sábado, 11 de setembro de 2010

sobre a Obra poética de Lord Byron (1/2)







Sobre as obras de Lord Byron (1788-1824)
poeta romântico inglês

Alegorias dramáticas do Herói Romântico

1/2

No contexto do Iluminismo e da ascensão burguesa ao poder, um movimento artístico – não apenas literário – se destacou na Europa – principalmente Alemanha, França e Inglaterra – antes de influenciar as colônias americanas. Trata-se do movimento romântico.

Advindo do chamado 'século das Luzes', o sentimento romântico contrapõem-se à 'contenção lírica' do Classicismo com a idealização do poeta original a expressar de forma original um sentimento pessoal. É o início do hodierno culto ao Indivíduo, que passa a expressar sua consciência íntima e estética na obra que recebe enfim uma assinatura (e não apenas tenta se 'adequar' a uma tradição e/ou convenção poética). (1)

Não se pretende aqui analisar o Romantismo. É um assunto cuja vastidão impressiona. Livros e livros já foram escritos e enchem estantes, prateleiras, HDs e 4shares. Então, como se trata do MEU Cânone Ocidental, abordarei a obra de dois poetas que acompanharam a minha juventude – Lord Byron e Álvares de Azevedo.

E, num segundo plano, teceremos comparações com outros literatos – Milton, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley, Goethe, Schiller, Victor Hugo, dentre outros. (Antes destes temos os pré-românticos, que seriam Thomas Parnell, Thomas Gray, Edward Young, dentre outros do século 18, os chamados “Graveyard poets”, poetas que tematizam os cemitérios, local também de interesse dos 'ultra-românticos')
.
É um assunto vasto, repetimos, e o foco em dois poetas se justifica pela minha preferência dentre tantos. Não leio apenas os dois poetas resenhados, mas eles se situam no 'centro canônico' do meu paideuma (como diria o poeta Ezra Pound).

Segundo Ezra Pound, Paideuma é "a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos". Ou seja, a seleção de um Cânone a nortear e justificar a Leitura.

Na época do Romance burguês, de Walter Scott, Dickens e Victor Hugo, temos o poeta romântico Lord Byron a tecer narrativas em versos, seus longos 'poemas narrativos', que arrebatam os leitores pela forma, pelo lirismo e pelas aventuras de um emblemático 'herói byroniano'. Algo de auto-biografia, digno de 'celebridades' e algo de idealização de cenários e dramas.

Os 'poemas narrativos' são o destaque na Bibliografia do bardo romântico (e também na Obra de seu influenciado Álvares de Azevedo, poeta brasileiro), com os extensos “Childe Harold's Pilgrimage” e “Don Juan” - um no início da carreira, outro ao final, deixado incompleto, devido a morte precoce do Poeta – , bem como 'contos em versos, geralmente com temáticas orientais - “The Giaour”, “The Bride of Abydos”, “The Corsair” e “Lara”, além de 'dramas' em versos – com destaque para “Sardanapalus”, “Manfred” e “Cain” - que englobam um ciclo de exaltação e melancolia, aventura e desventura.

Lord Byron tem algo de clássico assim como Baudelaire (ou o brasileiro Gregório de Matos, do século 17), mas tratou o 'classicismo' com retoques peculiares, devido a sua própria biografia – aqui o Autor apodera-se do Estilo tradicional para a criação da própria Obra. As vidas de Byron e Baudelaire (e Gregório de Matos) se aproxima pela ânsia sensualista, a 'vida de pecados', o gosto pelo luxo e pela luxúria.

O herói byroniano é aquele de um poeta solitário, inimigo da tirania (e assim 'amigo da liberdade'), um jovem belo e igualmente misterioso, com um passado não revelado. Assim é a análise de BARBOSA, O C. de Carvalho, em “Byron no Brasil: traduções”, SP: Ática, 1974, “As obras de Byron que melhor desenvolvem o mito byroniano são Childe Harold's Pilgrimage, um longo poema lírico-descritivo, e os contos metrificados: The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair, Lara, The Siege of Corinth, Parisina, Mazeppa. Essas são as mais representativas: mas inúmeras outras se ligam a elas pelo espírito e intenção: Manfred, os dramas históricos, os dramas bíblicos, e a sua obra lírica em geral.

Childe Harold, e os chamados 'tales', que narram histórias de amor, vingança e morte em ambientes exóticos – The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair e Lara – foram em seu tempo verdadeiros 'best-sellers', e, como escritor de 'best-sellers', Byron escrevia para seu público. Desde que alcançara a popularidade literária com a publicação dos dois primeiros cantos de Childe Harold's Pilgrimage, sabia que seria lido, e ia então ao encontro do gosto de seus leitores, oferecendo-lhes exatamente o que queriam. Através desses poemas, Byron foi compondo e desenvolvendo a imagem do herói byroniano, caracterização máxima de herói romântico, um ser demoníaco e fatal, de aspecto sombrio e misterioso, sob cujas feições belas e pálidas se escondem paixões violentas, sentimentos terríveis e indefinidos. De linhagem nobre, ele é orgulhoso, arrogante, rebelde, indomável, e seu passado encerra alguma ação maligna ou crime misterioso. É, portanto, um homem solitário, torturado pelo remorso. Sente que nada tem em comum com seus semelhantes – é diferente, superior. Esses, por sua vez, temem-no, e o evitam.” (p. 17-18)
Segundo a Autora algumas das características das obras se evidenciam, tais como, retórica e lirismo, digressão e narrativa, descrição e ação, mas com imagens óbvias e rimas forçadas, até uma sintaxe 'torcida' do inglês.

