Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)
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As Obras Clássicas (ensaio 3)
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O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna
Livro 5 – La descente ( a queda)
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O fato é que a miséria de Fantine ainda terá mais um capítulo. De volta a cidadezinha de Montreuil-sur-Mer, a moça vai encontrar emprego nas oficinas de um próspero patrão, que aliás é também o prefeito. Um homem já idoso chamado afetuosamente por 'le pére Madeleine',
O fato é que a miséria de Fantine ainda terá mais um capítulo. De volta a cidadezinha de Montreuil-sur-Mer, a moça vai encontrar emprego nas oficinas de um próspero patrão, que aliás é também o prefeito. Um homem já idoso chamado afetuosamente por 'le pére Madeleine',
“Era um homem de cerca de cinquenta anos, que tinha o ar preocupado e que era bom, Eis tudo o que se podia dizer.” (“C'était un homme d'environ cinquante ans, qui avait l'air préocupé et qui était bom. Voilà tout ce qu'on em pouvait dire.” II, p. 171)
O pai Madeleine era o empresário, o patrão, compreensivo que só exigia uma coisa – seja um homem honesto, seja uma moça honesta!
Mas quem era esse Madeleine? De onde viera? Qual o seu passado? Morava há cinco anos na cidade, e pouco se sabia. Era próspero, mas solitário. Um patrão a exigir honestidade, e não lucros. Certo dia, em 1821, ele foi visto trajando luto, com ares pesarosos. A notícia nos jornais dizia: morte do bispo de Digne, Monsenhor Myriel, dito Benvindo. Assim, muitos julgaram que o 'pai Madeleine' fosse algum parente do piedoso sacerdote.
Aqui, nós, os leitores, afogados em informações, descrições e digressões, começamos a entender – a encontrar o 'fio de Ariadne' neste labirinto de 900 páginas! O fato é que Madeleine é o Jean Valjean de 50 páginas antes. E porque acompanhamos a vida da alegre e depois desiludida Fantine? Haverá algo a unir as vidas do ex-forçado e a mãe solteira? Nós, leitores, esperamos um caso amoroso, talvez...
Mas Madeleine é um patrão modesto, e discreto, não se envolve com as trabalhadoras (como vários patrões faziam, a transformarem as mulheres pobres em empregadas e concubinas...), assim também evita compromissos políticos. Mas sua prosperidade e fama resulta num convite para assumir a prefeitura da cidade – ele hesita mas acaba por aceitar.
Na chefatura de polícia há uma personagem de excêntrico fanatismo em suas funções, o rigoroso agente Javert, cuja descrição é ao estilo naturalista (aos moldes usados com o casal Thénardier)
“Certos oficiais de polícia têm uma fisionomia distinta e que se complica com um ar de baixeza unida a um ar de autoridade, Javert tinha tal fisionomia, mesno a baixeza. (“Certains officiers de police ont une physionomie à part er qui se complique d'un air de bassesse melé à un air d'autorité. Javert avait cette physionomie, moins la bassesse.” V, p. 181)
“Esse homem era composto de dois sentimentos bem simples, e relativamente bons, mas que se faziam quase prejudiciais devido ao exagero: o respeito a autoridade, o ódio da rebelião; e aos seus olhos o roubo, o assassínio, todos os crimes, nada mais eram do que formas da rebelião.” (“Cet homme était composé de deux sentiments très simples, et relativement très bons, mais qu'il faisait presque mauvais à force de les exagérer: le respect de l'autorité, la haine de la rébellion; et à ses yeux le vol, le meurtre, tous les crimes, n'étaient que des formes de la rébellion.” V, p. 183)
A descrição de Javert tem algo de 'naturalista' que realmente pode ter influenciado a 'estilística' de um Zola (mas aí é dizer que Victor-Hugo é um pré-naturalista?) O Autor aqui não enfatiza um estilo – adequa o estilo ao tipo de personagem (ou ao tipo de efeito que pretende causar no Leitor) Tanto é seu interesse o 'efeito' que 'dá uma pausa' na narrativa para descrever a personagem, fisica e psicologicamente, ou um dado local, como se fosse um 'cenário' – e Victor-Hugo era também dramaturgo – cria e descreve o cenário para então inserir as personagens.
