sábado, 18 de dezembro de 2010

sobre DRACULA - de Bram Stoker (1:3)






Sobre o clássico do terror Dracula (1897)
do autor irlandês Bram Stoker (1847-1912)


classic horror fiction
ensaio 3

Quando o Terror surge entre a Vida e a Morte


p1

Falemos mais sobre Vampiros. Que fascínio estes seres exercem sobre os pobres mortais? Que fantasias são capazes de despertar? Que maldições tecem as tapeçarias de delírios que movem as produções de livros, filmes, bandas de música? Por que tal criatura se destaca tanto no universo do terror a ponto de ter proeminência sobre outros mortos-vivos e bestas apocalípticas?

Este ensaio aborda a obra Dracula de Bram Stoker, mas tem dois anexos – um antes e outro depois. Primeiramente, um cenário sobre o que entendemos por vampiro. Há outros escritores antes e depois de Stoker que falaram sobre os undead. E assim a cada escrita e reescrita novas peças podem se encaixar no mito, novas lendas podem ser 'criadas', novas alternativas para a origem e para o final destes monstros tão adoráveis.

A terceira parte é um panorama da presença dos vampiros na cultura ocidental. Uma série de links com conteúdo midiático on-line sobre livros, autores, filmes, animações, blogs, sites, bandas musicais que se dedicam a atualizar a temática dos vampiros – seja explicando, contestando, adorando, desejando.


Começaremos com a mitologia sobre Vampiros, a herança do vampiro folclórico. Sobre vampiros eu apresento mais perguntas do que respostas, eis algumas...


Vampiros sugam sangue dos vivos - mas os vampiros saem do túmulo para sugar?

Alguns autores apresentam o vampiro enquanto espectro, um fantasma, que ataca os vivos. Assim, o corpo undead não deixa o túmulo. O fantasma suga uma vítima e o corpo undead no túmulo 'recebe' a energia vital do sangue sugado.

Outros autores mostram o corpo undead a sair do túmulo – tal um zumbi, um morto-vivo, meio preservado, ou rejuvenescido (ainda que com o fedor próprio da morte e da terra úmida) e suga o corpo da vítima

Ou seja, temos duas possibilidades. Um espírito preso a um corpo undead. Este espírito suga a energia vital no sangue de um corpo vivo e teletransporta esta energia para o corpo lá na cova -por isso o corpo lá se conserva. Ou é um corpo undead conservado que sai por aí a sugar corpos vivos.

No primeiro caso, os vampiros podem atacar até nos sonhos, ao provocarem alucinações e pesadelos. No segundo caso são monstros sujos de terra e fétidos de terra úmida que dilaceram pescoços de vítimas indefesas.

Um autor de ficção que se destaca no 'vampiro espectro' que atua sem que o corpo deixe a sepultura é o italo-americano Francis Marion Crawford, 1854-1909), com o conto (gothic tale) “For The Blood is the Life” (publicado em 1911)

“Então ele foi até o monte de terra e parou sobre este onde eu podia ver a Coisa ainda lá, mas não exatamente deitada; ela estava de joelhos agora, movendo os braços ao redor do corpo de Holger e olhando direto na face dele. Uma brisa gélida arrepiou meus cabelos neste momento, enquanto o vento noturno descia sobre as colinas, mas eu sentia como se fosse um respirar de um outro mundo.
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A coisa parecia tentar se levantar sobre os próprios pés com a ajuda do corpo de Holger enquanto ele ficava em pé no mesmo lugar, um tanto inconsciente disso e aparentemente olhando para a torre, a qual é muito pitoresca quando o luar cai sobre ela naquele lado.”
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Then he went on till he reached the mound and stood upon it. I could see the Thing still, but it was no longer lying down; it was on its knees now, winding its white arms round Holger's body and looking up into his face. A cool breeze stirred my hair at that moment, as the night wind began to come down from the hills, but it felt like a breath from another world.
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The Thing seemed to be trying to climb to its feet helping itself up by Holger's body while he stood upright, quite unconscious of it and apparently looking toward the tower, which is very picturesque when the moonlight falls upon it on that side.

Fonte:
http://www.vampireoccultsociety.com/crawford_bloodislife1.html


Outros autores de ficção preferem o vampiro corpo que sai do túmulo – talvez por ser um terror mais material, mais carnal. Assim encontramos os vampiros em obras de Stephen King, Anne Rice e Stephenie Meyer, para citar os mais famosos (e campeões de vendas).

