quarta-feira, 9 de novembro de 2011

sobre 'Os Meninos da Rua Paulo' - de Ferenc Molnár









Sobre “Os Meninos da Rua Paulo
(tradução de Paulo Rónai, em 1952)
(“A Pál-Utcai fiúk”, 1906)
do escritor húngaro Ferenc Molnár (1878-1952)


Quando as crianças aprendem sobre jogos e guerras
(
ou O fim da Infância)


Ainda em nosso tema 'Crianças na Literatura', em seguida às leituras de “Oliver Twist” (do inglês Charles Dickens) e “Aventuras de Tom Sawyer” / “Aventuras de Huckleberry Finn” (do norte-americano Mark Twain) escolhemos a interessante obra do autor húngaro Ferenc Molnár (que chegou até nós através da tradução pioneira de Paulo Rónai) que trata de crianças em transição, aprendendo as razões e desrazões adultas, entendendo que a vida é um jogo, onde uns poucos vencem e a maioria perde.


As crianças brincam mas já se organizam segundo regras (muitas inventadas por eles mesmos, outras 'adaptadas' do mundo adulto), já idealizam carreiras, se imaginam heróis, generais, vencedores de mil peripécias. É assim num mundo de competição, onde os maias fortes vencem, onde os perdedores são humilhados. Assim aprendem como 'funciona' o mundo adulto.


Se a vida é um jogo, para os meninos da Rua Paulo a vida pode ser uma batalha, e se organizam até militarmente para protegerem seus lugares de brincadeiras. Crianças-adultos assim como encontraremos na obra “Capitães da Areia” (1935) de Jorge Amado. Crianças que precocemente aprendem sobre amizade, companheirismo, confiança, obediência, traição, perda.


Através de competição, jogos, brigas, 'batalhas', os meninos demarcam territórios, elegem chefes, trocam confidências, tramam aventuras, inventam fortalezas e castelos nos ares. Tudo como uma imitação da vida adulta, da qual encontram-se excluídos. Assim olham os adultos com certa ironia, no momento em que percebem as contradições entre o que os adultos pregam e o que os adultos realmente fazem.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


Desde a primeira cena temos o mundo das crianças em relação ao mundo dos 'crescidos'. Os alunos e os professores. Os neófitos diante da Autoridade. É quando um dia de aula finda, e os meninos fogem da escola como se fugissem de uma prisão... a correria assim que ressoa o sinal de fim de aula ...


“Num instante, a sala se esvaziou. Começou uma correria feroz pelas escadas abaixo, no meio das colunas, a qual só se transformava em pressa moderada quando, entre a barulhenta multidão de meninos, aparecia a silhueta ereta de um professor. Então os que corriam detinham o passo, o zunzum se acalmava, mas logo que o professor desaparecia a uma volta do corredor, todos se punham novamente a precipitar-se escada abaixo.

O portão despejava um magote de meninos que se espalhavam metade à direita, metade à esquerda, tirando o chapéu à passagem de um ou outro professor. Depois dirigiam-se para casa, cansados e esfaimados, pela rua banhada de sol. Como outros tantos escravos, libertos de repente, cambaleavam naquela abundância de luz e de ar, ao retomar contato com a cidade viva, ruidosa, movimentada, essa mistura confusa de carros, bondes de burro, ruas e lojas, que eles deviam atravessar para chegarem a casa.”
pp. 12-13, I


Temos uma visão dos personagens da narrativa, cada um com uma característica que o identifica ao longo do texto. Uns mais exaltados, outros mais sarcásticos, outros mais reservados, introvertidos. Uns fortes, outros franzinos. Somente meninos, num colégio para meninos. (Nenhuma menina é nomeada ou tem papel secundário...) Mas o destacado aqui é o líder juvenil João Boka, desde o primeiro momento,


