sobre
Lolita (Lolita, 1955)
do
escritor russo-norte-americano Vladimir Nabokov (1899-1977)
(tradução:
Brenno Silveira / 1981)
Quando
se apresenta a figura do narrador-pervertido
p 1
Para
a melhor compreensão desta obra, considerada um clássico, ainda que
polêmico e iconoclasta, é necessário nos atendermos ao papel do
Narrador, aquela voz que diz ou sugere em cada frase, em cada
parágrafo, a falar de si-mesmo e de outros, com palavras suas e
palavras alheias. Quem é este ou esta que narra? O que pretende ao
narrar? Poderia deixar de narrar se assim o desejasse? Esta a narrar
por ser obrigatoriamente necessário e urgente? Pretende desabafar,
revelar, nos emocionar, nos enganar?
No
caso, temos a narração em 1ª pessoa, em profundo tom confessional,
a tentar justificar, até liricamente, seu desejo por jovens
garotas, um pedófilo cinicamente se apropriando de um discurso
literário, se expressando, digamos, literariamente, com todas as
metáforas e metonímias possíveis, com todas as ambiguidades, e não
escrever um tratado psiquiátrico sobre a pedofilia, ou sobre
a hipocrisia crônica de alguns pervertidos.
Segundo
percebemos, nesta ambígua obra Lolita, obra-prima de Nabokov,
o narrador quer se justificar perante os julgadores, “senhoras e
senhores do júri”, mas, além de seus possíveis leitores,
deve enfrentar sua consciência, ora demasiadamente lúcida ora
cinicamente nublada. Aqui o narrador, que se chama Humbert Humbert, é
um europeu, de família próspera e refinada, dada ao glamour
e à cultura, criado na Riviera francesa, que veio morar em terras
norte-americanas, plenas de espírito empreendedor e tabus
conservadores. Sua infância rememorada com ares proustianos é plena
de satisfações, que logo serão perdidas.
Cresci, criança saudável e feliz,
num mundo brilhante de livros ilustrados, areias claras, laranjeiras,
cães amigos, paisagens marinhas e rostos sorridentes. Ao meu redor,
o esplêndido Hotel Mirana girava como uma espécie de universo
privado, um cosmo caiado dentro do universo azul e maior que o
cercava. p. 13
O
cinismo e a auto-consciência do narrador erudito e refinado se
assemelham aos traços característicos de Hannibal Lecter, o
psiquiatra psicopata de O Silêncio dos Inocentes (The
Silence of the Lambs, 1988, de Thomas Harris, EUA, 1940-), capaz
de conciliar um bom-gosto e erudição com seu desejo de consumir
carne humana, o canibal em nossa brilhante civilização de tabus e
repressões.
Com
seus conhecimentos literários (pois desde criança convivia com
obras clássicas como Don Quixote e
Os Miseráveis) ele nomeia seus amores com seres das
Letras, a bela e jovem Annabel, saída dos versos do belo e trágico
poema de Edgar Allan Poe (EUA, 1809-1849), a bela e amada Annabel que
vivia à beira-mar e que morreu jovem, levado para junto dos anjos,
que invejavam tão romântico amor.
poema
Annabel Lee de Poe
Então
quando o narrador conhece Dolores, a Lolita, ele logo se lembra de
Annabel, que ele perdera tão cedo. Uma forma de compensação se
apresenta? Dolores é a renascida Annabel ? Por que este fascínio
com jovens garotas? Por que ele ficou preso no tempo d perda? Não
concluiu seu luto & melancolia? Não é capaz de relacionar-se
com mulheres maduras? São questões de ordem psicológica que
extrapolam o literário, mas que se entrelaçam aqui.
As
descrições de Annabel vão do idealismo ao sensualismo, ela é
desejo corporificado, é um marco de descoberta sexual, a primeira
namorada, jamais esquecida. O ideal romântico de unir corpo e alma é
sempre evocado e sempre frustrado. Há sempre uma separação, sempre
uma perda. Annabel morre muito jovem, sem que o narrador pudesse
satisfazer seu desejo.