A Autora estuda os tradutores brasileiros do Lord inglês, ao comparar as várias traduções. Segundo ela, os tradutores queriam ser mais retóricos e mórbidos que o Byron original – ou então traduziam o inglês com uma leitura influenciada de Álvares de Azevedo. Ou seja, muitos tradutores deram um 'toque alvaresiano' aos poemas traduzidos, com 'exageros funéreos', sendo mais sombrios que o riginal, mais para o irônico.

Os tradutores mais conhecidos são o próprio Álvares de Azevedo, Castro Alves (que traduziu “Darkness” e “A Cup formed from a Skull”), Fagundes Varela (traduziu trechos de “Childe Harold”)

Esta diferença entre o Byron original e o Byron traduzido leva a uma análise da diferença entre os aspectos estéticos e temáticos do próprio Byron – que pode ser byroniano e anti-byroniano, quando ironiza a si-mesmo.

O outro Byron, o não-byroniano, é ao mesmo tempo, sob um aspecto negativo, o autor das sátiras à maniera de Pope em dísticos heróicos que tentam, inutilmente, evocar o estilo elegante e compacto do modelo; [...]

É um Byron inteligente, perspicaz, engraçado, irreverente. É o anti-Byron, e o Don Juan é essencialmente o anti-Childe, o anti-Conrad, o anti-Lara. É a negação do byronismo pelo próprio Byron, o Cervantes de seu próprio mito.” (p. 18/19)

Diferença que Álvares de Azevedo comenta em seu “Lira dos Vinte Anos”, quando faz a 'transição' de Ariel para Caliban (segundo veremos no próximo ensaio), pois percebe-se igualmente 'ambíguo', o jovem lírico e o poeta satírico, o tímido e o desiludido, o amoroso e o trágico. Assim apresenta-se enquanto 'voz poética' dividida – numa 'síndrome' de Médico e Monstro.

Um dos aspectos não-datados de Byron são justamente os olhares metalinguísticos sobre si-mesmo, sobre o 'fazer Poesia'. É um aspecto autoral que se avoluma ao longo da Obra. Os dois primeiros Cantos de “Childe Harold” ainda seguem um romantismo classicista (se podemos dizer assim...), mas os Cantos III e IV – escritos mais tardiamente – são bem diversos dos primeiros. Mostram um 'amadurecimento' da própria Consciência Autoral debruçada sobre a Obra.

Uma Poesia que fala de Poesia e Poetas. Uma Poesia influenciada pela Poesia, aquela resultante de um excesso de leituras digeridas (e não-digeridas). Uma leitura do mundo antes de vivenciá-lo (se Byron pode viver a vida adulta e em vários países, Álvares de Azevedo, em comparação, aqui no Brasil, morreu jovem e sem sair de sua terra, daí as experiências de Byron integrarem à obra poética, ao contrário de Álvares, mais vivida no 'plano imaginário', do possível...)

O máximo da sátira (e auto-sátira) é visível na obra “Beppo”, escrita na Itália, na mesma época que “Don Juan”. Em “Beppo”, podemos encontrar um Autor metalinguístico, visível nas digressões do eu lírico que funciona como Narrador (este é um 'poema narrativo'), dado a meditações e ironias sobre o 'fazer poesia' e o papel do Poeta.

O Eu lírico declara seu amor pela Itália – uma Itália idealizada em contraponto a Inglaterra hipócrita – enquanto critica o tradicionalismo britânico. O Poeta adora uma sublime arte italiana – assim também as belas italianas – mais pelas diferenças com relação às estéticas inglesas.

“I love the language, that soft bastard latin,
Which melts like kisses from a female mouth”
(XLIV)
.
“England! With all thy faults I love thee still !
I said at Calais, and have not forgot it;”
(XLVII)
.
“This is the case in England, at least was
During the dynasty of Dandies, now [...]”
(LX)
.
(“Eu adoro o idioma, este suave latim bastardo, / Que derrete igual ao beijo de uma mulher”, XLIV; “Inglaterra! Com todas as tuas faltas, ainda te amo! / Disse isso em Calais, e não esqueci;”, XLVII; “Era o caso da Inglaterra, ao menos era / assim durante a dinastia dos Dândis, agora [...]”, LX)

Enquanto auto-exilado o Poeta adota sentimentalmente a nova Pátria. (Encontramos algo semelhante no Narrador de “The Marble Faun” - O Fauno de Mármore – do norte-americano Nathaniel Hawthorne, segundo veremos )

O eu-lírico, enquanto Narrador, perde-se em digressões, perde o 'fio da meada', a deixar a estória 'fora de prumo',

To turn, - and to return; -the Devil take it!
This story slips for ever through my fingers,
Because, just as the stanza likes to make it;”
(LXIII)
.
(“Ir e voltar! O diabo o leve! / Este relato vaza entre os meus dedos, / Pois, é assim mesmo que a estrofe faz;” LXIII)

Esta característica de digressão e meditação esta presente deste os primeiros Cantos de “Childe Harold”, mas se acentuando nos Cantos finais, escritos na maturidade poética. Assim, alguns críticos apresentam uma leitura em 'duas partes' – o primeiro Childe (Cantos I e II), escrito em 1812, e o segundo Childe (Cantos III e IV), escritos em 1816 e 1817/18.
.
No primeiro Childe temos o jovem nobre (“Childe” refere-se justamente ao nobre ainda sem título, não é ainda “Lord”) que, igual a todo aristocrata inglês, vai dar um passeio pelo 'Continente' – ou seja, a Europa – para 'educar-se', conhecer o mundo além das Ilhas Britânicas. Em suas perambulações, como todo bom nobre inglês, o protagonista entra em contato com a vida, uma vida que não reserva visões românticas – pois o idílio é mais idealizado do que vivido.

