segunda-feira, 1 de novembro de 2010

sobre "Der Sandmann" / O Homem de Areia de E T A Hoffmann




Ensaios sobre a
literatura fantástica /gótica/ de terror

Der Sandmann
Northanger Abbey
The Turn of the Screw


sobre o conto “O Homem de Areia” de
E.T. A . Hoffmann (1776-1822)
escritor romântico alemão

O sinistro: o estranho oculto no familiar

Muitos autores de contos fantásticos, novelas góticas, romances macabros – e até o pai da Psicanálise – sempre tiveram o escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann como uma referência do universo fantástico e de terror. Assim declararam a autora Mary Shelley, o francês Flaubert, o norte-americano Edgar Allan Poe, o russo Gógol, o francês Baudelaire, o judeu-alemão Sigmund Freud.


Enquanto na tradição anglo-saxã temos os 'gothic novels', na França encontremos o “roman noir” (“romance sombrio”), com a versão alemã mais apropriadamente chamada “romance arrepiante” (“Schauerroman” ou “Schauerliteratur”) (1) São estórias onde o leitor nunca sabe se imerso num sonho aterrador ou realidade atormentada, pois o Narrador, o contador de fábulas, nunca esclarece, nunca deixa evidente. Aliás, o modo de narração impossibilita as conclusões e pereniza as ambiguidades. O que parecia ser comum, banal, cotidiano, familiar pode estar na fronteira do inusitado, submisso a uma estranheza que subitamente irrompe.

Assim é o mundo imaginativo que é conservado (ao ser parodiado) na Abadia de Northanger (de Jane Austen), assim também o sinistro que pode habitar entre o que consideramos mais singelo, na novela “A Volta do Parafuso” (ou Os Inocentes, de Henry James), onde – em ambas as obras - o terror nasce de uma ambiguidade psicológica – seja do Narrador ou da Personagem (também narradora).

Mas a influência mais asinalada pela Crítica é a de Hoffmann sobre o soturno E. A. Poe. Muitos contos conservam a mesma ambiência e ambiguidade – como “A Queda da Casa de Usher”, “Gato Preto”, “O Coração Denunciador”, “William Wilson” - com as figuras / alegorias da casa sombria, do animal sinistro, do inimigo-íntimo, do ser-duplo (Doppelgänger) que pode estar mais próximo do se imagina.

O Homem de Areia é um conto de Hoffmann incluso no livro de contos Peças Noturnas (Die Nachtstücke), ou 'The Night Pieces” (em inglês), textos escritos no final do século 18 e início do século 19.

É toda uma paródia com os contos infantis, e com o mundo dos sonhos, quando sabemos que a bondosa mãe lembra às crianças sobre presença do Homem sombrio que atira areia nos olhos das crianças que teimam em dormir.

Estrutura-se inicialmente como um 'romance epistolar', uma troca de cartas (carta de Nathanael a Lothar, lida por Klara; de Klara a Nathanael; de Nathanael a Lothar) depois a intervenção de uma voz narrativa a explicar (contextualizar) as cartas ao 'compreensivo leitor' (günstiger Leser).

A personagem Nathanael relata o quanto se sente incomodado por um vendedor de barômetros e aparelhos ópticos, e nem sabe porque expulsa o tal vendedor. Será que ele faz lembrar alguém de tempos passados? Sim, um estranho visitante, dos tempos da infância. Lembra então da família que se acomodava para ler e ouvir estórias fantásticas, e que quando as crianças precisam ir para a cama,ouvem a mãe contar o caso do Homem de Areia que joga areia nos olhos das crianças, antes de raptá-las.

Nathanael descreve (em carta para Lothar, mas é Klara quem acaba lendo) os terrores infantis com o Homem de Areia,

“De modo terrível a imagem do cruel Homem de Areia se pintava dentro de mim; tanto que ao ouvir passos subindo a escada, eu me enchia de medo e terror. Nada conseguia além de um grito engasgado meio às lágrimas: 'O Homem de Areia! O Homem de Areia!' poderia a minha mãe surpreender-me. E eu me recolhia à cama, e era bem possível que eu ficasse a noite toda atormentado pela terrível aparição do Homem de Areia.”

(“” – Gräßlich malte sich nun im Innern mir das Bild des grausamen Sandmanns aus; sowie es abends die Treppe heraufpolterte, zitterte ich vor Angst und Entsetzen. Nichts als den unter Tränen hergestotterten Ruf: »Der Sandmann! der Sandmann!« konnte die Mutter aus mir herausbringen. Ich lief darauf in das Schlafzimmer, und wohl die ganze Nacht über quälte mich die fürchterliche Erscheinung des Sandmanns.”)

