fonte
da imagem: http://www2.units.it/clettere/SVEVOWEB/
Sobre
A Consciência de Zeno [La coscienza di Zeno, 1923]
trad.
Ivo Barroso [2001]
do
autor italiano Italo Svevo [Ettore Schmitz, 1861-1928]
A
irônica voz do narrador sempre a se analisar
parte 2
Zeno
estava ciente de que sua inatividade, em sua vida ociosa, era
responsável pela gradação do tédio, pela busca de aventuras que
somente ameaçavam sua paz doméstica. Então aceitou o convite do
cunhado Guido para trabalhar em nova casa comercial. Afinal, ele tem
seus propósitos, pois “eu ainda não abandonara a esperança de
vir a ser um bom negociante” [p. 253], trabalho que não teve
sucesso sob a tutela do administrador de sua herança. Então, Zeno
tem a oportunidade de parceria com o cunhado, sendo responsável pela
parte de contabilidade, enquanto o outro gerencia, com seriedade e
visão de futuro. “[Guido] olhava a distância, por cima de
minha cabeça, e eu me fiava tanto na seriedade de suas meditações
que chegava a voltar-me para ver também o que ele via, ou seja, as
operações que deviam trazer-lhe fortuna.” [p. 254] Pois o
Guido não quer ser um “comerciante à antiga”, não um
“estragado pelos velhos”, mas um pioneiro.
Finalmente,
Zeno se ocupa de alguma coisa útil, aprende um ofício, ainda que
não lucre tanto no final. “Não há dúvida de que aquele foi,
até hoje, o mais longo período em que me dediquei a uma mesma
ocupação. Só não me posso gabar disto porque essa minha atividade
não produziu frutos nem para mim nem parar Guido, e em comércio –
todos sabem – só se pode julgar pelos resultados.” [p. 255]
Saberemos como o narrador relembra estes dois anos de atividade
comercial, ao lado do cunhado. O que ele vê olhando em
retrospectiva? Como se julga? Ao lado do confiante e até arrogante
Guido, Zeno se vê como um doente, “e insisto em escrever sobre
esses dois anos porque meu apego a ele me parece clara demonstração
da minha doença.” [p. 255]
De
algum modo, o Zeno-narrador se arrepende de sua dedicação ao
escritório do cunhado. “Por quanto tempo entreguei-lhe o
sacrifício de minha liberdade e deixei-me arrastar por ele às
posições mais odiosas, só para assisti-lo! Uma verdadeira e clara
manifestação de doença ou de grande bondade, duas qualidades
intimamente relacionadas entre si.” [p. 255] A fixação em sua
doença – que é justamente o que o leva a escrever! - leva o
narrador a apresentar suas contradições e recaídas, mesmo se
mantendo ocupado. Aliás, a nova ocupação gera mais contradições
e angústias! Novas escolhas, para o local do escritório, para a
mobília, para as tarefas. Enquanto Zeno hesitava, Guido agia.
Enquanto o primeiro não sabia, o segundo se posicionava
impetuosamente, nem sempre para o lucro. A ação nem sempre é
positiva, pode gerar ante o prejuízo. Mas a hesitação também nem
sempre é lucrativa. No mais, ao fim da empresa, somente o empregado
aprendeu mesmo a agir satisfatoriamente no comércio.