Iam abraçados, com Boka no meio, o qual explicava algo com gravidade em voz pausada, como de costume. Tinha quatorze anos e o seu rosto ostentava ainda poucos traços de maturidade. Quando abria boca, porém, ganhava alguns anos. Tinha uma voz funda, meiga e grave, e o que dizia parecia-se com a voz. Raramente dizia bobagens, e não mostrava nenhum jeito para valentão ou sabido. Não gostava de entrar em brigas, e quando o convidavam para árbitro, recusava-se. Já aprendera que, após a sentença, uma das partes dica sempre amargurada, irritada contra o juiz. Somente quando a briga já tomava proporções maiores, chegando quase a exigir a intervenção de um professor, é que ele intervinha para apaziguar. Pois aquele que apazigua, pelo menos , anão encoleriza nenhuma das partes. Numa palavra, Boka parecia um rapaz inteligente: dava a impressão de alguém que, mesmo que não fizesse carreira, desempenharia na vida um papel decente.” pp. 15-16, I


Também temos a descrição do 'mascote' da turma, o pequeno e curioso Nemecsek, franzino filho de um humilde alfaiate, que aparece de início a narrar uma ação nada amistosa de meninos de uma turma rival, os irmãos Pásztor, o que muito indigna seus colegas,


“Nemecsek ficava nervoso quando sentia estar dendo importante, o que raramente lhe acontecia. Ninguém ligava ao lourinho. 'Não dividia e não multiplicava', como se costuma dizer, assim como o um na aritmética. Simplesmente não contava. Era um guri franzino, insignificante e fraco; e foram provavelmente essas qualidades que o tomaram uma vítima excelente.” p. 17, I


e, também, percebemos a atitude de Nemecsek diante da 'disciplina rigorosa' que é exigida quando os meninos cuidam da defesa do 'forte', lá no terreno,

“E Nemecsek obedecia a todos com verdadeira felicidade. Há também guris assim, que gostam de obedecer a ordens. A maioria, no entanto, gosta de mandar. É bem humano isso. Eis porque não é de surpreender que no grund todos fossem oficiais, e apenas Nemecsek soldado raso.” p. 20, II


Outros meninos são figurantes entre Boka e Nemecsek, dentre aqueles da Rua Paulo. São os 'oficiais' entre o general e soldado raso. Do outro lado, temos os meninos que frequentam o Jardim Botânico, que não têm um terreno deles para brincadeiras. Aliás, esta falta de um terreno será um dos motivos das disputas. Os meninos da Rua Paulo conservam uma área só deles. A descrição do 'Grund', uma espécie de terreno baldio, que se torna campo de batalha entre as turmas rivais, no ápice do enredo,


“Ó grund... Ó vós, belos e sadios estudantes da planície, aos quis basta dar um passo para vos encontrardes na estepe imensa, sob a admirável redoma azul que se chama firmamento, vós cujos olhos estão acostumados às grandes distâncias, aos longes, vós que não viveis apertados entre edifícios altos, nem podeis imaginar o que é para os guris de Budapeste um terreno baldio, um grund. É a sua planície, a sua estepe, o seu reino; é o infinito, é a liberdade. Um pedacinho de terra, limitado a um dos lados por uma cerca meio desmoronada, ao passo que pelos demais lados altos muros de edifícios o rodeiam. Atualmente o grund da Rua Paulo também já se encontra ocupado por um triste edifício, de quatro andares, cheio de moradores, nenhum dos quais sabe, talvez, que aquele pedacinho de terra significou a mocidade para alguns pobres estudantes de Budapeste.” pp. 18-19, II


Os adversários, prontos para a 'invasão', são igualmente meninos da cidade, igualmente alucinados por mil aventuras. Adiante temos uma descrição do líder da turma adversária, o Chico Áts, que 'reina' no território do Jardim Botânico, local público, percebemos.

