse tudo do Juiz Thatcher e fosse se embebedar.”
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And then Tom he talked along and talked along, and says, le's all three slide out of here one of these nights and get an outfit, and go for howling adventures amongst the Injuns, over in the Territory, for a couple of weeks or two; and I says, all right, that suits me, but I ain't got no money for to buy the outfit, and I reckon I couldn't get none from home, because it's likely pap's been back before now, and got it all away from Judge Thatcher and drunk it up.” p. 316


Claro que Huckleberry – e nem nós, leitores – sabe que o pai Finn está morto. Pois somente agora, nos parágrafos finais, o ex-escravo Jim lembra daquela casa à deriva no rio, na qual havia um cadáver – anônimo até agora – que, sem dúvida, para Jim que o descobriu, era o pai de Huck. Só faltava o menino suspirar aliviado. E tratar de por um ponto final no livro.

“e assim nada há mais a escrever, e estou danado de contente de terminar, pois se soubesse que problema que era isso de fazer livro eu não teria mexido com isto, e nem pretendo mais não. Mas acho que vou dar o fora para os territórios do Oeste a frente do resto, pois a Tia Sally vai me adotar e me educar, e não posso aguentar isso. Já estive nisso antes.”
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and so there ain't nothing more to write about, and I am rotten glad of it, because if I'd a knowed what a trouble it was to make a book I wouldn't a tackled it, and ain't a-going to no more. But I reckon I got to light out for the Territory ahead of the rest, because Aunt Sally she's going to adopt me and sivilize me, and I can't stand it. I been there before.” p. 316, cap. 43


Não é o objetivo aqui um resumo da obra. É desnecessário. O importante é ler o livro. Comentamos aqui apenas os motivos pelos quais a obra vale a pena ser lida – porque ela merece adentrar num “Cânone Ocidental”. As obras de Mark Twain apresentam os heróis ianques – de certa forma, inaugura a figura do norte-americano na literatura norte-americana.

Antes de Twain temos referenciais europeus, mas com o autor de “Aventuras de Tom Sawyer”, o menino-herói, os Estados Unidos podem começar a criar algo próprio – só faltava mesmo um Walt Whitman , com uma poesia pró-Democracia, para legitimar o estilo norte-americano na literatura e nas artes (não confundir com o 'american way of life', fenômeno mais materialista-consumista do que idealista-cultural)

Ressaltamos uma diferença entre as duas “Aventuras”. O fato de no primeiro livro o Narrador (o Autor) apresentar a vida aventureira do menino Tom Sawyer, que praticamente dá a volta ao mundo entre o fundo do quintal e a beira do rio. No segundo livro, o narrador é um dos personagens do primeiro, o menino, antes anti-herói, Huckleberry Finn.

Nas “Aventuras de Huckleberry Finn” é Huck quem lê – e não Tom. Huck ouvia antes as fábulas dos livros, agora ele lê para os outros. “Eu li para Jim sobre reis e duques e condes e tais” (p. 90, cap. 14) Mas, lembremos, em “Aventuras de Tom Sawyer”, Huck era iletrado e rústico – aqui ele tem novo status, digamos, visto ser ninguém menos que o Narrador. Enquanto Tom não narra as próprias aventuras. (Em que medida o Autor se identifica com o menino Tom? Ou com o menino Huck?)

Não sabemos as intenções autorais – são inacessíveis – e temos de ler sem sabê-las. Mas enquanto leitor, uma opinião é de que seria deveras interessante um outro livro, onde o engenhoso Tom Sawyer narrasse ele mesmo suas aventuras infantis no povoado de St. Petersburgo (ou Hannibal) junto ao grande rio Mississipi que corre altivo para o mar.



Out/11


Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com/



fontes:

TWAIN, Mark. The Adventures of Huckleberry Finn. New York: Airmont Books, 1962


Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/The_Adventures_of_Huckleberry_Finn


Wikipedia
http://en.wikipedia.org/wiki/Adventures_of_Huckleberry_Finn


pequeno glossário
para Huckleberry Finn

http://iota.hifm.no/phf/engelsk/Huck%20Finn%20glossary.htm


filmes baseados em Huckleberry Finn

Huckleberry Finn and his Friends” (TV Series, 1979)
http://www.youtube.com/watch?v=KCRiLyL0koc




LdeM


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

sobre "As Aventuras de Tom Sawyer" - de Mark Twain








Sobre “As Aventuras de Tom Sawyer” (1876) e
As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)
do escritor norte-americano Mark Twain
(Samuel L. Clemens, 1835-1910)


Quando para a criança o mundo é uma grande aventura


Parte 1

Tom Sawyer


As Aventuras de Tom Sawyer são um clássico nos Estados Unidos, desnecessário dizer que se trata de um país que reverencia suas origens, preserva a história – pelo menos até o governo Nixon... - e que sabe transformar um protagonista de literatura em ícone nacional.


O menino Tom Sawyer passou a representar a ingenuidade do norte-americano das pequenas cidades, não contaminadas pelo consumismo e violência das metrópoles. Assim como se contrapõe o sul lírico com o norte prosaico, não apenas em tempos de Guerra de Secessão (conflito entre nortistas e sulistas entre 1861-65), aquele interior sulista onde os grandes navios-vapores passam apitando, rumo ao oceano.


O autor Mark Twain (que tinha este apelido por trabalhar nas embarcações do rio Mississipi, onde se marcava a profundidade de duas (twain=two) jardas) conseguiu unir à literatura norte-americana em formação um olhar mais coloquial, mais popular, ao narrar aventuras de jovens do meio rural.


A linguagem é coloquial, o sotaque é centro-sulista, do vale do rio Mississipi, é até difícil traduzir – principalmente as falas de Huckleberry Finn, do negro Jim, também dos criminosos Muff Potter e Injun Joe. Para traduzir estas obras de Twain precisaríamos recorrer ao 'léxico' da fala caipira do sudeste brasileiro. Traduzir a fala do negro Jim seria utilizar a fala híbrida dos filhos de escravos no litoral da Bahia (no final do século 19...).


Considerando-se que além das ações do enredo – as aventuras em si-mesmas – temos os geniais e bem-humorados comentários do Narrador (ninguém menos que o Autor) que tece considerações sobre as personagens e seus aprendizados (ou ignorância), num olhar mais adulto a repensar os sonhos e as decepções das crianças.


As fontes das citações são a Wikisource e a edição “The Adventures of Tom Sawyer”, New York, Collier Books, 1962. As traduções são minhas (LdeM)


“Em dois minutos, ou menos, ele esquecera seus problemas. Não porque seus problemas fossem um pouco menos pesados e amargos para ele do que para os homens, mas porque um novo e poderoso interesse os abafou e os afastou da mente naquele momento – apenas que as desventuras dos homens são esquecidas na excitação de novas aventuras. Este novo interesse foi uma novidade de valor em assobiar, que ele aprendera de um negro, e ele sofria para repeti-lo corretamente. Consistia numa peculiar linha melódica de ave, um tipo de gorjeio líquido, produzido ao se tocar a língua no céu da boca a curtos intervalos no meio da música – o leitor provavelmente lembra-se como fazer isso, se ele já foi menino. Dedicação e atenção logo lhe deram o truque disso, e ele correu rua afora com a boca cheia de harmonia e a alma cheia de gratidão. Ele se sentia como um astrônomo sente que descobriu um novo planeta – sem dúvida, tão mais forte, profundo, amalgamado prazer é sentido, a vantagem estava com o menino, não com o astrônomo.”
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“Within two minutes, or even less, he had forgotten all his troubles. Not because his troubles were one whit less heavy and bitter to him than a man's are to a man, but because a new and powerful interest bore them down and drove them out of his mind for the time -- just as men's misfortunes are forgotten in the excitement of new enterprises. This new interest was a valued novelty in whistling, which he had just acquired from a negro, and he was suffering to practise it undisturbed. It consisted in a peculiar bird-like turn, a sort of liquid warble, produced by touching the tongue to the roof of the mouth at short intervals in the midst of the music -- the reader probably remembers how to do it, if he has ever been a boy. Diligence and attention soon gave him the knack of it, and he strode down the street with his mouth full of harmony and his soul full of gratitude. He felt much as an astronomer feels who has discovered a new planet -- no doubt, as far as strong, deep, unalloyed pleasure is concerned, the advantage was with the boy, not the astronomer.” pp. 31-32, Cap.I