Quanto a destruição do vampiro – tanto num caso quanto no outro – o corpo undead deve ser destruído – exumado e desmembrado, ou golpeado com estaca no coração, ou queimado.

Há também a figura do 'vampiro astral' que pode designar não apenas um vampiro-fantasma. Há um tipo de pessoa, digamos um vampiro corpo vivo que é capaz de sugar energia do 'campo astral' composto de energia vital – ou diretamente pelo toque. São pessoas que ao tocarem o corpo de alguém, 'sugam' energia vital (não exatamente sangue). Pessoas que mesmo sem tocarem sugam energia vital de uma ou mais pessoas. Em festas, em ambientes lotados, o vampiro-astral passeia anonimamente a sugar energias alheias. Em muitos ambientes se percebe uma debilitação do ânimo vital que se perde para o proveito de outrem.


Quem tem tendência a tornar-se vampiro?

Vítimas de vampiros, foram sugadas e vampirizadas; ou então os suicidas, que ansiam pela morte mas antes da 'hora', assim atraem os mortos-vivos; ou então vítimas de atos violentos, cruéis, assassinatos, pois morrem antes da 'hora'; há também os 'hereges', ou os amaldiçoados – aqui o poder das religiões em 'excomungar' pessoas – e a crença de que nem a tera queria aceitar o corpo maldito – lembrar que hereges e suicidades eram enterrados fora dos 'campos santos' onde a terra era consagrada.

Existem também os que agem como se fosse vampiros – matam e sugam sangue – mas aqui é um caso patológico, de doença mental.


O que é lenda, o que é fato?


Explicações para o vampiro folclórico não faltam. Citemos o norte-americano Paul Barber e o espanhol Juan Gómez-Alonso. Barber aborda mais a questão dos sepultamentos e as condições dos cadáveres nos tempos medievais e início da modernidade (séculos 15 a 18). O que os camponeses sabiam sobre decomposição de cadáveres? O que sabiam sobre doenças transmissíveis? Que teorias não teriam inventado para explicar ocorrências um pouco mais 'estranhas'?

Barber analisa os fatos do folclore, enquanto o espanhol Gómez-Alonso, sendo um neurologista, preocupa-se com as questões de saúde. A infecção por raiva (também Hidrofobia) poderia ter sido uma das causas do mito do vampiro. Em artigo publicado no jornal da Academia Americana de Neurologia, Gómez-Alonso, que é profissional do Hospital Geral de Vigo, Espanha, o médico traça uma descrição do estado calamitoso de uma vítima portadora de raiva: espasmos faciais, lábios que se contraem, gengivas expostas – o que 'aumenta' o tamanho dos dentes – impulsos violentos, ereções prolongadas, fotofobia – hipersensibilidade aos estímulos luminosos, isto é, medo da luz e desejo de ficar na escuridão. Ora, estes são 'sintomas' de vampirismo!

Na Hungria do século 18 ocorreu uma epidemia de raiva – que atinge principalmente, como sabemos, lobos, cães e morcegos! - o que se alastrou para os humanos, que chegavam, em crises espasmódicas, a morderem outras pessoas. Também mostraram sinais de sensibilidade diante de focos de luz, e não conseguiam dormir – assim insônia é também sintoma!

E muitos cadáveres eram exumados para previnir a propagação de novos 'vampiros'. E quando os cadáveres eram revelados havia sangue nas bocas! Para o médico espanhol isso mostra que o sangue das vítimas da raiva tem um tempo mais lento para a coagulação sanguínea. Assim o sangue escorre pela boca – e outras mucosas – mesmo após o sepultamento.

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Mais sobre o artigo de Juan Gómez-Alonso
http://www.skeptictank.org/rabvamp.htm
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/178623.stm
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Estas questões de sepultamento, sangramento, condições do cadáver são extensivamente abordadas pela obra de Barber, da qual citaremos os trechos mais elucidativos. Lembro que tanto o autor quanto este crítico distinguem os vampiros folclóricos dos vampiros da ficção.

“Paul Barber em seu livro Vampires, Burial and Death [sem tradução no Brasil, mas seria “Vampiros, Enterros e Morte”] tem descrito que a crença em vampiros é resultado das tentativas de povos de sociedades pré-industriais para explicar o natural, porém para eles era inexplicável, o processo de morte e decomposição.”
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Paul Barber in his book Vampires, Burial and Death has described that belief in vampires resulted from people of
pre-industrial societies attempting to explain the natural, but to them inexplicable, process of death and decomposition.
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As tradições, as lendas sobre vampiros integram o folclore da Europa do leste, com alguns aspectos que se repetem na maioria das narrativas – de várias testemunhas (geralmente coveiros, padres, autoridades civis, parentes) – a saber, cadáveres que demoram a se decompor, conservam o sangue fresco, pois sangram, causam epidemias, tem um fedor medonho, são eliminados definitivamente por estaca no peito – apenas uma das formas de matar 'vampiros' – outras são o desmembramento, a decapitação, a queima do cadáver (cremação).