A ideia de que os Pásztor podiam também estar por ali, Nemecsek sentiu calafrios na espinha. Já sabia o que era um encontro com os Pásztor. Quanto a Chico Áts, acabara de vê-lo de perto pela primeira vez. Ele o assustara bastante, sem, no entanto, desagradar-lhe. Pelo contrário, gostou daquele rapaz moreno, espadaúdo, de traços bonitos, em quem a camisa vermelha assentava às mil maravilhas. Aquela camisa vermelha dava-lhe um ar marcial, garibaldino. Os rapazes do Jardim Botânico, que o imitavam, usavam todos camisas dessa cor.” p. 21, II


Esta cor particular – o vermelho – como marca da turma de Chico Áts pode parecer uma distinção ideológica – seriam os subversivos? Os comunistas? Os filhos de proletários? - não ficam claro, e se assim fosse, os meninos da Rua Paulo seriam quem? Os filhos dos pequeno-burgueses? Os filhinhos-de-papai? Não, tais distinções baseadas em 'luta de classe' não se adequam aqui. Antes, a disputa é por território, não por ideias políticas. Uma guerra por território – numa época de colonialismo, quando os avanços imperialistas exaltavam os sentimentos nacionalistas. Aliás, por um território definido, como sabemos, o grund.


Aliás, a presença súbita de Chico Áts no grund explica-se como uma provocação aos meninos da Rua Paulo, como uma 'declaração de guerra', ainda mais quando uma das bandeirolas do 'forte' é subtraída. Assim, diante da provocação externa, todos os meninos se unem na disciplina e na obediência ao 'oficial' Boka, pois desejam defender o grund como se fosse o solo da Pátria!

Olharam para o terreno e para as pilhas de lenha, iluminadas pelo sol sereno da tarde primaveril. Via-se-lhes nos olhos que amavam aquele pedacinho de terra e estavam prontos a defendê-lo. Era uma espécie de patriotismo, como se ao gritarem – 'Viva o grund!' - tivessem gritado – 'Viva a pátria!' Os olhos brilhavam, os corações transbordavam” p. 26, II


De pronto, os meninos resolvem fazer uma 'excursão' até o terreno dos adversários – para mostrar que não têm medo de provocações. Mas quem será o corajoso que adentrará o covil inimigo? Dois meninos, Csónakos e Nemecsek, são voluntários para acompanharem o líder Boka. Assim, a 'tropa avançada' está formada. Sim, em muitos momentos a narrativa toma empréstimo de jargões da arte militar, ao comparar os meninos com soldados em campanha,


“[...] Mas desta vez não se assustaram mais. Sabiam que aquilo era o sinal para render as sentinelas. Por outro lado, sentiam-se no mais aceso da luta: já não se assustariam tão facilmente. Na verdadeira guerra, com os soldados de verdade, dá-se o mesmo. Enquanto não veem o inimigo, têm medo até das moitas do caminho. Mas quando as primeiras balas lhe passam, assobiando, perto do ouvido, criam coragem, sentem-se como que embriagados e esquecem que estão correndo para a morte.” p. 35, III


Muitas vezes a narrativa grandiloquente exagera um episódio puramente prosaico, uma brincadeira, mas lembremos que, para as crianças toda aquela ação era séria! Acreditavam realmente defender um 'forte', quando na verdade, ao olhar de um adulto, trata-se apenas de um mero terreno baldio. O Narrador adentra o mundo infantil quando apresenta tal perspectiva, compartilhando o olhar dos meninos,


Assim, decidiram a luta por motivo semelhante ao que desencadeia as guerras de verdade. Os russos precisavam de mar, por isso atacaram os japoneses. (*) Os camisas-vermelhas precisavam de um terreno para jogar péla, e como não havia outro jeito, iam recorrer à guerra.” pp. 36-37, III


Claro em toda ação há reação – e traição. Um dos meninos da Rua Paulo será visto em companhia dos meninos do Jardim Botânico, um daqueles de confiança de Boka, mas que se mostrará um miserável traidor da 'causa' – a defesa do grund. Em muitos momentos, parece-nos que o Narrador se inclina mais em defesa dos amigos de Boka – como se ele mesmo fosse um dos 'meninos da Rua Paulo' (**) – e traça um retrato pouco lisonjeiro dos comandados de Chico Átis.


