quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

sobre A Consciência de Zeno - p2 - de Svevo










Sobre A Consciência de Zeno [La coscienza di Zeno, 1923]
trad. Ivo Barroso [2001]
do autor italiano Italo Svevo [Ettore Schmitz, 1861-1928]


A irônica voz do narrador sempre a se analisar


parte 2


Zeno estava ciente de que sua inatividade, em sua vida ociosa, era responsável pela gradação do tédio, pela busca de aventuras que somente ameaçavam sua paz doméstica. Então aceitou o convite do cunhado Guido para trabalhar em nova casa comercial. Afinal, ele tem seus propósitos, pois “eu ainda não abandonara a esperança de vir a ser um bom negociante” [p. 253], trabalho que não teve sucesso sob a tutela do administrador de sua herança. Então, Zeno tem a oportunidade de parceria com o cunhado, sendo responsável pela parte de contabilidade, enquanto o outro gerencia, com seriedade e visão de futuro. “[Guido] olhava a distância, por cima de minha cabeça, e eu me fiava tanto na seriedade de suas meditações que chegava a voltar-me para ver também o que ele via, ou seja, as operações que deviam trazer-lhe fortuna.” [p. 254] Pois o Guido não quer ser um “comerciante à antiga”, não um “estragado pelos velhos”, mas um pioneiro.


Finalmente, Zeno se ocupa de alguma coisa útil, aprende um ofício, ainda que não lucre tanto no final. “Não há dúvida de que aquele foi, até hoje, o mais longo período em que me dediquei a uma mesma ocupação. Só não me posso gabar disto porque essa minha atividade não produziu frutos nem para mim nem parar Guido, e em comércio – todos sabem – só se pode julgar pelos resultados.” [p. 255] Saberemos como o narrador relembra estes dois anos de atividade comercial, ao lado do cunhado. O que ele vê olhando em retrospectiva? Como se julga? Ao lado do confiante e até arrogante Guido, Zeno se vê como um doente, “e insisto em escrever sobre esses dois anos porque meu apego a ele me parece clara demonstração da minha doença.” [p. 255]


De algum modo, o Zeno-narrador se arrepende de sua dedicação ao escritório do cunhado. “Por quanto tempo entreguei-lhe o sacrifício de minha liberdade e deixei-me arrastar por ele às posições mais odiosas, só para assisti-lo! Uma verdadeira e clara manifestação de doença ou de grande bondade, duas qualidades intimamente relacionadas entre si.” [p. 255] A fixação em sua doença – que é justamente o que o leva a escrever! - leva o narrador a apresentar suas contradições e recaídas, mesmo se mantendo ocupado. Aliás, a nova ocupação gera mais contradições e angústias! Novas escolhas, para o local do escritório, para a mobília, para as tarefas. Enquanto Zeno hesitava, Guido agia. Enquanto o primeiro não sabia, o segundo se posicionava impetuosamente, nem sempre para o lucro. A ação nem sempre é positiva, pode gerar ante o prejuízo. Mas a hesitação também nem sempre é lucrativa. No mais, ao fim da empresa, somente o empregado aprendeu mesmo a agir satisfatoriamente no comércio.

No mundo do comércio, da contabilidade, do Deve e do Haver, dos devedores e dos credores, é preciso agir segundo as regras, onde uns lucram e outros perdem. Quem não se adaptar está fadado à falência. Não há muita filosofia, mas faro comercial. Ver flutuações da Bolsa, perceber como anda a Oferta e a Demanda, estar disposto a investir se arriscando a perder. Enquanto Zeno e Guido se perdiam em discussões, os verdadeiros comerciantes estão agindo e lucrando. O narrador julga o parente para melhor perceber a própria participação na falência da empresa. “Lamento ter que falar tão mal de meu pobre amigo, mas devo ser verídico, inclusive para compreender melhor a mim mesmo. Recordo toda a inteligência que ele empregou para obstruir o nosso modesto escritório com teorias fantásticas, impeditivas de qualquer operação corrente.” [p. 259] e confessa mesmo, consciente de sua inércia: “Minha boa sorte impediu-me de ser arruinado por Guido, mas essa mesma boa sorte me impediu igualmente de tomar uma parte mais ativa em seus negócios.” [p. 259]