Assim, o jovem Harold passa pela península ibérica, Portugal e Espanha, na época do domínio napoleônico. Apresenta a cultura hispânica com suas resistências e seu lado lúdico-trágico, como as lutas de touros (que, um século depois, serão temas de obras de outro anglo-saxão, o norte-americano Hemingway).

Em seguida, o jovem inglês adentra as ruínas gregas em Atenas, onde deslumbra o que sobrou da glória da cultura clássica. Não hesita em denunciar um nobre inglês que atuou junto ao governo turco – então a potência hegemônica na região – para conseguir acesso aos monumentos helênicos. O de triste fama, Lord Elgin, o pior saqueador, insensível espoliador das relíquias gregas, aqueles monumentos que os godos e os turcos e o Tempo tinham poupado e tinham que ser um inglês a surrupiar tudo! Ó pobre England! (Realmente, isso sabemos bem, a Britannia navegou pelos sete mares a saquear relíquias e tesouros para armazenar em seu pomposo British Museum...)

Estes versos, onde o jovem nobre encontra-se diante do ideal e o vivido, estão intimamente unidos às vivências do Autor, quando de suas viagens pelos Continente, em visitas a Portugal, Espanha, Itália, Albânia, Grécia, Turquia. Enquanto os Cantos III e IV foram escritos no auto-exílio, quando o poeta abandonou definitivamente sua vida na Inglaterra. No Canto III temos mais auto-referência, onde o Narrador (o eu lírico) fala enquanto Autor, e não mantem o foco em Childe Harold (isto é, o Autor passa a ocupar o foco antes dado ao Protagonista).

O Autor aborda o passado nebuloso – antes parte do 'mistério' que envolvia o jovem nobre - “desde os meus jovens dias de paixão – alegria ou dor,” ("Since my young days of passion – joy, or pain," IV), onde o Autor não se confunde com a 'voz' de Harold. Quem é o Autor? Nada além de um criador de personagens, ou um artista da linguagem. Enquanto o protagonista, Harold, é ainda aquele que sofre por idealizar – e depois prcisar encarar a 'realidade', 'a vida em si mesma'. Desse modo, Harold continua deslocado, auto-exilado ('self-exiled') e solitário. “O auto-exilado Harold perambula ainda”, segue adiante, cada vez mais longe de casa, rumo a aventuras só existentes em sua própria mente. (“Self-exiled Harold wanders forth again, / With nought of hope left, but with less of gloom;”(XVI)

A narrativa não é menos sobre a viagem 'dentro de si mesmo' do que a viagem no Mediterrâneo, nos Alpes, nos mares revoltos, nos campo s de batalha. Por que não aceitamos o mundo tal como é? Por que existem tais 'descontentes', tais 'flutuantes'?

O poeta diante do campo de batalha lembra o belo e o horrível. “Thou fatal Waterloo!”. Temos a beleza no desfile das tropas e, em seguida, o horror dos cadáveres desmembrados no conflito. (Imagens que encontramos em “Cartuxa de Parma” de Stendhal e “Os Miseráveis” de Victor Hugo, onde a glória militar é um 'verniz' sobre a crueldade da guerra)

Não sabemos se o poeta foi realmente até Waterloo. Byron viajou para o continente europeu em abril de 1816, quase um ano após a terrível batalha, onde Napoleão assistiu a derrota de suas tropas. Certamente terrível este embate entre as tropas francesas, inglesas e prussianas! Mas Byron sequer poderia imaginar o horror da Guerra Civil norte-americana, ou as Grandes Guerras Mundiais do século 20!

Para fugir desses cataclismas humanos, o poeta busca consolo numa idealização da Natureza, da vida bucólica – certamente influenciado por classicistas e arcadistas – presentes nos versos de Worsdworth e Keats, onde sempre a Natureza é um tesouro de mistérios e o homem pastoral é bom. É aquele 'bom selvagem' de Rousseau em plena forma. (O mesmo encontraremos na segunda metade de “O Fauno de Mármore”, The Marble Faun, de N. Hawthorne, cujo cenário é a vida campestre no norte da Itália.)

Está idealização da Natureza também surge no final de “O Prisioneiro de Chillon” (veremos a seguir), em comparação com os poemas bucólicos (as 'baladas líricas') de Wordsworth e as odes de Keats,

Are not the mountains, waves, and skies a part
Of me and of my soul, as I of them?
.
(“Não são as montanhas, ondas, e céus, uma parte / De mim e de minha alma, como eu delas?” LXXV)
.
Esta presença da Natureza é tão sensível no romantismo quanto no Arcadismo. Mas com uma diferença: o poeta romântico não é tão 'impessoal', pois a forma de ver o 'natural' passa a ser coberto pelo 'sentimental'. Mas também encontramos a Natureza hostil, força incontrolável que ameaça o eu-lírico (assim o exemplo em “Manfred”, segundo veremos),