Folheio sem cessar estas miseráveis
lembranças e pergunto repetidamente a mim mesmo se foi então, no
brilho daquele verão remoto, que começou a brecha em minha vida –
ou se acaso foi o meu excessivo desejo por aquela criança apenas a
primeira manifestação de uma inerente singularidade? […] estou
convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal,
Lolita começou com Annabel. [p. 17]
A
paixão torrencial, a insatisfação e a perda em tão curto tempo e
tão precoce idade terá gerado um trauma jamais superado e que
resultou neste narrador pedófilo? É o que ele quer que nós, os
leitores, pensemos. “Sei também que o choque causado pela morte
de Annabel consolidou a frustração daquele verão de pesadelo,
fazendo dele um obstáculo permanente a qualquer novo romance durante
todos os frios anos de minha juventude.” [pp. 17-18] ele quer
nos convencer que o germe da pedofilia está na perda da menina amada
- que ele busca obsessivamente em outras meninas.
Sim,
obsessivamente, pois as descrições são carregadas de fanatismo de
um lirismo perturbado, ainda que válido. “Os dias de minha
juventude, quando agora me volto para eles, parecem afastar-se de mim
numa lufada de repetidos fragmentos, como aquelas nevadas matinais de
papel-de-seda usado que um passageiro de trem vê redemoinhar na
esteira do último vagão. “ [p. 20] Assim, como um Proust
atormentado ou um Jean Genet amargurado. Um lirismo que se aproxima
do Decadentismo, uma perversão com tons artísticos de Belle
Èpoque. Conhecedor do tema proustiano e da poética inglesa, ele
emprega uma retórica em eufemismos para o desejo por meninas.
As
meninas por ele são classificadas em ninfetas [nymphets]
e outras. Entre os nove e quatorze anos, as ninfetas são
meninas com sinais de sexualidade precoce. São capazes de atrair e
enfeitiçar o homem maduro. Não basta a beleza para ser ninfeta, mas
um charme, um além-do-sensual, algo que só um especialista (um
pedófilo?) identificaria. A ninfeta está além do belo e do
gracioso, é um espécime raro. Para reconhecer uma ninfeta “é
preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita
melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama
supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha”
[p. 22] pois muitas vezes a ninfeta não tem consciência do feitiço
de mulher que há em seu corpo de menina. Ou seja, se há atração é
culpa (mesmo inconsciente) da menina. (Assim é a vítima que atrai
o ataque do pedófilo?)
Para
o narrador o fenômeno da ninfeta é melhor notado pelo
distanciamento temporal, pois quanto maior a diferença de idade
entre a menina e o homem maduro, maior a atração. Se há o desejo,
a insatisfação seria, antes, culpa da sociedade que não permite o
contato, pois “a ferida permaneceu em meio de uma civilização
que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma menina de
dezesseis, mas não uma menina de doze.” [p. 23] Se há um
desejo rumo a pedofilia, como pode a sociedade interferir? Criar
maior repressão? Mas a repressão não aumenta o desejo? Afinal, o
que é proibido é mais fascinante.
A
tormenta íntima do narrador é explicitada: ele se relaciona com
mulheres maduras, mas superficialmente, pois seu real desejo é por
meninas, bem mais jovens, de puberdade precoce. Ele anda pelo mundo
de ninfetas a serem encontradas e se esforça para ocultar sua
perversão. Ele se sente estrangulado pelos tabus, tão
denunciados pela psicanálise, pois ele deseja as ninfetas, mas elas
são proibidas. E há casos de jovens prostitutas, de sexualidade
precoce a despertar paixões, vide um Dante louco por uma menina
Beatrice, então com apenas nove anos. E, mais, tribos
não-civilizadas onde “velhos de oitenta anos copulam com meninas
de oito anos e ninguém se importa”, pois lá não há semelhante
tabu.
Todo
este discurso visa dar uma racionalização ao seu delírio pedófilo.
Ele espera que a justificação encubra seu crime, que seja
absolvido. Mas é tudo discurso, pois se fundamenta em falácias
nascidas do desejo. É um louco a justificar a própria loucura –
sem ter acesso à razão. Humbert diz se esforçar para ser bom, mas
na verdade ele apenas usa uma máscara no mundo social. Seu íntimo é
iconoclasta e pervertido. Sem moralismos: ele é uma ambiguidade
perigosa a transitar pelas ruas. Parece mesmo cínico quando diz que
“tinha o máximo respeito pelas crianças comuns, com sua pureza
e vulnerabilidade, e em circunstância alguma teria interferido na
inocência de uma criança, se houvesse o mínimo risco de se meter
em barulho.” [p. 25] Ele se desvia do crime não por detestar o
crime, mas temendo um escândalo. Tem aparência de bondade, pois
assim ele evita a sanção social. É um hipócrita.