Enquanto o romance na virada dos séculos 19 para o 20, passa a 'fundir tudo', quando o Leitor aprende mais sobre a personagem, ou sobre o local, ao longo da Narrativa. O autor modernista entrega o cenário e as personagens entrelaçados, e o Leitor 'monta' o espetáculo. Assim, o Leitor moderno é convidado a ser co-Autor.
O didatismo de Victor-Hugo é proverbial. Faz uma referência à Batalha de Waterloo, e depois dedica-se, ao longo de 60 páginas, a explicar o que foi a batalha. Refere-se aos esgotos de Paris, e dedica longa digressão a topografia subterrânea da capital francesa...
O 'pére' Madeleine sentia o olhar agudo do agente Javert. E não pôde evitar um colóquio quando de um acidente nas ruas. O acidente com o velho 'pére' Fauchelent, um desafeto de Madeleine. O velho de repente viu-se caído sob as rodas da própria carroça. E quem poderia ajudar? Era preciso suspender a carroça... Javert posicionou-se junto a Madeleine, perplexo diante da impotência geral. O agente somente conhecia uma pessoa com tamanha força para levantar uma carroça, e esta pessoa era um velho forçado. Madeleiene sente o 'olho de falcão' sobre ele, mas não pode deixar de suspender a acarroça e salvar o velho Fauchelevent.
“Javert replicou: 'Só conheci uma vez um homem capaz de substituir uma alavanca. Era um forçado.' -'Ah! Isso me esmaga! Grita o velho.' Madeleine levanta a cabeça, encontra o olho de falcão de Javert sempre sobre ele, observa os camponeses imóveis, e sorri tristemente. Depois, sem dizer uma palavra, se inclina de joelhos, e antes que a multidão tenha tempo de dar um grito, ele estava sob a carroça. Seguiu-se um agônico momento de espera e silêncio.”
Javert reprit:
--Je n'ai jamais connu qu'un homme qui pût remplacer un cric. C'était ce
forçat.
--Ah! voilà que ça m'écrase! cria le vieillard.
Madeleine leva la tête, rencontra l'oeil de faucon de Javert toujours attaché sur lui, regarda les paysans immobiles, et sourit tristement. Puis, sans dire une parole, il tomba à genoux, et avant même que la foule eût eu le temps de jeter un cri, il était sous la voiture.
Il y eut un affreux moment d'attente et de silence.
(VI, p. 187)
Assim, o velho Fauchelevent foi salvo, tratado num hospital e depois foi trabalhar como jardineiro num convento, em Paris. Pensamos: por que tantos detalhes? Por que o Narrador é tão detalhista? Mas guarde o nome do convento – 'couvent de femmes du quartier Saint-Antoine à Paris' – que será essencial (ou providencial) em outro capítulo.
Ficamos sabendo que foi após o incidente narrado que Madeleine aceitou a nomeação para ser o prefeito. Então o agente javert redobra a atenção. Seu 'faro' indica 'presa grande'.
Em seguida, temos a reentrada da personagem Fantine. Boatos sobre o passado da moça ameaçam a nova vida, como empregada em uma das oficianas das empresas do 'père' Madeleine. Uma das colegas, daquelas 'inconvenientes', descobre que Fantine é mãe e não é casada. Uma mãe solteira é motivo de 'deboche'. Assim, Fantine é logo demitida.
A demissão de Fantine acelera a 'queda' daquela bela e modesta moça dos capítulos anteriores. O Narrador capricha na decadência para fazer o Leitor sofrer, ampliar o 'efeito'. Moça singela, iludida, engravidada, abandonada, mãe solteira que abandona a vida parisiense, volta para a província, depois perde o emprego, cai na miséria. E ainda precisa sustentar a 'fome de dinheiro' do casal Thénardier, os 'abutres' do Romance.