Os casos citados na obra de Barber são o de Peter Plogojowitz, do século 18, na região da Sérvia, Walachia, que foi parte do Império Austro-Húngaro até a Primeira Guerra Mundial), também o caso do sapateiro de Breslau, o caso de Arnod Paole, um ex-soldado, também na Sérvia, no mesmo século 18. Este último caso chegou a alertar as autoridades. Julgavam que outros estavam se tornando vampiros – então exumaram o corpo suspeito, e estava não-decomposto, e sangrava pela boca. Então foi perfurado com estaca e depois cremado.

O caso dos vampiros gregos foi abordado pro De Tournefort. “No início do século 18, o botânico francês Pitton de Tournefort teve a oportunidade de observar, em primeira mão, a dissecação de um vrykolakas grego na ilha de Mykonos.” (p. 21) Outas grafias são encontradas (vorkalaka, vrikolax) para designar um ser meio morto meio vivo, meio 'assombração', que foi um ser desnaturado quando vivo – há algo em vida, alguma maldição, que leva ao vampirismo? - o 'vampiro' em questão havia sido vítima de homicídio. E este em especial não matava, não sugava sngue, era mais um 'espectro'.


Há mais variações do que um padrão entre as lendas germâncias (sobre Nachzehrer), gregas (vrykolakas), eslavas (revenants), romenas (strigoi) – ainda mais quando a questão é: é possível a eficácia de ritos cristãos para apaziguar a ameaça dos vampiros? A força do vampiro é mesmo demoníaca? O que leva um vampiro a ser vampiro? É transmissível? É uma maldição?

No capítulo “How Revenants come into existence” (p. 29), Barber lista hipóteses, e analisa uma por uma. Primeiro, a predisposição. Depois a predestinação. Em seguida, o que acontece com o vampiro. E por fim o eventos não conclusos, por exemplo, rituais não terminados, missões de vida não concluídas. Também são não-eventos a não ocorrência de extrema-unção, por exemplo. Se o morto não recebe os rituais devidos – a causa seria a ausência, falta da religião) E relaciona com o germânico Nachzehrer, geralmente um suicida.

Um suicida tem mais 'chance' de ser 'vampiro'? Bruxos e bruxas são mais facilmente vampirizados... Crianças deformadas? Devassos e assassinos? Maldição familiar? Sonâmbulos? Catalépticos? Ou vira-se um vampiro ao ser atacado por vampiro? Basta o vampiro sugar o sangue para 'vampirizar' a vítima? Ou deve haver uma espécie de 'troca de sangue'? Para os padres (e outros sacerdotes) uma suspeita de heresia basta. Assim blasfemadores, não frequentes às missas, rebeldes (além de ladrões e judeus) eram mais sujeitos a transformação vampírica.


“Na Rússia, suicidas, vítimas de homicídio, afogados, e vítimas de ataque cardíaco estavam em risco, e seus corpos eram geralmente dispostos diferentemente em relação aos outros corpos.” (“In Russia, suicides, murder victims, people who drowned, and even victims of stroke were particularly at risk, and their bodies were usually disposed of differently from those of other people.” p. 34)

e

“Na Grécia, uma anátema de padre foi considerada como suficiente para causar que um corpo se tornasse um vrykolakas, ou uma maldição, e tanto Lawson e os Blums citam tais maldições. Um relato da Romania declara que uma ferida aberta, se não coberta, será a causa de um cadáver tornar-se um revenant [undead]”
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(“In Greece, a priest's anathema was regarded as sufficient to cause a body to become a vrykolakas, or a curse, and both Lawson and the Blums cite such curses. One account from Romania states that an open wound, if not coevered, will cause a corpse to become a revenant;” p. 36)
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Alguns autores – Barber cita Flückinger - tentam 'explicar' os casos de vampiros, especificamente daqueles corpos encontrados no caixão em posição diversa daquela de quando foram enterrados, ou de mãos que se projetam de caixões dilacerados, como exemplos de pessoas que foram enterradas vivas. Por caso de coma ou catalepsia, doenças pouco compreendidas na época (imagine nas eras pré-iluministas quantos não foram enterrados ainda vivos, mas dados como mortos!) Outros autores – aqui citados Leatherdale e David Dolphin - apontam os casos de porfiria (porphyria) que teriam vitimado aos supostos 'vampiros'. Ainda, para alguns autores (Ranft, Meinig, Fritsch) se alguns corpos são 'conservados', algumas circunstâncias são apresentadas por 'retardadoras' do processo de decomposição – por exemplo terra arenosa, baixa temperatura.