Paralelo aos movimentos de guerra e guerrilha para defesa e conquista do grund, temos outra 'associação' de meninos – aqueles que ficam mascando uma espécie de resina, aqui traduzida como 'betume', daí a Sociedade do Betume, os Eleitos que devem zelar – com a própria saliva – para manter úmida um bocado do material, antes extraído dos encaixes das vidraças. Interessante aqui notar o quanto os meninos adoram se reunir em tais 'coletivos', são seres gregários que precisam defender algo, uma causa, nem que seja um bocado de betume!


Os primeiros a se levantarem contra as 'sociedades' são obviamente os adultos, aqui, no caso, na instituição Escola, será o professor, que não admite estas 'sociedades secretas' na turma. Afinal, só deve haver o Estado – que ele, o Professor na Escola representa. Nenhuma autoridade além do Estado, que tudo vigia. Nada de partidos, de gangues, ou facções, ou bandos, ou cabalas, tudo deve ser administrado e catalogado pelo Estado, que dá autoridade ao Professor.

“-Soube que vocês andaram fundando uma sociedade. Estou a par do caso. É uma Sociedade do Betume, ao que parece. Quem me informou, deu-me também a lista dos sócios. São vocês, não é verdade?

Ninguém respondeu. Permaneceram imóveis, cabisbaixos, demonstrando assim que a acusação era justa.

-Vamos por ordem – continuou o Sr. Professor –Quero saber, antes de tudo, quem foi que fundou a sociedade, apesar de eu ter dito claramente que não admitia sociedade alguma na turma
.” p. 43, IV


Realmente, os meninos criaram uma sociedade bem nacionalista, com direito a bandeira e versos patriotas. Para 'defender' um bocado de betume, as crianças criam regras, formalidades, cerimônias, cargos oficiais, hierarquias! Ironia é o que não falta aqui! Os meninos querem ser adultos - mas assim imitam o que há de pior nos adultos! Querem logo seguir regras e obedecer burocracias! Seguir líderes e marchar para a morte! (Crianças sempre crianças, como é Peter Pan, ironizam essas coisas! Contudo, bem que Peter Pan não abre mão de ser o líder dos 'Meninos Perdidos'...)

sobre 'Peter Pan'
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/12/sobre-peter-pan-ensaio.html


Não é mera impressão que em vários momentos a narrativa se prenda ao pequeno Nemecsek – mas não seria exato dizer que ele seja o protagonista – em suas aventuras, para provar a coragem diante dos maiores (que são sempre os oficiais...), o que leva o leitor a acompanhar o menino com mais atenção e participação. Nemecsek precisa provar que é corajoso – eis a missão aqui. Ele aparecerá em vários momentos essenciais da narrativa – ora para confundi-la, ora para resolvê-la. Mas toda a ação dele depende dos outros – ele apenas aproveita as oportunidades. Ou tem muita sorte!

O que não evita que Nemecsek seja excluído ou vitimado por algum mal-entendido. Os meninos maiores não hesitam em encontrar um 'bode expiatório' para as próprias falhas. Qualquer deslize e o menorzinho é logo rotulado de 'traidor' (enquanto nós, os leitores, sabemos quem é o traidor, quem realmente está tramando contra os meninos da Rua Paulo) e excluem o menino daquela Sociedade do Betume (assim como os 'marginais' são excluídos da 'nossa' sociedade...)


Atento a cosmovisão infantil, o Narrador não pode evitar, vez ou outra, comentários sobre o quanto as crianças se encontram indefesas no mundo dos adultos. O que as crianças julgam ser o mundo delas é apenas mais um terreno com dono, com direitos de proprietário, que pode negociar o grund como apenas mais uma fonte de renda.