Um
hipócrita bem-letrado. Pois tratamos aqui de qualidade literária,
não de julgar moralmente o narrador. Sem a qualidade literária o
livro seria um desfilar de desejos e fantasias sexuais, sendo um
texto destinado mais a um especialista psiquiátrico do que a um
crítico literário. Mas a ironia e autoconsciência salvam esta
considerada amostra de libertinagem pedófila ou perversões
confessadas. O que nos interessa seu fascínio por ninfetas? Por que
nos identificaríamos com seus devaneios lúbricos? Em que tais
confissões nos afetariam? As fantasias com belas meninas se perdem
na vulgaridade dos negócios com jovens prostitutas. Daí um passo
até negociar com madames que lucram com o comércio sexual de
adolescentes. Nada mais a dizer.
É
um prólogo que mais entedia do que escandaliza. Ele tenta substituir
a amada Annabel por outras jovens amantes, mas em vão. É
tragicômica sua perversão. Nada de novo. Depois dos desastres na
Europa – às vésperas de outra Grande Guerra, com a ascensão
nazista – o narrador Humbert resolve se abrigar na nova pátria dos
imigrantes, a terra abençoada pela Estátua da Liberdade. Mas a
cultura norte-americana se mostra mais conservadora do que a
europeia. Ele espera a nossa cumplicidade de leitor para compartilhar
sua vida de insatisfações. Em busca de tédio e sanidade ele até
se aventura a uma expedição pelo Ártico! Trata-se de uma longa
digressão que só consegue deixar o leitor mais intrigado. Pois a
história de Lolita começa mesmo é no capítulo 10 (Parte I).
Tudo
começa quando o intelectual de meia-idade vai ser morador-hóspede
na residência da Sra. Haze, mulher de uns trinta nos e cidadã
comum, que tem uma filha, Dolores, ou Lo, que passa a ser o centro do
mundo do hóspede. A mulher não desperta interesse, mas com a filha
é um fascínio imediato e contínuo. O narrador se entedia, o mundo
é um tédio, mas de súbito a beleza arrebatadora de uma ninfeta
pode trazer a magia de volta!
[…] e, de repente, sem o mínimo
aviso, uma onda de mar, azul, engrossou sob o meu coração: sobre
uma esteira, numa poça de sol, meio despida, ajoelhada e voltando-se
sobre os joelhos para olhar-me através dos óculos, lá estava o meu
amor da Riviera.
Era a mesma criança: os mesmos ombros
frágeis, cor-de-mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os
mesmos cabelos castanho-avermelhados. O mesmo lenço de cabeça,
pintalgado de preto, atado em torno do peito, ocultava de meus olhos
de macaco velho, mas não da névoa de minha lembrança de rapaz, os
seios juvenis que eu acariciara num dia imortal. […] p. 52
O
narrador confessa tudo: seu espanto, sua lembrança resgatada, pelo
delírio de desejo. Nem tem condições de se expressar, quanto mais
de se explicar... “É-me sumamente difícil exprimir com
suficiente ênfase aquele clarão, aquele calafrio, aquele impacto de
apaixonado reconhecimento.” [p. 53] É desse espanto que nasce
sua (des)ventura, pois ser hóspede da Sra. Haze é estar próximo da
Dolores, ou reencarnação da Annabel. “Pouco depois, por certo,
essa nouvelle, essa
Lolita, minha Lolita,
iria eclipsar completamente o seu modelo. Tudo o que desejo ressaltar
é que aquela minha descoberta era uma consequência fatal daquele
'principado junto ao mar' de meu angustiado passado.” [p. 53]
Recomeça o seu martírio constante de desejar e ocultar o desejo.
