sexta-feira, 30 de março de 2012

Sobre 'Tonio Kroeger' - de Thomas Mann



Sobre a novela “Tonio Kroeger” (1903)

de Thomas Mann (1875-1955)



O jovem artista entre a visão e a maldição



Vimos nos romances anteriores, nas características do romance epistolar (Briefroman) , ou do romance de formação (Bildungsroman), narrativas que abordam jovens em processo de educação e socialização, e agora vamos abordar romances que tratam da vida artística, no estilo chamado romance de artista (Künstlerroman), as atribulações do gênio artístico em depuração.


A novela “Tonio Kroeger” se inicia tal qual o romance “Meninos da Rua Paulo” de F. Mólnar, um fim de aulam uma saída de colégio, como se os alunos fossem 'libertados' (ao menos eles se sentem assim...)



A escola acabara. Por sobre o pátio acimentado e para fora dos portões jorravam os bandos de libertados, dividiam-se e afastavam-se rumo à direita e à esquerda.” (trad. LdeM)(“Die Schule war aus. Über den gepflasterten Hof und heraus aus der Gatterpforte strömten die Scharen der Befreiten, teilten sich und enteilten nach rechts und links.” p. 205)


citações extraídas de : MANN, Thomas, Die Erzählungen. Band 1. Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1967. pp. 205-256



O jovem Tonio Kroeger, de 14 anos, espera ansioso o amigo Hans – jovem esportista, de popularidade. Mas tanto Tonio quanto Hans são de famílias respeitadas – pois os rapazes até recebem cumprimentos enquanto andam pelas ruas,


Constantemente os amigos deviam, devido aos muitos conhecidos, tirarem os chapéus, e sim, por muitas pessoas os rapazes de quatorze anos eram cumprimentados primeiro.”(“Beständig mußten die Freunde, der vielen Bekannten wegen, die Mützen herunternehmen, ja, von manchen Leuten wurden die Vierzehnjährigen zuerst gegrüßt…” p. 205)


A amizade não é tão perfeita assim. Tonio não se sente valorizado o suficiente pelo amigo Hans – a quem ele admira.


O caso era que Tonio amava Hans Hansen e tinha muito sofrido por ele. Quem ama mais é o submisso e deve sofrer, - esta simples e dura lição tinha sua alma de quatorze anos já recebido da vida.” (“Die Sache war die, daß Tonio Hans Hansen liebte und schon vieles um ihn gelitten hatte. Wer am meisten liebt, ist der Unterlegene und muß leiden, – diese schlichte und harte Lehre hatte seine vierzehnjährige Seele bereits vom Leben entgegengenommen; “ p. 207)


Sabemos que Tonio é filho de um cônsul, e precisa manter o respeito – não pode sequer cultivar um caderno de poemas! Imagine: um filho de burguês a escrever poesia? Imoral, certamente! Em “Tonio Kroeger” encontramos algo de autobiográfico – pois o autor Thomas Mann (e seu irmão Heinrich, também escritor) é filho de burgueses, de um alemão e uma brasileira. Ele enfrenta preconceitos e barreiras de classe para se dedicar a arte escrita. Também procura encontrar uma identidade entre duas etnias – a germânica e a latina.


A mãe de Tonio, a latina Consuelo, é descrita como 'morena e fogosa' (“dunkle und feurige”), 'bonita de cabelos negros' (“schönen, schwarzhaartigen Mutter”) e exerce uma influência espontânea, contrária ao do pai, mais voltado às brumosidades nórdicas.


O jovem Tonio é um ser meio introspectivo que vive a pensar sobre si mesmo,


Muitas vezes ele pensava mais ou menos: é bem suficiente que eu seja como eu sou, e não poder nem querer me modificar, negligente, teimoso e a procurar coisas, nas quais ninguém pensa.” (“Manchmal dachte er ungefähr: Es ist gerade genug, daß ich bin, wie ich bin, und mich nicht ändern will und kann, fahrlässig, widerspenstig und auf Dinge bedacht, an die [8] sonst niemand denkt.p. 208)


e sente-se deslocado do mundo, sem rumos tal um cigano, ou em conflito contínuo,


Não raramente ele pensava também: Por que eu sou assim diferente e em conflito com tudo, em desacordo com os professores e estranho entre os outros jovens? Veja-os, os bons alunos e os de sólida mediocridade. Eles não acham os professores esquisitos, eles não fazem versos e pensam sobre coisas, nas quais se pode pensar e nas quais se pode expressar em alto e bom som. Quão ordeiros e de acordo com tudo e todos devem se sentir! Deve ser bom... Mas e sobre mim, e como tudo isso vai terminar?”

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Nicht selten dachte er auch: Warum bin ich doch so sonderlich und in Widerstreit mit allem, zerfallen mit den Lehrern und fremd unter den anderen Jungen? Siehe sie an, die guten Schüler und die von solider Mittelmäßigkeit. Sie finden die Lehrer nicht komisch, sie machen keine Verse und denken nur Dinge, die man eben denkt und die man laut aussprechen kann. Wie ordentlich und einverstanden mit allem und jedermann sie sich fühlen müssen! Das muß gut sein… Was aber ist mit mir, und wie wird dies alles ablaufen?” p. 208


Enquanto muitos vivem sem reflexão, comportam-se e pensam em conformidade, alguns indagam sobre a vida, sobre a sociedade. São os pensadores, os filósofos, os artistas. Inconformados, eles, elas criam mundos alternativos na mente e depois atuam sobre o mundo – o pensamento utópico a agir sobre o mundo do comércio e da técnica.



Enquanto Tonio pensa sobre a vida, seu amigo Hans vive e aproveita a posição social. Hans é belo e tem sucesso, enquanto Tonio se sente deslocado, mestiço, quase um cigano na vida burguesa, ordeira e lucrativa. Ele admira o amigo de sucesso, e intimamente o inveja,


Quem assim olhos azuis tivesse, ele pensava, e assim viveria em ordem e feliz comunhão com todo o mundo igual a você! Assim você está ocupado de um modo bem decente e respeitado por todos.” (“Wer so blaue Augen hätte, dachte er, und so in Ordnung und glücklicher Gemeinschaft mit aller Welt lebte wie du! Stets bist du auf eine wohlanständige und allgemein respektierte Weise beschäftigt.” p. 209)


Certamente que Tonio não deseja ser popular tal qual o amigo Hans – mas ser admirado pelo popular Hans,


Ele não fazia a tentativa de se tornar igual a Hans Hansen, e talvez para ele não era muito sério com este desejo. Mas ele [Tonio] desejava, até dolorosamente, assim como ele era, tornar-se amado por ele [Hans], eele procurava conquistar seu amor ao seu modo, de um modo lento e íntimo, devotado, sofredor e melancólico, mas por uma melancolia, que podia arder mais profunda e consumidora que todas as paixões bruscas, que se poderia esperar de sua aparência estrangeira.”

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Er machte nicht den Versuch, zu werden wie Hans Hansen, und vielleicht war es ihm nicht einmal sehr ernst mit diesem Wunsche. Aber er begehrte schmerzlich, so wie er war, von ihm geliebt zu werden, und er warb um seine Liebe auf seine Art, eine langsame und innige, hingebungsvolle, leidende und wehmütige Art, aber von einer Wehmut, die tiefer und zehrender brennen kann als alle jähe Leidenschaftlichkeit, die man von seinem fremden Äußeren hätte erwarten können.” p. 210


O nome de Tonio, logo de início, é diferente – já causa diferenciação – não é um Wilhelm, nem Heinrich, nem Erwin, é um 'nome estrangeiro'. Tonio julga que o colega se envergonha de dedicar amizade a alguém com semelhante nome, “Mas por que Hans o chamava Tonio, quando estavam sozinhos, e quando ele, quando chegava um terceiro, começava a se envergonhar?” (“Aber warum nannte Hans ihn Tonio, solange sie allein waren, wenn er, kam ein dritter hinzu, anfing, sich seiner zu schämen? " p. 211)


A jovem loira Inge (Ingeborg Holm) é a primeira experiência de amor – ou da ideia de amor – pra o jovem Tonio. É mais uma paixão, no sentido de sofrimento, aquele mesmo sofrimento (Leidenschaft) do jovem Werther, que acompanhamos pesarosamente em ensaio anterior.


A experiência ensinou-lhe que isto era o amor. Mas apesar de ele saber que o amor devia-lhe trazer muito sofrimento, aflição e humilhação, que além disso destruiria a paz e transbordaria o coração com melodias, sem que encontrasse sossego para formar alguma coisa e em serenidade forjar algo completo, porém ele aceitava-o com alegria, entregava-se completa e cultivava-o com as forças de seu ânimo, então ele sabia que o amor fazia rico e vivaz, e ele desejava ser rico e vivaz do que forjar em serenidade algo completo...”

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Die Erfahrung lehrte ihn, daß dies die Liebe sei. Aber obgleich er genau wußte, daß die Liebe ihm viel Schmerz, Drangsal und Demütigung bringen müsse, daß sie überdies den Frieden zerstöre und das Herz mit Melodien überfülle, ohne daß man Ruhe fand, eine Sache rund zu formen und in Gelassenheit etwas Ganzes daraus zu schmieden, so nahm er sie doch mit Freuden auf, überließ sich ihr ganz und pflegte sie mit den Kräften seines Gemütes, denn er wußte, daß sie reich und lebendig mache, und er sehnte sich, reich und lebendig zu sein, statt in Gelassenheit etwas Ganzes zu schmieden…” p. 213



Mais sobre o jovem Werther

http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/02/sobre-os-sofrimentos-do-jovem-werther.html



A percepção do desejo vem golpear Tonio nas aulas de dança – lá onde desfilam a beleza de Inge , a figura do elegante Sr. Knaak, o professor francês, em volteios distantes do jovem, que observa sem participar efetivamente. Afinal, a figura de Inge, assim alegre, lírica, se envolve de idealizações de Tonio.


Eu te amo, amo, doce Inge, dizia ele intimamente, e ele deixava nestas palavras toda a sua dor quando ela estava tão aplicada e jovial na dança e não prestava atenção a ele.” (“Ich liebe dich, liebe, süße Inge, sagte er innerlich, und er legte in diese Worte seinen ganzen Schmerz darüber, daß sie so eifrig und lustig bei der Sache war und sein nicht achtete.” pp. 215-16)


O jovem Tonio se sente deslocado meio aos dançarinos, aos jovens que ora se divertem. Tonio quer ser aceito e amado como ele é,


Chegaria o dia quando ele seria famoso, quando seria tudo impresso o que ele escrevera, e então se veria se ele não causaria impressão em Inge Holm... Não causaria impressão, não, isto era certo. […]


O coração de Tonio Kroeger contraía-se dolorosamente com tal pensamento. A sentir como forças maravilhosas atuantes e melancólicas se movem dentro de ti e também saber que aqueles, a quem sentes atraído, lhes contrastar em jovial inacessibilidade, isto era doloroso.”

