sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

sobre Lolita [1955] de Vladimir Nabokov - p 1





sobre Lolita (Lolita, 1955)
do escritor russo-norte-americano Vladimir Nabokov (1899-1977)
(tradução: Brenno Silveira / 1981)


Quando se apresenta a figura do narrador-pervertido

p 1


Para a melhor compreensão desta obra, considerada um clássico, ainda que polêmico e iconoclasta, é necessário nos atendermos ao papel do Narrador, aquela voz que diz ou sugere em cada frase, em cada parágrafo, a falar de si-mesmo e de outros, com palavras suas e palavras alheias. Quem é este ou esta que narra? O que pretende ao narrar? Poderia deixar de narrar se assim o desejasse? Esta a narrar por ser obrigatoriamente necessário e urgente? Pretende desabafar, revelar, nos emocionar, nos enganar?

No caso, temos a narração em 1ª pessoa, em profundo tom confessional, a tentar justificar, até liricamente, seu desejo por jovens garotas, um pedófilo cinicamente se apropriando de um discurso literário, se expressando, digamos, literariamente, com todas as metáforas e metonímias possíveis, com todas as ambiguidades, e não escrever um tratado psiquiátrico sobre a pedofilia, ou sobre a hipocrisia crônica de alguns pervertidos.


Segundo percebemos, nesta ambígua obra Lolita, obra-prima de Nabokov, o narrador quer se justificar perante os julgadores, “senhoras e senhores do júri”, mas, além de seus possíveis leitores, deve enfrentar sua consciência, ora demasiadamente lúcida ora cinicamente nublada. Aqui o narrador, que se chama Humbert Humbert, é um europeu, de família próspera e refinada, dada ao glamour e à cultura, criado na Riviera francesa, que veio morar em terras norte-americanas, plenas de espírito empreendedor e tabus conservadores. Sua infância rememorada com ares proustianos é plena de satisfações, que logo serão perdidas.

Cresci, criança saudável e feliz, num mundo brilhante de livros ilustrados, areias claras, laranjeiras, cães amigos, paisagens marinhas e rostos sorridentes. Ao meu redor, o esplêndido Hotel Mirana girava como uma espécie de universo privado, um cosmo caiado dentro do universo azul e maior que o cercava. p. 13

O cinismo e a auto-consciência do narrador erudito e refinado se assemelham aos traços característicos de Hannibal Lecter, o psiquiatra psicopata de O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1988, de Thomas Harris, EUA, 1940-), capaz de conciliar um bom-gosto e erudição com seu desejo de consumir carne humana, o canibal em nossa brilhante civilização de tabus e repressões.

Com seus conhecimentos literários (pois desde criança convivia com obras clássicas como Don Quixote e Os Miseráveis) ele nomeia seus amores com seres das Letras, a bela e jovem Annabel, saída dos versos do belo e trágico poema de Edgar Allan Poe (EUA, 1809-1849), a bela e amada Annabel que vivia à beira-mar e que morreu jovem, levado para junto dos anjos, que invejavam tão romântico amor.

poema Annabel Lee de Poe



Então quando o narrador conhece Dolores, a Lolita, ele logo se lembra de Annabel, que ele perdera tão cedo. Uma forma de compensação se apresenta? Dolores é a renascida Annabel ? Por que este fascínio com jovens garotas? Por que ele ficou preso no tempo d perda? Não concluiu seu luto & melancolia? Não é capaz de relacionar-se com mulheres maduras? São questões de ordem psicológica que extrapolam o literário, mas que se entrelaçam aqui.

As descrições de Annabel vão do idealismo ao sensualismo, ela é desejo corporificado, é um marco de descoberta sexual, a primeira namorada, jamais esquecida. O ideal romântico de unir corpo e alma é sempre evocado e sempre frustrado. Há sempre uma separação, sempre uma perda. Annabel morre muito jovem, sem que o narrador pudesse satisfazer seu desejo.