“Passou-se um tempo. Fantine já trabalhava há um ano na fábrica, até que um dia a encarregada do ateliê a ela entregou, da parte do Sr. Prefeito, cinquenta francos, e lhe dizia que ela não fazia mais parte do ateliê e se empenhar, segundo o Sr. Prefeito, em deixar a região.
Foi precisamente nesse mesmo mês que o casal Thénardier, após ter pedido doze francos ao invés de seis, vinha exigir quinze francos e não mais doze.”
(“Tout cela prit du temps. Fantine était depuis plus d'un an à la fabrique, lorsqu'un matin la surveillante de l'atelier lui remit, de la part de M. le maire, cinquante francs, en lui disant qu'elle ne faisait plus partie de l'atelier et en l'engageant, de la part de M. le maire, à quitter le pays.
C'était précisément dans ce même mois que les Thénardier, après avoir demandé douze francs au lieu de six, venaient d'exiger quinze francs au lieu de douze.” VIII, p. 191)
Claro está que o Sr. Prefeito, o pére Madeleine nada sabe da história. Nada sabe sobre a demissão da empregada Fantine, agora condenada à miséria. (Pior que ser explorado, é não ser explorado, é ser desempregado, excluído, marginalizado...) A queda de Fantine se acelera, num processo infernal e doloroso, perde a alegria, perde a filha, perde o emprego, perde a beleza. Tudo porque na província o que não falta é 'maledicência': todos falam da vida de todos. Enquanto em Paris, ao menos, tem-se o anonimato. O 'cada um por si' que abriga os santos e pecadores.
Esta comparação entre metrópole e província, cidade e campo, está em todos os grandes romances do século 19, quando a Europa (e outras partes do mundo) sofriam o processo de urbanização, exôdo rural, industrialização, concentração populacional nas metrópoles, etc, em que, seja em Paris, Londres ou San Petersburg, uma massa de despossuídos aumentava a decadência das cidades. Esta dicotomia está nos romances de Stendhal, de Dickens, de Balzac, de Dostoiévski, de Zola.
Enquanto a miséria envolve a pobre Fantine, os Thénardier exigem mais dinheiro, a ponto da mulher precisar vender os cabelos. E nisso tudo, a Fantine ainda culpa o Sr. Madeleine – que obviamente não sabe da vidas dos empregados. E outra carta dos Thénadier anuncia que a menina Cosette está doente! Então Fantine hesita e hesita, mas acaba por vender os belos dentes. A narrativa é mesmo dolorosa – a miséria é o Protagonista deste Romance.
A miséria fragmenta o psíquico e o corporal, a perda da alegria, da identidade, dos cabelos, dos dentes... E o dramático: Cosette nem estava doente! Trata-se apenas de uma nova artimanha do casal de trapaceiros. (Realmente, este sinistro casal Thénardier consegue projetar uma sombra de abutre por toda a narrativa...) A decadência de Fantine parte a parte é completada com uma vida de prostituição. Ela 'vende o resto', “ a infeliz tornou-se mulher pública.” (“L'infortunée se fit fille publique.” p. 199)
O Narrador apresenta os culpados. O que pretende esta história de Fantine? Que a sociedade aceita outro escravo da miséria. “À fome, ao frio, ao isolamento, ao abandono, ao desnudamento. Uma marcha dolorosa. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a sociedade aceita.” (“A la faim, au froid, à l'isolement, à l'abandon, au dénûment. Marché douloreux. Une âme pour un morceau de pain. La misère offre, la societé accepte.” p. 199)
Meses depois, o Narrador apresenta uma cena noturna, onde uma mulher prostituída é humilhada por um dândi boêmio. Desta vez, a mulher não se deixou resignar – avançou e golpeou o farrista. E não demorou a chegada das 'autoridades'. E a vítima torna-se a ré. Era Fantine. Diante das autoridades – quem mais além de Javert, severo e implacável? - ela será condeanda. O farrista aproveita-se para fugir.