Trabalho ou diversão? Tom Sawyer sabe como tornar divertido o simples trabalho de pintar uma cerca. Os colegas acreditam que é mesmo 'divertido' e fazem todo o trabalho para o menino! Assim, ele ainda ganha vários 'agrados' para isso – brinquedos, bugigangas, uma maçã já mordida...


“Tom dizia a si mesmo que isso não era um fim de mundo, afinal. Ele descobrira uma grande lei da motivação humana, até sem saber disso – que de modo a fazer um homem ou menino ambicionar por algo é apenas necessário fazer com que a coisa seja difícil de obter. Se ele fosse um grande e sábio filósofo, tal qual o escritor deste livro, ele compreenderia agora que Trabalho consiste de tudo aquilo que alguém é obrigado a fazer, e que Diversão é tudo aquilo que alguém não é obrigado a fazer.
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“Tom said to himself that it was not such a hollow world, after all. He had discovered a great law of human action, without knowing it -- namely, that in order to make a man or a boy covet a thing, it is only necessary to make the thing difficult to attain. If he had been a great and wise philosopher, like the writer of this book, he would now have comprehended that Work consists of whatever a body is obliged to do, and that Play consists of whatever a body is not obliged to do.” p. 44, Cap. II



Tom tem momentos de aventuras e também de meditação, de lirismo. A descoberta do amor é também importante para o jovem. Um sentimento também com jeito de aventura – descobrir quem é aquela nova garota – que o fez esquecer a paixão anterior. (Somente uma paixão para 'abafar' outra paixão...) De onde vem tanta emoção quando ele acha alguém interessante? Até recolher uma flor - jogada pela garota! - é uma aventura...

“O menino correu por ali e parou perto da flor, e então, com a mão fazendo sombra sobre os olhos, ele começou a procurar se havia algo interessante naquela direção. Em seguida ele arrancou uma palha e tentou equilibrá-la sobre o nariz, com a cabeça inclinada pra trás; e como ele se movia de lado, em seus esforços, ele se aproximava mais da flor amor-perfeito; finalmente seu pé descalço repousou sobre ela, seus dedos flexíveis a agarraram, e ele saltitou para longe com o tesouro e desapareceu ao dobrar a esquina. Mas apenas por um minuto – apenas enquanto ele pudesse abotoar a flor dentro da jaqueta, próximo ao coração – ou próximo ao estômago, possivelmente, pois ele não era muito bom em anatomia, e nem tão crítico, de qualquer modo.”
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“The boy ran around and stopped within a foot or two of the flower, and then shaded his eyes with his hand and began to look down street as if he had discovered something of interest going on in that direction. Presently he picked up a straw and began trying to balance it on his nose, with his head tilted far back; and as he moved from side to side, in his efforts, he edged nearer and nearer toward the pansy; finally his bare foot rested upon it, his pliant toes closed upon it, and he hopped away with the treasure and disappeared round the corner. But only for a minute -- only while he could button the flower inside his jacket, next his heart -- or next his stomach, possibly, for he was not much posted in anatomy, and not hypercritical, anyway.” p. 48, Cap. III


O narrador de “Aventuras de Tom Sawyer” é um adulto a observar as crianças e os demais adultos, com ironia e bom-humor (às vezes, meio amargo), e com um distanciamento de algumas décadas ( o narrador está em 1876 e os fatos narrados entre 1845 e 1855, antes da Guerra de Secessão, e, portanto, da abolição da escravatura. O próprio autor revela esse 'delay' num prefácio, ao lembrar que a época do enredo se situa “trinta ou quarenta anos atrás”.


O narrador busca a cumplicidade do(s) leitor(es) ao dizer afetuosamente sobre o protagonista (“o nosso amigo Tom”), afinal, já estamos afeiçoados ao maroto Tom Sawyer, a criança ao mesmo tempo ingênua e sabida, sincera e oportunista, para quem só importa a diversão, única solução no mundo tedioso e fatigante dos adultos. Aliás, é o olhar da criança que revela as contradições do mundo dos adultos.



Hilárias também as cenas no culto religioso, onde Tom se distrai do tédio do sermão com atividades bem juvenis – contar as folhas do discurso, brincar com um besouro, observar um cão em brincadeiras... “Tom contava as páginas do sermão; depois da igreja ele sempre sabia quantas páginas foram, mas ele raramente sabia sobre o quê havia sido o discurso.” (“Tom counted the pages of the sermon; after church he always knew how many pages there had been, but he seldom knew anything else about the discourse.” Cap. V)

Eis que aparece o menino Huckleberry Finn, ainda figurante em “Tom Saywer” mas depois o protagonista do próximo livro. O menino Huckleberry é uma espécie de menino impulsivo, espontâneo e iletrado, quase um Pedro Malasartes, por sua vez, Tom Sawyer é um menino que se deixa vagar em ideias ao ler os livros, “Quanto mais dificilmente Tom tentava concentrar sua mente no seu livro, mais as suas ideias vagueavam.” (“The harder Tom tried to fasten his mind on his book, the more his ideas wandered.” p. 89, cap. VII) Tom gosta de aventuras de 'letrados', é um Dom Quixote juvenil, gosta de livros de Robin Hood, piratas, de ilhas desertas e tesouros escondidos.


“Pouco depois, Tom se encontrou com o jovem pária da vila, Huckleberry Finn, filho de um bêbado da cidade. Huckleberry era cordialmente odiado e temido por todas as mães da cidade, pois ele era preguiçoso e sem-lei e vulgar e mau – e porque todas as crianças o admiravam, e se divertiam na sua companhia proibida, e desejavam ser ousadas iguais a ele. Tom era igual ao resto dos meninos respeitáveis, no que ele invejava Huckleberry a tal condição de escandoloso pária, e estava sob estritas ordens para não brincar com ele. Assim ele brincava com Finn toda vez que tinha chance. Huckleberry estava sempre vestido com roupas usadas de adultos, e estava sempre num perene florir e agitar de trapos. Seu chapéu estava em ruínas com uma parte pendida da aba; seu paletó, quando ele vestia um, balançava quase até nos calcanhares, e com os botões às avessas; mas um suspensório segurava suas calças; o fundo das calças sobrava e sem nada, as franjas das pernas todas sujas quando não enroladas.