No aspecto exterior do 'vampiro', Barber realça, no capítulo “The Appearance of the Vampire”, as diferenças entre os vampiros do folclore e aqueles da ficção,


“Dos vários vampiros do folclore e da ficção, talvez o mais fácil de descrever é aquele das ilustrações, desde que o obetivo do artista é criar, tão rápido e eficiente quanto possível, algo que será recolhecido instantaneamente, por alguém, como um monstro sugador de sangue, de preferência um sujeito alto, soturno a vestir roupas de moda antiga. Eu suspeito que o ilustrador se pertimiria usar duas marcas de vampiro tais como uma capa preta e longos dentes caninos. Com estas marcas o artista transformaria qualquer figura em algo vampiresco.
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O que é curioso sobre isto é que nem a capa nem os caninos são encontrados no folclore de vampiro : aqui novamente, a ficção tem pouco a ver com o folclore.”
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Of the various vampires from folklore and fiction, perhaps the most easily described is that of the cartoons, since there the artist's objetct is to create, as quickly and efficiently as possible, something that will be recognized instantly, by anyone, as a blood-sucking monster rather than, say, a tall, brooding fellow in old-fashioned clothing. I suspect that a cartoonist allowed to use only two vampire-markers would demand a black cloak and long canine teeth. With these the artist could transform any figure into something vampirelike.
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What is curious about this is that neither the cloak nor the canines finds a place in the folklore of the vampire: here again, fiction has little to do with folklore
.” (p. 39)


As roupas de um revenant não estão obviamente conservadas com tons aristocráticos como se vê em filmes – onde sequer terra e galhos são observados sobre as roupas impecavelmente esvoaçantes para melhor efeito de terror sobrenatural. Barber aproveita para abordar mais sobre a figura pálida que os filmes consagraram,

“No folclore, como pode ser visto nas citações, o vampiro é bem diferente daqueles assemelhados em filmes. A cor do vampiro nunca é pálida, como se esperaria de um cadáver: a face é comumente descrita como rosada, ou uma cor saudável, ou escura, e que devia ser atribuída ao hábito de beber sangue.
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“In folklore, as may be seen from the above quotations, the vampire is very different from his counterparts in the movies. His color is never pale, as one would expect of a corpse: his face commonly is described as florid, or of a healthy color, os dark, and this may be attributed to his habit of driking blood.” (p. 41)
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Desconhecendo os passos da decomposição cadavérica, os exumadores encontravam um ser ainda com sangramentos e imaginavam logo que o sangue seria de alguma vítima. Atualmente, sabe-se que muito sangue nos pulmões não se coagula facilmente e pode vazar pelas mucosas – boca, nariz, olhos, assim que a pressão abdominal aumenta, com o inchaço do cadáver.

Barber aborda também a questão se o vampiro deve repousar sempre na terra onde foi enterrado. Veremos no Dracula de Bram Stoker que o Conde ao viajar carrega o caixão com terra do próprio túmulo. A chamada terra nativa (“native earth”), que teria uma explicação.

“A teoria da 'terra nativa' da ficção, por exemplo, parece ter surgido da crença (folclórica) de que o vampiro deve permanecer em sua cova parte do tempo – durante o dia – mas com poucas exceções os vampiros do folclore não viajam. Eles não são itinerantes, iguais ao Dracula, e nada é dito sobre eles serem capazes de se desviar da obrigação de manter-se em suas covas meramente por carregarem consigo um suprimento de terra da decomposição.”
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(“The 'native earth' theory of fiction, for example, seems to have arisen out of the (folkloric) belief that the vampire must remain in his grave part of the time – during the day – but with few exception folkloric vampires do not travel. They are not itinerants, like Dracula, and nothing is said of their being able to circumvent their obligation to remain in their graves merely by taking with them a supply of dirt.” p. 67)
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Outro detalhe: os espelhos. Na Ficção, os vampiros sem reflexo no espelho. No folclore é comum encontrar narrativas onde os espelhos são cobertos durante os velórios, para não refletirem o cadáver. No mais, é comum a superstição de que quebrar espelho causa azar, infortúnio. Mas em algumas crenças do folclore, a presença de espelhos seria capaz de 'prender' a alma do finado quando esta se desprende do cadáver. É esta alma – enquanto espectro – que pode eventualmente assustar os parentes e vizinhos nos sonhos – que se tornam em pesadelos. A ideia de alma enquanto 'duplo' (em relação ao corpo) é de tradição egípcia, e de alguns povos sumérios, e até hoje é crença de espiritualistas.