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Es kam der Tag, wo er berühmt war, wo alles gedruckt wurde, was er schrieb, und dann würde man sehen, ob es nicht Eindruck auf Inge Holm machen würde… Es würde keinen Eindruck machen, nein, das war es ja. […]


Tonio Krögers Herz zog sich schmerzlich zusammen bei diesem Gedanken. Zu fühlen, wie wunderbare spielende und schwermütige Kräfte sich in dir regen, und dabei zu wissen, daß diejenigen, zu denen du dich hinübersehnst, ihnen in heiterer Unzugänglichkeit gegenüberstehen, das tut sehr weh.” p. 217)


Contudo, Tonio gosta mais de amar do que ser amado, nas mesmas crises de 'amar e não ser correspondido', como vimos na tragédia do jovem Werther,


Assim a ventura, dizia-se ele, é não tornar-se amado; esta é uma satisfação, misturada com desgosto, para a vaidade. A ventura é, amar e talvez colher pequenas, falsas aproximações ao tema amado. E ele escrevia estes pensamentos intimamente, imaginava-o plenamente e sentia-o até a base.” (“Denn das Glück, sagte er sich, ist nicht, geliebt zu werden; das ist eine mit Ekel gemischte Genugtuung für die Eitelkeit. Das Glück ist, zu lieben und vielleicht kleine, trügerische Annäherungen an den geliebten Gegenstand zu erhaschen. Und er schrieb diesen Gedanken innerlich auf, dachte ihn völlig aus und empfand ihn bis auf den Grund.” pp. 217-18)



Sentindo-se limitado em sua cidade, junto a sua família decadente (e o tema da decadência familiar está em outro livro do autor Thomas Mann, “Os Buddenbrook”, 1901), o jovem Tonio Kroeger resolve viajar – como fazem os jovens alemães, - basta lembramos do clássico Wilhelm Meister (de Goethe) em suas aprendizagens e suas peregrinações – mesmo que ele não fosse um 'cigano numa carroça verde' (“Zigeuner im grünen Wagen”), mas um artista a buscar locais mais amenos, seguindo para o sul, onde observa as pessoas e seus costumes, suas linguagens,


Ela [sua jovem paixão] aguçava seu olhar e deixava-o compenetrar as grandes palavras, que enchem os peitos dos homens, ela desvelavam-lhe as almas dos homens e a sua própria, fazia-o ver claramente e revelava-lhe o íntimo do mundo e toda finalidade, o que está por trás das palavras e atos. O que, porém, ele via era isso: comédia e miséria – comédia e miséria.”

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Sie schärfte seinen Blick und ließ ihn die großen Wörter durchschauen, die der Menschen Busen blähen, sie erschloß ihm der Menschen Seelen und seine eigene, machte ihn hellsehend und zeigte ihm das Innere der Welt und alles Letzte, was hinter den Worten und Taten ist. Was er aber sah, war dies: Komik und Elend – Komik und Elend. p. 219


O sinal na testa (“das Mal an seiner Stirn”) – uma espécie de 'sinal de Caim' – como uma forma de distinção do excêntrico, do 'gauche', do ser original, do auto-exilado dos demais – confinados ao rebanho – também presente na obra “Demian” de Hermann Hesse, onde o protagonista Emil conhece Demian, colega muito diferente, com um olhar especial, ideias singulares, e passa a adentrar mais num mundo de introspecção e auto-aprendizado.


Chegou a solidão, com o sofrer e o orgulho do conhecer, porque a ele não tolerava ficar no círculo dos inocentes com o senso alegre e obscuro e o sinal na testa lhes perturbava.” (“Da kam, mit der Qual und dem Hochmut der Erkenntnis, die Einsamkeit, weil es ihn im Kreise der Harmlosen mit dem fröhlich dunklen Sinn nicht litt und das Mal an seiner Stirn sie verstörte.” p. 219)


Na ânsia de liberdade, Tonio passa a uma vida de aventuras, excentricidades e libertinagens, vivendo entre a busca espiritual e o desejo sexual (assim o Emil Sinclair de “Demian”, o Törless de “Jovem Törless” e Stephen Dedalus de “Artista quando jovem”,


Assim acontecia então que ele, desamparado entre bruscos extremos, entre férrea espiritualidade e devoradora luxúria lançado pra lá e pra cá, seguia uma vida esgotante sob pesos de consciência, uma vida excepcional, excessiva e desordenada, que ele, Tonio Kroeger, no fundo detestava. Que loucura! pensava ele às vezes. Como era isto possível que eu me envolvesse em todas estas aventuras excêntrica? Eu não sou nenhum cigano numa carroça verde, deixando a casa... “

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So kam es nur dahin, daß er, haltlos zwischen krassen Extremen, zwischen eisiger Geistigkeit und verzehrender Sinnenglut hin und her geworfen, unter Gewissensnöten ein erschöpfendes Leben führte, ein ausbündiges, ausschweifendes und außerordentliches Leben, das er, Tonio Kröger, im Grunde verabscheute. Welch Irrgang! dachte er zuweilen. Wie war es nur möglich, daß ich in alle diese exzentrischen Abenteuer geriet? Ich bin doch kein Zigeuner im grünen Wagen, von Hause aus…” p. 220


Que “aventuras excêntricas” são estas, não sabemos. O Narrador é demasiadamente reticente, não se alonga muito neste capítulo, o importante é saber que Tonio sofreu um tipo de metamorfose, uma saída do casulo, para a 'vida artística' – o tema de romance do tipo Künstlerroman,


Mas à medida que sua saúde foi debilitando, aguçava-se sua qualidade artística, ficou seletivo, primoroso, preciosista, refinado, excitado contra o banal e ao máximo sensível em questão de tato e gosto.” (“Aber in dem Maße, wie seine Gesundheit geschwächt ward, verschärfte sich seine Künstlerschaft, ward wählerisch, erlesen, kostbar, fein, reizbar gegen das Banale und aufs höchste empfindlich in Fragen des Taktes und Geschmacks.” p. 220)


A obra de Tonio passa a ser fruto de um sofrimento, e quanto maior a luxúria e/ ou a resignação, mais densa e elaborada a obra – o artista sofre e é aplaudido.


O tema do artista que sofre e somente assim cria / escreve a sua obra está também em obras de H. Hesse e Hemingway, além de Fitzgerald e Kerouac, onde o criador paga um preço (na carne e na alma) pelos aplausos e pela fama. Mas o verdadeiro artista não escreve para os outros, para alcançar fama, mas para tolerar a própria solidão, cria para viver (ou sobreviver),


Ele trabalhava silente, recluso, invisível e cheio de desprezo pelos pequenos, aos quais o talento era um gosto social, que, se eram tão somente pobres ou ricos, selvagens e abatidos acompanhados ou com gravatas personalizadas mostravam luxo, em primeira linha eram considerados a viver felizes, amáveis, e artísticos, no mais não sabendo que boas obras apenas surgiam sob pressão de uma vida grava, que quem vivia não trabalhava, e que devia ser morto para ser um completo criador.”

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Er arbeitete stumm, abgeschlossen, unsichtbar und voller Verachtung für jene Kleinen, denen das Talent ein geselliger Schmuck war, die, ob sie nun arm oder reich waren, wild und abgerissen einhergingen oder mit persönlichen Krawatten Luxus trieben, in erster Linie glücklich, liebenswürdig und künstlerisch zu leben bedacht waren, unwissend darüber, daß gute Werke nur unter dem Druck eines schlimmen Lebens entstehen, daß, wer lebt, nicht arbeitet, und daß man gestorben sein muß, um ganz ein Schaffender zu sein. “ pp. 220-221


Em “boas obras apenas surgiam sob pressão de uma vida grave” podemos notar algum eco das palavras de Nietzsche. E de fato é assim, tanto que o autor T. Mann em obra posterior – “Doktor Faustus” (escrito durante a Segunda Guerra, e publicado em 1947) - desenvolverá o tema do artista que sofre e assim é capaz de criar, sendo mais um ser maldito, tal o compositor Adrian Leverkühn, que paga o preço com a própria alma – assim a referência ao Dr. Fausto imortalizado por Goethe.


Finalmente surge uma personagem no mesmo nível do protagonista. É a jovem artista plástica russa Lisavieta Ivánovna, que mora em Munique. Dez anos se passaram. Tonio Kroeger deve ter quase trinta anos. Continuam suas buscas pela Obra, pela vida artística, pela honestidade consigo mesmo – seus diálogos com a artista russa tornam-se uma série de monólogos sobre o viver artístico, em cenas que lembram as conversas dos artistas em “O Fauno de Mármore” (de N. Hawthorne), e as inquietações de Stephen Dedalus sobre o que seja Arte. Mas parece que para os artistas o poeta Tonio é ainda um burguês.


sobre “O Fauno de Mármore” em

http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2010/10/sobre-o-fauno-de-marmore-de-n-hawthorne.html



Tonio pensa que a obra de arte deve ser original, excêntrica, e não a aparência do artista ( o contrário do que pensava e fazia o surrealista Salvador Dali, dono de uma arte e de sua figura extra-ordinária),


Ora, deixe meus trajes em paz, Lisaveta Ivanovna! Gostaria que eu andasse por aí numa poída jaqueta de veludo ou num colete de seda rubra? Se é enquanto artista inteiramente sempre aventureiro o suficiente. Exteriormente deve-se vestir-se bem, diabos!, e comportar-se como uma pessoa decente...” (“Ach, lassen Sie mich mit meinen Gewändern in Ruh', Lisaweta Iwanowna! Wünschten Sie, daß ich in einer zerrissenen Sammetjacke oder einer rotseidenen Weste umherliefe? Man ist als Künstler innerlich immer Abenteurer genug. Äußerlich soll man sich gut anziehen, zum Teufel, und sich benehmen wie ein anständiger Mensch…” p. 223)



Ou seja, Tonio continua a admirar as 'pessoas decentes – assim como admirava o belo burguês Hans Hansen – e não anda vestido igual aos excêntricos artistas (muitas vezes só têm o visual, pouco apresentando de arte consistente). Não basta ter sensibilidade ou sentimento para ser artista, é preciso construir um estilo, trabalhar com talento um material, e deste extrair a Obra. Um processo onde o criador 'é um fingidor' (segundo uma paródia de 'o poeta é um fingidor' de Fernando Pessoa),


E porque é um incompetente aquele que acredita que o criador deva sentir. Todo genuíno e sincero artista ri da ingenuidade desta charlatanice.- talvez melancólico, mas ele ri. Então aquilo, o que se diz, deve nunca ser o principal, mas antes apenas o de fato indiferente material, a partir do qual a forma estética é composta em atuante e serena superioridade.”