No
mundo do comércio, da contabilidade, do Deve e do Haver, dos
devedores e dos credores, é preciso agir segundo as regras, onde uns
lucram e outros perdem. Quem não se adaptar está fadado à
falência. Não há muita filosofia, mas faro comercial. Ver
flutuações da Bolsa, perceber como anda a Oferta e a Demanda, estar
disposto a investir se arriscando a perder. Enquanto Zeno e Guido se
perdiam em discussões, os verdadeiros comerciantes estão
agindo e lucrando. O narrador julga o parente para melhor perceber a
própria participação na falência da empresa. “Lamento ter
que falar tão mal de meu pobre amigo, mas devo ser verídico,
inclusive para compreender melhor a mim mesmo. Recordo toda a
inteligência que ele empregou para obstruir o nosso modesto
escritório com teorias fantásticas, impeditivas de qualquer
operação corrente.” [p. 259] e confessa mesmo, consciente de
sua inércia: “Minha boa sorte impediu-me de ser arruinado por
Guido, mas essa mesma boa sorte me impediu igualmente de tomar uma
parte mais ativa em seus negócios.” [p. 259]
Zeno
chega mesmo a se comparar a um hesitante Sancho Pança diante de um
arrojado e desastrado Don Quixote, a fazer negócios, e enquanto ele
se limita a criticar os negócios e registrar nos livros contábeis.
Sem grande faro comercial, os dois amigos se deixam à deriva, em
aventuras amorosas, ou caçadas, ou pescaria, enquanto sabe-se que é
o empregado – o autêntico comerciante! - quem negocia e recebe
comissões. Os patrões só não podem mostrar o quanto são
diletantes e inexperientes. Não se preocupam tanto com o dinheiro,
logo não ganham muito, e chegam até a perder. O empregado negocia,
a nova secretária se envolve com o patrão, o escritório segue sem
rumo e seriedade.
O
contador não concorda com os negócios, ou tem outra visão, mas
sempre aceita as decisões do patrão, que, não atento aos próprios
negócios, se percebe em prejuízos. Mas o que Zeno poderia ter
feito? O impetuoso Guido-Quixote sempre olhava para frente,
arrogante, senhor de sua empresa. Que remorsos pode nutrir o
narrador? “Não posso ter o menor remorso pelo prejuízo que
Guido sofreu com a operação. Se me tivesse ouvido, teria evitado o
que ocorreu.” [p. 270] Ao observar o desenvolto e mulherengo
Guido, o narrador até se julga inocente, pois ao trair a esposa até
sente culpa! Guido, o dissimulado, é incapaz disso. Tem uma mulher
em casa, seduz a secretária, passa as noites em pescarias, longe da
família. E Guido não valoriza as mulheres, tanto a esposa Ada, que
já foi desejada por Zeno, quanto a secretária Carmen, que lembra
muito uma submissa Carla, ambas orbitando sua arrogância, a qual
desperta sentimentos ambíguos em Zeno, entre a inveja e a
reprovação, entre a admiração e o desprezo. Afinal de contas, por
mais que Sancho condenasse Quixote, ainda o admira ao segui-lo pelas
aventuras! A importância de Guido aqui é no sentido de melhor
evidenciar quem é o narrador, um negócio que só traz prejuízo é
lembrado, “não só porque coloca em evidência a desmensurada
presunção de Guido como também porque projeta sobre mim uma luz
sob a qual é difícil distinguir-me.” [p. 284].
Ambíguo
diante de Guido, o jovem Zeno percebe-se em competição, em disputa
com o parente patrão. Quantas vezes Zeno tem razão, mas o outro não
o ouve! Só quando há prejuízo, chega-se à seriedade, chega de
conversa fiada e fábulas, é preciso aprender a comercializar. Um
aprendizado em vem do prejuízo? “Por isso creio que os seus
prejuízos foram sempre relevantes e mínimos os seus lucros. As
qualidades de um comerciante não são mais que as consequências de
todo o seu organismo, da ponta dos cabelos às unhas dos pés.”
[p. 288] Depois dos prejuízos, Guido estava mais atento aos
negócios, mais assíduo à rotina do escritório, o que não
compensa todos os erros cometidos antes. Guido que vivia uma vida
familiar delicada, com o nascimento dos filhos gêmeos, e a doença
da esposa, que vai parar em sanatório. Doença que atrai também a
curiosidade de Zeno, de modo obsessivo, como mostram os seus
sintomas.
Creio
que há muitos indivíduos como eu que, em certos períodos de tempo,
deixam-se ocupar por ideias que atravancam o cérebro, bloqueando-o
para tudo o mais. Mais isto acontece também com a coletividade!