O vampiro não ter sombra seria uma forma de simbolizar que o ser maldito não tem mais alma – ainda que outras fontes apresentem o drama do vampiro como um caso de alma que fica presa ao corpo, e deste modo atrasando a decomposição cadáverica. Estas explicações religiosas, cristãs, mostram o aspecto que une o vampirismo e o satanismo – o suposto fato de que a força dos vampiros tem origem demoníaca. Mas o aspecto religioso nem sempre é muito relevante na ficção. Na ficção tradicional os vampiros podem se apresentar na forma de sombras espectrais, ou então na forma corpórea. Enquanto corpos não projetam sombra nem aparecem em espelho.

Portanto, o que não faltam são diferenças entre os vampiros das narrativas orais do folclore do leste europeu e os vampiros que se eternizaram nos contos, nas gothic novels, nos HQ, no cinema, nos seriados juvenis. Para Stoker, os vampiros do folclore foram utéis para criar o contexto – assim como pesquisar a história da Transylvania, região disputada por húngaros e romenos – para dar uma 'base' ao ser da ficção. Enquanto outros autores preferiram 'dar asas à imaginação' ao criarem seres que pouco se assemelham aos do folclore e aos de Stoker. Atualmente, os vampiros ficcionais não seguem qualquer 'tradição' – cada autor tem o vampiro que merece.

Vampiros na Ficção

(ênfase aqui: século 20)


Os vampiros de Stephen King estão na mesma tradição dos vampiros de Polidori, Bram Stoker, Le Fanu, etc. Mas Anne Rice – ao fazer os vampiros narrarem suas experiências (o narrador em 1ª pessoa!) - rompe com a tradição ao criar seres poderosos e conscientes tais como Armand, Lestat e Louis. Temos o vampiro-ator, o vampiro-yuppie, o vampiro rock-star!

Enquanto os vampiros tradicionais – the Old ones – são mais hereges, anticristos, deformados e moralmente condenados; os vampiros 'modernos' – the new vampires – são menos hereges, mais hedonistas, individualistas, amorais. Lutam para 'subir na vida' e não hesitam em destruir existências alheias. Qualquer semelhanças com a prática burguesa-capitalista não é mera coincidência!


Enquanto Stephenie Meyer, autora de “Twilight”, simplesmente ignora a 'tradição' e Anne Rice! Meyer não hesita (nem se envergonha) em dizer que não leu “Dracula” e apenas folheou alguns livros de A Rice. Meyer conseguiu a façanha de consagrar os vampiros-teenagers, que são imortais que frequentam escolas e disputam - com lobisomens atléticos! - mocinhas caipiras inocentes!


Se nas Crônicas Vampirescas, os vampiros têm voz – Louis, Lestat – na saga de Meyer, Crepúsculo, a narração em 1ª de alguém envolvido com- / seduzido por vampiros. Bella é uma mocinha comum, proviciana, que se vê envolvida numa trama, num verdadeiro embate entre 'vampiros' e 'lobisomens' – ela está fascinada, quer e não quer ser vampira – ou seja, ela hesita diante da 'sedução', mesmo que o vampiro seja um 'jovem', um teen misterioso e charmoso.


Se S. King valoriza o terror, os vampiros enquanto predadores, inimigos dos humanos, A. Rice prefere apresentar a perspectiva dos vampiros, que ainda conservam algo de humano. Esta perspectiva ainda que diminua o terror, ainda aparesenta os vampiros enquanto predadores.

Mas S. Meyer leva a 'humanização' dos vampiros ao extremo ao mostrar os vampiros apaixonados – um romantismo que lembra os clássicos de Jane Austen e das irmãs Brontë – ao mesmo tempo em que troca o sadismo e o amoralismo por moralismo cristão-mórmon: a importância da sexualidade reprimida (o vampiro despreza o sangue!) na forma de abstinência sexual.


Vejamos algumas semelhanças e diferenças nos principais vampiros da ficção.