Zeno chega mesmo a se comparar a um hesitante Sancho Pança diante de um arrojado e desastrado Don Quixote, a fazer negócios, e enquanto ele se limita a criticar os negócios e registrar nos livros contábeis. Sem grande faro comercial, os dois amigos se deixam à deriva, em aventuras amorosas, ou caçadas, ou pescaria, enquanto sabe-se que é o empregado – o autêntico comerciante! - quem negocia e recebe comissões. Os patrões só não podem mostrar o quanto são diletantes e inexperientes. Não se preocupam tanto com o dinheiro, logo não ganham muito, e chegam até a perder. O empregado negocia, a nova secretária se envolve com o patrão, o escritório segue sem rumo e seriedade.

O contador não concorda com os negócios, ou tem outra visão, mas sempre aceita as decisões do patrão, que, não atento aos próprios negócios, se percebe em prejuízos. Mas o que Zeno poderia ter feito? O impetuoso Guido-Quixote sempre olhava para frente, arrogante, senhor de sua empresa. Que remorsos pode nutrir o narrador? “Não posso ter o menor remorso pelo prejuízo que Guido sofreu com a operação. Se me tivesse ouvido, teria evitado o que ocorreu.” [p. 270] Ao observar o desenvolto e mulherengo Guido, o narrador até se julga inocente, pois ao trair a esposa até sente culpa! Guido, o dissimulado, é incapaz disso. Tem uma mulher em casa, seduz a secretária, passa as noites em pescarias, longe da família. E Guido não valoriza as mulheres, tanto a esposa Ada, que já foi desejada por Zeno, quanto a secretária Carmen, que lembra muito uma submissa Carla, ambas orbitando sua arrogância, a qual desperta sentimentos ambíguos em Zeno, entre a inveja e a reprovação, entre a admiração e o desprezo. Afinal de contas, por mais que Sancho condenasse Quixote, ainda o admira ao segui-lo pelas aventuras! A importância de Guido aqui é no sentido de melhor evidenciar quem é o narrador, um negócio que só traz prejuízo é lembrado, “não só porque coloca em evidência a desmensurada presunção de Guido como também porque projeta sobre mim uma luz sob a qual é difícil distinguir-me.” [p. 284].

Ambíguo diante de Guido, o jovem Zeno percebe-se em competição, em disputa com o parente patrão. Quantas vezes Zeno tem razão, mas o outro não o ouve! Só quando há prejuízo, chega-se à seriedade, chega de conversa fiada e fábulas, é preciso aprender a comercializar. Um aprendizado em vem do prejuízo? “Por isso creio que os seus prejuízos foram sempre relevantes e mínimos os seus lucros. As qualidades de um comerciante não são mais que as consequências de todo o seu organismo, da ponta dos cabelos às unhas dos pés.” [p. 288] Depois dos prejuízos, Guido estava mais atento aos negócios, mais assíduo à rotina do escritório, o que não compensa todos os erros cometidos antes. Guido que vivia uma vida familiar delicada, com o nascimento dos filhos gêmeos, e a doença da esposa, que vai parar em sanatório. Doença que atrai também a curiosidade de Zeno, de modo obsessivo, como mostram os seus sintomas.