Vivemos de Darwin depois de termos vivido de Robespierre e Napoleão,
e depois de Liebig e oxalá de Leopardi, quando Bismark não está
trovejando sobre o cosmos! [p. 293]
e
A
minha enfermidade consistia numa ideia fixa, um sonho, e mesmo um
pesadelo. Deve ter-se originado de uma reflexão: sob o nome de
perversão queremos significar um desvio da saúde, aquela espécie
de saúde que nos acompanhou por um período de nessa vida. [p. 294]
Com
a decadência – e depois falência financeira e familiar – de
Guido, é a estrela de Zeno que sobe! Ele passa a ser mais estimado
pela família, que o respeita e admira. Claro que todos desconhecem a
aventura amorosa do patriarca, e que o leva sempre a desafogar sua
culpa em confissões, muitas veladas, parciais. Só pra ter uma noite
de sono tranquilo. O caso é que ele sabe administrar sua doença, e
o outro não. Por mais falso que seja Guido ele é demasiado
confiante para se expor. Covarde, hesitante, Zeno sempre faz às
ocultas, com máxima prudência. O narrador define Guido como falso e
simulador, mas não será ele mesmo mais dissimulado?
Mas
o Zeno daquela época não se deixava em tais questionamentos morais,
pois se entregava ao trabalho, “foi a época de minha vida em
que mais trabalhei”, a pensar em sua “reputação
comercial”, a concluir o balanço da empresa, que ele sabe
estar fadada à falência. Os prejuízos são maiores que os lucros,
e Guido não estava disposto a aceitar, muito menos revelar os erros
ao próprio pai. Para compensar a ineficiência de Guido, o contador
Zeno se entrega ao trabalho, o qual não consegue abandonar, tal um
trabalhador forçado. Ainda mais, com a solicitação de Ada, para
que cuide de Guido, o músico que agora desafina, ainda em seu
auto-engano (uma auto-estima mesmo na derrota...) que pode prejudicar
a família.
Guido
abaixa a cabeça, a considerar a vida difícil, enquanto Zeno observa
tudo, as reviravoltas, as vicissitudes, os auto-enganos, as vaidades
fugidias, e acha que a vida é original, estranha, “bastava
recordar tudo aquilo que nós, homens, esperamos da vida para a
acharmos tão estranha, a ponto de concluirmos que talvez o homem
tenha sido posto nela por engano e que de fato não pertença a ela.”
[p. 306] Guido não dá muita atenção ao meditativo Zeno, que se
lembra das antigas irritações, causadas pelo rival, tão
auto-confiante. Por que sente tanta irritação com o outro? Por que
queria se livrar dele? É uma questão de ser bom ou mau? Ele é
melhor do que Guido, para julgá-lo? Dizer se ele merece viver?
Mas,
antes, ele continua a ajudar este 'genal negociante' ! Por que? Por
demasiada bondade? “O propósito de bondade é plácido e
prático, e eu estava calmo e tranquilo. Curioso! O excesso de
bondade me fizera exceder na auto-estima e na crença em meu poder.
Que podia fazer por Guido?” [p. 310] Para ajuda Guido, Zeno se
entrega a uma tarefa que o consome, que o submete ao tédio, pois o
trabalho se torna rotina. Quanto mais ele trabalha para manter a
empresa, mais se sacrifica, mais fica ligado ao 'genial negociante'
que só coleciona prejuízos! O patrão que nunca presta atenção,
que despreza as recomendações, que considera melhores as próprias
soluções. Zeno percebia ser uma ilusão a sua determinação de ser
útil.