Os Vampiros na tradição Stoker são baseados nas miríades de lendas do folclore eslavo e húngaro-romeno sobre mortos-vivos, revenants, strigoi, etc, e tendem mais ao horror que à filosofia. São medonhos e nada elegantes – com exceção para o Vampiro-Rei, o Conde Dracula, capaz de ser charmoso e fascinante.

Na tradição, os vampiros podem ser cadáveres ambulantes, ou espectros que atacam durante o sono. Podem se metamorfosear em lobos, cas negros, morcegos, répteis além de um tipo de névoa. Voam, matrializam-se, desmaterializam-se, andam flutuando, esclam torres, atravessam paredes – ou seja, podem ser corpo ou espectro, a depender das circunstâncias. Não há referências aos poderes mentais, mas podem influenciar o estado atmosférico (provocar tempestades, por exemplo)

Seres que não possuem sombra nem reflexo no espelho. Temem crucifixos, igrejas, hóstias, rosários, água-benta, alho, etc. São seres passíveis de destruição pelo sol, fogo e estaca enterrada no coração. Como criam outros vampiros? Como é o 'ritual de iniciação'? Os vampiros sugam o sangue da vítima e doam o próprio sangue aos poucos, em vários ataques. Se o vampiro apenas sugar, a vítima morre – não se torna outra vampiro.

A autora A. Rice cria todo um universo de vampiros baseados em algo da tradição, mas inventando algumas alternativas possíveis para 'explicar' a cosmogonia dos seres norturnos. Nessa pretensão de 'criar um universos' ela se assemelha ao megalomaníaco J. R. R. Tolkien (1892-1973), autor de The Lord of the Rings, mas sem o talento e genialidade dele. Não que Rice não tenha méritos, mas ela exagera.

Em Entrevista com o Vampiro – um clássico de vampiros modernos - já existem exageros, que só vão piorando de volume a volume nas Crônicas Vampirescas. Criar um universo auto-explicativo, uma literatura auto-referencial não é fácil, é tarefa para poucos. Muita pretensão pode afundar o Titanic literário.


Mas vamos considerar primeiramente onde Rice foi mais interessantemente criativa. Para ela, os mortos-vivos são cadáveres animados por uma demoníaca ânsia de sangue. Despertam ao crepúsculo e adormecem ao alvorecer. São capazes de resguardar uma memória lúcida – tanto que narram as próprias experiências. Não têm poder de metamorfose, não voam – podem levitar, flutuar – podem correr velozmente, escalar superfícies. Não se desmaterializam, não se deformam, não atravessam paredes.

Possuem sombra e reflexo no espelho; possuem o dom da telepatia e da telecinese. Detalhe importante: os vampiros progenitores não sentem os pensamentos de seus iniciados. Não temem forças sobrenaturais, nem crucifixos, nem igrejas, nem hóstias, nem água-benta, nem alho, rosas frescas, etc. Não têm influência sobre o estado atmosférico.

Como é o 'ritual de iniciação'? Nas Vampire Chronicles é chamado de Dark Gift – a dádiva sombria – onde o vampiro progenitor suga por completo o sangue da vítima e em seguida concede a esta o próprio sangue vampiresco em um único e fulminante ataque, ou em vários ataques, noite após noite. O exemplo é a transformação de Louis por Lestat que foi por etapas, a medida que Louis era seduzido por Lestat. (Em Dracula, a vampirização de Lucy é também por etapas, a cada visita do Conde Dracula)

Mas além disso, Rice lembra dos vampiros tradicionais, aqueles do folclore, das lendas, como um dos 'tipos' de vampiros. Ela cuida em integrar no universo que ela cria o universo já que existe! Quem são os vampiros tradicionais? São os ressurgentes, os revenants. Vivem nos cemitérios, ou bosques. Andam em rapos, fedem à terra úmida, o copor em quase-decomposição. São mentalmente limitados – assim jamais poderiam narrar a própria história. São submetidos a líderes – enquanto os vampiros aristocratas são individualistas, misantropos.

Os ressurgentes acreditam nas superstições que se criaram sobre eles mesmos – logo temem os crucifixos, os rituais, a água-benta, o alho, etc. Coisa que são motivo de zombarias para os vampiros esclarecidos (isto é, não supersticiosos, não-hereges). Os ressurgentes são adeptos de cultos de magia e de satanismo – coisa que para os aristocratas é mero charme ou entretenimento. Assim os vampiros tradicionais são os pré-Iluminismo, os irracionalistas que fascinaram os românticos – seres atormentados, melancólicos; enquanto os aristocratas,os 'modernos', são hedonistas.