De dentro ouvia-se o barulho alegre dos garotos jogando péla e, depois, o estrondo de uma aclamação: os da Sociedade do Betume festejavam o novo presidente... Ali dentro ninguém suspeitava que aquele pedaço de terra talvez nem lhes pertencesse mais. Aquele pedacinho estéril de Budapeste, cheio de altos e baixos, aquela planiciezinha confinada entre dois edifícios que para suas almas juvenis significava o infinito, a liberdade; prairie americana de manhã, estepe húngara de tarde, oceano quando chovia, pólo norte pelo inverno – em suma, o amigo de todos eles, que se transformava naquilo que eles queriam, só para diverti-los...” p. 54, IV


Precisamos lembrar também da época. É um drama entre crianças que ocorreu nos fins do século 19, antes das Guerras Mundiais que começaram na Europa e assolaram os povos – também os húngaros – ali entre alemães e austríacos, entre nazistas e estalinistas – e acabaram todo resto de inocência que aquele povo teria.

Neste sentido, o menino-moço Chico Átis não tem inocência. Ele é o líder sem escrúpulos, sem idealismos. Não quer conferências, nem negociações. Quer conquistar o grund através da força bruta. Ele quer guerra. Poderia ser um revolucionário de direita ou guerrilheiro de esquerda. O traidor apenas vem trazer uma melhor descrição dos pontos-fracos da defesa inimiga. Assim, o traidor é uma peça logo fora do baralho. Só merece mesmo o desprezo. (Agora desprezo duplo, tanto dos amigos de antes, quanto dos inimigos. O traidor jamais merece confiança...)


Enquanto o traidor somente afunda em indignidades (querem maior indignidade do que ser desprezado pelos meninos da Rua Paulo?), por outro lado, o pequeno Nemecsek dá provas de coragem – ao se insinuar no próprio covil do inimigo ! - a ponto de trair a admiração do severo Chico Áts. É inversamente proporcional, quanto mais o traidor entra em decadência, mais o menorzinho do grupo alcança ascensão – até a apoteose final, como veremos.


(O traidor, chamado Geréb, ainda recebe um foco, pouco antes da 'batalha', mas não a ponto de prender a atenção. Ele está em cima do muro, ao trair, ao pedir perdão, ao querer voltar para a tropa. Boka até perdoa, mas não aceita no grupo. É preciso uma intervenção externa – a presença do pai de Geréb – para que os meninos da Rua Paulo o aceitem. E o que mais ressaltamos é a generosidade de Nemecsek em não reafirmar diante do pai que o filho é um traidor dos amigos.)


Até diante das maiores humilhações, quando obrigado a mergulhar no lago frio, o pequeno Nemecsek mantém-se firme e altivo, e desafia os adversários. Prefere ser um 'sapo' nas águas frias do lago do que ser o traidor dos amigos. O menorzinho mostra coragem diante dos 'inimigos',

Não tenho medo de nenhum de vocês. E se vierem à Rua Paulo tomar-nos o nosso terreno, lá estaremos. Lá, verão que, quando nós também somos dez, sabemos falar em outro tom. Comigo a briga não foi difícil ! Vence quem é mais forte.” (p. 59, V)

De fato haverá uma guerra pela posse ou defesa do grund, aquele terreno baldio que torna-se um símbolo do solo sagrado da Pátria. Uma guerra com Regras – com diplomatas, embaixadores, patrulhas avançadas, honra e cavalheirismo, e declaração oficial – pois ainda estamos antes da 'guerra total', tal como se manifestou nas Guerras Mundiais (a Primeira, 1914-18, e a Segunda, 1939-1945), onde não havia sequer declaração de guerra, mas ofensivas-surpresa, saques, destruição em massa, bombardeio de civis, gases tóxicos, assassinato em escala industrial, bombas atômicas.


O esperto Boka arquiteta todo um plano de batalha – digno de um Alexandre ou Napoleão – para defender o amado grund, aquele terreno que significa tanto para os meninos – tanto pessoalmente, quando coletivamente. Significava algo deles e um lugar da infância.