Contudo,
Zeno continua, pois é que agrada a agora enferma Ada, cuja gratidão
lhe traz saúde. Ser bondoso com a família aumenta sua
auto-confiança, sua possibilidade de dormir tranquilo. A saúde
estaria acima de tudo. Até ajudar guido em suas manobras com a
contabilidade. Será que forjar débitos e créditos é modo de
salvar-se da falência? Zeno não acredita, pois o outro também
sofre de obsessão. “Confessou-me que aquele pensamento era a
sua obsessão. E como poderia ser de outra forma? Com um pouco de
azar poderia incorrer direitinho naquela sanção penal e acabar na
cadeia!” [p. 324] Assim, o bem-sucedido Guido é uma farsa! Não
é bom marido, não é bom negociante, o que é então? O patrão
sempre 'aterrorizado' pelos balanços contábeis, eis uma decepção
para Zeno, que, no entanto, não o deixa de lado.
Guido
até se esforça, trabalha mais, negocia mais, está mais atento, mas
o que não impede outros deslizes, principalmente o impulso de jogar
na Bolsa de Valores. E Zeno a tentar tranquilizar a esposa do
patrão-amigo, a lembrar da nova figura de 'assiduidade e prudência'
que atua no escritório. As preocupações de Zeno não sã apenas
comerciais, antes existenciais, o drama da velhice (ou senilidade),
Falei
longamente da velhice iminente. Não podia ficar um momento tranquilo
sem sentir a velhice. A cada circulação de meu sangue alguma coisa
se agregava a meus ossos e às minhas veias que significava
envelhecer. Cada manhã, ao despertar, o mundo era mais cinza e eu
não me dava conta disto, porque tudo mantinha o mesmo tom; nela não
havia nenhuma pincelada do dia anterior, pois, se o notasse, a
recordação me faria desesperar. [p. 327]
Assim
as preocupações de Guido são mais terrenas se comparadas às de
Zeno, que achava o patrão um sujeito tão prático. Mas por que
jogar na Bolsa de Valores? Não seria melhor se concentrar nos
negócios? Em pagar as dívidas? Mas, Guido se mostra mais impulsivo,
e contrata corretores para aconselhar sobre altas e baixas das ações.
Mas e o risco de se envolver com as altas e baixas? Pode-se ganhar e
também perder muito facilmente! Um dos corretores admite que “só
as pessoas de senso podiam tratar com ela [a Bolsa]. Havia muito
dinheiro espalhado pelo chão da Bolsa, mas não era fácil
abaixar-se e apanhá-lo.” [p. 329] quando elogia os
investidores de sucesso, que aprendem mais na prática do que na
universidade!
Enquanto
Guido está a ganhar, enquanto a família acerita e até apoia, Zeno
nada pode fazer para refreá-lo, deve antes até alegrar-se com ele.
Mas no jogo há ganhos e há perdas, e na mesma proporção em que se
ganha, pode se perder. Guido começa a se desconcentrar dos negócios
para se voltar para as flutuações de mercadorias e ações.
Enquanto se ganha, todos aprovam, e o jogador continua. Mas ele já
não sabe parar – até perder tudo. É uma outra obsessão –
troca-se uma obsessão por outra. E Zeno se deixa contaminar pela
temporada de ganhos, “acreditei tão firmemente que a sorte
estava de seu lado que não levei em conta tantos indícios capazes
de me convencerem do contrário.” [p. 334]
Mas
não parece que tudo anda bem. Guido faz referências a uso de
venenos, demonstra tristeza, frequentemente uma distração. Indícios
de que a temporada de ganhos se converteu numa fase de perdas – mas
o que sabe Zeno? Ele, assim como outros ao redor, na própria
família, é egoísta, não está à altura de compreender o próximo
e seus sofrimentos. Zeno é incapaz de compreender e confortar o
agora perdedor, “Não consegui dar-lhe nenhum conforto. Na
verdade, ofendia-me vê-lo considerar-se o homem mais infeliz do
mundo. Não era um exagero de sua parte; era uma deslavada mentira.”
[p. 340] Pois não há compaixão, no mundo do 'darwinismo social',
onde uns ganham e outros perdem, não há lugar para conforto ou
felicidade, apenas competição. “A lei natural não dá direito
à felicidade; ao contrário, prescreve a miséria e o sofrimento.