Creio que há muitos indivíduos como eu que, em certos períodos de tempo, deixam-se ocupar por ideias que atravancam o cérebro, bloqueando-o para tudo o mais. Mais isto acontece também com a coletividade! Vivemos de Darwin depois de termos vivido de Robespierre e Napoleão, e depois de Liebig e oxalá de Leopardi, quando Bismark não está trovejando sobre o cosmos! [p. 293]

e

A minha enfermidade consistia numa ideia fixa, um sonho, e mesmo um pesadelo. Deve ter-se originado de uma reflexão: sob o nome de perversão queremos significar um desvio da saúde, aquela espécie de saúde que nos acompanhou por um período de nessa vida. [p. 294]


Com a decadência – e depois falência financeira e familiar – de Guido, é a estrela de Zeno que sobe! Ele passa a ser mais estimado pela família, que o respeita e admira. Claro que todos desconhecem a aventura amorosa do patriarca, e que o leva sempre a desafogar sua culpa em confissões, muitas veladas, parciais. Só pra ter uma noite de sono tranquilo. O caso é que ele sabe administrar sua doença, e o outro não. Por mais falso que seja Guido ele é demasiado confiante para se expor. Covarde, hesitante, Zeno sempre faz às ocultas, com máxima prudência. O narrador define Guido como falso e simulador, mas não será ele mesmo mais dissimulado?

Mas o Zeno daquela época não se deixava em tais questionamentos morais, pois se entregava ao trabalho, “foi a época de minha vida em que mais trabalhei”, a pensar em sua “reputação comercial”, a concluir o balanço da empresa, que ele sabe estar fadada à falência. Os prejuízos são maiores que os lucros, e Guido não estava disposto a aceitar, muito menos revelar os erros ao próprio pai. Para compensar a ineficiência de Guido, o contador Zeno se entrega ao trabalho, o qual não consegue abandonar, tal um trabalhador forçado. Ainda mais, com a solicitação de Ada, para que cuide de Guido, o músico que agora desafina, ainda em seu auto-engano (uma auto-estima mesmo na derrota...) que pode prejudicar a família.

Guido abaixa a cabeça, a considerar a vida difícil, enquanto Zeno observa tudo, as reviravoltas, as vicissitudes, os auto-enganos, as vaidades fugidias, e acha que a vida é original, estranha, “bastava recordar tudo aquilo que nós, homens, esperamos da vida para a acharmos tão estranha, a ponto de concluirmos que talvez o homem tenha sido posto nela por engano e que de fato não pertença a ela.” [p. 306] Guido não dá muita atenção ao meditativo Zeno, que se lembra das antigas irritações, causadas pelo rival, tão auto-confiante. Por que sente tanta irritação com o outro? Por que queria se livrar dele? É uma questão de ser bom ou mau? Ele é melhor do que Guido, para julgá-lo? Dizer se ele merece viver?

Mas, antes, ele continua a ajudar este 'genal negociante' ! Por que? Por demasiada bondade? “O propósito de bondade é plácido e prático, e eu estava calmo e tranquilo. Curioso! O excesso de bondade me fizera exceder na auto-estima e na crença em meu poder. Que podia fazer por Guido?” [p. 310] Para ajuda Guido, Zeno se entrega a uma tarefa que o consome, que o submete ao tédio, pois o trabalho se torna rotina. Quanto mais ele trabalha para manter a empresa, mais se sacrifica, mais fica ligado ao 'genial negociante' que só coleciona prejuízos! O patrão que nunca presta atenção, que despreza as recomendações, que considera melhores as próprias soluções. Zeno percebia ser uma ilusão a sua determinação de ser útil.

Contudo, Zeno continua, pois é que agrada a agora enferma Ada, cuja gratidão lhe traz saúde. Ser bondoso com a família aumenta sua auto-confiança, sua possibilidade de dormir tranquilo. A saúde estaria acima de tudo. Até ajudar guido em suas manobras com a contabilidade. Será que forjar débitos e créditos é modo de salvar-se da falência? Zeno não acredita, pois o outro também sofre de obsessão. “Confessou-me que aquele pensamento era a sua obsessão. E como poderia ser de outra forma? Com um pouco de azar poderia incorrer direitinho naquela sanção penal e acabar na cadeia!” [p. 324] Assim, o bem-sucedido Guido é uma farsa! Não é bom marido, não é bom negociante, o que é então? O patrão sempre 'aterrorizado' pelos balanços contábeis, eis uma decepção para Zeno, que, no entanto, não o deixa de lado.