Folheio sem cessar estas miseráveis lembranças e pergunto repetidamente a mim mesmo se foi então, no brilho daquele verão remoto, que começou a brecha em minha vida – ou se acaso foi o meu excessivo desejo por aquela criança apenas a primeira manifestação de uma inerente singularidade? […] estou convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita começou com Annabel. [p. 17]


A paixão torrencial, a insatisfação e a perda em tão curto tempo e tão precoce idade terá gerado um trauma jamais superado e que resultou neste narrador pedófilo? É o que ele quer que nós, os leitores, pensemos. “Sei também que o choque causado pela morte de Annabel consolidou a frustração daquele verão de pesadelo, fazendo dele um obstáculo permanente a qualquer novo romance durante todos os frios anos de minha juventude.” [pp. 17-18] ele quer nos convencer que o germe da pedofilia está na perda da menina amada - que ele busca obsessivamente em outras meninas.

Sim, obsessivamente, pois as descrições são carregadas de fanatismo de um lirismo perturbado, ainda que válido. “Os dias de minha juventude, quando agora me volto para eles, parecem afastar-se de mim numa lufada de repetidos fragmentos, como aquelas nevadas matinais de papel-de-seda usado que um passageiro de trem vê redemoinhar na esteira do último vagão. “ [p. 20] Assim, como um Proust atormentado ou um Jean Genet amargurado. Um lirismo que se aproxima do Decadentismo, uma perversão com tons artísticos de Belle Èpoque. Conhecedor do tema proustiano e da poética inglesa, ele emprega uma retórica em eufemismos para o desejo por meninas.

As meninas por ele são classificadas em ninfetas [nymphets] e outras. Entre os nove e quatorze anos, as ninfetas são meninas com sinais de sexualidade precoce. São capazes de atrair e enfeitiçar o homem maduro. Não basta a beleza para ser ninfeta, mas um charme, um além-do-sensual, algo que só um especialista (um pedófilo?) identificaria. A ninfeta está além do belo e do gracioso, é um espécime raro. Para reconhecer uma ninfeta “é preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha” [p. 22] pois muitas vezes a ninfeta não tem consciência do feitiço de mulher que há em seu corpo de menina. Ou seja, se há atração é culpa (mesmo inconsciente) da menina. (Assim é a vítima que atrai o ataque do pedófilo?)


Para o narrador o fenômeno da ninfeta é melhor notado pelo distanciamento temporal, pois quanto maior a diferença de idade entre a menina e o homem maduro, maior a atração. Se há o desejo, a insatisfação seria, antes, culpa da sociedade que não permite o contato, pois “a ferida permaneceu em meio de uma civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma menina de dezesseis, mas não uma menina de doze.” [p. 23] Se há um desejo rumo a pedofilia, como pode a sociedade interferir? Criar maior repressão? Mas a repressão não aumenta o desejo? Afinal, o que é proibido é mais fascinante.

A tormenta íntima do narrador é explicitada: ele se relaciona com mulheres maduras, mas superficialmente, pois seu real desejo é por meninas, bem mais jovens, de puberdade precoce. Ele anda pelo mundo de ninfetas a serem encontradas e se esforça para ocultar sua perversão. Ele se sente estrangulado pelos tabus, tão denunciados pela psicanálise, pois ele deseja as ninfetas, mas elas são proibidas. E há casos de jovens prostitutas, de sexualidade precoce a despertar paixões, vide um Dante louco por uma menina Beatrice, então com apenas nove anos. E, mais, tribos não-civilizadas onde “velhos de oitenta anos copulam com meninas de oito anos e ninguém se importa”, pois lá não há semelhante tabu.

Todo este discurso visa dar uma racionalização ao seu delírio pedófilo. Ele espera que a justificação encubra seu crime, que seja absolvido. Mas é tudo discurso, pois se fundamenta em falácias nascidas do desejo. É um louco a justificar a própria loucura – sem ter acesso à razão. Humbert diz se esforçar para ser bom, mas na verdade ele apenas usa uma máscara no mundo social. Seu íntimo é iconoclasta e pervertido. Sem moralismos: ele é uma ambiguidade perigosa a transitar pelas ruas. Parece mesmo cínico quando diz que “tinha o máximo respeito pelas crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade, e em circunstância alguma teria interferido na inocência de uma criança, se houvesse o mínimo risco de se meter em barulho.” [p. 25] Ele se desvia do crime não por detestar o crime, mas temendo um escândalo. Tem aparência de bondade, pois assim ele evita a sanção social. É um hipócrita.