Esses hedonistas são os vaidosos que se julgam caçadores no Jardim Selvagem da vida. Preferem o luxo dos mortais do que as catacumbas. São ateus e eruditos – odeiam superstições. Apreciam as obras de artes, colecionam 'souvenirs'. Vivem em lugares abandonados, sem semelhantes e sem líderes, pois preferem a solidão. Não se prendem ao solo em que morreram, ou foram vampirizados, pois preferem viajar, conhecer outros lugares e tipos de vítimas em potencial.

Os hedonistas não servem a qualquer divindade ou demônio, não se consideram 'maus', antes são sádicos no sentido de 'antes Eu do que eles', são avessos a qualquer moralidade, fazem o que desejam, guiados apenas pela 'ânsia'. Vampirizam o que os seduz – ou seja, os mortais insignificantes são apenas alimento, e logo descartados. Lestat explica isso a Louis – porque uns são vamprizados e outros não.

Podem ser amorais, mas sentem prazer no ataque. Daí ser caçadores – não valorizam a vida da vítima a menos que a vítima 'mereça'. Senão, a vítima apodrecerá como os outros medíocres. O prazer guia mais que a necessidade. Podem ficar um longo período sem sugarem sangue, enterrados por vontade própria.

Existem também os Anciões, ou Antigos, ou Filhos dos Milênios. São admirados pelos vaidosos e amaldiçoados pelos Ressurgentes. Os Antigos atravessam os séculos, se adaptando a cada época, a acumular conhecimentos. Estudam a evolução (ou involução) da humanidade. São grande ocultistas, quase semi-deuses. São místicos, iniciados, porém não religiosos. Assim suas faculdades mentais são assustadoras, podem se comunicar telepaticamente através de longas distâncias. Não apreciam formar novos vampiros – quando o fazem, é evento que ocorre raramente em séculos.

Os Antigos são dedicados a todo tipo de cultura e artes dos mortais, pois ainda amam a essência humana que ainda possuem. São detentores dos conhecimentos e lendas dos tempos remotos. Podem viajar por todo o planeta, sempre anônimos, irreconhecíveis, até para outros vampiros! E sabem todos os movimentos de seus semelhantes vampiros por todo o planeta. Para suportarem o passar das eras, se submetem a um longo tempo sepultados, para ressurgirem ainda mais ávidos de sangue -e saber. Mas ao passar dos séculos dependem cada vez menos de sangue; gradativamente tornam-se lentos, meditativos, insensíveis, sem expressão facial, sem emoções.

Para os Antigos, os conceitos de Bem e Mal são de todo indiferente. Amam a Imortalidade, o poder de serem visionários. E também a raridade da própria espécie. Pois os Antigos são raros, são sobreviventes, os primeiros a receberem o Dark Gift, geralmente são vampirizados na fase adulta, sendo portanto maduros, vividos, plenamente senhores de si mesmos.

Louis, um novo vampiro, conhece um vampiro Ancião quando se depara com Armand, no Theatre des Vampires, na Ópera de Paris. Eis a cena do diálogo de Louis e Armand, em Interview with the Vampire, the movie, http://www.youtube.com/watch?v=mWUxsUxMZ0E&feature=related) Outros Anciões são a Rainha Akasha, da linhagem do antigo Egito (em “Queen of the Damned”, Rainha dos Condenados) e Marius, um grande mecenas, amigo e protetor dos artistas (além de vampirizar alguns...) E é justamente Marius o vampiro-progenitor de Lestat, que narra a própria biografia em Vampiro Lestat.
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(interessante que na saga Crepúsculo, de S. Meyer, temos o Volturi, o vampire coven, seres milenares que são uma espécie de autoridade entre os vampiros.)
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Uma das melhores cenas de New Moon (Twilight Saga)
com a presença dos Volturi que mais parecem um conselho de cardeais
a Santa Igreja Católica Apostólica Romana
http://www.youtube.com/watch?v=z5S1tFzwzU4&feature=related
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Vampiros podem ler pensamentos?

Há duas respostas. Depende. Depende se vampiros são espíritos, se estão além-do-corpo.

Se vampiros são espíritos – desencarnados, mas ligados à carne – então surge a questão: espíritos podem ler pensamentos? Teólogos dizem que Deus e os anjos podem ler a mente humana – mas os demônios e Satã não podem. Outros dizem que até seres humanos podem ler as mentes de semelhantes – são os humanos paranormais.

Se os vampiros são 'mortos-vivos', são undead, são corpos torturados, mentes confusas, dificilmente poderiam ter semelhante poder sobre os humanos normais.