“Boka sentia que nesse momento tudo dependia dele – o bem-estar daquela minúscula sociedade, as tardes alegres, as partidas de péla e de outros jogos, os divertimentos de seus amigos – e enchia-se de orgulho por ter-se encarregado de uma tarefa tão bela.

-Sim – disse consigo mesmo – defendê-los-ei.

Envolveu num olhar o querido grund. Olhou em direção das pilhas de lenha, por trás das quais se levantava curiosa a esbelta chaminé da serraria, cuspindo as brancas nuvenzinhas de vapor com alegria tão sossegada como se aquele dia fosse como os outros, como se tudo não estivesse em perigo...

Sim, Boka sentia-se como um grande capitão pouco antes da batalha decisiva. Pensava em Napoleão... Depois os seus pensamentos se aventuraram pelo futuro a dentro. Como seria? Que fim levaria ele? Acabaria soldado de verdade, capitão a comandar um exército fardado, em algum lugar longínquo, num verdadeiro campo de batalha... para defender não um pedacinho de terra tão pequeno como o grund, mas aquela grande porção de terra querida que se chama pátria? Ou acabaria médico, enfrentando diariamente as enfermidades numa grande batalha, séria e renhida?
” p. 69, VI


A batalha mesmo somente ocorre dois dias depois. Os preparativos, enquanto isso, são minuciosamente descritos. Esquemas das tropas, posicionamentos dos reservas, áreas da ofensiva e da retirada, assim todo um vocabulário militar com o qual os meninos demonstram uma estranha familiaridade – como se a guerra fosse assunto de crianças! A 'guerra' em si ocupa muitas páginas e uma atenção especial do Narrador (o Autor certamente terá vivenciado e participado da batalha...)


Mas não é nosso interesse resumir aqui os movimentos bélicos dos meninos. Mas, antes, a questão da infância. De como é possível aos meninos se relacionarem em termos militares – onde um à amigo e o outro inimigo, onde um é fiel e o outro traidor. Todos estes conceitos de honra são próprios do mundo adulto. As crianças seguem – e incorporam - tais conceitos, apenas para reproduzirem a violência. Principalmente, as relações entre jogo e guerra são ressaltadas, além dos 'níveis semânticos' compartilhados (i.e. quando o vocabulário usado é de origem militar),


Correspondentes de guerra verdadeiros que assistiram a batalhas de verdade, dizem que o maior perigo que ameaça um exército é a confusão. Os generais têm menos receio de centenas de canhões que de uma confusãozinha de anda, que pode em poucos instantes transformar-se num verdadeiro caos. Pois se a confusão enfraquece um exército de verdade, armado de fuzis e de canhões, como é que uns soldadinhos de infantaria, cujo uniforme consistia apenas em camisas-de-esporte vermelhas, poderiam resistir a esse perigo?” p. 93, VIII


O mais importante, em nossa leitura, acha-se mais para o fim da 'batalha', quando o pequeno Nemecsek, mesmo adoentado, vem, digamos, 'salvar a pátria', e deixa o 'campo de batalha' com honras militares. É quando o foco da narrativa vai do coletivo para o individual, na parte final, quando o menino, doente e agonizante, recebe a atenção digna de um protagonista. Todos os olhares se voltam para ele – tanto de amigos quanto 'inimigos' – seu nome é 'reabilitado' diante dos meninos da Rua Paulo, sua coragem é louvada até pelos adultos.


Diante da casa humilde do menino Nemecsek, os dois rivais – João Boka e Chico Áts – se encontram, sem esperar, na dor compartilhada,

E os dois generais fitaram-se dos dois lados da rua.

Pela primeira vez na vida deles se encontravam assim a sós, cara a cara, diante daquela casinha triste, um trazido pelo coração, outro pela consciência. Fitaram-se sem uma palavra. Depois Chico Áts recomeçou o seu vaivém diante da casa. Andou muito tempo, até que o porteiro saiu do quintal escuro para fechar o portão. Então Chico Áts tirou o chapéu e perguntou-lhe algo baixinho. A resposta do porteiro chegou até Boka. Era apenas esta palavra: -Mal.