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Und weil der ein Stümper ist, der glaubt, der Schaffende dürfe empfinden. Jeder echte und aufrichtige Künstler lächelt über die Naivität dieses Pfuscher-Irrtums, – melancholisch vielleicht, aber er lächelt. Denn das, was man sagt, darf ja niemals die Hauptsache sein, sondern nur das an und für sich gleichgültige Material, aus dem das ästhetische Gebilde in spielender und gelassener Überlegenheit zusammenzusetzen ist.” p. 223


É uma posição classicista – i.e., não romântica – na qual o artista não é um sentimental, mas um criador a manusear um material, uma visão meio parnasiana (para o formalista Olavo Bilac o poeta é um monge recluso a burilar versos longe da emoção vulgar das ruas) de autor sublime. Para Tonio, a Arte está para além das sentimentalidades dos autores – afinal, Tonio é um artista que desconfia dos artistas.


O talento para o estilo, forma e expressão já dispõe esta fria e seletiva relação com a humanidade, sim, antes um certo humano empobrecimento e desolação. Então o sentimento sadio e forte, que continua, tem gosto nenhum. Já era para o artista, tão logo ele se torne humano e comece a sentir.” ( “Die Begabung für Stil, Form und Ausdruck setzt bereits dies kühle und wählerische Verhältnis zum Menschlichen, ja, eine gewisse menschliche Verarmung und Verödung voraus. Denn das gesunde und starke Gefühl, dabei bleibt es, hat keinen Geschmack. Es ist aus mit dem Künstler, sobald er Mensch wird und zu empfinden beginnt.” p. 224)


Esta imagem do artista enquanto frio e distante é a mesma que encontramos, aprofundada e dramatizada, no citado 'Doktor Faustus', onde o protagonista Leverkühn, sendo uma mistura de Fausto e de Nietzsche (pensador alemão de estilo e ideias iconoclastas), um compositor que vive obcecado pela arte a ponto de tornar-se misantropo e desumano.


Eu lhe digo que eu frequentemente estou morto de cansado de representar o humano sem participar do humano... O artista é,a final, um homem? Então que se pergunte a 'mulher'! A mim parece que nós artistas partilhamos todos um pouco do destino daqueles meninos cantores do coro católico... Cantamos bem comoventes. Contudo...” (“Ich sage Ihnen, daß ich es oft sterbensmüde bin, das Menschliche darzustellen, ohne am Menschlichen teilzuhaben… Ist der Künstler überhaupt ein Mann? Man frage 'das Weib' danach! Mir scheint, wir Künstler teilen alle ein wenig das Schicksal jener präparierten päpstlichen Sänger… Wir singen ganz rührend schön. Jedoch –“ p. 224)


O artista é assim um 'apartado' da humanidade, onde a arte não é 'profissão', mas, antes, um tipo de maldição. Principalmente a Literatura,


A literatura é, afinal, nenhuma profissão, mas antes uma maldição, - então saiba. Quando ela começa a tornar-se sensível, esta maldição? Cedo, terrivelmente cedo. Numa época quando se poderia viver em paz e concórdia com deus e o mundo, então começa-se a sentir-se marcado, num enigmático contraste com os outros, a sentir os comuns, ordinários, o abismo da ironia, descrença, oposição, saber, sentimento, que separa dos humanos, abre-se mais e mais fundo, em solidão, e daí em diante não há mais entendimento.”

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Die Literatur ist überhaupt kein Beruf, sondern ein Fluch, – damit Sie's wissen. Wann beginnt er fühlbar zu werden, dieser Fluch? Früh, schrecklich früh. Zu einer Zeit, da man billig noch in Frieden und Eintracht mit Gott und der Welt leben sollte. Sie fangen an, sich gezeichnet, sich in einem rätselhaften Gegensatz zu den anderen, den Gewöhnlichen, den Ordentlichen zu fühlen, der Abgrund von Ironie, Unglaube, Opposition, Erkenntnis, Gefühl, der Sie von den Menschen trennt, klafft tiefer und tiefer, Sie sind einsam, und fortan gibt es keine Verständigung mehr.pp. 224-25


e o artista fala diferente, é o diferente, por um excesso de auto-conhecimento, sentimento do eu (Ichgefühl) e potencial-qualidade artística (Küstlerschaft),


Mal precisas fixar o olhar e dizer uma palavra, e todos logo sabem que não és humana, mas antes algo qualquer de estranho, estrangeiro, diferente...” (“Sie werden kaum die Augen aufzuschlagen und ein Wort zu sprechen brauchen, und jedermann wird wissen, daß Sie kein Mensch sind, sondern irgend etwas Fremdes, Befremdendes, Anderes…” p. 225)


então é de se perguntar, então o que é ser artista,


Mas o que é o artista? Diante de nenhuma pergunta a comodidade e preguiça de saber da humanidade se mostrou mais obstinadas do que diante desta.” (“Aber was ist der Künstler? Vor keiner Frage hat die Bequemlichkeit und Erkenntnisträgheit der Menschheit sich zäher erwiesen als vor dieser. p. 225)


O longo monólogo de Tonio – diante da amiga pintora – parece mais uma defesa diante do tribunal da sociedade burguesa, uma tentativa de justificação diante das acusações contra a excentricidade da persona artística – é o que a artista russa percebe, ela que o vê mais como um burguês do que um artista.


Nenhum problema, nenhum no mundo, é mais aflitivo que o do dom artístico e seu efeito humano.” (“Kein Problem, keines in der Welt, ist quälender als das vom Künstlertum und seiner menschlichen Wirkung. p. 226)


A artista Lisavieta lembra o efeito catártico da obra literária, o fato de a Literatura ser testemunha da vida humana, e ser crítica e conselheira,


O efeito purificador, curador da literatura, a destruição das paixões através dos saber e do verbo, a literatura enquanto caminho para o entender, para o perdoar e para o amor, o libertário poder da fala, o espírito literário enquanto a manifestação mais nobre do espírito humano, afinal, o literato enquanto pessoa perfeita, enquanto santo, -”

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Die reinigende, heiligende Wirkung der Literatur, die Zerstörung der Leidenschaften durch die Erkenntnis und das Wort, die Literatur als Weg zum Verstehen, zum Vergeben und zur Liebe, die erlösende Macht der Sprache, der literarische Geist als die edelste Erscheinung des Menschengeistes überhaupt, der Literat als vollkommener Mensch, als Heiliger, –“ p. 277


Tonio não se julga perfeito nem santo – talvez alguns escritores aspirassem a isso – assim os russos Dostoiévski, Tolstói, o francês Gide – mas reconhece que é um homem aniquilado pela 'clarividência psicológica' (“psychologishce Hellsicht”), mas que deve superar , não se deixar abater (a mesma posição que encontramos no jovem Hans Castorp de “A Montanha Mágica” (1924), vinte anos depois, quando tem consciência de sua doença pulmonar, “Em consideração à bondade e a o amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (p. 662. trad. de Herbert Caro)


Não se deixar abater pela tristeza do mundo; observar, perceber, adaptar-se, também a mais aflitivo, e ser de resto a coisa melhor, logo em pleno-sentimento [intuição] da decente superioridade sobre a detestável invenção do ser, - sim, com certeza!” (“Sich von der Traurigkeit der Welt nicht übermannen lassen; beobachten, merken, einfügen, auch das Quälendste, und übrigens guter Dinge sein, schon im Vollgefühl der sittlichen Überlegenheit über die abscheuliche Erfindung des Seins, – ja, freilich!” p. 227)



Tonio cita outro atormentado pelo saber, o jovem príncipe Hamlet – que tanto emocionou Goethe, a ponto de situar uma montagem da peça shakesperiana no “Aprendizagem de Wilhelm Meister” - o saber que entorpece, daí o “nojo do saber” (Erkenntnisekel) do literato,


A condição, na qual basta ao homem, adentrar uma coisa para já se sentir nauseado até a morte (e completamente a ficar não reconciliável), - é o caso de Hamlet, o dinamarquês, este literato típico. Ele sabia o que era isto: ser convocado ao Saber, sem ser nascido para isto. (…)” (“Der Zustand, in dem es dem Menschen genügt, eine Sache zu durchschauen, um sich bereits zum Sterben angewidert (und durchaus nicht versöhnlich gestimmt) zu fühlen, – der Fall Hamlets, des Dänen, dieses typischen Literaten. Er wußte, was das ist: zum Wissen berufen werden, ohne dazu geboren zu sein.” p. 227)


Todo saber é velho e monótono. (…) Ah, a literatura cansa, Lisavieta!” (“Alle Erkenntnis ist alt und langweilig. (…) Ach ja, die Literatur macht müde, Lisaweta!” p. 228)


Tonio está nauseado – igual ao Antonine Roquetin, de “A Náusea” (1938) de J-P Sartre, “Desconfiar da literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras” -ao sentir-se desconfortável com a palavra, o material da linguagem falada e escrita, sente que a literatura quer tudo complicar, rotular tudo. O literato seria um mero analista e catalogador de cena e de emoções humanas. O leitor vê o sentimento re-interpretado através da linguagem literária e se sente aliviado, ao sofrer uma espécie de catarse diante do drama alheio. (Aristóteles prefigurou a “Estética da Recepção”, certamente)


(E lembramos que acontece o mesmo com este livro, esta obra literária: o artista quando jovem nela pode encontrar seus sentimentos expressados, e assim se re-encontrar!)


É de se pensar, aproveitar as insônias produtivamente, e esclarecer: a literatura é representação? Ou vive a agir como um veículo de transferência? A escrita é libertação? Ou é pecado?


Mas veja, peca apesar de toda a libertação através da literatura persiste a seguir livremente; pois todo agir é pecado ao olhos do espírito....


Estou no alvo, onde queria chegar, Lisavieta. Ouça-me. Eu amo a vida, - esta é uma confissão. Aceite e guarde-a, - não fiz a ninguém. Têm dito, têm escrito e imprimido que eu odeio ou temo ou desprezo ou detesto a vida. Gostei de ouvir, tinha me lisonjeado; mas nem assim não é menos falso. Eu amo a vida... (…) Não aceite como literatura o que eu digo aí!”