O terror que é ensinado nas fábulas narradas pela mãe – no meio familiar – que fala de um mundo fantástico que atua sobre o doméstico – onde se confundem – o estranho irrompe dentro do normal. A própria mãe que veria protegê-lo, assusta o menino com estórias de monstros noturnos (assim como somos assustados por ogros, bichos-papãos, dragões sob as camas...)

“O Homem de Areia levou-me ao caminho do extraordinário, das aventuras, que tão facilmente se aninham na mente infantil.” (“Der Sandmann hatte mich auf die Bahn des Wunderbaren, Abenteuerlichen gebracht, das so schon leicht im Kindlichen Gemüt sich einnistet.”)

O menino começa a identificar um visitante (o advogado Coppelius) com o tal 'Sandmann', quando pode, oculto atrás de uma cortina, observá-lo em companhia do pai,

“Toda a figura era disforme e grotesca; mas além de tudo, para nós, as crianças, eram horríveis aquelas mãos nodosas e peludas, tanto que não mais queríamos o que ele tocava.” (“Die ganze Figur war überhaupt widrig und abscheulich; aber vor allem waren uns Kindern seine grossen knotichten, haarichten Fäuste zuwider, so das wir, was er damit berührte, nicht mehr mochten.”)

Surpreendido, o menino é repreendido sob ameaças – desmaia quando ameaçam arrancar-lhe os olhos! – enquanto permanece o pai em companhia do visitante, dedicados experimentos de alquimia. Até que há um acidente e o pai é simplesmente volatilizado! Eis o trauma.

Mas para Klara, o Sandmann não passa de fantasia, e deve ser superada,

“Sem dúvida, se associou, em sua mente de criança, o terrível Homem de Areia do conto de fadas com o velho Coppelius, que você, você também não acreditava que o Homem de Areia, o fantasmagórico, continuasse para as crianças, em especial, um ser perigoso.” (“Natürlich verknüpfte sich nun in Deinem kindischen Gemüt der schreckliche Sandmann aus dem Ammenmärchen mit dem alten Coppelius, der Dir, glaubtest Du auch nicht an den Sandmann, ein gespenstischer, Kindern vorzüglich gefährlicher Unhold blieb.”)


É neste conto que encontra-se a expressão “Das unheimlich Treibens”, o impulso de inquietação diante do não-doméstico, ou o sinistro, que será 'recuperada' por Freud, no século 20, com o ensaio “Das Unheimlich”, ou “O Sinistro” (1919). É um 'inquietante' ('uncanny') que se instala no familiar – ou no que parece familiar. Um 'de casa' que não é exatamente de casa, ou um 'não estar bem em casa', quando o podemos viver (sem saber) em companhia do inimigo.

Escreveu Freud, “a palavra alemã 'unheimlich' é obviamente o antônimo de 'heimlich' (doméstico), 'heimisch' (nativo) o antônimo do que é familiar; e nós somos tentados a concluir que o que é 'uncanny' é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente não é tudo que é novo e não-familiar que é assustador, entretanto; a relação não é capaz de inversão.

Nós podemos apenas dizer que é novo/singular pode facilmente tornar-se assustador mas nem sempre em todo caso. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo/singular e não-familiar de modo a fazê-lo ser sinistro.”

The German word 'unheimlich' is obviously the opposite of 'heimlich' ['homely'], 'heimisch' ['native'] the opposite of what is familiar; and we are tempted to conclude that what is 'uncanny' is frightening precisely because it is not known and familiar. Naturally not everything that is new and unfamiliar is frightening, however; the relation is not capable of inversion.

We can only say that what is novel can easily become frightening but not by any means all. Something has to be added to what is novel and unfamiliar in order to make it uncanny.


Após uma apurada análise etimológica, Freud conclui que o unheimlich pode se confundir com o ambivalente heimlich, ou seja, os opostos se relacionam intimamente, pois há todo um jogo de ambivalências e contradições, de modo que nem percebamos que o unheimlich pode estar dentro do heimlich, o 'sinistro' pode se inserir no que julgamos 'de casa', 'familiar', na forma de 'oculto' (hidden, heimlich). (2)
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Texto digital de The Uncanny (Freud)
http://www-rohan.sdsu.edu/~amtower/uncanny.html


As reflexões de Nathanael sobre os próprios temores – na narrativa em 3ª pessoa, depois das cartas – são uma amostra do desejo de saber qual a origem do 'sinistro' – a coisa em si-mesma ou os temores que já se carrega no íntimo, por fantasias ou angústias. O objeto do medo muitas vezes é carregado apenas das projeções de nossos temores ( Tanto é assim que no livro de M. Shelley, o monstro de Frankenstein não é originalmente mal, mas ao despertar o medo dos outros, aceita esta imagem de 'malévolo'. Veremos em breve.)