[…] Para que lamentar-se? No entanto, todos se lamentam.
Os que nada tiveram da presa morrem gritando contra a injustiça, e
os que tiveram parte dela acham que deviam ter direito a muito mais.”
[p. 340] Não há compaixão no domínio da 'lei natural', senhora
num mundo de desiguais.
Pior
para Guido, que descuidado dos negócios, viu-se levado ao jogo no
mercado de ações. Ele não sabe perder, é a sua culpa.
“Faltavam-lhe todas as qualidades para conquistar ou
simplesmente para manter a riqueza. Vinha do jogo na Bolsa e se
lamentava por ter perdido. Não se comportava mesmo como um
cavalheiro; causava-me náusea.” [p. 341] E o que faz o
protagonista? “Reprovei-o pela fraqueza de agora, precedida por
uma presunção que o levara à ruína. Agira por si mesmo sem
consultar ninguém.” [p. 342] e pior, pois o “seu prejuízo
era sem dúvida nenhuma o resultado de um crime.” [p. 343] E
faz tudo para reduzir a culpa, a ponto de oferecer um empréstimo,
suficiente para pagar parte das dívidas. Claro, que haverá
oscilações entre aceitar ou não a oferta de Zeno, e a família
entra na ciranda. O que se pode fazer para salvar a firma e a honra
de Guido? Mas ele não entra na linha, não aprende, não espera,
quer insistir no risco especulativo, e pretende surpreender a todos
com o seu suicídio.
Suicídio
mesmo ou uma tentativa? Zeno acredita que Guido não queria se
entregar à morte, sendo esta causada por uma série de
mal-entendidos e pela demora e ineficiência dos médicos. Enquanto a
família começa a aceitar o processo da falência, enquanto Zeno
liquida as apostas de Guido na Bolsa (a ponto de reverter os
prejuízos...), o perdedor se perde na própria obsessão e anuncia
seu suicídio. E realmente encontra a morte. Mas era tão fácil se
salvar! Alguns empréstimos e o trabalho árduo! Zeno quer aconselhar
apenas: “nada mais de jogo, e sim o trabalho habitual de cada
dia!” [p. 352], mas não há tempo, Guido não espera e joga
toda a herança, joga a própria vida. E é depois da perda, que Zeno
tem consciência da grande participação de Guido em sua história –
o que nos revela agora, sendo o narrador.
Guido,
depois de nosso convívio, tornara-se para mim personagem de grande
importância. Enquanto vivo, eu o via sob uma certa luz que iluminava
a parte mais longa de meus dias. Morrendo, aquela luz se modificava,
como se tivesse passado de súbito através de um prisma. Era
exatamente isto que me perturbava. [p. 356]
Então
Zeno culpa a família pela morte do perdedor, “Ele morrera por
um delito cometido por eles, pois jogara na Bolsa com o consentimento
de todos. Na hora de pagar, deixaram-no sozinho. E ele apressou-se em
pagar.” [p. 357] Nada mais pode ser feito. Resta sepultar o
perdedor e proclamar sua honra. Para isso é preciso diminuir os
prejuízos e pagar as dívidas. Zeno se ocupa da parte prática – e
se surpreende com tal atitude. “Sentia necessidade de trabalhar,
trabalhar mesmo em proveito de meu pobre amigo morto, mas não sabia
fazer mais do que sonhar.” [p. 358] Ele sabe colher as
admirações da família, ainda que a outrora escolhida não acredite
que algum dia Zeno tenha gostado mesmo do falecido. Afinal, não eram
rivais?
Não
teria Zeno se interessado mais pela Bolsa do que pelo funeral, e
confessa, e é recriminado por isso. É prova de que ele não gostava
do falastrão perdedor? Agora, enquanto escreve, mais consciente, o
narrador Zeno tece suas considerações, “Comparava-me com o
pobre Guido e elevava-me, elevava-me bem alto com a minha vitória na
mesma luta em que ele perecera.