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Aber siehe da, es sündigt trotz aller Erlösung durch die Literatur unentwegt darauf los; denn alles Handeln ist Sünde in den Augen des Geistes…


Ich bin am Ziel, Lisaweta. Hören Sie mich an. Ich liebe das Leben – dies ist ein Geständnis. Nehmen Sie es und bewahren Sie es, – ich habe es noch keinem gemacht. Man hat gesagt, man hat es sogar geschrieben und drucken lassen, daß ich das Leben hasse oder fürchte oder verachte oder verabscheue. Ich habe dies gern gehört, es hat mir geschmeichelt; aber darum ist es nicht weniger falsch. Ich liebe das Leben… Sie lächeln, Lisaweta, und ich weiß, worüber. Aber ich beschwöre Sie, halten Sie es nicht für Literatur, was ich da sage!” pp. 228-29


Tonio que amigos comuns, não artistas, não literatos. Ele não confia em literatos, pois é um. Ele se sente deslocado entre os artistas – assim como é desprezado entre os burgueses. Ele vê os leitores como seres de rebanho, ele vê os bons cidadãos como servos da conformidade. E a literatura? Pode libertar? Pode purificar por meio de catarses? Pode ser espelho da vida?


É contrassenso, amar a vida e, no entanto, ser empenhado com todas as forças, a arrastá-la para o seu lado, a conquistá-la para as finezas e melancolias, a toda doentia nobreza da literatura.” (“Es ist widersinnig, das Leben zu lieben und dennoch mit allen Künsten bestrebt zu sein, es auf seine Seite zu ziehen, es für die Finessen und Melancholien, den ganzen kranken Adel der Literatur zu gewinnen.” p. 229)


Poesia contra a vida? Literaturas gauche na vida que usam a poesia para difamar a vida! Oposto do poeta Walt Whitman – que cantava a si mesmo e a vida em ebulição! Interessante o episódio no qual um oficial militar, um tenente, escreve versos – e pede para lê-los em público! Os burgueses olham consternados e condescendentes – pobre do oficial ! Que necessidade tem o oficial, ou algum professor de seminário, de escrever versos – e lê-los em reuniões em 'boa sociedade' ?


(Lembramos do jovem soldado Franz Kappus, a solicitar conselhos ao poeta Rainer Maria Rilke, que em resposta escreveu as famosas 'Cartas a um jovem poeta' (Brief an einen jungen Dichter, 1903-08) onde mostra que a Poesia exige entrega, não pode ser um hobby, um passatempo entre manobras e batalhas. E que coisa mais anti-lírica do que a guerra?)


No final do diálogo – ou monólogo – Tonio tem consciência de tanta prolixidade hamletiana (hamletischen Redseligkeit) e ouve o 'veredicto' da artista russa,


A solução é que, vossa senhoria, aí sentado, é simplesmente um burguês.” e “Um burguẽs em caminho errado, Tonio Kroeger – um burguês erante.” (“Die Lösung ist die, daß Sie, wie Sie da sitzen, ganz einfach ein Bürger sind.” , “Sie sind ein Bürger auf Irrwegen, Tonio Kröger, – ein verirrter Bürger.” p. 231)


Depois desta sentença, deste sincero veredicto, Tonio resolve viajar – não para o sul, mas para as paragens nórdicas, rumo à Dinamarca, terra do melancólico Hamlet, e não dos sensuais italianos, pois, Tonio troca a Itália pela Escandinávia, ele que 'flutua' entre os temperamentos latino e nórdico. Afinal, Tonio é filho de um nórdico e de uma latina.


Durante a viagem, Tonio passa em sua cidade natal, para rever o mundo que deixou décadas antes. Ele encontra a cidade e volta a encarar a infância. O familiar retorna como limitador e estreito. Tonio não mostra ostentação, é modesto, e logo é avaliado socialmente – os recepcionistas do hotel o classificam na 'escala social: nobre? Burguês? Ou plebeu? - “A ele hierárquica e civilmente acomodar” - afinal, o ser é avaliado pelo visual, pela aparência, pela exterioridade.


O visitante procura na cidade de então a cidade de outrora, aquela da infância e juventude. Encontra uma cidade ao mesmo tempo familiar e estranha. A casa dos Kroeger é agora a Biblioteca Pública.


Biblioteca Pública? Pensou Tonio Kroeger, então ele achou que nem Pública nem a literatura tinha algo a procurar aqui.” (“Volksbibliothek? dachte Tonio Kröger, denn er fand, daß hier weder das Volk noch die Literatur etwas zu suchen hatten.” p. 236)


A sensação de sentir-se estanho na cidade onde nasceu! E encontrar a velha casa da família transformada em local público. Somente agora temos conhecimento da vida doméstica da família Kroeger – vida que foi ocultada nos primeiros capítulos. Agora é uma vida no passado, tudo lembranças na mente do protagonista.


Ao voltar ao hotel, e pedir o enceramento da conta, Tonio é surpreendido com uma desconfiança das autoridades. Tonio é confundido com um criminoso, mas o acusado não se identifica, não revela ser 'filho' da cidade, filho do Consul Kroeger. Tonio é um escritor, e basta. Não se deixa depender do nome de família. No mais, Tonio não costuma levar documentos, sequer um passaporte.


As aventuras de Tonio : quase preso em sua cidade natal confundido com um falsário em fuga! E ele aceita o julgamento moral da sociedade que o julga.


Ele estivera um pouco desanimado, que quisessem lhe prender como charlatão em sua cidade natal, apesar de ele ter achado isto, de certa forma, em ordem.” (“Er war ein wenig niedergeschlagen gewesen, daß man ihn daheim als Hochstapler hatte verhaften wollen, ja, – obgleich er es gewissermaßen in der Ordnung gefunden hatte.” p. 241 )


Na Dinamarca, nas brumas nórdicas, num hotel à beira-mar, depois de dias de recolhimento e passeio, descanso e meditação, algo enfim acontece. Tonio Kroeger revê o amigo e a amada dos tempos de outrora. O mundo é mesmo pequeno. O protagonista pode rever Hans Hansen e Ingeborg Holm, agora um belo casal, e ele não o reconhecem. Nem ele se dá a reconhecer.


Novamente, Tonio Kroeger é levado a pensar sobre o passado, o deslocar-se junto aos outros, o desejo de ser famoso para 'impressionar' a bela Inge. Pois Tonio sofre com saudade, ainda deslocado, ainda incapaz de compartilhar a vida comum – Tonio observa o baile, assim como antes assistia as aulas de balé, onde Inge sequer o perceba.


Tonio Kroeger via-os, ambos, pelos quais tinha sofrido de amor outrora. - Hans e Ingeborg.” (“Tonio Kröger sah sie an, die beiden, um die er vorzeiten Liebe gelitten hatte, – Hans und Ingeborg.” p. 251)


e


e de repente a saudade abalou o seu peito com uma tal dor, que ele voltou-se, sem querer, para a escuridão, para que ninguém visse o tremor em seu rosto.” (“und plötzlich erschütterte das Heimweh seine Brust mit einem solchen Schmerz, daß er unwillkürlich weiter ins Dunkel zurückwich, damit niemand das Zucken seines Gesichtes sähe.” p. 251)


Deveria Tonio voltar no tempo e conquistar Inge e cultivar a amizade com Hans? Seria possível ser outro?


Começar ainda uma vez? Mas de nada ajudaria. Tornaria novamente a ser, - tudo novamente viria como havia vindo, então alguns seguem com necessidade no erro porque ele não há, afinal, um caminho certo.” (“Noch einmal anfangen? Aber es hülfe nichts. Es würde wieder so werden, – alles würde wieder so kommen, wie es gekommen ist. Denn etliche gehen mit Notwendigkeit in die Irre, weil es einen rechten Weg für sie überhaupt nicht gibt.” p. 251)


Tonio observa a amada e o amigo de outrora – sem se aproximar, sem se deixar reconhecer – ele está num mundo separado, não pode se comunicar, muito menos compartilhar da sociabilidade ao redor.


Ele imaginava o que poderia dizer; mas ele não achou coragem de dizê-lo. Também aconteceria como sempre: eles não o entenderiam, estranhariam o que ouviam, o que ele pudesse dizer. Assim a língua deles não era a língua dele.” (“Er dachte sich aus, was er sagen könnte; aber er fand nicht den Mut, es zu sagen. Auch war es ja wie immer: sie würden ihn nicht verstehen, würden befremdet auf das horchen, was er zu sagen vermöchte. Denn ihre Sprache war nicht seine Sprache. p. 252)


Há um abismo de comunicação entre o artista e os que se divertem, os que vivem a festividade. Tonio observa a cena e revive o passado, ele observa emocionado, enquanto os demais se divertem no baile. Agora a fama de Tonio kroeger de nada vale – não pode impressionar o casal. Tonio preferiria se livrar da maldição do saber (Fluch der Erkenntnis) e da aflição criadora (schöpferischen Qual) e ser igual na alegre conformidade (selige Gewöhnlichkeit).


Ele estava ébrio pela festa, da qual não participara, e cansado de ciúmes. Como antes, bem como tinha sido antes! Com o rosto ardendo ele ficara num lugar escuro, em aflição por vós, os louros, vivazes, felizes, e assim sozinho se afastara.” (“Er war berauscht von dem Feste, an dem er nicht teilgehabt, und müde von Eifersucht. Wie früher, ganz wie früher war es gewesen! Mit erhitztem Gesicht hatte er an dunkler Stelle gestanden, in Schmerzen um euch, ihr Blonden, Lebendigen, Glücklichen, und war dann einsam hinweggegangen.” p. 254)


Tonio confessa – em carta para Lisavieta – que flutua entre o temperamento nórdico do pai (contemplador, minucioso, correto, tendendo à melancolia) e o temperamento latino, exótico da mãe (sensual, ingênuo, passional, impulsivo), que é ainda um burguês, um filho de burguês, quis a arte, viveu a boêmia, mas ainda com saudades da vida ordeira dos burgueses,


um burguês, que se perdeu na Arte, um boêmio com saudade da boa educação, um artista com consciência pesada.” (“ein Bürger, der sich in die Kunst verirrte, ein Bohemien mit Heimweh nach der guten Kinderstube, ein Künstler mit schlechtem Gewissen.” p. 256)


e


Eu estou entre dois mundos, em nenhum estou em casa e, por isso, tenho um pouco de dificuldade. Vós, os artistas, me chamam de burguês, e os burgueses são tentados a me prenderem... eu não sei qual de ambos me deixa mais doente.” (“Ich stehe zwischen zwei Welten, bin in keiner daheim und habe es infolgedessen ein wenig schwer. Ihr Künstler nennt mich einen Bürger, und die Bürger sind versucht, mich zu verhaften… ich weiß nicht, was von beiden mich bitterer kränkt.” p. 256 )


e também,


Eu admiro os orgulhosos e frios, que se aventuram nas trilhas dos grandes, da demoníaca beleza e desprezam o 'homem', - mas eu não os invejo. Pois se algo é capaz de fazer de um literato um poeta é este meu amor burguês pelo humano, vivaz e costumeiro. Todo o calor, todo o bem, todo o humor veio dele, e quase a mim parece que seja ele aquele próprio amor, do qual está escrito que alguém poderia falar com uma língua humana e angelical e sem ele, porém, seja um bronze soante e um guizo que retine.”