Huckleberry andava pra cima e pra baixo, todo livre. Dormia nos vãos das portas na época de clima bom e barris vazios quando chovia; ele não precisava ir à escola ou à igreja, ou chamar alguém de mestre ou obedecer alguém; ele podia pescar e nadar quando ele bem quisesse, e ficar lá até quando o agradasse; ninguém o proibia de brigar; ele podia se levantar quando lhe agradasse; ele era sempre o primeiro menino a andar de pés descalços na primavera e o último a recolocar sapato no inverno; ele nunca se lavava, nem usava roupas limpas; ele podia fazer juras à vontade. Em resumo, tinha tudo o que poderia fazer preciosa a vida daquele menino. Assim pensava cada menino contido, tolhido e respeitável em São Petersburgo.”

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“Shortly Tom came upon the juvenile pariah of the village, Huckleberry Finn, son of the town drunkard. Huckleberry was cordially hated and dreaded by all the mothers of the town, because he was idle and lawless and vulgar and bad -- and because all their children admired him so, and delighted in his forbidden society, and wished they dared to be like him. Tom was like the rest of the respectable boys, in that he envied Huckleberry his gaudy outcast condition, and was under strict orders not to play with him. So he played with him every time he got a chance. Huckleberry was always dressed in the cast-off clothes of full-grown men, and they were in perennial bloom and fluttering with rags. His hat was a vast ruin with a wide crescent lopped out of its brim; his coat, when he wore one, hung nearly to his heels and had the rearward buttons far down the back; but one suspender supported his trousers; the seat of the trousers bagged low and contained nothing, the fringed legs dragged in the dirt when not rolled up.

Huckleberry came and went, at his own free will. He slept on doorsteps in fine weather and in empty hogsheads in wet; he did not have to go to school or to church, or call any being master or obey anybody; he could go fishing or swimming when and where he chose, and stay as long as it suited him; nobody forbade him to fight; he could sit up as late as he pleased; he was always the first boy that went barefoot in the spring and the last to resume leather in the fall; he never had to wash, nor put on clean clothes; he could swear wonderfully. In a word, everything that goes to make life precious that boy had. So thought every harassed, hampered, respectable boy in St. Petersburg.”
pp. 78-79, Cap. VI


Enquanto não está em aventuras, Tom experimenta os primeiros aprendizados da paixão com a menina Becky Thatcher - semanas antes era com a Amy Lawrence – ah, quão volúvel é o coração juvenil... Como um menino corajoso e a aventureiro vê as meninas, que, ainda mais naquela época, viviam recolhidas, reclusas, para o ambiente pacato da vida doméstica? Eis outra leitura que poderíamos fazer.


Em Tom Sawyer encontramos várias contradições e arbitrariedades do mundo adulto na perspectiva do olhar infantil. Como as crianças quase jovens vêem a injustiça, a desonestidade e os privilégios dos adultos? Dos mesmos adultos que se dizem ‘exemplos’...

Os adultos que pregam (e exigem) honestidade, justiça, honra, dignidade, são os mesmos a pisarem tudo isso em razão de interesses, de ambições individuais, que perturbam a desejada ‘paz social’.

Numa aventura, em pleno cemitério à noite, Tom e Huck são testemunhas de um crime e de como um dos bandidos incrimina o outro – a ponto da própria ‘justiça’ ser confundida e deturpada – as crianças descobrem que o mundo adulto não é mesmo perfeito.


Sem a devoção de Becky Thatcher, Tom Sawyer volta a se dedicar à ‘pirataria’ – vai para uma ilha fluvial – a ilha Jackson – junto com outros meninos-piratas, Huck, o Mão Rubra e Joe Harper, o Terror dos Mares – onde assume o medonho nome de Vingador Sombrio do Caribe.

As aventuras de Pirata – que conhecemos das páginas de Peter Pan - os meninos 'piratas' de Tom Sawyer inspiraram os 'meninos perdidos' de Peter Pan – ou os piratas são um patrimônio universal na literatura? Vejamos o sucesso de “Ilha do Tesouro” de R. L. Stevenson, em 1883,


“Ele seria um pirata! Eis então! Agora o seu futuro estava diante dele, brilhando com inimaginável esplendor. Como o seu nome encheria o mundo, e faria as pessoas se arrepiarem! Quão gloriosamente ele saquearia os mares dançantes, em seu imenso navio sombrio, o Espírito da Tormenta, com sua pavorosa bandeira esvoaçando no mastro! E no zênite da fama, como ele apareceria, subitamente, no velho vilarejo e adentraria a igreja, todo bronzeado e abatido pelas intempéries, vestido com jaquetão e calções escuros, e grandes botas, e uma bandana rubra, carregando pistolas no cinturão, seu cutelo já desgastado pelos crimes, seu desleixado chapéu com plumas ondulantes, sua bandeira sombria desfraldada, com a imagem do crânio e ossos cruzados, e ouvindo com êxtase crescente os sussurros, “Pois é o Tom Sawyer, o Pirata! – O Vingador Sombrio do Caribe!” “
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“He would be a pirate! That was it! Now his future lay plain before him, and glowing with unimaginable splendor. How his name would fill the world, and make people shudder! How gloriously he would go plowing the dancing seas, in his long, low, black-hulled racer, the Spirit of the Storm, with his grisly flag flying at the fore! And at the zenith of his fame, how he would suddenly appear at the old village and stalk into church, brown and weather-beaten, in his black velvet doublet and trunks, his great jack-boots, his crimson sash, his belt bristling with horse-pistols, his crime-rusted cutlass at his side, his slouch hat with waving plumes, his black flag unfurled, with the skull and crossbones on it, and hear with swelling ecstasy the whisperings, "It's Tom Sawyer the Pirate! -- the Black Avenger of the Spanish Main!" ” p. 98-99, Cap. VIII


Enquanto isso, os familiares supõem a morte dos rapazes, possivelmente afogados no rio. Becky soluça, suspira, a sentir a falta do ‘exibido’ Tom Sawyer. Outros moradores do povoado também sentem a falta do menino que antes ‘infernizava’ meio mundo.

Mas os meninos se divertem, como bons ‘piratas’ que são, a pescar, acampar, viver no meio hostil da ilha. Mas, claro, logo eles começam a sentir saudades do povoado e das aventuras que lá tramavam. Claro, imaginam o que os parentes estão sentindo...

Mas em pleno velório, quando todos julgavam os meninos no fundo do rio, os meninos-piratas reaparecem! Tudo ideia de Tom: voltar para casa e presenciarem o próprio funeral...! (Tom desertara da ilha antes, fazendo uma secreta ‘visita’ aos familiares enlutados – claro que o menino diz, depois, que sonhou com o pranto dos parentes...)

Tom e seus amigos ‘piratas’ voltam triunfantes para a vida do vilarejo. O menino, logo vaidoso, esnoba a esnobe Becky – e aprende os primeiros truques da conquista amorosa. Afinal, tudo para o jovem Tom tem uma pitada de aventura – a ‘pirataria’ – na Ilha Jackson, mesmo com o sofrimento dos familiares. A brincadeira sempre inconseqüente pode trazer problemas e sofrimentos aos demais ... Tia Polly recrimina o menino: “Você nunca pensa em algo, exceto em seu próprio egoísmo” (Cap. 19)

Sempre vaidoso e aventureiro, Tom não oculta certo desprezo pelas meninas, sempre covardes e lamurientas, mas adora se mostrar (show off) para elas, ou atrair a atenção delas – principalmente de Becky. Tom não hesita em assumir a culpa de Becky – quando ela rasga um livro do professor – apenas para sentir o olhar de gratidão da menina.