Guido até se esforça, trabalha mais, negocia mais, está mais atento, mas o que não impede outros deslizes, principalmente o impulso de jogar na Bolsa de Valores. E Zeno a tentar tranquilizar a esposa do patrão-amigo, a lembrar da nova figura de 'assiduidade e prudência' que atua no escritório. As preocupações de Zeno não sã apenas comerciais, antes existenciais, o drama da velhice (ou senilidade),

Falei longamente da velhice iminente. Não podia ficar um momento tranquilo sem sentir a velhice. A cada circulação de meu sangue alguma coisa se agregava a meus ossos e às minhas veias que significava envelhecer. Cada manhã, ao despertar, o mundo era mais cinza e eu não me dava conta disto, porque tudo mantinha o mesmo tom; nela não havia nenhuma pincelada do dia anterior, pois, se o notasse, a recordação me faria desesperar. [p. 327]

Assim as preocupações de Guido são mais terrenas se comparadas às de Zeno, que achava o patrão um sujeito tão prático. Mas por que jogar na Bolsa de Valores? Não seria melhor se concentrar nos negócios? Em pagar as dívidas? Mas, Guido se mostra mais impulsivo, e contrata corretores para aconselhar sobre altas e baixas das ações. Mas e o risco de se envolver com as altas e baixas? Pode-se ganhar e também perder muito facilmente! Um dos corretores admite que “só as pessoas de senso podiam tratar com ela [a Bolsa]. Havia muito dinheiro espalhado pelo chão da Bolsa, mas não era fácil abaixar-se e apanhá-lo.” [p. 329] quando elogia os investidores de sucesso, que aprendem mais na prática do que na universidade!

Enquanto Guido está a ganhar, enquanto a família acerita e até apoia, Zeno nada pode fazer para refreá-lo, deve antes até alegrar-se com ele. Mas no jogo há ganhos e há perdas, e na mesma proporção em que se ganha, pode se perder. Guido começa a se desconcentrar dos negócios para se voltar para as flutuações de mercadorias e ações. Enquanto se ganha, todos aprovam, e o jogador continua. Mas ele já não sabe parar – até perder tudo. É uma outra obsessão – troca-se uma obsessão por outra. E Zeno se deixa contaminar pela temporada de ganhos, “acreditei tão firmemente que a sorte estava de seu lado que não levei em conta tantos indícios capazes de me convencerem do contrário.” [p. 334]

Mas não parece que tudo anda bem. Guido faz referências a uso de venenos, demonstra tristeza, frequentemente uma distração. Indícios de que a temporada de ganhos se converteu numa fase de perdas – mas o que sabe Zeno? Ele, assim como outros ao redor, na própria família, é egoísta, não está à altura de compreender o próximo e seus sofrimentos. Zeno é incapaz de compreender e confortar o agora perdedor, “Não consegui dar-lhe nenhum conforto. Na verdade, ofendia-me vê-lo considerar-se o homem mais infeliz do mundo. Não era um exagero de sua parte; era uma deslavada mentira.” [p. 340] Pois não há compaixão, no mundo do 'darwinismo social', onde uns ganham e outros perdem, não há lugar para conforto ou felicidade, apenas competição. “A lei natural não dá direito à felicidade; ao contrário, prescreve a miséria e o sofrimento. […] Para que lamentar-se? No entanto, todos se lamentam. Os que nada tiveram da presa morrem gritando contra a injustiça, e os que tiveram parte dela acham que deviam ter direito a muito mais.” [p. 340] Não há compaixão no domínio da 'lei natural', senhora num mundo de desiguais.