.

Ich bewundere die Stolzen und Kalten, die auf den Pfaden der großen, der dämonischen Schönheit abenteuern und den ›Menschen‹ verachten, – aber ich beneide sie nicht. Denn wenn irgend etwas imstande ist, aus einem Literaten einen Dichter zu machen, so ist es diese meine Bürgerliebe zum Menschlichen, Lebendigen und Gewöhnlichen. Alle Wärme, alle Güte, aller Humor kommt aus ihr, und fast will mir scheinen, als sei sie jene Liebe selbst, von der geschrieben steht, daß einer mit Menschen- und Engelszungen reden könne und ohne sie doch nur ein tönendes Erz und eine klingende Schelle sei.” pp. 255-56


O romance (ou novela, ou conto extenso) se encerra com esta carta de Tonio para a amiga russa, onde ele continua aquele longo monólogo do capítulo (ou seção) 4, com uma nota positiva, não de niilismo ou misantropia, “este amor é bom e frutífero. Nele há ânsia e melancólica inveja e um pouco de desprezo e uma toda pura ventura.” (“sie [Liebe] ist gut und fruchtbar. Sehnsucht ist darin und schwermütiger Neid und ein klein wenig Verachtung und eine ganze keusche Seligkeit.” p. 256)


Em sua carta, Tonio explicita auto-consciência, auto-ironia, um achamento de si-mesmo, um estilo formado, uma vontade de superação. Ama a arte e só tem esta a oferecer à humanidade (a mesma da qual ele confessa desconfiar).


Veremos no próximo ensaio a saga de outro jovem artista em formação. Conheceremos Stephen Dedalus - o alter ego do escritor irlandês James Joyce [1882-1941] - em busca de um estilo e de um lugar ao sol. Se percebemos ser difícil se encontrar no mundo, enquanto jovem, imaginemos então na condição de jovem e artista. Perceber que o mundo é uma espécie de circo e que seremos apenas mais um dos que passam pelo picadeiro, na condição de malabaristas, de equilibristas, de ilusionistas ou de palhaços.




fev/mar /12



Leonardo de Magalhaens


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mais info


Tonio Kröger” no Project Gutenberg

http://www.gutenberg.org/files/23313/23313-h/23313-h.htm



movie


http://www.imdb.com/title/tt0058670/



quarta-feira, 21 de março de 2012

Sobre "O Jovem Törless" - de R. Musil




sobre "O Jovem Törless"
(
Die Verwirrungen des Zöglings Törleß , 1906)
de Robert Musil (1880-1942)


As confusões da época de transição



Adentremos o universo juvenil de “As Perplexidades do Aluno Törless” ou simplesmente “O Jovem Törless“ (por causa de um filme baseado na obra) a ser tecido por lembranças e introspecções do protagonista que, no internato, presencia atos extremos e descobre um mundo além do ambiente familiar.


Temos o mesmo pano de fundo de “O Ateneu”, de Raul Pompeia - comentado em ensaio anterior - onde o jovem na fase de transição descobre o mundo como ele é: ambíguo, confuso, até perverso. Soma-se a isto o momento de transição – crescimento físico, descoberta da sexualidade, exigências de responsabilidade e reivindicações de autonomia.


Podemos comparar “O Jovem Törless” com outras obras de mesma temática, tais como “Demian” e “Sob as Rodas” (ambos de Hermann Hesse), e todos com “O Ateneu”, pois se nota as similaridades. Ou seja, o ambiente de internato, as amizades e inimizades, as afinidades e hostilidades, a dominação e a submissão, a ausência de moças, a presença de mulheres mais velhas.


Também é evidente em “Jovem Törless” a relação dominador e dominado. Os fortes abusam dos fracos – assim o luxurioso Reiting abusa do covarde Basini. Aos demais, o fraco apenas atrai desprezo. É uma atitude 'aristocrática', ao ver o mundo de cima, de uma perspectiva de 'pensamentos sublimes', bem representada em “sair de sua posição privilegiada e juntar-se às pessoas vulgares” (p. 33), que podemos comparar com os 'aristocratas' de “Orlando” e de “Dorian Gray”, que só lembram das classes baixas quando querem se divertir.


Notamos desejo de viver em grupos, ou o costume de jovens alunos aventureiros criarem grupos e/ou sociedades secretas. Seitas com seus ritos, regras, locais secretos, exclusão e segregação de não sócios. Assim é na 'gangue' de 'bandoleiros' de Tom Sawyer e de Huckleberry Finn, assim é na Sociedade do Betume em “Os Meninos da Rua Paulo”.


Todos os alunos usam (e exibem) o sobrenome – Törless, Beineberg, Reiting, Basini – mas nunca o nome que individualiza. Certamente a família define o futuro do aluno – que deve seguir os ditames de pais. Em seguida são entregues ao Estado, ao ensino padronizado, ao cuidado dos professores. E quanto ao nome dos professores? Aqui também são anônimos – apenas peças e engrenagens da máquina educacional...


No novo mundo, o escolar, o jovem procura se inserir em algum grupo, aceitar a proteção de 'amigos' que possam apoiar sua imagem, sua identidade em formação,



“Törless entregou-se completamente à influência deles, pois sua condição espiritual era aproximadamente esta: em sua idade eram lidos no ginásio Goethe, Schiller, Shakespeare, talvez até mesmo os modernos. Os quais, mal-digeridos, retornavam a escreverem-se nas pontas dos dedos. Surgem tragédias romanas ou poesia sentimental, que, com pontuações ao longo de páginas numa renda, se pavoneiam como se na delicadeza de uma tessitura desfeita: coisas, que realmente, em si mesmas são risíveis, porém para a segurança do desenvolvimento significam um valor incalculável. Pois estas associações vindas de fora e sentimentos emprestados conduzem os jovens acima do perigoso e deslizante solo espiritual destes anos, onde deve se significar algo para si mesmo e se é ainda tão incompleto, para significar realmente algo. Se mais tarde algum guarde algo disto e outro não, dá no mesmo, então cada um aceita a si mesmo, e o perigo existe apenas na idade de transição. Se se pudesse trazer à visão de algum jovem o risível de sua pessoa nesta época, o chão se abriria sob os seus pé ou ele cairia como um sonâmbulo, despertado, que de repente vê adiante nada além de um vazio.” (trad. LdeM)

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Törleß überließ sich gänzlich ihrem Einflusse, denn seine geistige Situation war nun ungefähr diese: In seinem Alter hat man am Gymnasium Goethe, Schiller, Shakespeare, vielleicht sogar schon die Modernen gelesen. Das schreibt sich dann halbverdaut aus den Fingerspitzen wieder heraus. Römertragödien entstehen oder sensitivste Lyrik, die im Gewande seitenlanger Interpunktionen wie in der Zartheit durchbrochener Spitzenarbeit einherschreitet: Dinge, die an und für sich lächerlich sind, für die Sicherheit der Entwicklung aber einen unschätzbaren Wert bedeuten. Denn diese von außen kommenden Assoziationen und erborgten Gefühle tragen die jungen Leute über den gefährlich weichen seelischen Boden dieser Jahre hinweg, wo man sich selbst etwas bedeuten muß und doch noch zu unfertig ist, um wirklich etwas zu bedeuten. Ob für später bei dem einen etwas davon zurückbleibt oder bei dem andern nichts, ist gleichgültig, dann findet sich schon jeder mit sich ab, und die Gefahr besteht nur in dem Alter des Überganges. Wenn man da solch einem jungen Menschen das Lächerliche seiner Person zur Einsicht bringen könnte, so würde der Boden unter ihm einbrechen oder er würde wie ein erwachter Nachtwandler herabstürzen, der plötzlich nichts als Leere sieht.” pp. 14-15




Fontes das citações (traduzidas por LdeM): Projekt Gutenberg
http://www.gutenberg.org/files/34717/34717-h/34717-h.htm
MUSIL, Robert.
Die Verwirrungen des Zöglings Törleß. Suhrkamp Verlag. 1978


Percebemos o desamparo de Törless, longe da proteção familiar, dos pais que protegem e limitam, o que leva o jovem a voltar-se mais para si mesmo, em indagações que beira questões metafísicas (em dado momento ele vai até animar a ler um Kant...), de modo a preencher um vazio de sentido – ele transita do mundo familiar para o mundo da vida adulta, fora do ninho.


O jovem no internato tenta fazer amigos, mas é sempre frustrado quando descobre que precisa corresponder as expectativas, ainda mais quando a educação aprendida no lar não funciona mais no ambiente onde é preciso decidir por si mesmo, ao desenvolver a autonomia, a defender-se o mínimo num sistema de educação rígida e disciplinadora. Ele não se vê como é visto no olhar dos amigos em potencial e dos próprios pais.



“Eram reações da mente. Porém isto, que se sente como caráter ou alma, linha ou timbre de uma pessoa, em todo caso, o que contra os pensamentos, decisões e ações parecem um pouco típicas, acidentais ou substituíveis, que, por exemplo, tinha ligado Törless ao Príncipe além de todo acessível julgar, aquele pano de fundo imóvel e último estava de todo perdido em Törless naquela época.”

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Es waren Reaktionen des Gehirns. Das aber, was man als Charakter oder Seele, Linie oder Klangfarbe eines Menschen fühlt, jedenfalls dasjenige, wogegen die Gedanken, Entschlüsse und Handlungen wenig bezeichnend, zufällig und auswechselbar erscheinen, dasjenige, was beispielsweise Törleß an den Prinzen jenseits alles verstandlichen Beurteilens geknüpft hatte, dieser letzte, unbewegliche Hintergrund, war zu jener Zeit in Törleß gänzlich verloren gegangen. p.16



Os pais dele consideravam como uma indisposição da fase de crescimento.[…]


Que isto acontecia a Törless também em outras horas, eles não sabiam. E nos últimos tempos sempre frequente. Ele tinha momentos, quando a vida no internato era de todo indiferente. A massa de preocupações cotidianas desfaziam-se e as horas de sua vida soltavam-se sem uma coerência íntima.”

.

Seine Eltern nahmen es als die Ungelenkigkeit der Entwicklungsjahre hin.

[...]