E o homem bateu com o portão pesado. O barulho quebrou o silêncio da rua, mas apagou-se logo depois como o trovão no meio das montanhas
.” p. 104, VIII


E a prova de coragem do pequeno Nemeseck – e o consequente sacrifício da saúde física – é o momento marcante, no fechamento do livro. O menino prova a todos que ele sempre foi do mesmo nível - e até acima -, e assim ele não aceita o fato de que sempre o vejam como um 'soldado raso'. Esta necessidade de provar que é do mesmo nível (e até superior) é um exemplo dos 'ritos de passagem' que as crianças sofrem durante a pré-adolescência. Ser aceito no grupo, ser respeitado, ser amado, ser correspondido nos afetos.


Num desfecho triste, o menino resigna-se, 'nunca mais verei o grund', justo ele que considerava semelhante a uma 'pátria' aquele terreno de brincadeiras; e, junto aos familiares e os amigos, finalmente morre. E, felizmente, ele não vê a perda do grund, o terreno baldio que será destinado a novas construções na cidade em crescimento. Por fim, é o líder Boka sofre com o fim do 'solo sagrado' da infância e com o fim da infância.


A terra girava aos olhos de Boka. Desta vez as lágrimas brotaram. Estugou o passo, foi correndo ao portão, fugindo daquele pedaço de terra infiel que eles haviam defendido com tamanho sofrimento, tamanho heroísmo, e que ia deixá-los para carregar um imóvel nas costas para sempre.

Do portão voltou-se mais uma vez, como quem abandona de vez a pátria. Para a grande dor que, a essa ideia, lhe apertava o coração, só encontrava uma consolação bem fraca. Coitado do Nemecsek! Se não vivera bastante para receber a delegação da Sociedade do Betume pedindo perdão, pelo menos também não vira arrancarem-lhe a pátria pela qual morrera
.” p. 120, X


O terreno da infância se perde, a própria infância se vai, restam as reminiscências – e a narrativa que acabamos de ler. As crianças adentram o mundo normatizado e oficializado pelos adultos. O Autor-Narrador demonstra amargura, ele que possivelmente lá esteve, junto aos corajosos e destemidos meninos da Rua Paulo, meninos em muitos aspectos semelhantes aos vários meninos de várias ruas em todo o mundo.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


nov/11

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/




Notas:


(*) Para os críticos historicistas eis um prato-feito! Por que o Autor fala em russos versus japoneses? Ora, a obra é de 1906, e o contexto é a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), que empolgou nacionalistas de ambos os impérios, até a vitória nipônica, e a eclosão da Revolução de 1905 contra o Czar.

(**) Aliás, o tradutor Paulo Rónai apresenta duas marcas textuais, consideradas involuntárias, que possibilitam uma leitura na qual o Autor tenha participado da turma da Rua Paulo. Assim, na página 19, II, temos um “Nós, meninos da cidade, não queríamos saber de outro. O grund da Rua Paulo era chão e representava para nós as savanas americanas.” e também, na página 90 , VIII, “Os nossos receberam-nos firmes como se quisessem aceitar a batalha, mas isso durou apenas alguns segundos:” Onde o Narrador se inclui no grupo de meninos.)


artigos sobre “Os Meninos da Rua Paulo
http://www.tellesdasilva.com/crmeninos.html



filmes baseado no romance de Molnár

A Pál-Utcai fiúk”(The Boys of the Paul Street, 1969)
http://www.youtube.com/watch?v=yleSDV47o3M&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9UM7liecYQs
http://www.youtube.com/watch?v=yKo1TczV-UM&feature=related


I Ragazzi della Via Pal (TV, 2003)
http://www.youtube.com/watch?v=ynJZ5Nx3lkc
http://www.youtube.com/watch?v=JONEir2hErI&feature=related



LdeM