Um hipócrita bem-letrado. Pois tratamos aqui de qualidade literária, não de julgar moralmente o narrador. Sem a qualidade literária o livro seria um desfilar de desejos e fantasias sexuais, sendo um texto destinado mais a um especialista psiquiátrico do que a um crítico literário. Mas a ironia e autoconsciência salvam esta considerada amostra de libertinagem pedófila ou perversões confessadas. O que nos interessa seu fascínio por ninfetas? Por que nos identificaríamos com seus devaneios lúbricos? Em que tais confissões nos afetariam? As fantasias com belas meninas se perdem na vulgaridade dos negócios com jovens prostitutas. Daí um passo até negociar com madames que lucram com o comércio sexual de adolescentes. Nada mais a dizer.

É um prólogo que mais entedia do que escandaliza. Ele tenta substituir a amada Annabel por outras jovens amantes, mas em vão. É tragicômica sua perversão. Nada de novo. Depois dos desastres na Europa – às vésperas de outra Grande Guerra, com a ascensão nazista – o narrador Humbert resolve se abrigar na nova pátria dos imigrantes, a terra abençoada pela Estátua da Liberdade. Mas a cultura norte-americana se mostra mais conservadora do que a europeia. Ele espera a nossa cumplicidade de leitor para compartilhar sua vida de insatisfações. Em busca de tédio e sanidade ele até se aventura a uma expedição pelo Ártico! Trata-se de uma longa digressão que só consegue deixar o leitor mais intrigado. Pois a história de Lolita começa mesmo é no capítulo 10 (Parte I).

Tudo começa quando o intelectual de meia-idade vai ser morador-hóspede na residência da Sra. Haze, mulher de uns trinta nos e cidadã comum, que tem uma filha, Dolores, ou Lo, que passa a ser o centro do mundo do hóspede. A mulher não desperta interesse, mas com a filha é um fascínio imediato e contínuo. O narrador se entedia, o mundo é um tédio, mas de súbito a beleza arrebatadora de uma ninfeta pode trazer a magia de volta!

[…] e, de repente, sem o mínimo aviso, uma onda de mar, azul, engrossou sob o meu coração: sobre uma esteira, numa poça de sol, meio despida, ajoelhada e voltando-se sobre os joelhos para olhar-me através dos óculos, lá estava o meu amor da Riviera.

Era a mesma criança: os mesmos ombros frágeis, cor-de-mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanho-avermelhados. O mesmo lenço de cabeça, pintalgado de preto, atado em torno do peito, ocultava de meus olhos de macaco velho, mas não da névoa de minha lembrança de rapaz, os seios juvenis que eu acariciara num dia imortal. […] p. 52

O narrador confessa tudo: seu espanto, sua lembrança resgatada, pelo delírio de desejo. Nem tem condições de se expressar, quanto mais de se explicar... “É-me sumamente difícil exprimir com suficiente ênfase aquele clarão, aquele calafrio, aquele impacto de apaixonado reconhecimento.” [p. 53] É desse espanto que nasce sua (des)ventura, pois ser hóspede da Sra. Haze é estar próximo da Dolores, ou reencarnação da Annabel. “Pouco depois, por certo, essa nouvelle, essa Lolita, minha Lolita, iria eclipsar completamente o seu modelo. Tudo o que desejo ressaltar é que aquela minha descoberta era uma consequência fatal daquele 'principado junto ao mar' de meu angustiado passado.” [p. 53] Recomeça o seu martírio constante de desejar e ocultar o desejo.

Para entendermos sua epopeia lúbrica o narrador apresenta seu diário de pervertido. O que ele viveu e sofreu no 'principado' da bela ninfeta Dolores, Lo ou Lolita, é agora de domínio público – para convencer seus juízes. Temos acesso ao seu diário (ele assim o garante) e passamos a acompanhar todo o drama como bons voyeurs / voyeuristas que somos. Para que possa ficar próximo de sua Lolita o narrador deve ser um cordial hóspede da mãe, a Sra. Haze, com quem ele precisa trocar frases comuns e pensamentos mumificados, enquanto todo o seu desejo se volta para a criança que de nada pode desconfiar.