Sempre com ares de herói, em busca de aprovação, Tom entra para a ordem dos “Cadetes da Temperança” – “Ele prometeu se abster de fumar, mascar e profanidade enq2uanto ele permanecesse um membro.” (“He promised to abstain from smoking, chewing, and profanity as long as he remained a member.” p. 211, Cap. 22) mas, por isso mesmo, nunca sentiu antes tanta vontade de fumar, mascar e praguejar!


“Tom logo percebeu-se atormentado com o desejo de beber e praguejar; o desejo crescia tão intenso que nada exceto a esperança de mostrar-se em faixa rubra fazia-o desistir da ordem”
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“Tom soon found himself tormented with a desire to drink and swear; the desire grew to be so intense that nothing but the hope of a chance to display himself in his red sash kept him from withdrawing from the order.” p. 211


Tom percebe, assim, outra característica do comportamento humano – quanto mais se quer abstêmio, mas vontade de voltar ao vício, quanto mais se deseja ser santo, mais inclinado ao pecado. Assim, eis a raiz de todos os males, todos os crimes.


Inclusive o crime de Injun Joe volta ao enredo. Afinal, todo este tempo, os meninos mantiveram o silêncio. Huckleberry manteve a promessa de calar-se. E – culpados – os meninos levam um pouco de tabaco e fósforos para o pobre prisioneiro Muff Potter, o injustiçado.


No tribunal, os meninos resolvem revelar a verdade – a voz das crianças é sempre ouvida com atenção pela comunidade, ou porque as crianças são sinceras ou porque vêem algo que os adultos não percebem. E Tom é novamente reconhecido como o herói da vila.


(Tom é sempre a figura dúbia do herói – anti-herói , quanto Huck Finn é o anti-herói, um Pedro Malasartes, que somente conheceremos, de verdade, no livro a ele dedicado, “As Aventuras de Huckleberry Finn”. Há diferenças entre Tom e Huck, quanto ao tipo de aventura que preferem. Enquanto Tom Sawyer se inspira para suas aventuras em leituras, Huckleberry é letrado, prefere a espontaneidade, desconhece as aventuras dos livros, não sabe quem foi Robin Hood... )


Na busca de mais aventuras, Tom decide sair com uma pá para escavar tesouros enterrados por piratas – o que não faz o excesso de leitura ? – e consegue convencer o desconfiado Huck – desde quando Tom sabe onde piratas enterram tesouros? Mas enquanto perambulam em busca de tesouros enterrados, os meninos encontram uma casa abandonada, e acabam por descobrir o paradeiro do foragido Injun Joe...


Assim de aventura em aventura, que não vamos revelar aqui, Tom e seus amigos fogem de bandidos, fazem piquenique, desbravam cavernas, se perdem entre galerias e estalactites, mergulham em lagos profundos, conhecem outras saídas nas margens fluviais, em suma, são crianças descobrindo aquele mundo natural, de interior sulista, à beira de um grande rio, onde, rumo ao oceano, no Golfo do México, passam apitando os navios-vapores.



(continua no ensaio sobre “As Aventuras de Huckleberry Finn”)


out/11

Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/



As fontes das citações são a Wikisource e a edição “The Adventures of Tom Sawyer”, New York, Collier Books, 1962. As traduções são minhas (LdeM)



fontes
http://en.wikisource.org/wiki/The_Adventures_of_Tom_Sawyer

Wikipedia

http://en.wikipedia.org/wiki/The_Adventures_of_Tom_Sawyer



filmes baseados em Tom Sawyer

The Adventures of Tom Sawyer
http://www.youtube.com/watch?v=7D4oDKTe3rk&feature=related

Tom Sawyer” (1973)
http://www.youtube.com/watch?v=8l3rAGMDU2I&feature=related




LdeM


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terça-feira, 27 de setembro de 2011

sobre OLIVER TWIST - de Charles Dickens








Sobre “Oliver Twist” (1838 )
do escritor inglês Charles Dickens (1812-1870)


Testemunho literário da criança órfã

Ao retratar as condições da exploração e da miséria no país pioneiro da industrialização – a Inglaterra pós-Revolução Industrial de meados do século 18 –, ao apresentar o estado de tantos cidadãos privados da real cidadania, enquanto alguns privilegiados reservam para si os ganhos da nova expansão econômica, o autor inglês Charles Dickens dá voz a uma denúncia na obra literária onde o protagonista é uma criança.


Nesta obra “Oliver Twist” - nome do protagonista – há um interesse de desvelar as condições de miséria, numa obra em folhetins que visa além das vicissitudes do pobre menino órfão, figura central numa obra onde se evidencia o desejo de retratar a realidade da desigualdade social – após a Revolução Industrial de meados do século 18, na Inglaterra e na França. Os pobres são seres excluídos das benesses do novo mundo comercial – e apenas podem recorrer ao paternalismo das instituições públicas.


Ao mostrar em forma literária estes lados sombrios da industrialização, Dickens se projeta enquanto escritor além da própria época, pois é notado enquanto testemunho, não apenas para os contemporâneos, mas até para os historiadores. Como foi a época dita Vitoriana na Inglaterra? Como se expandia o Império Britânico? Como as condições sociais se apresentavam nas distintas classes em relação aos ganhos e perdas do industrialismo?


O autor Dickens é testemunha de uma época de mudanças, com a França napoleônica derrotada, com o reacionarismo na Europa central – com os governos austríacos e russo firmes no poder centralizador -, com o atraso econômico das futuras Itália e Alemanha, ainda em processo de unificação, somente completado no ano da morte do escritor inglês. No sentido de autor-testemunha temos outros 'Dickens'. Assim, o Charles Dickens da França seria Victor-Hugo, enquanto o da Rússia seria Dostoiévski. Autores que não hesitam em mostrar os lados pouco gloriosos de suas sociedades.


Especificamente, o tema de “Oliver Twist” é o da orfandade, o do desamparo de uma criança num sistema injusto. Se o mundo já é cruel para os adultos, então imagine para as crianças!


Não faltam outros órfãos na literatura da Era vitoriana, vide o caso de David Copperfield, protagonista de romance do mesmo Dickens, e de Jane Eyre da escritora Charlotte Brontë do romance homônimo publicado em 1847. Na França temos o Gavroche, no romance “Les Misérables” de Victor-Hugo. A questão dos 'meninos de rua' (na Inglaterra, 'street child'; na França, 'gamin';) já era visível no século 19. No século 20, a triste condição das crianças abandonadas se fez visível no Brasil – basta lermos “Capitães da Areia”, 1935, de Jorge Amado.