Daß für Törleß mitunter auch andere Stunden kamen, wußten sie nicht. Und in der letzten Zeit immer zahlreichere. Er hatte Augenblicke, wo ihm das Leben im Institute völlig gleichgültig wurde. Der Kitt seiner täglichen Sorgen löste sich da und die Stunden seines Lebens fielen ohne innerlichen Zusammenhang auseinander. p. 17



As novas apreensões de Törless chegam carregadas de sofrimentos morais e metafísicos, ele que tenta em vão entender os descompassos entre o que aprendeu no lar, no seio da família, e o mundo sórdido dos recantos do internato (tal como vimos no Ateneu de Raul Pompeia), onde outras leis e submissões imperam. Estas confusões levam ao desespero que é simbolizado na imagem metafórica do 'grito', tal como no quadro de Edvard Munch, “O Grito” (1893), com a mesma carga expressionista.


Estava tudo quieto, não se ouvia mais sequer o gorgorejo do rio. De súbito veio de longe até eles um som indeterminado e rompido. E soava como um grito ou aviso. Ou como o estéril chamado de uma criatura incompreensível que logo surgiria dentre os arbustos. Eles seguiram em direção ao som, pararam, seguiram adiante.

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Es war ganz still, sogar das Gurgeln des Flusses war nicht mehr zu hören. Plötzlich kam von ferne ein unbestimmter, gebrochener Ton zu ihnen. Er hörte sich wie ein Schrei oder eine Warnung an. Oder auch wie der bloße Zuruf eines unverständlichen Geschöpfes, das irgendwo gleich ihnen durch die Büsche brach. Sie schritten auf den Ton zu, blieben stehen, schritten wieder weiter.” (p. 33)


Quase um grito de desespero – a metáfora do grito, numa expressão que lembra aquele do “O Grito”, “para Törless parecia como um grito desesperado” (“wie ein verzweifelter Schrei auf Törleß”. p. 19) pois, vejamos,


E a questão continuava apenas: como é possível ? O que acontecia em tal momento? O que explodia nas alturas gritando e o que desvanecia subitamente?...” (“Und die Frage bliebe nur: wie ist es möglich? Was geschieht in solchem Augenblicke? Was schießt da schreiend in die Höhe und was verlischt plötzlich?...”, p. 60)



mais sobre O Ateneu

http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/02/sobre-o-ateneu-de-raul-pompeia.html

o quadro O Grito

http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Grito_%28pintura%29



Assim, com a nova vida limitada e vigiada no internato, com os amigos que podem a qualquer momento se voltar contra ele, o jovem Törless sente um profundo tédio e até ódio por si mesmo,


Ele nada experimentava e sua vida eclipsava-se num torpor em contínua indiferença, mas a isto o soar do sino acrescentava ainda a paródia e sacudia-lhe uma fúria impotente por si mesmo, diante de seu destino, sobre o dia que era enterrado.”

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Er erlebte ja nichts und sein Leben dämmerte in steter Gleichgültigkeit dahin, aber dieses Glockenzeichen fügte dem auch noch den Hohn hinzu und ließ ihn in ohnmächtiger Wut über sich selbst, über sein Schicksal, über den begrabenen Tag erzittern.” (p. 19)


O passar dos dias, a vida confinada, disciplinada, as desconfianças, estas são as arestas que perfuram o sossego do jovem Törless, sempre atrasado com relação aos impulsos, sempre atormentado pela consciência (a boa moral burguesa não falha, pelo menos na capacidade de causar culpa...), incapaz de verbalizar o que sente ou o que espera da vida (ele ainda não começou a folhear as obras clássicas filosóficas) dentro e fora do internato.


É adentrando o protagonista, com semelhantes perplexidades, que o Narrador ousa descrições de estado psicológico com belas imagens expressionistas a comporem longos trechos do romance, entre a introspecção e epifanias,



“E Törless parecia se alegrar com isso. Nestes momentos, ele não gostava das pessoas, os grandes e adultos. Ele nunca gostava delas, quando estava escuro. Ele estava acostumado não pensar nas pessoas, como se elas não existissem. O mundo parecia-lhe então como uma casa vazia e escura e em seu peito estava um arrepio como se agora ele devesse procurar de sala em sala – sala escura, onde ninguém sabia o que se abrigava pelos cantos – tateando, atravessando os umbrais, os quais nenhum outro pé humano, exceto o dele, pisaria, até – num quarto com as portas subitamente abertas e fechadas depois dele e ele enfrentaria a senhoria própria das hordas sombrias. E neste momento as fechaduras de todas as portas se fechariam, quando ele passasse, e apenas longe dos muros estariam as sombras da escuridão como sombrios eunucos em vigilância e mantendo afastadas as pessoas próximas.”

.
Und Törleß schien es, daß er sich darüber freue. Er mochte in diesem Augenblick die Menschen nicht, die Großen und Erwachsenen. Er mochte sie nie, wenn es dunkel war. Er war gewöhnt sich dann die Menschen wegzudenken. Die Welt erschien ihm danach wie ein leeres, finsteres Haus und in seiner Brust war ein Schauer, als sollte er nun von Zimmer zu Zimmer suchen – dunkle Zimmer, von denen man nicht wußte, was ihre Ecken bargen – tastend über die Schwellen schreiten, die keines Menschen Fuß außer dem seinen mehr betreten sollte, bis – in einem Zimmer sich die Türen plötzlich vor und hinter ihm schlössen und er der Herrin selbst der schwarzen Scharen gegenüberstünde. Und in diesem Augenblicke würden auch die Schlösser aller anderen Türen zufallen, durch die er gekommen, und nur weit vor den Mauern würden die Schatten der Dunkelheit wie schwarze Eunuchen auf Wache stehen und die Nähe der Menschen fernhalten.” p. 30


e

“Ele temia esta fantasia, pois ele estava consciente de seu excessivo segredo, e o pensamento que tais imagens poderiam conquistar mais e mais um domínio sobre ele. Mas justamente quando ele se acreditava mais sério e puro, ela o dominava. Poderia se dizer, como uma reação a este momento em que ele pressentia um conhecimento sensível, que nele já se preparava, mas que não correspondia a sua idade. Então no desenvolvimento de cada refinada força moral havia um ponto precoce onde enfraquecia a alma cuja a mais audaciosa experiência ela talvez seja em algum momento, - como se suas raízes tivessem que procurar mais fundo e a escavar o solo, que elas pretendem sustentar mais tarde, - eis porque jovens com grande futuro geralmente têm um passado rico em humilhações.


A preferência de Törless por determinados ânimos era a primeira indicação de um desenvolvimento espiritual, que mais tarde mostraria um talento de assombrar. Mais tarde, ele seria quase controlado por uma habilidade peculiar. Então ele teria que perceber frequentemente eventos, pessoas, coisas, além do sentimento de um indissolúvel não-entendimento como uma inexplicável e nunca plenamente justificada relação. Pareciam-lhe ser compreensíveis ao tato e, no entanto, nunca deixava-se dissolver plenamente em palavras e ideias. Entre os eventos e seu Eu, entre as suas emoções e seu mais interno Eu, que ansiava por entender, permanecia sempre uma divisória, que como um horizonte retrocedia diante de seu desejo, quanto mais próximo ele chegasse.”

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Er fürchtete diese Phantasie, denn er war sich ihrer ausschweifenden Heimlichkeit bewußt, und der Gedanke, daß solche Vorstellungen immer mehr Herrschaft über ihn gewinnen könnten, beunruhigte ihn. Aber gerade dann, wenn er sich am ernstesten und reinsten glaubte, überkamen sie ihn. Man könnte sagen, als eine Reaktion auf diese Augenblicke, wo er empfindsame Erkenntnisse ahnte, die sich zwar in ihm schon vorbereiteten, aber seinem Alter noch nicht entsprachen. Denn in der Entwicklung einer jeden feinen moralischen Kraft gibt es einen solchen frühen Punkt, wo sie die Seele schwächt, deren kühnste Erfahrung sie einst vielleicht sein wird, – so als ob sich ihre Wurzeln erst suchend senken und den Boden zerwühlen müßten, den sie nachher zu stützen bestimmt sind, – weswegen Jünglinge mit großer Zukunft meist eine an Demütigungen reiche Vergangenheit besitzen.


Törleß' Vorliebe für gewisse Stimmungen war die erste Andeutung einer seelischen Entwicklung, die sich später als ein Talent des Staunens äußerte. Späterhin wurde er nämlich von einer eigentümlichen Fähigkeit geradezu beherrscht. Er war dann gezwungen, Ereignisse, Menschen, Dinge, ja sich selbst häufig so zu empfinden, daß er dabei das Gefühl sowohl einer unauflöslichen Unverständlichkeit als einer unerklärlichen, nie völlig zu rechtfertigenden Verwandtschaft hatte. Sie schienen ihm zum Greifen verständlich zu sein und sich doch nie restlos in Worte und Gedanken auflösen zu lassen. Zwischen den Ereignissen und seinem Ich, ja zwischen seinen eigenen Gefühlen und irgendeinem innersten Ich, das nach ihrem Verständnis begehrte, blieb immer eine Scheidelinie, die wie ein Horizont vor seinem Verlangen zurückwich, je näher er ihr kam.” pp. 31-32



As paixões adolescentes, as primeiras descobertas sexuais, as paixões fulminantes – daquelas que notabilizaram o jovem Werther – e que guardam uma dor, enquanto momentos de transição, de descobertas de si mesmo. Como corresponder as expectativas dos colegas, e ao mesmo tempo ser coerente com a educação recebida no lar? Ou seria mais fácil tentar destruir toda a moral familiar quando sem mantém contatos com pessoas moralmente 'desqualificadas'? Assim a reação de Törless diante da mulher, aqui personificada na figura da decaída Bozena.


"Isto não era diferente com os outros jovens rapazes. Se Bozena fosse pura e bela e ele pudesse amar então, então ele talvez a tivesse mordido, com o prazer dele e dela crescendo a ponto de doer. Pois a primeira paixão de um jovem não é amor por alguém, mas, antes, ódio por todas. O sentir-se incompreendido e não compreender o mundo não acompanha a primeira paixão, mas antes é sua única causa não acidental. E em si mesma ela, a paixão, é apenas um refúgio onde estar com o outro significa apenas uma solidão duplicada.


Quase sempre a primeira paixão dura pouco e deixa um gosto amargo. Ela é um engano, uma decepção. Ao ficar pra trás não se entende e não se sabe a quem se deve culpar. Acontece assim porque as pessoas neste drama são casuais umas às outras na maior parte: companheiros casuais numa fuga. Após a calmaria não se reconhecem mais. Eles percebem-se contraditórios porque não mais percebem algo em comum.”