Para entendermos sua epopeia lúbrica o narrador apresenta seu diário
de pervertido. O que ele viveu e sofreu no 'principado' da bela
ninfeta Dolores, Lo ou Lolita, é agora de domínio público –
para convencer seus juízes. Temos acesso ao seu diário (ele assim o
garante) e passamos a acompanhar todo o drama como bons voyeurs
/ voyeuristas que somos. Para que possa ficar próximo de sua
Lolita o narrador deve ser um cordial hóspede da mãe, a Sra. Haze,
com quem ele precisa trocar frases comuns e pensamentos mumificados,
enquanto todo o seu desejo se volta para a criança que de nada pode
desconfiar.
O
diário não é literatura, certamente, mas está inserido
numa obra literária. É um romance que aceita lirismo e cartas
prosaicas, que se adere a conceitos psiquiátricos e tece meditações
sobre a condição humana. Ele idolatra a menina desejada e ao mesmo
tempo sempre se humilha e se deprecia. Ela é um ninfa, bela e
perfeita, e ele é um fauno, peludo, desajeitado, medonho. “Sou
esguio, ossudo Humbert Humbert de peito cabeludo, sobrancelhas negras
e espessas, sotaque esquisito e uma cloaca de monstros a apodrecer
atrás de seu estúpido sorriso de menino.” [p. 60]
Lolita
passa a ser uma idealização, um contraponto ao hipócrita narrador,
ela personifica o desejo não satisfeito, inalcançável. “E o
mais singular ainda é que ela, esta
Lolita, a minha
Lolita, personificou a antiga lascívia de quem traça estas linhas,
de modo que, antes e acima de tudo, existe apenas... Lolita.”
[p.60] Toda idealização é perigosa, ainda mais em volta de uma
quase adolescente. Para ficar cada vez mais próximo do objeto de
desejo, o Sr. Humbert se aproxima mais da mãe da garota, a Sra.
Haze, a quem ele profundamente despreza.
Mais
desprezível é Humbert a narrar seus golpes de mestres, suas trocas
de máscaras, suas carícias ocultas, seus desejos proibidos.
Enquanto isso ele traça um retrato de uma criança caprichosa,
mimada, voluntariosa, avançada para a idade. Uma sexualidade precoce
é até sugerida. Até mesmo “uma criança moderna”, com
os consumos e vícios de adulto. Quer o narrador que encontremos
certa 'culpa' na vítima? Que Lolita seduzia mesmo sem o saber? Que
ele foi fisgado? Nos filmes os diretores escolheram meninas-moças
para protagonizarem, com gestos sensuais e olhares sedutores. Mas não
seria ajudar a desculpa de que a vítima provoca o
violentador?
O
cinismo derrama-se em cada parágrafo, quando se dirige aos juízes,
aos jurados (“senhores do júri”), aos editores (“eruditos
editores”) ou aos leitores (“erudito leitor” ou
“cultos leitores”), como uma amostra do tom de
superioridade que ele adota quando fala aos normais, aos ordinários,
aos padronizados do senso-comum, pois somente ele está acima, o
pervertido, o sarcástico narrador. Um sujeito lírico, com boas
dosagens de poesia simbolista ou chanson romântica,
Segunda-feira. Manhã chuvosa.
'Ces matins gris si doux...' Meu pijama branco tem lilases
desenhadas nas costas. Sou como uma dessas aranhas estofadas e
pálidas que a gente vê nos velhos jardins. Sentada no meio de uma
teia luminosa, a dar ligeiros puxões neste ou naquele fio. Minha
teia estende-se por toda a casa, enquanto fico à escuta, da cadeira
em que estou sentado, como um feiticeiro ardiloso. Estará Lo, acaso,
em seu quarto? Delicadamente, puxo o fio de seda. Não está. [p. 67]
Tudo
em torno da bela menina torna-se motivo de atenção, seno adoração.
Suas roupas, seus hábitos, os nomes dos colegas de classe. Tal
obsessão, por si só, já caracteriza a doença. O sentido da
existência passa a ser o Outro, o receptáculo do Desejo. E tudo se
move ao redor, como luas em torno do planeta, sem remissão. Não
podendo realizar o ato, ele só nutre fantasias. E ele continua a
esboçar seu quadro de personalidade, sujeito tímido e romântico!