The sky is changed!--and such a change! O night,
And storm, and darkness, ye are wondrous strong,
Yet lovely in your strength, as is the light
Of a dark eye in woman! Far along,
From peak to peak, the rattling crags among,
Leaps the live thunder
! [...]
.
(“O céu transmuta-se! - e que mudança! Ó noite, / E tormenta, e trevas, são força assombrosa, / Já amável em tua força, igual a luz / De um olho escuro de mulher! Longe ao longo, / De pico a pico meio a rochedos trêmulos, / Retumba o trovão vivaz! [...] XCII)
.
Sky, mountains, river, winds, lake, lightnings! ye,
With night, and clouds, and thunder, and a soul
To make these felt and feeling, well may be
Things that have made me watchful; the far roll
Of your departing voices, is the knoll
Of what in me is sleepless,--if I rest.
.
(“Céu, montes, rios, ventos, lagos, raios! Vós, / Com a noite, e nuvens, e trovão, e alma / A fazer este sentir e sentimento, devem ser / Coisas que fazem-me atento; o ressoar / De tuas vozes em fuga, é o auge / Do que em mim é insone, - se eu repouso. [...] XCVI)
.
Esta posição do homem diante da Natureza á mais uma fuga da 'civilização' , da 'cultura', que é rejeitada pelo poeta misantropo, que prefere viver entre faunos e ninfas na inocência silvestre. O homem na Natureza foi tema de vários pintores românticos, entre eles o inglês Turner e o alemão Gaspar Friedrich.
O poeta misantropo? Sim, em muitos aspectos o ser em desacordo com a vida social hipócrita e mesquinha,

I have not loved the world, nor the world me;
I have not flattered its rank breath, nor bowed
To its idolatries a patient knee, -
Nor coined my cheek to smiles, nor cried aloud
In worship of an echo; [...]
.
(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim; / Não tenho bajulado posição, nem reverenciado / Suas idolatrias ao ajoelhar paciente, / Nem distribuído sorrisos, nem louvado no culto d'um eco;” [...] CXIII )
.
I have not loved the world, nor the world me, -
But let us part fair foes;

.
(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim, / Mas deixe-nos afastar os inimigos;” [...] CXIV )
.
O Canto IV de “Childe Harold” foi escrito e publicado em 1817/18, quando o Poeta vivia em Veneza, no norte da Itália (ainda não era uma 'nação', mais a se assemelhar a uma 'colcha de retalhos'...), a lembrar seu passado que o exilara da Inglaterra, a pátria distante, amada e rejeitada.

O próprio Poeta lembra o 'intervalo de oito anos' entre os primeiros Cantos e o derradeiro, na conclusão das peregrinações do jovem Harold. Assim muito do narrado é vivenciado – ou uma idealização de fatos vividos – mais que os Cantos I e II, onde 'destila' as influências de leituras – que são comparadas com o 'mundo real'.

Assim há todo um 'olhar de turista' – pois os cenários incluem Espanha, Grécia, Itália, Albânia, Turquia, com destaque para as cidades de Atenas, Veneza, Roma, Constantinopla/Istambul – a derramar-se em descrições, ora exaltadas, ora irônicas, sobre outras culturas, povos, civilizações – a sentir todo o peso da História.

A thousand years their cloudy wings expand
Around me, and a dying glory smiles
O'er the far times [...]
.
(“Mil anos abrem suas nubladas asas / Ao meu redor, e uma Glória agônica sorri / Sobre os tempos remotos, [...] I)
.
Os versos se nutrem da 'cor local', em aclamações diante de Veneza (“a ti, bela Veneza!”), em referências às peças de Shakespeare - que se passam nas terras italianas (a Veneza de Shylock, “O Mercador de Veneza”, ou Othelo; ou a Verona de “Romeu e Julieta” e “Os Cavaleiros de Verona”; ou a Pádua de “A Megera Domada”), em amostras de 'adoção' de uma nova pátria – que fascinava o jovem nobre tanto quanto o Bardo em suas peças.

The commonwealth of kings, the men of Rome!
And even since, and now, fair Italy!
Thou art the garden of the world, the home
Of all Art yields, and Nature can decree;
.
(“A comunidade dos reis, os homens de Roma! / E desde então, e agora, bela Itália, / Tu és o jardim do mundo, o lar / De todo criar Arte, e ordenar Natureza;” XXVI)
.
Esta adoração pela Itália idealizada, sublimada desde os 'tempos de glória', os clássicos latino – Horácio, Ovídio, Virgílio, Cícero, Sêneca -, terra dos humanistas renascentistas – Boccaccio, Dante, Petrarca, Ariosto, Da Vinci, Michelangelo, Rafael - está evidenciada também em obras de Goethe (“Elegias Romanas”), Shelley, Keats , Stendhal (“Cartuxa de Parma”), Victor Hugo, Hawthorne (“Marble Faun”), Hemingway (“Adeus às Armas”),

Italia! O Italia! thou who hast
The fatal gift of beauty, which became
A funeral dower of present woes and past,
On thy sweet brow is sorrow ploughed by shame,
And annals graved in characters of flame
.
.
(“Itália! Ó Itália! Tu tens / A fatal dádiva de beelza, que tornas / Um funéreo dote de aflições atuais e passadas, / Sobre teu cenho é mágoa lavrada por vergonha, / E arquivos gravados em caracteres de chama.” XLII)
.
Nem pretendemos comentar os 'deslizes' históricos do Autor – é tudo aceito pela 'licença poética' – Roma é símbolo tanto da Grandeza quanto da Decadência.

Yet, Italy! through every other land
Thy wrongs should ring, and shall, from side to side;
Mother of Arts! as once of Arms; thy hand
Was then our Guardian, and is still our guide;
.
(“Ainda, Itália! Por toda outra terra / Teus erros ressoariam, de um lado a outro; / Mãe das Artes, outrora das armas; tua mão / Era então nossa guardiã, e és ainda nossa guia; XLVII)
.
O Rome! my country! city of the soul!
The orphans of the heart must turn to thee,
Lone mother of dead empires!
.
(“Ó Roma, meu país! Cidade da alma! / Os órfãos do coração devem voltar-se a ti, / Mãe solitária de impérios mortos, [...]” LXXVIII )

Esta jornada na Cidade Eterna revisita as lendas da fundação de Roma, onde os dois gêmeos – Remo e Rômulo – foram amamentados pela loba. Este cenário histórico – onde aparcem vultos exumados de César, Cleópatra, dentre outros - é um imenso palco onde o Eu-lírico fala de si-mesmo ao falar de 'mundos' que estão fora.