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Das war nicht anders als bei jungen Leuten überhaupt. Wäre Božena rein und schön gewesen und hätte er damals lieben können, so hätte er sie vielleicht gebissen, ihr und sich die Wollust bis zum Schmerz gesteigert. Denn die erste Leidenschaft des erwachsenden Menschen ist nicht Liebe zu der einen, sondern Haß gegen alle. Das sich unverstanden Fühlen und das die Welt nicht Verstehen begleitet nicht die erste Leidenschaft, sondern ist ihre einzige nicht zufällige Ursache. Und sie selbst ist eine Flucht, auf der das Zuzweiensein nur eine verdoppelte Einsamkeit bedeutet.


Fast jede erste Leidenschaft dauert nicht lange und hinterläßt einen bitteren Nachgeschmack. Sie ist ein Irrtum, eine Enttäuschung. Man versteht sich hinterher nicht und weiß nicht, was man beschuldigen soll. Dies kommt, weil die Menschen in diesem Drama einander zum größeren Teile zufällig sind: Zufallsgefährten auf einer Flucht. Nach der Beruhigung erkennen sie sich nicht mehr. Sie bemerken aneinander Gegensätze, weil sie das Gemeinsame nicht mehr bemerken.” p. 38


e também,


Amor? Não, agora o pensamento ocorreu-lhe pela primeira vez. Geralmente era algo de todo diferente. Nada para os grandes e adultos; nem para os seus pais. À noite, sentava-se junto a janela aberta e deixava-se sentir, sentir-se diferente dos adultos, com todas as risadas e caretas que pareciam não entender, e a ninguém pudesse explicar, o que já significava, e ansiar por alguém que compreendesse... é isto o amor! Mas, para isso, deve-se ser jovem e solitário. Junto a eles, os pais, devia ser diferente; algo calmo e tranquilo. Simplesmente a mãe cantava de tardinha no jardim que escurecia e estava alegre...”


Liebe? Nein, der Gedanke kam ihm jetzt zum erstenmal. Überhaupt war das etwas ganz anderes. Nichts für große und erwachsene Menschen; gar für seine Eltern. Nachts am offenen Fenster sitzen und sich verlassen fühlen, sich anders fühlen als die Großen, von jedem Lachen und von jedem spöttischen Blicke mißverstanden, niemandem erklären können, was man schon bedeute, und sich nach einer sehnen, die das verstünde ... das ist Liebe! Aber dazu muß man jung und einsam sein. Bei ihnen mußte es etwas anderes gewesen sein; etwas Ruhiges und Gleichmütiges. Mama sang einfach am Abend in dem dunklen Garten und war heiter....” p. 43



O jovem observa a si mesmo, em comparação com os pais, e com os colegas. Ser 'filhinho da mamãe' é até uma forma de humilhação pública, pois o jovem deve aprender a se proteger. Deve agir por si mesmo – e muitas vezes haverá de não agradar a família. Mas o que fazem os pais? São realmente bons? São seres perfeitos?


E podemos comparar o jovem Törless com o jovem artista Stephen Dedalus (de “Retrato do Artista quando Jovem”), ambos intrigados com o fenômeno feminino. A mulher enquanto símbolo da luxúria e do pecado. Afinal, os rapazes não tinham oportunidades de encontrarem mocinhas, mas geralmente mulheres mais velhas, geralmente prostitutas.


Törless procura uma 'mulher da vida', uma 'mulher decaída', pois parece ter prazer em objetos rebaixados, como argumenta S. Freud em certas teorias sobre a sexualidade (exemplar o caso do marido que traí a esposa, sempre correta e exemplar, com prostitutas as mais vulgares) de cunho psicologista. Mas há outra abordagem, moralista e mesmo religiosa. Assim é procurar a prostituta para melhor trair a imagem sacrossanta da família – e a experiente Bozena sabe disso: ela é a Mulher, não a Mãe.


Não nos desviamos muito se lembrarmos daquela atração de Raskólnikoff pela jovem prostituta Sonja (em “Crime e Castigo”) e do Príncipe Michkín por Nastássia (em “O Idiota”) onde o autor russo Dostoiévski mostra o fenômeno da vertigem, da tentação que arrasta o pecador para uma queda, o amor proibido, a paixão infernal, que leva ao fundo do poço, e depois ao arrependimento.


Junto com Beineberg, Törless se encontra com a decaída Bozena, e junto com Reiting, ele assiste aos maus tratos que afligem o colega Basini, submisso e desarmado. Assim Törless é uma testemunha – não participa da tortura contra o covarde Basini, mas é cúmplice passivo.


Sabemos mais sobre os colegas de Törless ao longo das torturas físicas e psicológicoas sofridas pelo jovem Basini. Assim expõe-se o sombrio Beineberg, o obcecado com a mística oriental – aquele que duvida dos padres e dos mestres, despreza os religiosos e os racionalistas – mas busca a sabedoria de velhos gurus. A metáfora da aranha: Beineberg enreda uma trama , a testar os colegas, a fazer experiências com o sofrimento alheio.


Lembramos que Törless vem de uma família liberal, de livre-pensadores, burgueses que desprezam irracionalismos em nome do 'bom tom', das conveniências. De início, Törless já criou inimizades ao exercitar o 'livre-pensar', e agora ele não leva muito a sério as experiências de Beineberg, mais voltado ao místico, como veremos.


Antes, os colegas pretendem arrastar o protagonista numa vertigem de experimentos morais, a ponto de fazê-lo desequilibrar-se, inclinar-se para o 'pecado', o moralmente considerado 'pecado', que apenas aumenta a culpa. Assim é com a decaída Bozena, uma mulher que acreditava na vida, mas agora só guarda a amargura e a ironia.


Irônica com a família, a luxuriosa Bozena ironiza os jovens que fazem tudo para agradar aos pais, para manterem as aparências de 'bons mocinhos'. Ela tem até pena das mães iludidas,



“Com estas palavras, Törless teve diante de si a antiga imagem de si mesmo. Como ele deixava tudo para trás e traía a imagem de seus pais. E agora ele tinha visto que o que fazia não era terrivelmente solitário, mas apenas um pouco vulgar. Ficou envergonhado. Porém outros pensamentos voltavam. Eles, os pais, também faziam isso! Eles te traem! Você tem secretos parceiros de jogo! Talvez com eles seja diferente de qualquer modo, mas isto deve ser mesmo com eles: um prazer terrível e confidencial. Algo no qual podemos mergulhar com toda angústia da regularidade dos dias... Talvez eles até soubessem mais...?! … Algo totalmente incomum? Pois durante o dia eles são tão calmos; … e aquele riso de sua mãe? Como se ela andasse com passos sossegados, a fechar todas as portas.”

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"Bei diesen Worten bekam Törleß wieder die frühere Vorstellung von sich selbst. Wie er alles hinter sich ließ und das Bild seiner Eltern verriet. Und nun mußte er sehen, daß er damit nicht einmal etwas fürchterlich Einsames, sondern nur etwas ganz Gewöhnliches tat. Er schämte sich. Aber auch die anderen Gedanken waren wieder da. Sie tuen es auch! Sie verraten dich! Du hast geheime Mitspieler! Vielleicht ist es bei ihnen irgendwie anders, aber das muß bei ihnen das gleiche sein: eine geheime, fürchterliche Freude. Etwas, in dem man sich mit all seiner Angst vor dem Gleichmaß der Tage ertränken kann.... Vielleicht wissen sie sogar mehr...?!... Etwas ganz Ungewöhnliches? Denn sie sind am Tage so beruhigt; .. und dieses Lachen seiner Mutter?.. als ob sie mit ruhigem Schritte ginge, alle Türen zu schließen." p. 45



Assim o sentir-se dividido entre o burguês e o aventureiro - assim como estava Tonio Kroeger – mezzo burguês, mezzo artista. Com a diferença que Törless parece mais um filósofo kantiano – dividido entre o nomeno e o fenômeno - do que um artista. Antes ele se revela preocupado com questões morais, dos limites do conhecimento. Parece que tanto a vida regulada quanto a luxuriosa o desesperariam – ele tem consciência demais para ser 'feliz',


“No entanto, às vezes, dominava-o a consciência do que perdia por causa dessa dependência íntima. Ele sentia que tudo o que fazia era apenas um jogo. Apenas algo que o ajudava a superar aquela fase de existência de larva lá no internado. Sem relação com o seu verdadeiro ser que vem apenas depois, numa incerta distância temporal.


Quando ele via que, em certas oportunidades, como seus dois amigos consideravam seriamente tais coisas, ele sentia falhar o entendimento. Teria com muito gosto se divertido com eles, mas temia que por detrás das fantasias havia mais verdade do que ele suportaria ver. Ele se sentia praticamente dividido entre dois mundos: de uma sólida burguesia, na qual, afinal, tudo seguia regulado e sensato, como ele estava acostumado em casa, e de um aventureiro, cheio de escuridão, mistério, sangue e surpresas inesperadas. E um mundo parecia excluir o outro. Um sorriso de zombaria, que ele teria gostado de manter nos lábios, e um arrepio, que percorria a espinha, cruzaram-se. Um piscar de pensamento surgia...”

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Manchmal kam ihm aber doch zu Bewußtsein, was er durch diese innerliche Abhängigkeit einbüßte. Er fühlte, daß ihm alles, was er tat, nur ein Spiel war. Nur etwas, das ihm half, über die Zeit dieser Larvenexistenz im Institute hinwegzukommen. Ohne Bezug auf sein eigentliches Wesen, das erst dahinter, in noch unbestimmter zeitlicher Entfernung kommen werde.


Wenn er nämlich bei gewissen Gelegenheiten sah, wie sehr seine beiden Freunde diese Dinge ernst nahmen, fühlte er sein Verständnis versagen. Er hätte sich gerne über sie lustig gemacht, hatte aber doch Angst, daß hinter ihren Phantastereien mehr Wahres stecken könnte, als er einzusehen vermochte. Er fühlte sich gewissermaßen zwischen zwei Welten zerrissen: Einer solid bürgerlichen, in der schließlich doch alles geregelt und vernünftig zuging, wie er es von zu Hause her gewohnt war, und einer abenteuerlichen, voll Dunkelheit, Geheimnis, Blut und ungeahnter Überraschungen. Die eine schien dann die andere auszuschließen. Ein spöttisches Lächeln, das er gerne auf seinen Lippen festgehalten hätte, und ein Schauer, der ihm über den Rücken fuhr, kreuzten sich. Ein Flimmern der Gedanken entstand ...” p. 53



Agora havia, pela primeira vez, como se uma pedra atingisse a incerta solidão de seu devanear; havia; nada há que possa ser feito; era a realidade.” (“Da war nun etwas zum ersten Male wie ein Stein in die unbestimmte Einsamkeit seiner Träumereien gefallen; es war da; da ließ sich nichts machen; es war Wirklichkeit.” p.59)

É visível no jovem aquela dificuldade de expressar o que se sente, pois desconfia da linguagem. Ou antes: da capacidade da linguagem em traduzir nossas emoções e pensamentos, para que a originalidade não se perca em lugares-comuns da fala banal, afinal o idioma que recebemos – onde fomos inseridos – já é uma fala viciada,


Justo agora ele cuidava disso. Ocorreu-lhe que , certa vez, quando ele estava com o pai diante de uma daquelas paisagens, subitamente ele gritara: Ó é tão bonito! - e ficara confuso quando seu pai se alegrara. Pois ele poderia ter dito também: É terrivelmente triste. Era a falha das palavras que o atormentava, uma meia consciência de que as palavras eram apenas equívocos acidentais para o que se sentia.