“Apesar de meu aspecto viril, sou terrivelmente tímido. Minha
alma, romântica, fica toda pegajosa e trêmula ante a ideia de
deparar com algum terrível e indecente contratempo.” [p. 72]
Todo
um diário (ou reconstrução de um diário) para concluir rotulando
a menina Lolita como “minha querida pubescente e fogosa”,
quando não 'sarcástica'. É assim que o cínico narrador
Humbert, o condenado, tenta jogar a culpa para cima da vítima. A
menina é que fogosa, falta ele dizer que ela o seduziu! Mas o enredo
se complica, pois o cinismo do narrador vai ao ponto de seduzir a mãe
da menina. Assim, tendo um caso com Sra. Haze ele terá um livre
acesso a sua futura … enteada. Monsieur ou
Herr Humbert é um hóspede que vai se demorar.
Em
jogos disfarçadamente sexuais com a menina, o narrador narra sua
permanência no lar das Haze, mãe e filha. Ele precisa simular
sempre, mesmo quando avança sobre a inocência sedutora da sua
Lolita. Como ele mesmo diz é uma relação oculta, escondida, entre
'a bela e a fera', onde ele sabe bem ser a fera, mas com garras
aveludadas. As descrições de Lolita são carregadas de lirismo
obsessivo, “O implícito sol pulsava nos providos choupos;
estávamos fantástica e divinamente sós; eu a observara, rósea,
empoeirada de sol, além do véu do meu controlado deleite,
inconsciente dele, alheio a ele, e o sol estava em seus lábios, e
seus lábios ainda estavam, ao que parecia, formando as palavras da
cantiga [...]” [pp. 81-82]
O
narrador descreve suas experiências e sabe que fazem parte de seu
sonho “ardente, ignóbil e pecaminoso” ao desejar uma Lolita que
é abstração idealizada de uma Annabel que, enfim, são encarnações
do fenômeno sedutor chamado 'ninfeta'. “O que eu loucamente
possuíra não era ela. Mas minha própria criação, uma outra e
fantasiosa Lolita; sobrepondo-se a ela, envolvendo-a; flutuando entre
mim e ela, sem vontade e sem consciência e, com efeito, sem vida
própria.” [p. 84] Trata-se tudo, em sua perversão, de um
exercício de idealização, sem tocar a real Lolita, personificação
de seu ideal. “A criança nada soube. Eu nada lhe fizera.”
[p. 84] o pedófilo tenta se justificar. Quer possuir a fruta sem
dilacerar a fina casca.
Vez
ou outra, o narrador vem lembrar que está narrando, e que alguém
está lendo. Não apenas os juízes e os jurados, mas nós, bons
leitores. “Como dizem os grandes escritores: 'os leitores que
imaginem', etc. Mas, pensando melhor, acho que bem posso dar um
pontapé no fundilho de suas imaginações.” [p. 88], pois ele
conta com a nossa cumplicidade (ou escândalo!) no ato de prosseguir
a leitura de suas confissões impublicáveis.
Enquanto
isso, quem deseja a atenção do hóspede é a Sra. Haze, que deve
achar o erudito europeu muito sedutor. A mãe de Lolita deseja
manter a criança num acampamento, enquanto pode ficar a sós com o
cavalheiro. A ideia do acampamento não agrada ao narrador,
pois ficará longe da menina (a menina que vai crescer e deixar de
ser uma ninfeta...), “Como poderia dar-me ao luxo de não a ver
durante dois meses de insônia de verão?” e “Dois meses
de beleza, dois meses de ternura, estariam desperdiçados para sempre
e eu nada poderia fazer a respeito.... mas nada, mais
rien.” [p. 89]
Até
uma carta o narrador recebe da Sra. Haze, Charlotte, a declarar seu
amor. O tempo todo em que ele se dedicava a seduzir a menina, ele não
percebia o quanto 'seduzia' inconscientemente a mãe da menina! “Sei
quão reservado o senhor é, quão britânico. Sua reticência
europeia, seu senso de decoro, talvez possam sentir-se chocados pela
ousadia de uma moça americana! O senhor, que oculta os seus
sentimentos mais fortes, deve julgar-me uma idiotazinha despudorada,
por abrir assim o meu pobre e dorido coração.” [p. 92] O que
fará o narrador: fugirá da megera ou ficará próximo da ninfeta? O
que acham que ele fará? Ele se perde em digressões, máscaras,
delírios, “minha narração é bastante confusa”, para
remodelar seus planos, de ficar na casa do Sra. Haze, como um bom e
prestativo marido, a dar carinho a sua bela e caprichosa enteada
Lolita.