O diário não é literatura, certamente, mas está inserido numa obra literária. É um romance que aceita lirismo e cartas prosaicas, que se adere a conceitos psiquiátricos e tece meditações sobre a condição humana. Ele idolatra a menina desejada e ao mesmo tempo sempre se humilha e se deprecia. Ela é um ninfa, bela e perfeita, e ele é um fauno, peludo, desajeitado, medonho. “Sou esguio, ossudo Humbert Humbert de peito cabeludo, sobrancelhas negras e espessas, sotaque esquisito e uma cloaca de monstros a apodrecer atrás de seu estúpido sorriso de menino.” [p. 60]

Lolita passa a ser uma idealização, um contraponto ao hipócrita narrador, ela personifica o desejo não satisfeito, inalcançável. “E o mais singular ainda é que ela, esta Lolita, a minha Lolita, personificou a antiga lascívia de quem traça estas linhas, de modo que, antes e acima de tudo, existe apenas... Lolita.” [p.60] Toda idealização é perigosa, ainda mais em volta de uma quase adolescente. Para ficar cada vez mais próximo do objeto de desejo, o Sr. Humbert se aproxima mais da mãe da garota, a Sra. Haze, a quem ele profundamente despreza.

Mais desprezível é Humbert a narrar seus golpes de mestres, suas trocas de máscaras, suas carícias ocultas, seus desejos proibidos. Enquanto isso ele traça um retrato de uma criança caprichosa, mimada, voluntariosa, avançada para a idade. Uma sexualidade precoce é até sugerida. Até mesmo “uma criança moderna”, com os consumos e vícios de adulto. Quer o narrador que encontremos certa 'culpa' na vítima? Que Lolita seduzia mesmo sem o saber? Que ele foi fisgado? Nos filmes os diretores escolheram meninas-moças para protagonizarem, com gestos sensuais e olhares sedutores. Mas não seria ajudar a desculpa de que a vítima provoca o violentador?

O cinismo derrama-se em cada parágrafo, quando se dirige aos juízes, aos jurados (“senhores do júri”), aos editores (“eruditos editores”) ou aos leitores (“erudito leitor” ou “cultos leitores”), como uma amostra do tom de superioridade que ele adota quando fala aos normais, aos ordinários, aos padronizados do senso-comum, pois somente ele está acima, o pervertido, o sarcástico narrador. Um sujeito lírico, com boas dosagens de poesia simbolista ou chanson romântica,

Segunda-feira. Manhã chuvosa. 'Ces matins gris si doux...' Meu pijama branco tem lilases desenhadas nas costas. Sou como uma dessas aranhas estofadas e pálidas que a gente vê nos velhos jardins. Sentada no meio de uma teia luminosa, a dar ligeiros puxões neste ou naquele fio. Minha teia estende-se por toda a casa, enquanto fico à escuta, da cadeira em que estou sentado, como um feiticeiro ardiloso. Estará Lo, acaso, em seu quarto? Delicadamente, puxo o fio de seda. Não está. [p. 67]

Tudo em torno da bela menina torna-se motivo de atenção, seno adoração. Suas roupas, seus hábitos, os nomes dos colegas de classe. Tal obsessão, por si só, já caracteriza a doença. O sentido da existência passa a ser o Outro, o receptáculo do Desejo. E tudo se move ao redor, como luas em torno do planeta, sem remissão. Não podendo realizar o ato, ele só nutre fantasias. E ele continua a esboçar seu quadro de personalidade, sujeito tímido e romântico! “Apesar de meu aspecto viril, sou terrivelmente tímido. Minha alma, romântica, fica toda pegajosa e trêmula ante a ideia de deparar com algum terrível e indecente contratempo.” [p. 72]

Todo um diário (ou reconstrução de um diário) para concluir rotulando a menina Lolita como “minha querida pubescente e fogosa”, quando não 'sarcástica'. É assim que o cínico narrador Humbert, o condenado, tenta jogar a culpa para cima da vítima. A menina é que fogosa, falta ele dizer que ela o seduziu! Mas o enredo se complica, pois o cinismo do narrador vai ao ponto de seduzir a mãe da menina. Assim, tendo um caso com Sra. Haze ele terá um livre acesso a sua futura … enteada. Monsieur ou Herr Humbert é um hóspede que vai se demorar.