“Tanto que tendo afastado as lentes, Nathanael aquietou-se e, pensando em Klara, ele provavelmente viu que o episódio horrível apenas se acentuava dentro dele tanto quanto o fato de Coppola ser um honesto mecânico e óptico, de modo algum Coppelli poderia ser um maldito duplo e espectro.”

(“Sowie die Brillen fort waren, wurde Nathanael ganz ruhig und, an Klara denkend, sah er wohl ein, daß der entsetzliche Spuk nur aus seinem Innern hervorgegangen sowie daß Coppola ein höchst ehrlicher Mechanikus und Optikus, keineswegs aber Coppelii verfluchter Doppeltgänger und Revenant sein könne.”)


Assim o que é familiar pode ocultar um algo de não-familiar e instaura-se o domínio do 'sinistro'. Os medos infantis de Nathanael ilustram bem a que níveis podem chegar o trauma. Será que o tal vendedor de barômetros e lentes – chamado Coppola – é aparentado ao tal Coppelius que causou a morte do pai? E se for a mesma pessoa? Será assim o 'retorno do recalcado' – do Homem de Areia? Mas, Nathanael acaba por comprar uma lente – ou luneta – para que o vendedor não mais incomode. E com a lente passa a observar uma vizinha, a bela e talentosa Olimpia, filha de um cientista, Spallanzani. (3)

A presença da 'ciência' é também forte aqui no conto hoffmanniano. A figura do cientista excêntrico Spallanzani é um interessante protótipo para o também lunático Dr. Victor Frankenstein, pois aqui o Spallanzani (após vinte anos de estudos e trabalhos) cria um 'autômato' – a mocinha Olimpia – que desperta uma paixão transloucada em Nathanael, como podemos notar na carta deste ao amigo Lothar,

“Ela parecia nem me notar, e geralmente os olhos dela se fixavam, quase diria que sem visão, e, para mim, era como se ela durmisse de olhos abertos. Para mim isso era quase estranho [unheimlich], e assim eu deslizava até o salão, que se situava ao lado. Depois pensava naquela figura que eu havia visto, Olimpia, a filha de Spalanzani, que ele prendia de modo estranho e miserável, de modo que ninguém podia se aproximar.”

(“Sie schien mich nicht zu bemerken, und überhaupt hatten ihre Augen etwas Starres, beinahe möcht ich sagen, keine Sehkraft, es war mir so, als schliefe sie mit offnen Augen. Mir wurde ganz unheimlich, und deshalb schlich ich leise fort ins Auditorium, das daneben gelegen. Nachher erfuhr ich, daß die Gestalt, die ich gesehen, Spalanzanis Tochter Olimpia war, die er sonderbarer- und schlechterweise einsperrt, so, daß durchaus kein Mensch in ihre Nähe kommen darf.” )

A paixão de Nathanael por Olimpia – que eclipsa o antigo amor por Klara – também, se situa no ambiente onírico do Romantismo, como percebemos na amargurada passagem do amante não correspondido, obcecado por 'grandes olhos brilhantes',

“A figura de Olimpia flutuava no ar diante dele e saía dos arbustos e olhava com aqueles grandes olhos brilhantes desde os riachos luminosos. A imagem de Klara tinha totalmente desaparecido de seu íntimo, ele pensava em nada além de Olimpia e ele se lamentava exagerado e choroso: “Ah, minha sublime estrela adorada, tens se elevado apenas para desaparecer novamente e deixar-me abandonado numa escura e desesperada noite?”