Novamente, encontramos a 'justiça' punindo a vítima e deixando livre o criminoso. O pobre é culpado pela pobreza, a prostituta é culpada por prostituir. O Narrador tece longas considerações sobre as questões de polícia – ao estilo “vigiar e punir”, a mesma temática re-analisada pelo filósofo Michel Foucault no século 20 – onde a revolta diante da desigualdade social é represada pelo medo-terror diante da autoridade policialesca.
Como poderá a pobre Fantine enviar dinheiro para que os Thénardier? Estes que continuam guardando (ou melhor: explorando) sua filha Cosette. Será uma solução a prisão – por seis meses – da mulher que não passa de uma vítima de sedutores e exploradores? Mas parece que um 'deus ex machina' que vai salvar a vítima, a desabafar suas misérias para ouvidos surdos. Quem ali surge é a figura austera do Sr. Madeleine, o prefeito. Mas ele é justamente quem Fantine considera o 'culpado' por sua miséria! E ele é recebido por uma mulher desfeita que lhe cospe no rosto!
O Sr. Madeleine não altera sua decisão de libertar a mulher. Javert não pode suportar tamanha interferência ao exercício de sua profissão. Ainda, mais que nutre suspeitas de que Madeleine seja aquele ex-forçado, o tal Valjean. Fantine, desesperada, dedica-se a ofender o que se dedica a libertá-la. Parece que Fantine até prefere ser motivo de zombaria – e de tortura! - dos soldados, do que aceitar a ajuda do prefeito! O prefeito que sequer faz queixa do insulto sofrido. Ainda que Javert considere que “não o prefeito quem foi insultado, mas Justiça” (“Je demande pardon à monsieur le maire. Son injure n'est pas à lui, elle est à la justice.” XIII, p.210)
Não é a Justiça que serve aos humanos, mas os humanos que servem à Justiça! Belo policial temos aqui. O 'dever' impõe prender uma vítima da miséria à seis meses de prisão, é o que pensa o inspector Javert. Mas o embate entre os dois homens – ou dois sistemas – é decidido ainda pela 'força da lei', quando Madeleine afirma “Devo lembrar ao senhor o artigo oitenta-e-um da lei de 13 de dezembro de 1799 sobre detenção arbitrária.” (“Je vous rappelle, à vous, l'article quatrevingt-un de la loi du 13 décembre 1799 sur la détention arbitraire.”, p. 210)
Mas a intervenção de Madeleine – em promessas de pagar as dívidas de Fantine, e resgatar sua filha – terá vindo tardiamente. A mulher emocionada, extenuada, cai diante do prefeito, desmaiada. Conduzida a um hospital, ela ardia em febre. Adoentada, Fantine espera que o prefeito possa cumprir a promessa – e finalmente ter Cosette ao seu lado. Madeleine bem que se esforça – envia quantias elevadas para os Thénardier - mas o casal de exploradores não deseja se desfazer de semelhante fonte de dinheiro: Cosette torna-se objeto de negociação. E o tempo passa, Fantine não melhora. Madeleine mesmo precisará buscar a menina.
Mas – estava demorando! - o Narrador provoca uma 'reviravolta' no enredo. Alguma coisa precisava acontecer. Afinal, Javert, humilhado pela autoridade do prefeito, ficaria parado? O próprio inspetor vem denunciar-se diante de Madeleine: Cometi um ato culpável. Um agente inferior que falta ao respeito com um magistrado comete uma to grave. Venho aqui, como é o meu dever, trazer tal fato ao vosso conhecimento. Venho pedir minha destituição. Após aquele cena com a aquela mulher, há seis semanas, quando eu estava furioso, eu o denunciei.”
Voilà! Ai está! Madeleine pode novamente precisar vestir os trapos de Valjean, e aceitar um número no uniforme de forçado! Mas parece que há algo mais! Afinal, por que Javert se deunciaria? O fato é que há outro preso que é acusado de 'ser Jean Valjean'. Então, o prefeito certamente NÃO é Jean Valjean. Daí o 'arrependimento' de Javert! Um tal Champmathieu será julgado, e Javert será testemunha de acusação. E o inspector insiste – quase exige! - que ele, o 'subordinado em falta', deve ser destituído.