Em jogos disfarçadamente sexuais com a menina, o narrador narra sua permanência no lar das Haze, mãe e filha. Ele precisa simular sempre, mesmo quando avança sobre a inocência sedutora da sua Lolita. Como ele mesmo diz é uma relação oculta, escondida, entre 'a bela e a fera', onde ele sabe bem ser a fera, mas com garras aveludadas. As descrições de Lolita são carregadas de lirismo obsessivo, “O implícito sol pulsava nos providos choupos; estávamos fantástica e divinamente sós; eu a observara, rósea, empoeirada de sol, além do véu do meu controlado deleite, inconsciente dele, alheio a ele, e o sol estava em seus lábios, e seus lábios ainda estavam, ao que parecia, formando as palavras da cantiga [...]” [pp. 81-82]


O narrador descreve suas experiências e sabe que fazem parte de seu sonho “ardente, ignóbil e pecaminoso” ao desejar uma Lolita que é abstração idealizada de uma Annabel que, enfim, são encarnações do fenômeno sedutor chamado 'ninfeta'. “O que eu loucamente possuíra não era ela. Mas minha própria criação, uma outra e fantasiosa Lolita; sobrepondo-se a ela, envolvendo-a; flutuando entre mim e ela, sem vontade e sem consciência e, com efeito, sem vida própria.” [p. 84] Trata-se tudo, em sua perversão, de um exercício de idealização, sem tocar a real Lolita, personificação de seu ideal. “A criança nada soube. Eu nada lhe fizera.” [p. 84] o pedófilo tenta se justificar. Quer possuir a fruta sem dilacerar a fina casca.

Vez ou outra, o narrador vem lembrar que está narrando, e que alguém está lendo. Não apenas os juízes e os jurados, mas nós, bons leitores. “Como dizem os grandes escritores: 'os leitores que imaginem', etc. Mas, pensando melhor, acho que bem posso dar um pontapé no fundilho de suas imaginações.” [p. 88], pois ele conta com a nossa cumplicidade (ou escândalo!) no ato de prosseguir a leitura de suas confissões impublicáveis.

Enquanto isso, quem deseja a atenção do hóspede é a Sra. Haze, que deve achar o erudito europeu muito sedutor. A mãe de Lolita deseja manter a criança num acampamento, enquanto pode ficar a sós com o cavalheiro. A ideia do acampamento não agrada ao narrador, pois ficará longe da menina (a menina que vai crescer e deixar de ser uma ninfeta...), “Como poderia dar-me ao luxo de não a ver durante dois meses de insônia de verão?” e “Dois meses de beleza, dois meses de ternura, estariam desperdiçados para sempre e eu nada poderia fazer a respeito.... mas nada, mais rien.” [p. 89]

Até uma carta o narrador recebe da Sra. Haze, Charlotte, a declarar seu amor. O tempo todo em que ele se dedicava a seduzir a menina, ele não percebia o quanto 'seduzia' inconscientemente a mãe da menina! “Sei quão reservado o senhor é, quão britânico. Sua reticência europeia, seu senso de decoro, talvez possam sentir-se chocados pela ousadia de uma moça americana! O senhor, que oculta os seus sentimentos mais fortes, deve julgar-me uma idiotazinha despudorada, por abrir assim o meu pobre e dorido coração.” [p. 92] O que fará o narrador: fugirá da megera ou ficará próximo da ninfeta? O que acham que ele fará? Ele se perde em digressões, máscaras, delírios, “minha narração é bastante confusa”, para remodelar seus planos, de ficar na casa do Sra. Haze, como um bom e prestativo marido, a dar carinho a sua bela e caprichosa enteada Lolita.