(“Olimpias Gestalt schwebte vor ihm her in den Lüften und trat aus dem Gebüsch und guckte ihn an mit großen strahlenden Augen aus dem hellen Bach. Klaras Bild war ganz aus seinem Innern gewichen, er dachte nichts als Olimpia und klagte ganz laut und weinerlich: „Ach, du mein hoher herrlicher Liebesstern, bist du mir denn nur aufgegangen, um gleich wieder zu verschwinden und mich zu lassen in finstrer hoffnungsloser Nacht?“”)

O olhar de Olimpia é mesmerizante para Nathanael. E estranha ao mesmo tempo – além de notar a reclusão em que vivia a mocinha. O protagonista fica ainda mais enlouquecido quando percebe que a mocinha não passa de uma boneca mecânica, um autômato, até desmontável, da qual podem extrair os olhos! (4)

Aliás, vários Críticos – e leitores atentos – perceberam a insistência do foco sobre os olhos/o olhar. O Homem de Areia joga areia nos olhos das crianças. Nathanael é ameaçado de ter os olhos arrancados. A luneta é uma ampliação do poder de ver. Os olhos de Olimpia são fascinantes. Nathanael tem uma crise nervosa ao ver os olhos arrancados da 'boneca' Olimpia.

“Apenas Nathanael viu, como o par de olhos sangrentos jaziam no chão, a olharem fixamente, os quais Spalanzani recuperou com a mão intacta e atirou-os a ele, que os achou junto ao peito. - Então a loucura com garras faiscantes adentrou o seu íntimo, dilacerando senso e pensamentos.”

(“Nun sah Nathanael, wie ein Paar blutige Augen, auf dem Boden liegend, ihn anstarrten, die ergriff Spalanzani mit der unverletzten Hand und warf sie nach ihm, daß sie seine Brust trafen. – Da packte ihn der Wahnsinn mit glühenden Krallen und fuhr in sein Inneres hinein, Sinn und Gedanken zerreißend.” )


Assim, a tríade sonho/pesadelo – olhos/olhar – ameaça paterna está no foco de leitura, a propiciar todo um campo de pesquisa sobre fobias e inconsciente coletivo. Podemos mudar o foco para cada fobia em si (terror noturno – duplo – olhar obsessivo – castração ) ou se defrontar (e amedrontar) com todos esses temores (e terrores) de uma só vez, concentrada e angustiadamente. Com tanto simbolismo é difícil até saber o que pretende o Autor – além de assustar os seus leitores.


set/out/10

Notas

(1)mais info sobre o lado sombrio do Romantismo (chamado “Dark Romanticism” ou “Schwarzen Romantik” ) e a tradição 'gótica' alemã, nos links

Dark Romanticism
(inclui poesia e prosa sombrios)
http://www.artandpopularculture.com/Dark_romanticism

Schauerroman (alemães)
http://www.artandpopularculture.com/Schauerroman


(2)Outro conto fantástico que apresenta o sinistro bem próximo é o Horla de Maupassant, “Le Horla” é uma espécie de fantasma moderno, ou até um alien, um ser a sugar energias, a rastejar nas entrelinhas, assustando mais por não ser explícito, mas sugerido, nunca definido.

4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente.

http://riesemberg.blogspot.com/2006/10/o-horla-guy-de-maupassant.html
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Mais sobre Le Horla
http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_horla
texto em français
http://www.gutenberg.org/files/10775/10775-h/10775-h.htm
texto em english
http://www.eastoftheweb.com/short-stories/UBooks/Horl.shtml


(3)Um vendedor de barômetros e lentes? Lembra-me muito o conto-novela “A Lanterna Mágica” (1869) do brasileiro Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), onde lentes condicionam o 'olhar' do protagonista, nas visões do Bem ou do Mal. É uma obra sobre a qual escrevemos um ensaio - disponível em http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/02/sobre-luneta-magica-j-manuel-de-macedo.html

A Luneta Mágica no Wikisource
http://pt.wikisource.org/wiki/A_Luneta_Mágica

Há um Spallanzani citado no romance Frankenstein de Mary Shelley, mas trata-se de um cientista real, o Dr. Lazzaro Spallanzani (1729-1799), fisiologista italiano, que fazia experiência sobre a famigerada “geração espontânea” - questão 'cientificista' que somente foi encerrada com os resultados laboratoriais do francês Pasteur.

(4)Ainda não temos o termo 'robot' – que só seria criado pelo tcheco Karel Capek, no início do século 20 – para designar o autômato, a máquina com semelhanças até humanas. Pouco depois, o alemão Fritz Lang assombraria o mundo com o filme “Metropolis” (1927) onde as máquinas se confundem com os humanos – tema ampliado por Isaac Asimov em “Eu, Robô” e por Philip Dick em “Do Androids Dream of Electric Sheep?” (que inspirou depois o filme clássico “Blade Runner”, 1982, de Ridley Scott). Com ênfase na 'ação' temos “The Terminator” (1984) e “Robocop” (1987)

Falaremos mais sobre Robôs quando abordamos os clássicos da Ficção Científica.
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LdeM
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