“-É que eu devo ser destituído.
O Sr. Madeleine se levanta.
-Javert, sois um homem honrado, e eu vos estimo. Exagerais a vossa falta. Ainda é uma ofensa que me diz respeito. Javert, sois digno de subir e não de descer. Deveis conservar o vosso cargo.”
“-C'est que je dois être destitué.
Madeleine se leva.
-Javert, vous êtes un homme d'honneur, et je vous estime. Vous vous exagérez votre faute. Ceci d'ailleurs est encore une offense qui me concerne. Javert, vous êtes digne de monter et non de descendre. J'entends que vous gardiez votre place.” II, p. 223)
Madeleine se leva.
-Javert, vous êtes un homme d'honneur, et je vous estime. Vous vous exagérez votre faute. Ceci d'ailleurs est encore une offense qui me concerne. Javert, vous êtes digne de monter et non de descendre. J'entends que vous gardiez votre place.” II, p. 223)
Mas o severo – até consigo mesmo! - Javert decide permanecer no cargo, até ser substituído.
Percebemos agora o impasse de Madeleine – que é Jean Valjean! “O leitor sem dúvida já adivinhou que o Sr. Madeleine não é outro senão Jean Valjean.” (“Le lecteur a sans doute deviné que M. Madeleine n'est autre que Jean Valjean.” III, p. 233) - quando ele precisa decidir se continua a manter a prosperidade da cidade, e também ajudar a pobre mulher agonizante a recuperar a filhinha, OU se se entrega à Justiça, para livrar o 'falso' Valjean de uma condenação injusta!
“Nós não temos mais que pouco a acrescentar àquilo que o leitor saberia do que aconteceu a Jean Valjean depois da aventura de Petit-Gervais. A partir desse momento, pode-se ver, ele foi um outro homem. O que o bispo tinha desejado dele, ele cumpriu. Foi mais que uma transformação, foi uma transfiguração.”
“Nous n'avons que peu de chose à ajouter à ce que le lecteur connaît déjà de ce qui était arrivé à Jean Valjean depuis l'aventure de Petit-Gervais. À partir de ce moment, on l'a vu, il fut un autre homme. Ce que l'évêque avait voulu faire de lui, il l'exécuta. Ce fut plus qu'une transformation, ce fut une transfiguration.” III, p.234)
Agora, Madeleine-Valjean não é aquele 'homem raso' dos primeiros capítulos. É uma consciência profunda da condição humana – ainda mais na exaltação do Narrador. Resumindo: a ânsia do Narrador em se 'aprofundar' na personagem cria um discurso que não é possível imaginar na mente de Madeleine-Valjean. A 'profundidade', e mesmo erudição, aqui é um aspecto do Narrador, não da personagem. ['Descompasso' que os narradores do século 20 vão procurar resolver, com cada personagem exigindo um 'discurso' diverso. Basta ver os vários 'estilos' em “As Ondas” e “Orlando” de Virgina Woolf, e “Retrato do Artista quando Jovem” e “Ulisses” de James Joyce.] O esforço de narrativa recorre até aos 'pensamento soltos' – um protótipo do 'fluxo de consciência' de meio século depois...
“-Onde estou? -Não sonhei isso? O que me contaram? - É mesmo verdade que eu vi este Javert e que ele me disse isso? - Que poderia ser esse Champmathieu? - Então ele se parece comigo? - Será possível? -Quando eu penso que estava tranquilo e longe de me preocupar! - O que eu faria numa hora assim? - O que ele tem a ver com esta questão? - Como se vai se livrar? - O que fazer?
Eis os tormentos ele enfrentava. Sua mente perdia a força de reter ideias, elas passavam como ondas, e ele segurava a cabeça com as duas mãos para a sustentar.”