[…] Era certo que, quanto mais nos afastássemos da
catástrofe, o céu azul se tornaria enfadonho se não voltasse a
obscurecer no devido tempo. Esta, porém, era a previsão da
experiência e eu não a recordei; ocorre-me só agora enquanto
escrevo.” [p. 362] Zeno sobrevive a Guido, e é então o
vencedor? Sua função agora é preservar a honra do falecido? É
amparar a família? Ou revelar que Guido poderia ter se salvado? Que
ele não queria realmente morrer? Mas a viúva só sabe culpar Zeno,
pois ela garante que ele nunca gostou do falecido. Zeno, o narrador,
acha que não tem culpa, “mas sei que não me julgou com
justiça. Sem dúvida, não tenho do que me penitenciar por não ter
querido bem a Guido.” [p. 370] O narrador mesmo se julga
moralmente e se absolve. Tudo para garantir uma boa noite de sono.
Para
controlar sua consciência e conseguir dormir, Zeno se entrega aos
meios de terapia, ao escrutínio da psicanálise, a escrita de seus
devaneios e detalhes de outrora. Mas pode confiar no médico? Pode
acreditar na teoria freudiana? Ela não está sempre sendo irônico
consigo mesmo, então como pode levar à sério algo fora de si
mesmo? Como pode aceitar uma teoria com suas fórmulas? Pode aceitar
que deseja a mãe e odeia o pai? Que tem um mundo onírico
labiríntico e não desvelado? Pode ele conhecer a si mesmo,
encontrar-se, enquanto escreve seus relatos?
“Empregarei
o tempo que me resta livre para escrever. Por isso escreverei
sinceramente a história de minha cura.” [p. 372] Está
revelada a motivação de sua escrita, e a razão de ser do livro que
temos em mãos. Sua narrativa nasce da consciência que tem sobre si
mesmo – e a busca de autoconhecimento. Sabe mais sobre si mesmo
quando se observa a agir junto aos outros: junto ao pai, junto à
noiva, ao lado da esposa, na cama da amante, na empresa do cunhado.
Todos são figurantes em sua vida, mas que permitem que entenda
melhor seu protagonismo.
Além
disso, ele tem consciência de sua doença. Uma doença que habita o
corpo e a mente, que transborda dos nervos para os músculos, da
vontade para as câimbras. Mas não é uma doença que o analista vá
explicar. Não é um complexo com raízes na mitologia grega,
de Édipo matando o pai e possuindo a mãe. Não é uma doença
catalogada num manual de psicanálise,
A
melhor prova de que eu não tinha aquela doença decorre do fato de
não estar curado. Esta prova convenceria inclusive o doutor. Ele não
precisa preocupar-se: suas palavras não conseguiram conspurcar a
recordação da minha juventude. Cerro os olhos e vejo imediatamente,
puro, infantil, ingênuo, o amor por minha mãe, e meu respeito e
grande afeto por meu pai. [p. 372]
Mas
o quanto a sua escrita é autêntica enquanto autoconhecimento? Não
haverá um empecilho na própria linguagem? “Uma confissão
escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que
dizemos. Podemos falar com naturalidade das coisas para as quais
temos frases prontas, mas evitamos tudo quanto nos obrigue a recorrer
ao dicionário!” [p. 373] pois
“quem me forneceria o
verdadeiro vocabulário? “
[p. 382] Zeno não se sente confortável diante da figura do médico,
que com suas análises, em muitas suspeitas e só a pensar na cura.
Mas como controlar imagens do passado que carregam emoções quando
se presentificam através da memória?