Assim, Humbert se deixara cair nos braços da mãe para melhor seduzir a filha! Que belo enredo construtivo e demasiadamente humano! Mas a literatura não pode ser avaliado com variáveis moralistas: o texto tem um valor qualitativo em si-mesmo. Cinismo, lirismo obsessivo, drama & ambiguidade : tudo se mistura & condensa. É lírico e perverso, sobriamente lunático, a menosprezar a mãe e desejar a filha (ele que agora pode se permitir deixar de insultar a 'pobre Charlotte'), liricamente fanático, ainda que não seja um poeta, mas um homem a contemplar amargamente seu passado (“sou um memoralista consciencioso”).

De modo que Humbert, o Íncubo, sonhava e fazia planos – e o sol vermelho do desejo e a decisão (as duas coisas que criam um mundo vivo) se erguiam cada vez mais alto, enquanto que, numa sucessão de balcões, uma sucessão de libertinos, de taças cintilantes nas mãos, brindava pela felicidade de noites passadas e futuras. Então, falando figuradamente, parti minha taça, e ousadamente imaginei (pois que, a essa altura, eu estava embriagado por tais visões e subestimava a delicadeza de minha natureza) de que modo poderia, eventualmente, fazer uma chantagem (não, essa palavra é demasiado forte), manobrar a Haze adulta no sentido de permitir que eu privasse com a pequena Haze, ameaçando delicadamente de deserção a Grande Pomba pintada, caso ela procurasse impedir-me de brincar com a minha enteada legal. Em suma, diante de tão Surpreendente Proposta, de tão vastas e variadas perspectivas, me sentia tão indefeso quanto Adão diante da avant-première de sua remota história oriental, na miragem de seu pomar de maçãs... [pp. 96-97]


Assim, logo o hóspede torna-se marido, um homem de princípios para uma mulher de princípios (pois “fiquei sabendo que ela era uma mulher de princípios”), e passa a coabitar com a mãe da bela Lolita, na condição de cidadão e marido, o Sr. Edgar H. Humbert, fiel cumpridor dos deveres maritais e comunitários. Ele passa por uma promoção, “de inquilino a amante”, e continua sua conspiração para desfrutar da ninfeta. Nenhum remorso aqui.

Prossigamos com este curioso relato”, diz ele. Sabemos que uma tragédia poderá acontecer, é até previsível. Afinal, ele foi descoberto, ele foi preso. Está se defendendo! Mas não convém entrar em detalhes, pois esta história não vale pela originalidade, por ser diferente. Mas vale o modo como é narrada, como é analisada por quem ousa narrar. Por exemplo ao descrever a mãe, se somente o faz em relação à filha. “Aquele era o alvo ventre dentro do qual a minha nymphet fora um pequeno feto recurvo em 1934. Aqueles cabelos cuidadosamente pintados, tão estéreis para os meus sentidos de tato e olfato, adquiriam, em certos momentos, à luz do abajur do criado-mudo, se não a contextura, pelo menos o matiz dos cabelos ondulados de Lolita.” [p. 103] Ele procura na mãe a figura da filha, para conseguir desempenhar seu novo papel.

Em seu tom sabidamente 'proustiano', o narrador relembra sua vida ao lado de Charlotte Haze, sua 'pobre esposa', como ele mesmo não se proíbe dizer. “Por mais que me esforce, não consigo dizer quão gentil, quão comovedora, era a minha pobre esposa.” [p. 104] A importância de Charlotte é apenas devida a um fato: ser mãe de Lolita. E o casamento até rejuvenesceu a viúva: “eu, ao casar com a mãe da criança que amava, houvesse permitido à minha esposa readquirir, por procuração, abundante juventude.” [p. 105] Assim, todos se davam bem? Ele reanimava a esposa e usufruía da filha-enteada?