--Où en suis-je?--Est-ce que je ne rêve pas? Que m'a-t-on dit?--Est-il bien vrai que j'aie vu ce Javert et qu'il m'ait parlé ainsi?--Que peut être ce Champmathieu?--Il me ressemble donc?--Est-ce possible?--Quand je pense qu'hier j'étais si tranquille et si loin de me douter de rien!--Qu'est-ce que je faisais donc hier à pareille heure?--Qu'y a-t-il dans cet incident?--Comment se dénouera-t-il?--Que faire?
Voilà dans quelle tourmente il était. Son cerveau avait perdu la force de retenir ses idées, elles passaient comme des ondes, et il prenait son front dans ses deux mains pour les arrêter.
III, p. 237
Valjean pensa em toda a benfeitoria, pensa na doença de Fantine, na ausência de Cosette, na severidade de Javert, as oportunidades que teve de ser bom cidadão – e agora deverá arriscar tudo para poder livrar um homem de uma falsa acusação? Ele hesita. Outra razão diz que ele deve ser um outro homem, esquecer o passado. Deixar que o outro seja condenado como sendo o perigoso Valjean. Assim, as suspeitas sobre ele, agora Madeleine, cessariam para sempre.
O que ele fará?, nos perguntamos, mergulhados no mesmo sofrimento. O que faríamos se estivéssemos em tal dilema? Depois de uma noite de dúvidas e incertezas, numa paródia do Getsemâni [aqui então Valjean uma espécie de Cristo?!] ao ouvir o chamado do cocheiro, Valjean-Madeleine se levanta, ainda é madrugada, e resolve ir ao julgamento em Arras.
A enferma Fantine, esperançosa, imagina que a viagem do prefeito é para resgatar a pequena Cosette, “Amanhã! Amanhã! Eu verei a minha Cosette, amanhã!” Justamente esta esperança mantem a mulher ainda viva.
Após dificuldades de transporte, Madeleine chega ao tribunal, em Arras, e precisa fazer esforços heróicos para entrar na sala da audiência. O que só é possível quando ele usa o nome do prefeito, “M. Madeleine, maire de Montreuil-sur-mer”. Nome que certamente era famoso, útil para 'abrir portas', como é o caso. Madeleine consegue acesso ao 'aparelho do processo criminal'.
Uma fina ironia do Narrador (e certamente do Autor Victor-Hugo) é a presença de um certo burguês, um dandi, entre os jurados : o nome é Sr. Bamatabois. Pois bem, voltamos algumas páginas, pois o nome não é estranho... voilà! É o mesmo personagem daquela cena patética e trágica que vitimou Fantine (Livro 5, cap. XII) O burguês boêmio que se envolve em brigas com prostitutas agora sentado no banco dos jurados! Essa incoerência – e essa injustiça! - mostra bem o estilo que descreverá o julgamento. Não tem aquele tom dos 'romances anglo-saxões' quando há julamento. O tom é mais do que descritivo-narrativo, é digressivo, há o fato e a opinião do Narrador sobre o fato. Julgamos ter 'acesso' ao fato – mas a 'lente narrativa' a desfocar as imagens. Não podemos levar à sério – nem o evento, nem o Narrador.
Não vamos discutir a cena do julgamento por desconhecermos o sistema judicial francês, ainda mais o de 1823! Mas não é óbvio que Champmathieu não é Jean Valjean. A aparência parece ser idêntica – até antigos forçados dizem reconhecer o ex-prisioneiro, colega de suplícios. O acusado não tem uma defesa muito competente, não tem como provar todos os 'alibis'. Parece mesmo condenado, por mais que se afirme em completa inocência. O que julgam um roubo, foi uma oportunidade aproveitada, não uma invasão de propriedade. Sutilezas à parte, a Justiça não demora em condenar um pobre.
É nesse momento – 20 páginas depois da entrada de Madeleine – que o prefeito se manifesta, prontamente reconhecido pelos cidadãos. O que ele diz? Solicita a atenção dos colegas de outrora – para que o reconheçam. Pois ele é Jean Valjean!
“-Não me reconheceis? Ele disse.