O Eu-lírico é um ser feito de contemplação – diante da Roma manchada de sangue, respingado sobre colunas, colunatas, arcos do triunfo, arenas, onde morriam os escravos,os gladiadores, os mártires cristãos – numa perspectiva onde a História é um processo de vitórias e derrotas, alternadas e em série, e repetidos,

There is the moral of all human tales:
'Tis but the same rehearsal of the past,
First Freedom, and then Glory--when that fails,
Wealth, vice, corruption--barbarism at last.
And History, with all her volumes vast,
Hath but ONE page,
.
(“Eis a moral de todos os relatos humanos; / É nada além do mesmo ensaio do passado, / Primeiro Liberdade e então Glória – quando aquela falha, / Riqueza, vício, corrupção, - enfim, barbárie./ E a História, com seus volumes vastos, / Tem nada além de UMA página, [...]” CVIII)
.
São as obras humanas que se esforçam para resistir ao Tempo – que sobra na peneiragem dos tempos torna-se, então, 'obra clássica'. O Tempo é tanto cicatrizador ('healer') quanto vingador ('avenger'), é efêmero e eterniza os ecos do passado – ruínas, montes de pedras de uma Glória perdida.

É nesse sentimento de finitude que o Romantismo encontra o Barroco – assim como Shakespeare encontra Calderón na temática da efemeridade (“a vida é sonho”) - para ressaltarem o 'carpe diem' – o gozar o dia, antes que a vida acabe.

O que faz compreender a meditação romântica sobre a fragilidade do Existir. Mas numa metafísica de base religiosa, mais do que filosófica (o que somente o Existencialismo faria após Schopenhauer, Nietzsche, Sartre), o que leva o homem a indagar sobre a vida enquanto penitência, o castigo advindo do pecado, a perdição ou a redenção.

Esta temática está nos dramas 'filosóficos' de Byron – Manfred e Cain – que dialogam com a tradição de Dante, Shakespeare e Goethe – a Literatura a desejar abarcar o mundo – onde o Poeta destila os ensinamentos puritanos da cultura inglesa da época, em contraponto com a própria vida de luxúria. Esta contradição leva ao auto-martírio. (2)

No drama “Manfred” temos o anti-fausto, pois ao contrário de Fausto (que deseja saber tudo), Manfred deseja esquecer seu passado de sofrer. Esta presença da consciência (e opressão da consciência) é sinalizada na epígrafe, tirada da peça shakespeariana “Hamlet”, “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, / Que aquelas sonhadas em sua filosofia.” (“There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy.” )

Temos um cenário na Europa Central, nos altos Alpes (aliás, o Autor estava na Suiça, em 1816), onde o frio adentra o coração do protagonista. Para Manfred, 'saber é sofrer' e a punição é conhecer a verdade, degustar da Árvore do Conhecimento (Tree of Knowledge), pois a filosofia e a Ciência tornam-se tortura.

Igual a Fausto, aqui Manfred é um mago a invocar Espíritos, que são Agentes da Narureza, 'forças elementares', o ar, os montanhas, as águas, forças da terra, os ventos, as estrelas. Aos Espíritos, Manfred suplica por esquecimento (forgetfulness, oblivion), e estes respondem com um 'poema dentro do poema', um Encantamento (Incantation), em sete estrofes de dez versos, com força expressiva e riqueza lírica, as vozes espectrais condenam o mago,

Though thy slumber may be deep,
Yet thy spirit shall not sleep;
.
(“Apesar de teu sono ser profundo, / Ainda assim teu espírito não deve dormir;”)

É impossível aos Espíritos fazerem com que o Esquecer desça sobre Manfred, condenado a carregar seu passdo, “ Compelimos-te / Ti mesmo a ser teu próprio inferno!” (“I call upon thee! and compel / Thyself to be thy proper Hell!”)

Por que? Devido a rebeldia de Manfred, que faz com que ele seja da irmandade de Cain ('brotherhood of Cain') – outro protagonista importante para o Poeta. Então Manfred vai tentar se matar, vai pular do alto da escarpa na montanha – mas é salvo por um caçador,

Manfred:
Adeus, ó céus abertos!
Não olhem reprovadores sobre mim -
Não vos destinais a mim- Terra!
receba estes átomos!
.
Caçador:
Espere, louco! - apesar de cansado
de tua vida,
Não manche nossos vales puros com o
teu sangue culpado.
Venha comigo – não vou te soltar.
.
[Manfred]
-Farewell, ye opening heavens!
Look not upon me thus reproachfully--
Ye were not meant for me-- Earth! take these atoms!
[Chamois Hunter]
Hold, madman!-- though aweary of thy life,
Stain not our pure vales with thy guilty blood!
Away with me-- I will not quit my hold.

Mas – com ou sem sem caçador para salvá-lo – Manfred não pode morrer. É tal um vampiro a carregar a culpa de seu passado, pois não vai esquecê-lo. Sabemos do drama quando Manfred descreve sua aflição ao corajoso caçador. Os remorsos de Manfred fazem com que o fardo do tempo seja redobrado. As lembranças pesam – algo de muito cruel e trágico é o que este homem presenciou ou praticou!