Meus artigos sobre “Os Miseráveis
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/05/sobre-os-miseraveis-de-victor-hugo-1.html
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/06/continua-o-ensaio-sobre-os-miseraveis.html

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mais info sobre “Jane Eyre
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jane_Eyre
movie 2011 trailer
http://www.youtube.com/watch?v=C8J6Cjn06kA

movie 1996
http://www.youtube.com/watch?v=MsB3pTdg3RM


Mais sobre os órfãos na literatura da Era Vitoriana
http://www.victorianweb.org/genre/childlit/childhood4.html
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No formato folhetim – em publicação seriada, descontínua, não em livro, mas jornal – ajuda a criar um clima de suspense, pois o narrador interrompe a ação muitas vez num ápice, num aparente beco-sem-saída, onde o protagonista está nas mãos do(s) antagonista(s). Assim o leitor é 'fisgado' para acompanhar o desenrolar do enredo no próximo capítulo – na próxima edição do jornal. Assim cada capítulo apresenta uma súmula dos acontecimentos, para excitar a curiosidade dos leitores. (Assim faziam também um Cervantes, em seu extenso “Dom Quixote”, no século 17; Defoe e Swift, no século 18, com suas respectivas obras “Robinson Crusoé” e “Viagens de Gulliver”)

Vejam meus ensaios sobre estas obras em:

http://leoliteratura.zip.net/arch2008-09-28_2008-10-04.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/01/sobre-robinson-crusoe-de-d-defoe.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/09/as-viagens-de-gulliver-swift-parte1.html


O narrador de Oliver Twist se simpatiza evidentemente com o protagonista, o pobre órfão Oliver, e não hesita em caricaturas ao ironizar os antagonistas – os gentlemen, um tanto quanto obesos, que fazem caridade, os protetores de órfãos (Protetores? Como assim? Parecem mais uns carcereiros...) As contradições do sistema social são todas desmascaradas. A presença da riqueza (sugada das colônias ao redor do mundo) ao lado da miséria mais vergonhosa. Contradições. A bondade precisa da miséria? É preciso haver pobres para que os ricos possam exercer a piedosa caridade?


Conhecemos as 'workhouses' inglesas, os abrigos para os pobres e miseráveis, uma amostra do paternalismo dos Estado burguês em relação aos pobres. Uma forma de conter a miséria? Ou de isolar e controlar os pobre? Podemos ver análises mais profundas na leitura que o francês Michel Foucault faz dos asilos, hospícios, orfanatos e prisões enquanto benevolências estatais que visam 'vigiar e punir'.

O livro de Foucault chama-se justamente “Vigiar e Punir”, “Surveiller et Punir”, publicado em 1975

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vigiar_e_punir


Vários cidadãos se aproveitam da miséria alheia. O limpa-chaminés emprega crianças num trabalho insalubre e perigoso (ver outros casos na Europa, principalmente norte da Itália e Suíça, onde as crianças faziam o trabalho sujo, e morriam entaladas nas chaminés ou com câncer nos pulmões...) com a conveniente (para os exploradores...) aprovação dos ditos filantropos, além das autoridades.



É um drama real. Existem dois poemas do poeta William Blake que testemunham a presença miserável dos limpador-de-chaminés, “The Chimney-Sweep”, vejam o links. Blake fazia uma denúncia da modernidade industrial que condenava tantos a uma vida de misérias, enquanto alguns fidalgos lucravam.
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The Chimney Sweep
http://www.online-literature.com/blake/628/
http://en.wikisource.org/wiki/The_Chimney_Sweeper_(Blake,_1794)
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As descrições longas e complexas transmitem as imagens da London sombria, aquela mesma do fog noturno, com médicos e monstros, a London dos bairros miseráveis no país pioneiro do industrialismo. Seria justamente em London que o exilado Karl Marx ( 1818- 1883) escreveria a obra O Capital (“Das Kapital”, 1867), denunciando as explorações que moviam a acumulação capitalista.


Daí o assistencialismo para aliviar as agruras do capitalismo nascente, causador do êxodo rural para as grandes cidades, onde os camponeses são mão-de-obra barata para as indústrias em criação, ou então tripulação para os navios mercantes que percorrem o mundo na formação do Império Britânico (século 16 ao 20).


Foram assim as trágicas condições do êxodo rural, com a consequente exploração da mão-de-obra, que se repetiram na Alemanha e na Rússia no final do século 19 e no Brasil no início do século 20.


meu ensaio sobre “O Médico e o Monstro
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html

filme 1990
http://www.youtube.com/watch?v=ENrdQ2gStYU&feature=related

o trailer do filme “Sweeny Todd” (2007)
http://www.youtube.com/watch?v=L_hgrfZVlJA


Além do contexto, da época, da denúncia, temos o fenômeno da linguagem, da narrativa, do modus operandis da obra. Há uma linguagem prosaica e coloquial em Charles Dickens (assim como encontramos antes em outro clássico: Victor Hugo) quando apresenta aspectos do mundo que não eram interessantes aos círculos literários.


Assim como Victor Hugo, na obra “Os Miseráveis”, ao usar os termos de baixo calão e gírias de bandidos – a ponto de causar escândalo entre os literatos conservadores – , também Dickens usa gírias de criminosos e de miseráveis do subúrbio em suas obras, com destaque para “Oliver Twist”, onde o desejo de retratar a realidade da desigualdade social precisa se aliar a um registro das culturas à margem do mundo letrado e literário.


Nas citações de trechos do livro de Dickens (com tradução by LdeM) as fontes são a edição “Oliver Twist”, 1966, da Penguin Books e o arquivo da Wikisource.

O tom irônico do narrador é amargurado quando cita as condições de precariedade da infância de Oliver, vítima, cativo numa casa para pobres. Subnutrido, reprimido, sujeito a todo tipo de humilhação. A alimentação precária cria crianças doentias, anêmicas, apáticas. Nada de bom sairá deste assistencialismo para inglês ver.

“Não pode se esperar que este sistema de cultivo produzisse algum tipo de safra extraordinária ou esbelta. O nono aniversário de Oliver Twist encontrou-o na condição de criança pálida e franzina, diminuto em tamanho, e decididamente pequeno em dimensão. Mas a natureza ou a herança implantou no coração de Oliver um bom ânimo robusto. E tivesse tido pleno espaço para se expandir, graças à dieta disponível do estabelecimento; e talvez à esta circunstância seja atribuída o fato de ele ter afinal um nono aniversário.”
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“It cannot be expected that this system of farming would produce any very extraordinary or luxuriant crop. Oliver Twist's ninth birthday found him a pale thin child, somewhat diminutive in stature, and decidedly small in circumference. But nature or inheritance had implanted a good sturdy spirit in Oliver's breast. It had had plenty of room to expand, thanks to the spare diet of the establishment; and perhaps to this circumstance may be attributed his having any ninth birth-day at all.” (p. 49, cap. 2)


Sabemos o quanto Oliver sofreu no orfanato (aqui, workhouse, termo intraduzível, por ser típico do contexto britânico), onde vivera toda a infância, e agora seria 'negociado' como aprendiz para algum explorador de mão de obra infantil. Ao deixar seu 'lar', onde tanto sofreu, ele ainda chora.


“Esta não foi grande consolo para a criança. Jovem como ele era, de qualquer modo, ele tinha senso suficiente para fazer um dissimular de sentimento a continuar em grande mágoa. Não era questão difícil para o menino ter lágrimas nos olhos. Fome e mal-tratos são bons ajudantes quando se quer chorar; e realmente Oliver chorava mui naturalmente. A Sra. Mann dava-lhe mil abraços, e o que Oliver preferia mais, um pedaço de pão com manteiga, menos ele pareceria tão faminto quando ele fôra para a workhouse. Com uma fatia de pão na mão, e o pequeno gorro paroquial de tecido marrom sobre a cabeça, Oliver foi então levado pelo Sr. Bumble do lar miserável onde nem uma palavra ou olhar gentil jamais iluminou o tom sombrio de sua infância. E ainda ele irrompia numa agonia de mágoa infantil, quando o portão da cabana fechou-se atrás dele. Miserável tal qual os pequenos companheiros de miséria que ele deixava para trás, eles foram os únicos amigos que ele conhecera; e um senso de sua solidão no grande mundo, imergiu em seu peito infantil pela primeira vez.”
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This was no very great consolation to the child. Young as he was, however, he had sense enough to make a feint of feeling great regret at going away. It was no very difficult matter for the boy to call tears into his eyes. Hunger and recent ill-usage are great assistants if you want to cry; and Oliver cried very naturally indeed. Mrs. Mann gave him a thousand embraces, and what Oliver wanted a great deal more, a piece of bread and butter, less he should seem too hungry when he got to the workhouse. With the slice of bread in his hand, and the little brown-cloth parish cap on his head, Oliver was then led away by Mr. Bumble from the wretched home where one kind word or look had never lighted the gloom of his infant years. And yet he burst into an agony of childish grief, as the cottage-gate closed after him. Wretched as were the little companions in misery he was leaving behind, they were the only friends he had ever known; and a sense of his loneliness in the great wide world, sank into the child's heart for the first time.” pp. 52-53, cap. 2