Assim,
Humbert se deixara cair nos braços da mãe para melhor seduzir a
filha! Que belo enredo construtivo e demasiadamente humano! Mas a
literatura não pode ser avaliado com variáveis moralistas: o texto
tem um valor qualitativo em si-mesmo. Cinismo, lirismo obsessivo,
drama & ambiguidade : tudo se mistura & condensa. É lírico
e perverso, sobriamente lunático, a menosprezar a mãe e desejar a
filha (ele que agora pode se permitir deixar de insultar a
'pobre Charlotte'), liricamente fanático, ainda que não seja um
poeta, mas um homem a contemplar amargamente seu passado (“sou
um memoralista consciencioso”).
De modo que Humbert, o Íncubo,
sonhava e fazia planos – e o sol vermelho do desejo e a decisão
(as duas coisas que criam um mundo vivo) se erguiam cada vez mais
alto, enquanto que, numa sucessão de balcões, uma sucessão de
libertinos, de taças cintilantes nas mãos, brindava pela felicidade
de noites passadas e futuras. Então, falando figuradamente, parti
minha taça, e ousadamente imaginei (pois que, a essa altura, eu
estava embriagado por tais visões e subestimava a delicadeza de
minha natureza) de que modo poderia, eventualmente, fazer uma
chantagem (não, essa palavra é demasiado forte), manobrar a Haze
adulta no sentido de permitir que eu privasse com a pequena Haze,
ameaçando delicadamente de deserção a Grande Pomba pintada, caso
ela procurasse impedir-me de brincar com a minha enteada legal. Em
suma, diante de tão Surpreendente Proposta, de tão vastas e
variadas perspectivas, me sentia tão indefeso quanto Adão diante da
avant-première de sua remota história oriental, na miragem
de seu pomar de maçãs... [pp. 96-97]
Assim,
logo o hóspede torna-se marido, um homem de princípios para uma
mulher de princípios (pois “fiquei sabendo que ela era uma
mulher de princípios”), e passa a coabitar com a mãe da bela
Lolita, na condição de cidadão e marido, o Sr. Edgar H. Humbert,
fiel cumpridor dos deveres maritais e comunitários. Ele passa por
uma promoção, “de inquilino a amante”, e continua sua
conspiração para desfrutar da ninfeta. Nenhum remorso aqui.
“Prossigamos
com este curioso relato”, diz ele. Sabemos que uma tragédia
poderá acontecer, é até previsível. Afinal, ele foi descoberto,
ele foi preso. Está se defendendo! Mas não convém entrar em
detalhes, pois esta história não vale pela originalidade, por ser
diferente. Mas vale o modo como é narrada, como é analisada por
quem ousa narrar. Por exemplo ao descrever a mãe, se somente o faz
em relação à filha. “Aquele era o alvo ventre dentro do qual
a minha nymphet fora
um pequeno feto recurvo em 1934. Aqueles cabelos cuidadosamente
pintados, tão estéreis para os meus sentidos de tato e olfato,
adquiriam, em certos momentos, à luz do abajur do criado-mudo, se
não a contextura, pelo menos o matiz dos cabelos ondulados de
Lolita.” [p. 103] Ele procura na mãe a figura da filha, para
conseguir desempenhar seu novo papel.
Em
seu tom sabidamente 'proustiano', o narrador relembra sua vida
ao lado de Charlotte Haze, sua 'pobre esposa', como ele mesmo não se
proíbe dizer. “Por mais que me esforce, não consigo dizer quão
gentil, quão comovedora, era a minha pobre esposa.” [p. 104] A
importância de Charlotte é apenas devida a um fato: ser mãe de
Lolita. E o casamento até rejuvenesceu a viúva: “eu, ao casar
com a mãe da criança que amava, houvesse permitido à minha esposa
readquirir, por procuração, abundante juventude.” [p. 105]
Assim, todos se davam bem? Ele reanimava a esposa e usufruía da
filha-enteada?
Não,
tal enredo não pode ter desfecho além do trágico. É máscara
demais, hipocrisia demais. O europeu despreza a vizinhança
conservadora norte-americana, zomba dos hábitos e dramas, menospreza
o provincianismo. Afinal, a Europa é que detém a cultura.