Contudo, Manfred somente revelará seus infortúnios que sobrecarregam o seu passado quando, ao prosseguir suas andanças, ele encontrará (ou invocará) a Bruxa dos Alpes. Diante da Aparição ele o abre o coração – ao pedir não poderes, mas o mesmo, e sabe que em vão, o alívio da tortura da lembrança.

A confissão de Manfred lembra a daquele poema “Alone” de Edgar Allan Poe (escrito trinta anos depois) com a personagem sempre mergulhada em solidão.

[... ] From my youth upwards
My spirit walk'd not with the souls of men,
Nor look'd upon the earth with human eyes;
The thirst of their ambition was not mine;
The aim of their existence was not mine;
My joys, my griefs, my passions, and my powers,
Made me a stranger; [...]
.
(“Desde a minha juventude / Meu espírito não seguiu com os demais, / Nem olhou sobre a terra com olhos humanos; / A sede de ambição deles não era a minha, / O propósito das existências deles não era o meu; / Minhas alegrias, aflições,paixões, potências / Fizaram-me um estranho;” LdeM)
O jovem Manfred preferia a Natureza, as altas montanhas, os rios. Ou seja, a vida bucólica. Depois, a vida de estudos, a busca do conhecimento (aqui a clara semelhança com Fausto). Até que aparece a mulher amada – bela, suave, igualmente a buscar conhecimentos – mas o amor não traz benefícios, ao contrário, o amor acaba por destruir a amada. Sem humildade para aceitar as próprias falhas, o amor dele abafa o amor dela. E a solidão agora nem é a solidão – mas íntima companhia com a Fúrias – todo o saber é inútil diante do remorso, do desespero.

A Bruxa resolve ajudar o Mago, mas ela exige a mais rigorosa obediência. O Rebelde não é submisso, sua decisão é Non serviam (não servir). As cenas III e IV são povoadas de espíritos e entidades na antecâmara do Gênio do Mal Arimã. Os espíritos reverenciam o Gênio do Mal, quando Manfred se aproxima, mas não se ajoelha. Manfred deseja a invocação do Espectro da Amada – chamada Astarte [nome de deidade semita]. O cenário é de fantasmagoria e alegoria, onde o efeito vale mais que o bom senso. (Partes do Faust I e II, de Goethe, têm igualmente exageros de fantasmagoria)

No entanto, o espectro de Astarte conserva-se em silêncio, enquanto Manfred se entrega a uma crise de masoquismo, torturando-se. Mas a fantasmagórica Amada, esvanecendo-se, diz que no dia seguinte finda-se a vida terrestre do atormentado, “Manfred! Amanhã finda tuas aflições terrestres. Adeus!” E ele não sabe se foi perdoado...

No Ato III, Manfred encara o fim iminente, a tragédia anunciada. Há uma 'calma inexplicável' – onde toda filosofia é inútil. Mas aparece uma visita: um Abade. O religioso preocupa-se com a 'salvação da alma' do angustiado nobre. Boatos correm sobre as feitiçarias do mago. Manfred não se submete aos 'consolos' religiosos. Por mais que o Abade insista.

Há uma cena patética ao estilo do final do Faust II – ainda nem publicado, o que ocorreu após a morte de Goethe em 1832 – onde as forças do Bem e as forças do Mal disputam a alma do 'filho da terra'. É onde a 'força alegórica' do Barroco invade a exaltação romântica. E Manfred morre finalmente – acompanhado pelo desolado abade.
Estas temáticas barrocas – isto é, religiosas, - estão presentes ainda mais radicalmente em “Cain”, onde o mito bíblico (de origem semita) é relido com uma audácia de herege. Trata-se de um poema dramático, em três Atos, datado de 1821, e dedicado a Sir Walter Scott.

Voltamos ao cenário do Gênese, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso (jardim do Éden). Agora o primeiro casal constituiu família. Seus filhos Caim, Abel, Ada, Zila oferecem igualmente sacrifício ao Criador. Todos fazem suas preces bajuladoras – exceto Caim. “Por que eu deveria falar?” Caim nada tem a pedir, e nada a agradecer.

Adão: Mas não vives?
Caim: Não devo morrer?

Caim pensa que se os pais comeram do fruto da Árvore do conhecimento (do bem e do Mal) deviam ter comido também o da Árvore da Vida. Para Adão, isto é blasfêmia!

Adão: Ó meu filho, / Não blasfeme: estas são as palavras da serpente.

Mas para Caim, a serpente disse apenas a verdade, pois “conhecimento é bom, e vida é boa; como podem ser maus?”

Eva reconhece as próprias palavras na fala do filho Caim. Ela se arrependeu – mas teme que o filho repita o pecado. Caim aqui é um livre-pensador. Duvida, ironiza, polemiza. Não segue a 'moral de rebanho'. Caim prefere a solidão – nem sua irmã Ada é companhia desejável. (Aqui uma névoa de incesto: com que os filhos de Adão e Eva se casam? Com as irmãs...) Abel aqui é o mais 'carola' de todos – o mais beato.

Caim não aceita que o pecado dos pais seja transmitido aos filhos.

What had I done in this?—I was unborn: I sought not to be born; nor love the state To which that birth has brought me. Why did he Yield to the Serpent and the woman? or Yielding—why suffer?
(“Que tenho a ver com isso? Nem nascera: / Nem pedi p'ra nascer; nem amo a condição / A qual o nascer me trouxe. Por que ele [Adão] / Se rendeu à serpente e a mulher? Ou / Rendendo-se, por que sofrer?” (Ato I, Cena I)

Vamos abordar aqui o mito hebraico do Jardim do Éden em relação com a mitologia grega (Caim é uma espécie de Prometeu a desafiar os Deuses)

Enquanto Caim pensa, outra personagem adentra (e atenta). É o anjo decaído, o próprio Lúcifer – que aqui parece mais Iago tentando o pobre Othelo. E – numa certa leitura – Lúcifer não é Satanás. Expliquemos.