Temos descrições detalhadas da cidade, capital britânica, numa época que supomos de prosperidade – no ápice do Império Britânico, a Era Vitoriana – mas que não é tão próspera assim para todos. Somente alguns lucram com o imperialismo. Lembramos das descrições de Paris na prosa de Victor Hugo e na poesia de Baudelaire. As cidades grandes enquanto lugares pouco convidativos, enquanto espaços desiguais, onde a miséria é a contraparte do luxo.


“Eles andaram, por algum tempo, através da parte mais tumultuada e densamente povoada da cidade; e então, avançando por uma ruela mais suja e miserável do que qualquer outra na qual passaram, pararam para procurar a casa que era objeto da procura. As casas de um lado ou outro eram altas e largas, mas muito antigas, e ocupadas por pessoas da classe mais pobre: como a aparência negligente deles teria sido suficientemente notada, sem o concorrente testemunho permitido pelos esquálidos olhares dos poucos homens e mulheres que, com braços inclinados e corpos meio dobrados, ocasionalmente a se esconderem. A grande maioria dos blocos de casas tinham lojas na frente; mas estas eram logo fechadas, e decaíam; apenas os cômodos superiores eram habitados. Algumas casas que ficaram inseguras devido a idade e decadência, eram prevenidas de caírem na rua, por imensos vigas de madeira apoiadas contra as paredes, e firmemente plantada na rua; mas mesmo estes antros loucos pareciam ter sido selecionados como os abrigos noturnos de alguns miseráveis sem-casa, pois muitas tábuas rudes que substituíam o lugar de porta e janela, eram arrancadas de seus lugares, para permitir uma abertura suficiente para a passagem de um corpo humano. O canil estava imundo. Os muitos ratos, que aqui e ali jaziam putrefatos em sua podridão, estavam horrendos com fome.”
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“They walked on, for some time, through the most crowded and densely inhabited part of the town; and then, striking down a narrow street more dirty and miserable than any they had yet passed through, paused to look for the house which was the object of their search. The houses on either side were high and large, but very old, and tenanted by people of the poorest class: as their neglected appearance would have sufficiently denoted, without the concurrent testimony afforded by the squalid looks of the few men and women who, with folded arms and bodies half doubled, occasionally skulked along. A great many of the tenements had shop-fronts; but these were fast closed, and mouldering away; only the upper rooms being inhabited. Some houses which had become insecure from age and decay, were prevented from falling into the street, by huge beams of wood reared against the walls, and firmly planted in the road; but even these crazy dens seemed to have been selected as the nightly haunts of some houseless wretches, for many of the rough boards which supplied the place of door and window, were wrenched from their positions, to afford an aperture wide enough for the passage of a human body. The kennel was stagnant and filthy. The very rats, which here and there lay putrefying in its rottenness, were hideous with famine.” p. 81, cap. 5


Oliver é o pobre órfão explorado e humilhado na casa do fazedor de caixões, então o pequeno órfão resolve fugir – a pé para Londres. (Em “David Copperfield”, é o protagonista que, assaltado e desamparado, vai a pé de Londres a Dover, numa longa caminhada de quatro dias.) Estamos diante do menino em crescimento, ao perceber o mundo, quando Oliver passa a ficar mais interessante, pois ele toma atitudes, não se deixará tão passivo – ou ingênuo, como queiram.


Ele chegará em Londres, ou antes, no caminho, já entrará em contato com outras personagens, outras figuras à margem, vultos do submundo, pessoas que lutam para sobreviver na miséria gerada pela desigualdade de renda. Meninos que roubam para viver. Mas Oliver, ainda aprisionado (ou protegido) pela ingenuidade, demorará um tempo para se aperceber disso.


O garoto, com aspecto de pequeno adulto, que Oliver encontra, de modo tão inesperadamente, meio a jornada, será então o guia para o submundo, onde as vítimas do sistema se tornam novos criminosos, novos réus. Aparece a figura do judeu Fagin, que explora as crianças pobres, treinando-as para um interessante 'jogo' de tirar os pertences dos gordos gentlemen, enquanto os cidadãos flanam pelas tumultuadas ruas londrinas.


As descrições de Dickens são primorosas – ele deseja que o leitor veja o que ele imagina – monta tudo como um cenário, no qual inserir as personagens, que completam a descrição com a sequência de diálogos – tal qual estamos acostumados hoje nas telenovelas: pois tudo começou com as novelas em folhetim, no século 19. É primorosa a descrição do habitat do desonesto Fagin.


“As paredes e teto da sala eram totalmente sujos e enegrecidos com o tempo. Havia uma mesa de madeira diante do fogo: sobre a qual havia uma vela, enfiada numa garrafa de cerveja, dois ou três potes, um pão e manteiga, e um prato. Numa frigideira, que estava ao fogo, e que estava segura à cornija da lareira por um fio, algumas salsichas cozinhavam; e estando de pé sobre elas, com um garfo nas mãos, estava um enrugado velho judeu, cuja perversa e repulsiva face estava obscurecida por uma entrelaçada mecha de cabelo rubro. Ele vestia um roupão de flanela todo seboso, com o pescoço exposto; e parecia dividir a atenção entre a frigideira e o cabide, sobre o qual pendia um grande número de lenços de seda. Muitas camas rudes feitas de sacos, estavam ajuntadas lado a lado no chão. Sentados ao redor da mesa estavam quatro ou cinco meninos, nenhum deles mais velhos que Dodger, fumando longos cachimbos de argila, e bebendo aguardente com ares de velhos senhores. Todos estes se amontoaram ao redor do companheiro deles quando ele sussurrou ao judeu umas poucas palavras; e então voltaram-se e sorriam em careta para Oliver. Assim fez o próprio judeu, com o garfo na mão.”
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The walls and ceiling of the room were perfectly black with age and dirt. There was a deal table before the fire: upon which were a candle, stuck in a ginger-beer bottle, two or three pewter pots, a loaf and butter, and a plate. In a frying-pan, which was on the fire, and which was secured to the mantelshelf by a string, some sausages were cooking; and standing over them, with a toasting-fork in his hand, was a very old shrivelled Jew, whose villainous-looking and repulsive face was obscured by a quantity of matted red hair. He was dressed in a greasy flannel gown, with his throat bare; and seemed to be dividing his attention between the frying-pan and the clothes-horse, over which a great number of silk handkerchiefs were hanging. Several rough beds made of old sacks, were huddled side by side on the floor. Seated round the table were four or five boys, none older than the Dodger, smoking long clay pipes, and drinking spirits with the air of middle-aged men. These all crowded about their associate as he whispered a few words to the Jew; and then turned round and grinned at Oliver. So did the Jew himself, toasting-fork in hand." p. 105, cap. 8


Oliver é 'convidado' a integrar-se ao grupo de meninos e participar dos treinamentos para um interessante 'jogo' – o de como tirar os lenços e carteiras dos bolsos e paletós alheios – mas sem despertar a atenção das vítimas. Ser o mais sutil e eficiente possível, tirar um pertence sem levantar suspeitas...