No entanto, na ficção temos o Conde Dracula que quase lê os pensamentos de Harker. E o sádico Lestat, da série Crônicas Vampíricas de Anne Rice, que lê os pensamentos de humanos – sejam vítimas em potencial ou não.

Nos livros de Meyer, a saga Crepúsculo, também o protagonista Edward Cullen consegue ler os pensamentos de humanos e vampiros. Ainda mais quando há situação de perigo. Alguns vampiros conseguem 'fechar' a mente para outros vampiros, como forma de proteção. A forma de ler a mente pode ser diversa. Ler algumas e não outras, ler sem tocar ou precisar do toque para melhor 'sentir' as vibrações...


Falemos de diferenças. Os vampiros tradicionais não têm a consciência – e a sanidade – dos vampiros de Anne Rice. São talentosos e podem cantar em bandas de rock, podem dirigir carros de último modelo. Têm todas a habilidades mortais potencializadas e superdimensionadas. Parecem mais os mutantes dos X-Men. Vampiros que são conscientes a ponto de tecerem autobiografias. Também estranho quanto o monstro de Frankenstein que narra as próprias vicissitudes ao perplexo Dr. Victor Frankenstein! Mas as diferenças são ainda mais perceptíveis se comparamos os vampiros de Rice e dos de Meyer.

Os vampiros de Rice seguem os tradicionais quando temem a luz do sol. Mas os de Meyer podem sair de dia, brilhar ao sol, andar pela cidade, estudar, ter vida social. E além da vida normal, podem voar, escalar árvores, parar carros em movimento. Quem não quer ser vampiro assim?

Os jovens adoraram – sendo vampiros não vão envelhecer, não vão apodrecer, serão sempre jovens, sempre apaixonados, sempre fortes e sedutores. Quem não quer ser vampiro? Ou seja, o vampiro virou o glamour – e perdeu o terror. Daí um mestre do Terror, o escritor Stephen King, ironizar a obra da Sra. Meyer.

S. King não engole a teen horror fiction de S. Meyer
http://www.guardian.co.uk/books/2009/feb/05/stephenking-fiction


Afinal, vampiros são seres do terror, não do glamour. A sedução está aliada ao modo de matar – o vampiro é sedutor igual uma cascavel é sedutora! Vampiros não são modelos fotográficos, não são astros do cinema – como deseja os produtores da série “Vampire Diaries” onde a glamourização transforma os vampiros em mauricinhos e patricinhas estilizados com toda uma cultura da beleza e do shopping center! Vampiros que vivem o american way of life! Beleza, consumo, sedução. Melhor, impossível.


No mais, o mais interessante é comparar os vampiros de King, Rice e Meyer – raramente parece que estão falando sobre a mesma espécie de criatura! Aliás, Meyer pouco se importa. Os vampiros se comportam como teens – caprichosos e convulsos de hormônios! - com exceção dos Volturi, que são Anciãos, cardeais, pose de Reis Magos.

No universo de Meyer a tradição pouco importa. Aqui, os lobisomens, os Quileutes, não são uma maldição – são garotos atléticos, esportivos, que se transmutam em lobos, quando querem. Enquanto o werewolf, lobisomem da tradição, nem sabe que ele mesmo é um lobisomem – sofre a influência irresistível da lua cheia - seria ridículo um lobisomem dizer que sabe o que faz quando se trasmuta em quase-lobo. O lobisomem sabe do que ocorre por relatos de terceiros.
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Vide Bala de Prata, ou A Hora do Lobisomem, filme baseado em “Silver Bullet” de Stephen King, no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=gItfZA4LPqw
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Agora os lobisomens do mundo de Meyer,
http://www.youtube.com/watch?v=L0qEPqkofVI&feature=related
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Que no filme vira thriller de horror adolescente, claro. Quem já viu Underworld, entendeu. Link: http://www.youtube.com/watch?v=TMYyhBtQ1PU Vampiros versus lobisomens são uma fórmula de sucesso desde os velho e bom RPG. Acrescente efeitos especiais, e artes marciais ao estilo Matrix e pronto: bilheterias milionárias. Coisas de Mídia, nada mais.

Portanto, falemos agora do que importa. O clássico de Bram Stoker. O clássico que todo aquele ou aquela que se propõe a escrever sobre vampirismo deve conhecer – ler e reler. Nunca ignorar como fazem certos autores de best-sellers.
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continua...






nov/dez/10






Leonardo de Magalhaens






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