Para os Luciferianos, o anjo Lúcifer é tal qual um Prometeu, que vem trazer Luz e Liberdade aos Homens – não é, portanto, inimigo dos Homens, tal qual o Satanás da Bíblia – e de John Milton, em “Paraíso Perdido” (Paradise Lost, 1667 ). Lúcifer, então, era o 'bom', enquanto Deus era o Tirano, o caprichoso Criador que condena a Humanidade e afoga as criaturas, e bombardeia as cidades (vide Sodoma e Gomorra...)

Para o Satanista, o anjo mau, Satanás, não é mais Lúcifer. Satanás odeia Deus, e as criatuas de Deus, os Homens, inclusive. Assim, adorar Satanás é adorar o Mal pelo próprio mal. Um Satanista é um adorador do próprio inimigo? Assim, de certa forma, o Satanismo é ainda baseado no Cristianismo. Enquanto o Luciferianismo é mais complexo, filosófico. Tem raízes cabalísticas e gnósticas. Assim como Prometeu desafiou Zeus, ao dar o fogo aos Homens – Lúcifer desafia Javé, ao tentar a Mulher para cobiçar a Consciência (do Bem e do Mal).

Pois bem, aqui Lúcifer pode conhecer os pensamentos (em outra tradição, o anjo decaído não pode ler os pensamentos, por isso muitos cristãos preferem não orar em voz alta, resguardando-se em oração silenciosa...) Para Lúcifer, os pensamentos são provenientes da 'parte imortal' – assim, os argumentos do Anjo, agora Demônio, são para atrair a confiança do Humano, que logo aceita ter algo de 'imortal' – não apenas 'tentar', mas 'revelar'. (Interessante este aspecto no 'Satã' Settembrini, o pedagogo que 'tenta' Hans Castorp, em “A Montanha Mágica”, 1924, de Thomas Mann)

Lúcifer não fala em 'morte', mas que Caim 'deve viver'. Viver além, em espírito. Não exatamente feliz, mas eterno. Quem é Lúcifer? Ele mesmo diz, “Alguém que desejou ser o que te fez, e / Que não teria te feito o que tu és.” (“One who aspired to be what made thee, and /Would not have made thee what thou art.”)

Mas o Demônio resigna-se com a vitória do Criador, “Ele venceu; deixe-O reinar!” (“He conquer'd; let him reign!”) Aqui a Rebeldia – e a Liberdade – é coisa do diabo! Nada mais cristão, claro! Afinal, o Cristianismo prega a obediência e a resignação. Assim, ser livre (igual ao Sr. Settembrini, na obra de T. Mann) é ofensa à fé. (E não admira que muitos Iluministas tenham sido 'Luciferianos' quando da luta liberal contra a Monarquia Absolutista e contra o Clero, entre os séculos 18 e 19)

O Demônio é assim porque foi um 'espírito' que ousou encarar o Criador. Diz Lúcifer, “Almas que ousaram usar a imortalidade – / Almas que ousaram olhar o tirano Onipotente / em Sua face eterna, e dizer-lhe que / O Seu Mal não é bom;” (“Souls who dare use their immortality— / Souls who dare look the Omnipotent tyrant in / His everlasting face, and tell him that / His evil is not good!”)

Como pode surgir o Mal no domínio do Bem? Como um Ser perfeito pode permitir a imperfeição? Deus é um Criador todo-poderoso e infeliz, “Deixe-o sentar-se em seu vasto e solitário trono, / criando mundos, a fazer a eternidade / menos pesada à Sua imensa existência / e imparticipada solidão; / Deixe-o povoar orbe após orbe: ele está sozinho. / Indefinido, indissolúvel tirano;”
(“But let him / Sit on his vast and solitary throne— / Creating worlds, to make eternity / Less burthensome to his immense existence / And unparticipated solitude; / Let him crowd orb on orb: he is alone / Indefinite, Indissoluble Tyrant;”)

Assim, Anjos (ou Demônios) e Humanos se assemelham na parte espiritual : Anjos só Espíritos, enquanto Humanos são Espíritos dentro de Corpos feitos de barro, e que voltarão ao barro.

Antes Caim não encontrara alguém que conversasse francamente com ele – alguém que simpatizasse com suas dúvidas e angústias. Lúcifer prefere conversar do que 'tentar' – como ele fez no papel de serpente, ao aproximar-se de Eva, no Paraíso, “eu não tento alguém, / Exceto com a verdade: não era a árvore , a árvore / Do Conhecimento? E não era a árvore da Vida / Ainda frutífera?” (“I tempt none, / Save with the truth: was not the Tree, the Tree / Of Knowledge? and was not the Tree of Life / Still fruitful?”)

Claro que há muita Teologia neste drama em versos. Muito fatalismo, calvinismo, livre-arbítrio, condenação eterna. E não há assunto mais entediante do que Metafísica – e nada mais metafísico que a Teologia. (como se fosse possível às Criaturas 'estudar' o Criador, ou o imperfeito 'teorizar' sobre o Perfeito! É muita imaginação ou muita pretensão!)