Certamente que a narrativa é irônica. Afinal que 'hopeful pupils' (discípulos esperançosos) temos aqui? Não são apenas pobres crianças exploradas por um bandido? Ele, o judeu com ares suspeitos, 'ampara' as crianças desde que elas 'trabalhem' para ele – ou seja, pratiquem os pequenos furtos. As crianças estão sob a 'proteção' de um criminoso em tanto desamparo como quando sob a tutela dos 'sábios cavalheiros' das instituições públicas filantrópicas.


Qual a diferença entre os 'gentlemen' que lucram com a 'venda' das crianças para os cargos de 'jovens aprendizes' em relação ao bandido que usa as crianças para lucrar com pequenos furtos? Em ambos, as crianças servem a interesses alheios – que em nada aliviam a miséria e desamparo delas.


O uso da fala coloquial e de gírias aumenta o teor de hilaridade trágica – afinal, as crianças são mais vítimas de um sistema mercenário do que realmente culpadas pelos pequenos roubos.

Assim, Oliver entra no estilo de vida bem animado dos pupilos do Sr. Fagin, crápula, sem escrúpulos, explorador de crianças pobres. O 'jogo' de tirar pertences alheios é exaustivamente praticado para manter os meninos em forma para o 'jogo' lá nas ruas do mercado, no meio da multidão. Oliver vê como um 'jogo', mas sabemos – enquanto bons leitores que somos – que toda a cena é por demais clara: os meninos treinam para serem batedores-de-carteira, para serem eficientes ladrões. Que belo aprendizado!


Mais tarde, Oliver perceberá finalmente em que espécie de jogo ele está envolvido, ao contemplar Dodger e Bates, os eficiente meninos, em ação,

“Com que horror e alarme estava Oliver quando ele parou a poucos passos, com suas pálpebras bem abertas, tanto quanto possível, a ver Dodger mergulhar sua mão dentro do bolso do velho cavalheiro, e tirar de lá um lenço! A ver a mão de Charley Bates fazer o mesmo; e finalmente observá-los, ambos correndo a fugir rumo a esquina com toda velocidade!

Num instante o completo mistério dos lenços, e os relógios, e das joias, e o judeu, percorreu a mente do menino. Ele parou, por um momento, com o sangue pulsando de terror, a ponto de sentir-se queimando vivo; então, confuso e assustado, ele escapuliu; e, sem saber o que fazia, ele correu tão rápido quanto poderia seus pés no chão.

Tudo foi num espaço de um minuto. No instante exato em que Oliver começou a correr, o velho cavalheiro, ao colocar a mão no bolso, e sentindo falta do seu lenço, voltou-se brusco ao redor de si. Ao ver o menino escapulir com rapidez, ele naturalmente concluiu que aquele era o ladrão; e começou a gritar 'Pega ladrão!' com toda força, correu atrás dele, a segurar um livro.”
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"What was Oliver's horror and alarm as he stood a few paces off, looking on with his eyelids as wide open as they would possibly go, to see the Dodger plunge his hand into the old gentleman's pocket, and draw from thence a handkerchief! To see him hand the same to Charley Bates; and finally to behold them, both running away round the corner at full speed!

In an instant the whole mystery of the hankerchiefs, and the watches, and the jewels, and the Jew, rushed upon the boy's mind. He stood, for a moment, with the blood so tingling through all his veins from terror, that he felt as if he were in a burning fire; then, confused and frightened, he took to his heels; and, not knowing what he did, made off as fast as he could lay his feet to the ground.

This was all done in a minute's space. In the very instant when Oliver began to run, the old gentleman, putting his hand to his pocket, and missing his handkerchief, turned sharp round. Seeing the boy scudding away at such a rapid pace, he very naturally concluded him to be the depredator; and shouting 'Stop thief!' with all his might, made off after him, book in hand."
p. 114, cap. 10


Encontrar Oliver assim envolvido no mundo dos criminosos é de partir o coração. E era exatamente isso que o autor Dickens pretendia : emocionar a plateia com as vicissitudes do protagonista tão ingênuo. Eis onde a ingenuidade leva: o pequeno órfão entra para uma gangue de menores infratores. Aumenta-se o ingrediente de peripécias – e emoção! - com as cenas de pequenos roubos, ainda que tenha-se que arruinar a pureza de Oliver – até então irreprovável.

Esta complexa condição da criança-protagonista enquanto herói envolvido com anti-heróis está presente também em obras como “Meninos da Rua Paulo” (1906, de Ferenc Mólnar) e “Capitães da Areia” (1935, de Jorge Amado), obras das quais brevemente nos ocuparemos aqui.


Mas Oliver consegue atrair a atenção do cavalheiro que foi vítima – o Sr. Brownlow – que não acreditar que o pequeno Oliver seja mesmo um batedor-de-carteiras. E o cavalheiro faz de tudo para esclarecer o roubo, e assim inocentar o nosso protagonista. Para evitar que Oliver seja incriminado, o Sr. Brownlow intervém junto às autoridades e consegue obter permissão para cuidar do menino.


O narrador onisciente alterna cenas de Oliver sob os cuidados do Sr. Brownlow e da Sra. Bedwin, com as cenas no interior do covil do meninos criminosos. O contraste entre os solícitos e altruístas com os egoístas e mercenários. A figura do Sr. Brownlow é contrastada com a presença do destemido bandido arrombador, o cruel Bill Sikes, que traz afetivamente cativa uma mocinha, meio anti-heroína, chamada Nancy.


Mas a permanência de Oliver na confortável casa do Sr. Brownlow é muito curta. Logo, o menino, ao ser enviado para devolver uns livros, é 'resgatado' por uma mocinha do grupo de pequenos ladrões. Oliver é levado de volta ao covil do judeu Fagin, pois este teme que o menino denuncie os avanços 'pedagógicas' do grupo de 'esperançosos pupilos'.


Logo Oliver está envolvido em crimes mais sérios, por exemplo, arrombamentos. O professor é o cruel Sikes, que usa os meninos para adentrar uma mansão e localizar bens preciosos para o roubo. A invasão, felizmente e infelizmente, não obteve sucesso e o indefeso Oliver é ferido. Mas para a sua sorte – felizmente – ele é acolhido pelos donos da casa, quando os 'colegas' ladrões fogem.


O próprio narrador tem consciências das alternâncias e vicissitudes que afligem a vida do pobre protagonista. É assim logo no início do Capítulo 17, quando apresenta um novo antagonista. O narrador se permite uma espécie de pausa meditativa, para abordar a própria tarefa de narrar, a própria condição de autor, aquele que é responsável pelos focos narrativos, pela escolha das sequências, ao manter uma atmosfera de suspense, ainda no gênero descontínuo do folhetim “sendo a habilidade de um autor, para tais críticos, principalmente considerados em relação aos dilemas nos quais ele deixa seus personagens ao final de cada capítulo: esta breve introdução agora talvez deva ser considerada desnecessária” (“an author's skill in his craft being, by such critics, chiefly estimated with relation to the dilemmas in which he leaves his characters at the end of every chapter: this brief introduction to the present one may perhaps be deemed unnecessary.” p. 169)


Não bastavam os inimigos que Oliver já coleciona – autoridades, gentlemen, limpadores-de-chaminés, agentes funerários, bandidos – agora outra personagem rasteja nas sombras. Quem é o tal Monks que se obstina em perseguir Oliver? Por que tanto esforço em arruinar a vida do menino? De onde Monks conhece o nosso protagonista?