E hoje ele se lembrava da cena, lembrava-se das palavras e claramente a sensação de ter mentido, sem saber o motivo. Seu olhar atravessava, na lembrança, diante de tudo que era novo. Mas sempre e sempre voltava sem qualquer salvação. Um sorriso de contentamento sobre a riqueza das inspirações, que ele ainda mantinha um tanto distraído, lentamente mudava-se num pouco perceptível traço doloroso.”

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Gerade um dieses bemühte er sich jetzt. Ihm fiel ein, daß er einstens, als er mit seinem Vater vor einer jener Landschaften stand, unvermittelt gerufen hatte: o es ist schön – und verlegen wurde, als sich sein Vater freute. Denn er hätte ebensogut sagen mögen: es ist schrecklich traurig. Es war ein Versagen der Worte, das ihn da quälte, ein halbes Bewußtsein, daß die Worte nur zufällige Ausflüchte für das Empfundene waren.


Und heute erinnerte er sich des Bildes, erinnerte sich der Worte und deutlich jenes Gefühles zu lügen, ohne zu wissen, wieso. Sein Auge ging in der Erinnerung von neuem alles durch. Aber immer wieder kehrte es ohne Erlösung zurück. Ein Lächeln des Entzückens über den Reichtum der Einfälle, das er noch immer wie zerstreut festhielt, bekam langsam einen kaum merklichen schmerzhaften Zug...” pp. 84-85


A dificuldade de expressão? Numa classe de pensadores, comerciantes, funcionários públicos, burocratas, de boa vida e em ascensão? Mas a burguesia não é muito de nutrir bens eruditos mas, antes, tesouros materiais para financiar jogos de poder, de modo que a literatura é vista enquanto exibição do burguês. Eis a estante cheia de livros nunca lidos, sequer folheados – mas apenas ostentação de um saber.


Antes de agora diante de Törless o nome Kant nunca fora pronunciado diferente e com tal expressão, como diante de algo misteriosamente sagrado. E Törless nada diferente podia pensar além de que os problemas da filosofia finalmente foram solucionados por Kant, e que esta permanecia desde então como uma atividade sem propósito , assim como ele também acreditaria que após Schiller e Goethe não valia mais a pena escrever.


Em casa, os livros ficavam nas estantes com portas verdes no escritório do pai e Törless sabia que este nunca era aberto, exceto para ser mostrado a alguma visita. Era como um santuário de uma divindade, da qual não se gosta de se aproximar, e que apenas se reverencia, por que é agradável que não se precise mais, graças a sua existência, se preocupar com certas questões.


Esta relação distorcida com a filosofia e a literatura exerceu mais tarde sobre Törless um tardio desenvolvimento cuja influência infeliz lhe concederia muitas horas tristes. Pois desviava sua ambição de seus reais temas e voltava-o, enquanto ele, sem seu objetivo, procurava por outro, - sob a brutal e resoluta influência de seus colegas. Suas inclinações voltavam vez ou outra e envergonhadas e a todo tempo a consciência de fazer algo inútil e risível. Elas eram, porém, ainda fortes, que ele não podia se livrar completamente delas, e esta constante luta era o que roubava de seu ser as linhas estáveis e o andar altivo.”

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Nun war vor Törleß der Name Kant nie anders als gelegentlich und mit einer Miene ausgesprochen worden, wie der eines unheimlichen Heiligen. Und Törleß konnte gar nichts anderes denken, als daß von Kant die Probleme der Philosophie endgültig gelöst seien, und diese seither eine zwecklose Beschäftigung bleibe, wie er ja auch glaubte, daß es sich nach Schiller und Goethe nicht mehr lohne zu dichten.


Zu Hause standen diese Bücher in dem Schranke mit den grünen Scheiben in Papas Arbeitszimmer und Törleß wußte, daß dieser nie geöffnet wurde, außer um ihn einem Besuch zu zeigen. Er war wie das Heiligtum einer Gottheit, der man nicht gerne naht, und die man nur verehrt, weil man froh ist, daß man sich dank ihrer Existenz um gewisse Dinge nicht mehr zu kümmern braucht.


Dieses schiefe Verhältnis zu Philosophie und Literatur hatte später auf Törleß' weitere Entwicklung jenen unglücklichen Einfluß ausgeübt, dem er manche traurige Stunde zu danken hatte. Denn sein Ehrgeiz wurde hiedurch von seinen eigentlichen Gegenständen abgedrängt und geriet, während er, seines Zieles beraubt, nach einem neuen suchte, – unter den brutalen und entschlossenen Einfluß seiner Gefährten. Seine Neigungen kehrten nur noch gelegentlich und verschämt zurück und hinterließen jedesmal das Bewußtsein, etwas Unnützes und Lächerliches getan zu haben. Sie waren aber doch so stark, daß es ihm nicht gelang, sich ihrer ganz zu entledigen, und dieser beständige Kampf war es, der sein Wesen der festen Linien und des aufrechten Ganges beraubte.” pp. 102-103



Contudo a presença da erudição percebe-se na obra, nas indagações, onde o leitor é conduzido entre a ciência, a lógica, o raciocínio e a poesia, o metafórico, a lacuna irracional, a perceber a posição de cada personagem - quem é iluminista, quem é irracionalista, quem é teocrático (algo semelhante acontece, e com mais rigor, em “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, onde o jovem Hans Castorp é confrontado com várias visões de mundo, às vésperas da Primeira Grande Guerra) no embate filosófico com o outro.


Vimos que Törless foi educado família liberal, burguesa, de tradição iluminista, enquanto o colega Beineberg defende o misticismo oriental, não o pensamento iluminista (próprio da família liberal de Törless), e no embate entre ambos conhecemos os limites e incoerências das visões-de-mundo que se negam mutuamente. O místico não hesita em desmerecer o pensamento racionalista,


Nós nunca antes falamos tão seriamente sobre isso, afinal não se gosta de gastar palavras com tais coisas, mas agora você pode ver, quão fraca é a visão com a qual as pessoas lidam com o mundo. É desilusão, é engano, é idiotice! Anemia! Desde que o entendimento delas não vai além de conceberem em suas cabeças suas explicações científicas, afora isto se congelam, entendes? Há, há! Todos estes pontos, estes extremos que os professores nos dizem que eles são sutis, os quais nós ainda não somos capazes de apalpar, estão mortos – congelados, - entendes? Em todas as direções se observa estas admiradas pontas de gelo e nenhuma pessoa é capaz de começar algo com elas, pois são tão sem vida!

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Wir zwei haben noch nie so ernst darüber gesprochen, schließlich macht man über solche Dinge nicht gern viel Worte, aber du kannst jetzt sehen, wie schwach die Ansicht ist, mit der sich die Leute über die Welt begnügen. Täuschung ist sie, Schwindel ist sie, Schwachköpfigkeit! Blutarmut! Denn ihr Verstand reicht gerade so weit, um ihre wissenschaftliche Erklärung aus dem Kopf herauszudenken, draußen erfriert sie aber, verstehst du? Ha ha! Alle diese Spitzen, diese äußersten, von denen uns die Professoren erzählen, sie seien so fein, daß wir sie jetzt noch nicht anzurühren vermögen, sind tot – erfroren, – verstehst du? Nach allen Seiten starren diese bewunderten Eisspitzen und kein Mensch vermag mit ihnen etwas anzufangen, so leblos sind sie!” p. 107



No meio de questões filosóficas – pois o jovem se interessa por leituras de Kant – o aluno-protagonista acaba por confundir os professores, incapazes de entenderem a profundeza de suas indagações, em questionamentos dos quais somente o jovem e artista é capaz. Ver o mundo com assombro, ver a vida com maravilhamento, eis atitudes dignas de um jovem em crescimento físico e mental. Quanto mais 'desperto' para a inquietude, mais propenso a criticar, inovar, criar.


Não sabemos qual o futuro de Törless – se burocrata, filósofo, artista, médico – mas suas inclinações são para o pensamento introspectivo, o que o habilita a ser um bom questionador da 'vida como ela é', assim como acontece com um jovem Tonio Kroeger (o artista da obra de Thomas Mann), igual ao jovem artista Stephen Dedalus (na obra de James Joyce). São jovens que encontram uma aspiração, um guia íntimo (ou desassossego íntimo) que é desconhecido dos demais. Ou jovens que se sentem marcados – 'cains' com uma 'marca na testa' – vide os casos de Demian (H. Hesse) e Tonio Kroeger (T. Mann)


Talvez o jovem Törless, quando adulto, seja uma espécie de 'Homem do Subterrâneo', ou um Raskolnikov (ambos personagens-protagonistas de obras de F. Dostoiévski), ou mesmo um Harry Haller (de “O Lobo da Estepe” de H. Hesse) ou um Antoine Roquetin (de “A Náusea” de J-P Sartre), adultos que questionam à exaustão a sociedade e o mundo, verdadeiros niilistas ou iconoclastas, em crise de identidade e boicotando as próprias carreiras.


Para conservar a identidade, para cultivar a própria personalidade, em sua jornada de auto-conhecimento, o jovem precisará vencer as barreiras de classe e educação, inserir-se num grupo social, num clube, numa gangue, numa vanguarda artística, numa sociedade de desiguais, de exigências e de punições. Veremos mais estes conflitos nos próximos ensaios sobre as obras citadas.



dez/11 e mar/12


Leonardo de Magalhaens


http://leoleituraescrita.blogspot.com

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com




mais info


Die Verwirrungen des Zöglings Törleß

in: Projekt Gutenberg
http://www.gutenberg.org/files/34717/34717-h/34717-h.htm


filme

"
O Jovem Törless" (1966)

de Volker Schlöndorff

http://www.youtube.com/watch?v=Oz_RsCiz6Ns&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=n6zNGw-CEJA