Retorno
a tempo de minha longa viagem e me encontro seguro aqui, adulto,
velho. Mas devo confessá-lo: por um instante sofri com a ameaça da
punição e logo após lamentei não ter podido assistir ao gesto de
proteção que sem dúvida terá partido de minha mãe. Quem pode
deter essas imagens quando começam a fugir através de um tempo que
jamais foi tão semelhante ao espaço? Tal era o conceito que dele
tinha, quando acreditava na autenticidade daquelas imagens! Agora,
infelizmente (oh! Quanto o lamento!), não creio mais nelas e sei que
não eram as imagens que fugiam, mas os meus olhos enevoados, abertos
de novo para o verdadeiro espaço em que não há lugar para
fantasmas. [p. 377]
O
médico acha que Zeno sofre de remorsos e quer logo uma cura: que ele
aceite ser inocente e comum que se tenha desejo pela mãe e
hostilidade contra o pai. Que Zeno aceite tranquilo a cura do
freudismo: lembrar, assumir e se libertar. Mas não é tão
fácil assim. “Que mal me podiam causar? Um dia, disse-me que eu
não passava de um convalescente que ainda não se acostumara a viver
sem febre. Pois bem: haveria de me acostumar.” [p. 378]
Certamente as obsessões do protagonista com as imagens oníricas
muito se aproximam de suas obsessões com o fumo ou com o bem-estar
doméstico. Ele poderia muito bem se intoxicar de vida onírica
quanto de nicotina.
Zeno
precisa de obsessão e de ódio, vive de rivalidade. “Há muita
gente neste mundo que não consegue viver sem um afeto; eu, ao
contrário, segundo ele, perdia o equilíbrio emocional se me faltava
uma razão de ódio.” [p. 381] E com que rivaliza agora? Com o
médico! “Acabei por me sentir muito cansado da luta que era
obrigado a manter com o médico a quem pagava.” [p. 383] O
narrador não quer ser arrastado por uma “charlatanice”, precisa
encontrar doenças reais, como bom hipocondríaco, com câimbras,
bronquite, coisas palpáveis, visíveis, curáveis. Doenças que
podem ser medidas e diagnosticadas, pois “não há lugar para
simulações”, não são analisadas por subjetividades que
interpretam e distorcem. Por isso, o narrador prefere as doenças
reais, as físicas, mais simples. Então dispensa as 'imaginárias',
que se livrar de sonhos e lembranças.
Enquanto
a guerra se alastra pela Europa – estamos em 1915, em plena Grande
Guerra, depois chamada Primeira Guerra Mundial [1914-1948]
– Zeno viaja com a família para uma cidade provinciana, Lucinico,
próxima a fronteira da Itália com o Império Austro-Húngaro, que
se estendia até ao Mar Adriático, incluindo Trieste. Lá Zeno
encontra sossego e recolhimento e pode pensar na vida que levou, e na
consciência de ter convivido com sua doença, a qual acerita. “Foi
um verdadeiro recolhimento o meu, um dos raros instantes que a vida
avara nos concede, de grande e verdadeira objetividade em que
finalmente cessamos de nos crer e de nos sentir vítimas. Em meio
àquele verde, ressaltado tão deliciosamente pelos reflexos do sol,
eu soube sorrir à vida e até à minha doença. […] E revendo a
minha vida e também a minha doença, eu as amei e compreendi!”
[p. 387]
Então
Zeno anda pelo campo, interagindo com os camponeses, ainda mais as
jovens filhas dos camponeses, as quais não hesita em cortejar, mesmo
em sua maturidade. Enquanto isso a guerra avança, pois é justamente
em 1915 que as tropas italianas entram em confronto com as tropas
austro-húngaras, e o horror da luta bélica não é mais uma
história que se ouve, ou se lê nos jornais, mas passa a fazer parte
da vida. Tropas inimigas acabam de cercar a cidadezinha! E como
poderá Zeno reencontrar sua família? “A guerra apoderou-se de
mim, sacudiu-me como um trapo, privou-me de uma só vez de toda a
minha família e até de meu administrador. De um dia para o outro,
eu era um homem totalmente diferente, ou, para ser mais exato, todas
as minhas vinte e quatro horas foram inteiramente diversas.”