Todos os três demoraram interditos e indicaram por um sinal de cabeça que ele não o reconheciam. Cochepaille intimidado fez uma saudação militar. O Sr. Madeleine voltou-se para os jurados e para a Corte e disse em voz doce:
-Senhores jurados, façam soltar o acusado. Senhor presidente, faça-me prender. O homem que procurais, não é ele, sou eu. Eu sou Jean Valjean.”
--Vous ne me reconnaissez pas? dit-il.
Tous trois demeurèrent interdits et indiquèrent par un signe de tête qu'ils ne le connaissaient point. Cochepaille intimidé fit le salut militaire. M. Madeleine se tourna vers les jurés et vers la cour et dit d'une voix douce:
--Messieurs les jurés, faites relâcher l'accusé. Monsieur le président, faites-moi arrêter. L'homme que vous cherchez, ce n'est pas lui, c'est moi. Je suis Jean Valjean.
XI, p. 294)
De pronto, o assombro total. Como pode o 'honorável prefeito' dizer coisas tão tresloucadas? Há toda uma ruptura na narrativa do julgamento – efeito que muitos outros romances pretendem causar [ainda mais os anglo-saxões!] Mas as provas de Madeleine são irrefutáveis – ao contrário daquelas antes apresentadas no solene tribunal... “Vejam bem, eu sou Jean Valjean”, repete o prefeito, como a dizer eu aquele forçado que vocês odeiam, eu não sou o 'honorável prefeito', eu sou aquele 'número' que fugiu, o que causará toda uma 'desconstrução' da imagem sublime do 'père Madeleine'.
O prefeito abandona a audiência, diz estar 'à disposição da justiça', e retorna para casa. No final, Champmathieu é libertado – a julgar o quanto os homens são loucos (“et Champmathieu, mis em liberté immédiatment, s'en allait stupéfait, croyant tous les hommes fous et ne comprenant rien à cette vision.” p. 297)
O reencontro de Fantine e Cosette – tão esperado pelos leitores – não ocorrerá. Parece que a promessa não poderá ser cumprida. O verdadeiro Valjean precisa se entregar à Justiça. Sequer terá tempo para buscar a menina em Montfermeil. Até porque as garras de Javert estão prontas e próximas – imagine! Deixar um ex-forçado viajar para ir buscar a filha de uma prostituta! - e agora todo o castelo se desmorona. Nenhum 'louvor' a atitude de Madeleine – aliás, agora apenas Valjean – apenas os 'rigores da lei'.
Javert mostra-se contente ao 'cumprir o seu dever' – parece até uma vingança pessoal isso que ele chama de 'dever' – onde a vontade do agora prisioneiro Valjean não tem qualquer valor. Não há mais 'senhor Prefeito', há e haverá sempre a penúria de um forçado nas galés!
-Eu te disse que não há mais nenhum Sr. Madeleine e nenhum Sr. Prefeito. Há um ladrão, há um criminoso, há um forçado chamado Jean Valjean! Ele que eu vou prender! Eis o que há!
--Je te dis qu'il n'y a point de monsieur Madeleine et qu'il n'y a point de monsieur le maire. Il y a un voleur, il y a un brigand, il y a un forçat appelé Jean Valjean! c'est lui que je tiens! voilà ce qu'il y a!
(IV, p. 310)
Todo esta discussão diante de uma mãe doente, uma mulher febril, que somente espera o momento de reencontrar a filha! E toda essa decepção acaba por completar a lenta agonia – o rigor da lei provoca a morte da infeliz Fantine.
Seguem-se algumas proezas. Valjean é preso. Consegue fugir. Resolve algumas pendências. O dinheiro, os bens, o enterro da pobre morta. Logo, Javert pressiona até mesmo as freiras, piedosas e que não mentem. Acabam por recapturar o nosso protagonista.
Todo o bem que 'père' Madeleine fez foi logo esquecido. Toda a prosperidade com as oficinas foi brutalmente interrompida. Empregados foram demitidos. O comércio viu-se prejudicado. Até a assistência aos pobres decaiu.
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