Não, tal enredo não pode ter desfecho além do trágico. É máscara demais, hipocrisia demais. O europeu despreza a vizinhança conservadora norte-americana, zomba dos hábitos e dramas, menospreza o provincianismo. Afinal, a Europa é que detém a cultura. Cultura que a agora Sra. Humbert admira e deseja conhecer melhor, ciumenta do passado dele. Quantas amantes ele teve? Quão vulgares e desprezíveis eram? Aqui sinceridade e hipocrisia se misturam, mais do que se contrastam: trata-se de um teatro. Confessa-se falsidades de dor ficcional com nobres oratórias. “Nunca em minha vida confessei tanto ou recebi tantas confissões.” [p. 108]


É para ficar próximo da Lolita que o Sr. Humbert casou com a Sra. Humbert, mas descobre que a Sra. Humbert está entre (é obstáculo!) Humbert e a sua Lolita (pois ela deseja enviar a filha para um internato!), logo (não podendo ser convencida) a única solução é ser eliminada! Mas será Humbert um assassino? Um frio e cruel homicida? Não, ele tem oportunidade mas não é assassino, é um sujeito inofensivo. Pedófilo, mas inofensivo. Não mataria uma mosca. E ele não vai esperar muito : o destino cuidará disso, como veremos adiante.

Ele sempre quer a cumplicidade do/a leitor/a, em suas confissões, aos 'camaradas', 'meus amigos' que somos nós aqueles & aquelas que 'dão uma espiadinha' na sua vida. Ele que se considera um erudito e até educador!, sim, um escritor, um poeta lírico. E poetas, segundo ele, são inofensivos. Ele – um inofensivo. Não será ele quem se livrará de Charlotte agora Humbert, mas um acidente. Um banal acidente de subúrbio – a senhora sai de casa e atravessa a rua e então é atropelada. Mas por que isso?

Antes, a Sra. Humbert descobre o diário de Humbert – aquele trancado na mesinha do quarto-escritório. Após ler o diário do marido Charlotte percebe enfim que ele é um farsante e logo o expulsa, enquanto escreve febrilmente algumas cartas. Ele recupera o diário e prepara um drink para ambos. Em seguida, ao telefone, um vizinho avisa que a Sra. Humbert foi atropelada! Simples assim. Humbert se livra de ser expulso e denunciado, quando seria afastado da menina Lolita.

Então continua a farsa (e o romance). Pois Humbert finge um luto, “senhoras e senhores do júri – chorei.”, menciona um affair com Charlotte nos idos de 1934, de modo que os amigos acreditem que ele é o verdadeiro pai de Dolores/Lolita. Cumpre o ritual, de permite mostrar tristeza e abandono, e abusa de metalinguagem,

Não sei se, nestas trágicas notas, ressaltei suficientemente a particular atração que o agradável aspecto físico que o autor destas notas – pseudocéltico, atraentemente simiesco, juvenilmente másculo – exercia sobre as mulheres de todas as idades e condições sociais. Claro que tais declarações, feitas na primeira pessoa, talvez possam parecer ridículas. Mas, de quando em quando, devo recordar ao leitor a minha aparência, do mesmo modo que um novelista profissional, que atribui a uma sua personagem ou a um cão algum maneirismo, tem de continuar a apresentar esse cão ou o dito maneirismo todas as vezes que a personagem surge no decorrer do livro. Talvez haja mais coisas a dizer-se a respeito, no presente caso. Para que minha história possa ser bem compreendida, é preciso ter-se em mente o meu sombrio e atraente aspecto. [p. 141]


Tal aspecto sombrio e sedutor do “novíssimo cidadão americano de obscura origem europeia” continua a fazer vítimas. Ele prossegue em seus planos e resolve buscar a Dolores / Lo / Lolita no acampamento de férias. Entre digressões e telefonemas ele degusta previamente o reencontro com a menina, “oh, Lolita, você é a minha namorada, como Virgínia o era de Poe e Beatriz de Dante.” [p. 145] ou “eu podia, naturalmente, evocar a figura de Lolita com uma nitidez de alucinação” [p. 146] pois ele está sentimental, até piegas, “que cômico, desajeitado, hesitante Príncipe”, sim, “oh, permitam-me que seja, por esta vez, sentimental ! Estou tão cansado de ser cínico!” [p. 148]



continua …

 
dez/13

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com.br/



NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981




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