[p. 390] Então finalmente a guerra o atingira, e durante um mês
sequer tivera notícias da família. Agora, quando escreve, ele se
percebe mais aliviado, após o transtorno inesperado. “Hoje, que
me sinto bem mais calmo, trouxe comigo para o escritório este
manuscrito, que pode ajudar-me a passar o tempo sem fim.” [p.
391]
Em
meio a guerra – que o encontrou de um 'modo violento' – Zeno,
nosso narrador, encontra a sua paz! “Parece-me que só agora
estou definitivamente desligado tanto de minha saúde quanto de minha
doença.” [p. 391] Ele que enfrentara um dia de violência e
fome, entende que muitos ainda perecerão sem nada saber, sem
qualquer consciência. Ele tem seu excesso de consciência, que mesmo
quando tranquiliza os próximos, se sente culpado. Devia antes
anunciar que o horror da guerra se aproximava? “Depois, isso
pesou-me na consciência. No horrendo temporal que desabou,
provavelmente todas aquelas pessoas que eu tranquilizara pereceram.”
[p. 397]
Um
ano depois, em março de 1916, temos a última anotação de Zeno,
que enviará seus manuscritos ao médico – que então vai
disponibilizar para nós, os leitores, como o Doutor S. declara logo
no Prefácio, “publico-as por vingança e espero que o
autor se aborreça.” [p. 7] – que terá noção do quanto
Zeno despreza o tratamento. Afinal, é um homem saudável, ocupado
com seus negócios comerciais, enfim curado! “Estou curado! Além
de não querer submeter-me à psicanálise, também não tenho
necessidade dela.” [p. 400] Ele está agora convisto da sua
saúde, como antes tinha obsessão pela doença. Zeno que prosperou e
venceu, a concretizar seus negócios, onde Guido, o negociante
genial, perdera, e sente que o sucesso é fruto da vida saudável. A
vida que tem algo da enfermidade, mas sem cura, “a vida é
sempre mortal. Não admite tratamento.” [p. 402]
Afinal,
é a civilização que se manifesta doente, envolvida em guerras e
massacres, a poluir o planeta, quando somente deseja o lucro. Zeno
Corsini encontra sua saúde no mundo dos negócios, acomodado cidadão
de um mundo em conflito, a observar o mundo doente, que ainda
acredita no mito do progresso. Uma civilização de artificialismos
que espera suplantar a 'lei do mais forte', mas que só consegue se
impor pela violência, pela intervenção em nome da democracia e do
desenvolvimentismo, nivelando povos inteiros pelos critérios da
globalização, que se iniciara com o imperialismo do século
19, que teve como consequências as Guerras Mundiais do século 20.
Canhões, trincheiras, gases tóxicos, tanques blindados, campos de
extermínio, mísseis balísticos, bombas atômicas, eis a escalada
da agressão de uma civilização deveras adoentada. Talvez
finalmente assim o homem, o parasita, o doente, se elimine da face do
planeta.
Assim,
a noção de doença e saúde é mais do que física ou imaginária,
é uma questão de contexto, pois um homem saudável pode adoecer
numa civilização doente, absorver a doença, a sentir-se culpado,
enquanto um homem doente pode contaminar toda uma vida social, todo
um sistema político. Uma pessoa pode se manter lúcida num campo de
concentração, enquanto outra enlouquece num bunker. A vida
burguesa age no romance de Italo Svevo como uma forma de sufocar a
doença, ou de idealizar uma saúde, numa vida de prosperidade, mas
que acaba por criar mais doenças, em repressão, em resignação,
enquanto fermenta o retorno do recalcado em inesperados sintomas.
Saques, violações, extermínios. Então sobra apenas uma
consciência ora aguçada e ora nublada que se volta sobre si mesma,
com ironia ou amargura, mas incapaz de abarcar a totalidade, assim
como o narrador que somente consegue ser parcial, ou mesmo
inautêntico, mesmo quando se dispõe a narrar a própria vida.
fonte:
SVEVO, Italo. A Consciência de Zeno. Trad. Ivo Barroso. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
jan/14
Leonardo
de Magalhaens
mais
info em