Em resumo: por que Caim mata o irmão Abel? No diálogo com Lúcifer, aquelas ideias mais recônditas -e heréticas! - de Caim são reveladas. “Pensamentos inexpressados / povoam a arder em meu peito” (“Thoughts unspeakable crowd in my breast to burning;”) Parece ser a consciência de que Deus é tanto Criador quanto Destruidor

Lúcifer: O Criador – chame-o
Com o nome que desejares: ele cria, porém
para destruir.

A imortalidade é um atrativo para Caim – que teme a Morte. É um atrativo para as 'ovelhas' dos religiosos. A 'vida eterna' enquanto um 'consolo'. (Para outros, é justamente o contrário: a Morte é o consolo. Nada de Céu, ou Inferno, ou Deus, ou Julgamento; mas tão-somente a Noite eterna, o Nada.) Já o tal Lúcifer nada sabe sobre a morte, “Como eu não conheço a morte, /Não posso responder.” (“As I know not death, / I cannot answer.”) Para Caim, temer a morte é “temer o que eu não conheço” (“fear I know not what!”)

Tendo atraído Caim, agora Lúcifer quer ser adorado (“Deves inclinar-te e adorar-me – teu Senhor”) Mas se Caim não reverenciou o Deus Todo-Poderoso, por que deveria se ajoelhar perante um anjo Decaído? Mas Lúcifer admira este Humano que não reverencia a outros. Afinal , é um fiel da máxima 'non serviam'. Um Rebelde não adora nem Deus nem diabo. “És meu adorador: não adorando-O / és meu do mesmo jeito.” (“Thou art my worshipper: not worshipping / Him makes thee mine the same.”)

Ou seja, se o sujeito não acende uma vela para Deus, está torcendo para o diabo. Tudo o que o padre esbraveja na igreja, “Quem não está junto de Deus, está nas garras do diabo!” Caim precisa escolher entre seguir Lúcifer ou se reunir aos irmãos para o próximo sacrifício. Lúcifer trata logo de separar Caim e sua amada irmã Ada, sempre desconfiada diante do Anjo de Luz, que insiste que a serpente traiu a mulher, Eva, com a Verdade: o fruto traz conhecimento, consciência. E a consciência traz o sofrer.

O Autor seguramente 'toma liberdades' com o texto bíblico, ao introduzir esta paixão entre irmão e irmã – traços biográficos?, é de se perguntar. Mas trata-se de uma alegoria, e o mito religioso sofre uma 'apropriação' autoral – e os Românticos não primavam pelos Cânones, mas pela originalidade, pela re-criação do que era considerado clássico.

O tal Lúcifer não hesita em apontar que o que agora não é pecado – o amor entre irmãos – em breve será – trata-se do 'tabu do incesto', no sentido de desviar o impulso sexual para fora da família e/ou da clã. Ada não entende um pecado que não seja 'pecado em si mesmo'. Como pode algo hoje ser 'certo' e amanhã ser 'errado'. Pecado é pecado, e virtude é virtude. (É que a Humanidade ainda não tinha inventado a História, e a História não era objeto do Historicismo...)

Semelhantes alegoria percebemos no romance “O Fauno de Mármore” do autor norte-americano Hawthorne, onde o mito da Queda do Homem é encenado, onde o pecado pode unir os cúmplices numa paixão, onde a virtude não aceita a 'coexistência pacífica' com o Pecado. (Esta obra de Hawthorne será assunto de ensaio próximo)

Ao identificar a Onipotência com a tirania, e a adoração com a bajulação, Lúcifer acaba por embaralhar os valores – algo de iconoclasta aqui! - o que ofende a humana Ada, sempre virtuosa (“Onipotência deve ser completa bondade”, “Omnipotence / Must be all goodness”) e que o tal Anjo de Luz não é exatamente 'abençoado'. Ao que o tal responde, “Se ser abençoado / consiste em ser escravo – não”, onde o argumento é basicamente: ser abençoado é 'ser cooptado' pela Tirania.

A perda dos laços de identificação com a família, e os laços amorosos com a irmã-esposa Ada, enfim, a revelação da completa solidão – ter consciência, saber é não criar laço afetivo. Saber é não amar. Quem tudo sabe há-de amar os ignorantes? (E lembramos o insulto do Cristo crucificado: “Perdoai-vos, pois não sabem o que fazem” (!)) Caim não escolhe o amor – e segue o Anjo Decaído. (Para Ada, a solidão é até pecado. Não se pode ser feliz ao viver sozinho. Ada é o tipo 'boa mãe de família'...)

No Ato II, uma viagem astral – outros mundo, outras alegorias. Eis aqui um Byron metafísico. Vários mundos, vários pecados, várias redenções, várias condenações... O desejo do Poeta é transformar o mito hebraico numa verdadeira tragédia grega – e quase conseguiu. Vide o final do Ato III.

O final é aquele que todos conhecemos. O Anjo Decaído não veio melhorar o drama, e sim acelerar o desenlace. O Rebelde Caim torna-se o primeiro homicida – ao golpear violentamente o irmão Abel, junto aos altares de sacrifício. (Caim: Teu Deus adora sangue!) E o sacrificado será o próprio Abel. Consequência que Caim nem mesmo previra – ele se encontra responsável diante da primeira morte, e morte violenta.

[Recentemente, em 2009, o escritor português José Saramago publicou um romance - “Caim” - com essa temática – tão herética quanto aquela do anterior, de 1991, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”]
.
continua...
.
por Leonardo de Magalhaens
.
.

Um comentário:

  1. Greatest and so meaningful article to read,learn and it's really great for everyone!Love this post.It is helpful.I learnt alot.Thanks alot for sharing it.God bless you.Amen.
    World ebook library

    ResponderExcluir