O misterioso Monks demonstra saber muito sobre as circunstâncias do nascimento de Oliver – e ele quer saber mais. Por que tanta obstinação? Interesse que muito intriga o próprio antigo bedel. Será que Monks é o pai de Oliver? É possível que ele tenha abandonado a mãe do menino quando ela se declarou grávida... Agora Monks quer ter certeza?


Eis o mistério que re-aquece o interesse de nós leitores para prosseguirmos no folhetim por mais uns 40 capítulos … Uma verdadeira novela – futuramente teremos as 'telenovelas' - em longas sequências arquitetadas de modo a cativar a atenção dos leitores (ou telespectadores) enquanto durar a série. O enredo é dado aos poucos – é impossível para o leitor folhear até o final para saber como vai acabar a trama.


Enquanto os bandidos da gangue de Fagin, Sekis, e o misterioso Monks armam para destruir o protagonista, de outro lado o Sr. Brownlow não desistiu de sua simpatia por Oliver. Quer saber mais sobre o nascimento do menino, inclusive descobrir onde nasceu e em que circunstâncias. Assim temos duas personagens a 'vasculharem' o passado do protagonista, mas com propósitos diversos. Enquanto Monks quer 'provar' o caráter irrecuperável de Oliver, o Sr, Brownlow quer provar o contrário, que o menino é bom, e não será corrompido.


Enquanto Oliver recebe cuidados e carinho na casa, que ajudara antes a invadir, os gatunos da gangue do Fangin traçam planos para recapturar o menino. Mas providencialmente – ou porque o autor assim deseja – acontece a volta do Sr. Brownlow, que é reconhecido por Oliver. É preciso que o protagonista prove que não sumiu com os livros, mas foi capturado antes pelos bandidos.


Os inícios dos capítulos geralmente são descritivos – assim montam o cenário – para a introdução das personagens, com suas ações e diálogos. O tipo de descrição já faz prever o que será narrado – ora lúgubre, ora irônica – de acordo com as situações vivenciadas, sofridas, toleradas pelo protagonista (ou pelos antagonistas dele). O narrador é esperto ao alternar descrições, dramas, diálogos, novas descrições, numa tessitura verbal que mantém o leitor em suspense. (Hoje em dia isso é feito pela mídia visual – teatro, cinema, televisão – não sendo mais exclusividade da boa literatura)

Quando a narração perde o impulso, quando há uma pausa na sequência de vicissitudes, o narrador aproveita para se manifestar, se explicar, dialogar com os possíveis leitores (é aquele narrador de Sterne, de Machado de Assis, e de José Saramago, uma voz manifesta e explícita, que bem conhecemos). Vejamos um exemplo, quando na súmula do capítulo, o narrador se explica, quase pede paciência ao leitor. Este capítulo parece pouco importante? Nada disso: tem algo que será importante nos seguintes.

Capítulo 36 “É um bem curto, e deve até parecer aqui sem muita importância. Mas deve ser lido, apesar disso, como uma sequência ao último [capítulo], e uma chave para o que se segue quando for o momento” (“Is a very short one, and may appear of no great Importance in its Place. But it should be read, notwithstanding, as a Sequel to the last, and a Key to one that will follow when its Time arrives.” p. 318)

O narrador não hesita em lembrar que se trata de uma narração, e que há um leitor ali do outro lado. “Capítulo 37 – No qual o Leitor deverá perceber um contraste, não incomum em casos matrimoniais” (“In which the Reader may perceive a Contrast, not uncommon in matrimonial Cases”)


O pequeno resumo no início de cada capítulo cria uma expectativa, levada ao ápice durante a leitura, que se encerra no momento de anunciar o próximo capítulo. Esta forma de enredo serial acabou por gerar formas culturais que temos até hoje nas telenovelas e séries (veja por exemplo os seriados norte-americanos, que se estendem por várias temporadas, em enredos complexos) que exploram a curiosidade - sempre incentivada - da plateia.


O enredo precisa ser complexo – com vários sub-tramas paralelas – para alongar as aventuras (e desventuras) antes de apresentar as resoluções dos conflitos. Quem é mesmo Oliver? Quem é o Sr. Brownlow que pesquisa sobre o passado de Oliver? Quem é Monks que tenta apagar o passado de Oliver? O que acontecerá com a gangue de meninos ladrões de Fagin? O que acontecerá com o cruel arrombador Bill Sikes? São estes os motivos que cativam o leitor.


Sabemos que o(s) antagonista(s) merecem uma punição. Punição esta que terá vez em momento oportuno – isto é, nas páginas finais do romance-folhetim. E muitas vezes o que parece ser o pior vilão ainda mostra-se 'fraco' perto de alguém ainda mais perverso. Aqui em “Oliver Twist” se pensamos que os vilões são o aliciador de menores Fagin ou o ladrão-arrombador Sikes, é porque ainda não entendemos o verdadeiro papel de Monks neste enredo. Ele é a verdadeira sombra na vida do menino Oliver. Monks é em verdade o antagonista-mor nesta triste história do órfão. Quem é ele? Qual o interesse em destruir a vida do pobre órfão? O mistério vale a leitura.


A quantidade de antagonistas e figurantes (muitos são explícitas caricaturas como o bedel Bumble ou o vilão Fagin) que cercam o protagonista servem ao mesmo tempo para destacar a importância do contexto – a sociedade ao redor de Oliver – como para ressaltar o indivíduo Oliver – a personagem mais bem apresentada. Sendo Oliver o foco da narrativa, com tudo girando ao seu redor, não é de se admirar que os eventos aconteçam a partir de Oliver – e não, como é lógico, da sociedade (os outros) para Oliver (geralmente o afetado, o vitimado). Isso acontece porque nossa atenção está toda em Oliver, que cativa nossa compaixão.


Mas podemos por alguns momentos abstrair o protagonista e imaginar que temos um painel de época – ao estilo Balzac – onde as personagens servem mais para apresentarem 'tipos' humanos, num recorte de cima a baixo no tecido social. Oliver então deixa de ser o indivíduo Oliver e torna-se caricatura, o 'tipo' do 'pequeno órfão'. Mas então perde-se muito do sentimento que o leitor pode nutrir pelo protagonista – que precisa gerar alguma simpatia ou admiração ou identificação. Caso contrário, o leitor vai abrir outro livro, ler outro folhetim. E sabemos o quanto isso desagradaria ao caro autor Dickens.



Set/ 11






Um site com as tantas personagens das obra de Charles Dickens
http://www.fidnet.com/~dap1955/dickens/characters.html



Oliver Twist na Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/Oliver_Twist

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=euIaw5TPJSk&feature=related


filmes baseados em “Oliver Twist

Oliver Twist” (2005)
http://www.youtube.com/watch?v=xpYVXdpm6zg

Oliver Twist” (TV movie, 1997)
http://www.youtube.com/watch?v=tlVXyO-zmJY&feature=related

Oliver !” (1968)
http://www.youtube.com/watch?v=TDIRNqNdsTI

Oliver Twist” (1948)
http://www.youtube.com/watch?v=hHv14Fbq1UM

Oliver Twist” (1933)
http://www.youtube.com/watch?v=XMvB8wKUZ_4&feature=related


LdeM


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