Cultura que a agora Sra. Humbert admira e deseja conhecer melhor,
ciumenta do passado dele. Quantas amantes ele teve? Quão vulgares e
desprezíveis eram? Aqui sinceridade e hipocrisia se misturam, mais
do que se contrastam: trata-se de um teatro. Confessa-se falsidades
de dor ficcional com nobres oratórias. “Nunca em minha vida
confessei tanto ou recebi tantas confissões.” [p. 108]
É
para ficar próximo da Lolita que o Sr. Humbert casou com a Sra.
Humbert, mas descobre que a Sra. Humbert está entre (é obstáculo!)
Humbert e a sua Lolita (pois ela deseja enviar a filha para um
internato!), logo (não podendo ser convencida) a única solução é
ser eliminada! Mas será Humbert um assassino? Um frio e cruel
homicida? Não, ele tem oportunidade mas não é assassino, é um
sujeito inofensivo. Pedófilo, mas inofensivo. Não mataria uma
mosca. E ele não vai esperar muito : o destino cuidará disso, como
veremos adiante.
Ele
sempre quer a cumplicidade do/a leitor/a, em suas confissões, aos
'camaradas', 'meus amigos' que somos nós aqueles & aquelas que
'dão uma espiadinha' na sua vida. Ele que se considera um erudito e
até educador!, sim, um escritor, um poeta lírico. E poetas, segundo
ele, são inofensivos. Ele – um inofensivo. Não será ele quem se
livrará de Charlotte agora Humbert, mas um acidente. Um banal
acidente de subúrbio – a senhora sai de casa e atravessa a rua e
então é atropelada. Mas por que isso?
Antes,
a Sra. Humbert descobre o diário de Humbert – aquele trancado na
mesinha do quarto-escritório. Após ler o diário do marido
Charlotte percebe enfim que ele é um farsante e logo o expulsa,
enquanto escreve febrilmente algumas cartas. Ele recupera o diário e
prepara um drink para ambos. Em seguida, ao telefone, um
vizinho avisa que a Sra. Humbert foi atropelada! Simples assim.
Humbert se livra de ser expulso e denunciado, quando seria afastado
da menina Lolita.
Então
continua a farsa (e o romance). Pois Humbert finge um luto, “senhoras
e senhores do júri – chorei.”, menciona um affair com
Charlotte nos idos de 1934, de modo que os amigos acreditem que ele é
o verdadeiro pai de Dolores/Lolita. Cumpre o ritual, de
permite mostrar tristeza e abandono, e abusa de metalinguagem,
Não sei se, nestas trágicas notas,
ressaltei suficientemente a particular atração que o agradável
aspecto físico que o autor destas notas – pseudocéltico,
atraentemente simiesco, juvenilmente másculo – exercia sobre as
mulheres de todas as idades e condições sociais. Claro que tais
declarações, feitas na primeira pessoa, talvez possam parecer
ridículas. Mas, de quando em quando, devo recordar ao leitor a minha
aparência, do mesmo modo que um novelista profissional, que atribui
a uma sua personagem ou a um cão algum maneirismo, tem de continuar
a apresentar esse cão ou o dito maneirismo todas as vezes que a
personagem surge no decorrer do livro. Talvez haja mais coisas a
dizer-se a respeito, no presente caso. Para que minha história possa
ser bem compreendida, é preciso ter-se em mente o meu sombrio e
atraente aspecto. [p. 141]
Tal
aspecto sombrio e sedutor do “novíssimo cidadão americano de
obscura origem europeia” continua a fazer vítimas. Ele
prossegue em seus planos e resolve buscar a Dolores / Lo / Lolita no
acampamento de férias. Entre digressões e telefonemas ele degusta
previamente o reencontro com a menina, “oh, Lolita, você é a
minha namorada, como Virgínia o era de Poe e Beatriz de Dante.”
[p. 145] ou “eu podia, naturalmente, evocar a figura de Lolita
com uma nitidez de alucinação” [p. 146] pois ele está
sentimental, até piegas, “que cômico, desajeitado, hesitante
Príncipe”, sim,
“oh, permitam-me que seja, por esta vez, sentimental ! Estou tão
cansado de ser cínico!” [p. 148]
continua …
dez/13
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com.br/
NABOKOV,
Vladimir. Lolita. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril
Cultural, 1981
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