Pior para Guido, que descuidado dos negócios, viu-se levado ao jogo no mercado de ações. Ele não sabe perder, é a sua culpa. “Faltavam-lhe todas as qualidades para conquistar ou simplesmente para manter a riqueza. Vinha do jogo na Bolsa e se lamentava por ter perdido. Não se comportava mesmo como um cavalheiro; causava-me náusea.” [p. 341] E o que faz o protagonista? “Reprovei-o pela fraqueza de agora, precedida por uma presunção que o levara à ruína. Agira por si mesmo sem consultar ninguém.” [p. 342] e pior, pois o “seu prejuízo era sem dúvida nenhuma o resultado de um crime.” [p. 343] E faz tudo para reduzir a culpa, a ponto de oferecer um empréstimo, suficiente para pagar parte das dívidas. Claro, que haverá oscilações entre aceitar ou não a oferta de Zeno, e a família entra na ciranda. O que se pode fazer para salvar a firma e a honra de Guido? Mas ele não entra na linha, não aprende, não espera, quer insistir no risco especulativo, e pretende surpreender a todos com o seu suicídio.

Suicídio mesmo ou uma tentativa? Zeno acredita que Guido não queria se entregar à morte, sendo esta causada por uma série de mal-entendidos e pela demora e ineficiência dos médicos. Enquanto a família começa a aceitar o processo da falência, enquanto Zeno liquida as apostas de Guido na Bolsa (a ponto de reverter os prejuízos...), o perdedor se perde na própria obsessão e anuncia seu suicídio. E realmente encontra a morte. Mas era tão fácil se salvar! Alguns empréstimos e o trabalho árduo! Zeno quer aconselhar apenas: “nada mais de jogo, e sim o trabalho habitual de cada dia!” [p. 352], mas não há tempo, Guido não espera e joga toda a herança, joga a própria vida. E é depois da perda, que Zeno tem consciência da grande participação de Guido em sua história – o que nos revela agora, sendo o narrador.

Guido, depois de nosso convívio, tornara-se para mim personagem de grande importância. Enquanto vivo, eu o via sob uma certa luz que iluminava a parte mais longa de meus dias. Morrendo, aquela luz se modificava, como se tivesse passado de súbito através de um prisma. Era exatamente isto que me perturbava. [p. 356]

Então Zeno culpa a família pela morte do perdedor, “Ele morrera por um delito cometido por eles, pois jogara na Bolsa com o consentimento de todos. Na hora de pagar, deixaram-no sozinho. E ele apressou-se em pagar.” [p. 357] Nada mais pode ser feito. Resta sepultar o perdedor e proclamar sua honra. Para isso é preciso diminuir os prejuízos e pagar as dívidas. Zeno se ocupa da parte prática – e se surpreende com tal atitude. “Sentia necessidade de trabalhar, trabalhar mesmo em proveito de meu pobre amigo morto, mas não sabia fazer mais do que sonhar.” [p. 358] Ele sabe colher as admirações da família, ainda que a outrora escolhida não acredite que algum dia Zeno tenha gostado mesmo do falecido. Afinal, não eram rivais?

Não teria Zeno se interessado mais pela Bolsa do que pelo funeral, e confessa, e é recriminado por isso. É prova de que ele não gostava do falastrão perdedor? Agora, enquanto escreve, mais consciente, o narrador Zeno tece suas considerações, “Comparava-me com o pobre Guido e elevava-me, elevava-me bem alto com a minha vitória na mesma luta em que ele perecera. […] Era certo que, quanto mais nos afastássemos da catástrofe, o céu azul se tornaria enfadonho se não voltasse a obscurecer no devido tempo. Esta, porém, era a previsão da experiência e eu não a recordei; ocorre-me só agora enquanto escrevo.” [p. 362] Zeno sobrevive a Guido, e é então o vencedor? Sua função agora é preservar a honra do falecido? É amparar a família? Ou revelar que Guido poderia ter se salvado? Que ele não queria realmente morrer? Mas a viúva só sabe culpar Zeno, pois ela garante que ele nunca gostou do falecido. Zeno, o narrador, acha que não tem culpa, “mas sei que não me julgou com justiça. Sem dúvida, não tenho do que me penitenciar por não ter querido bem a Guido.” [p. 370] O narrador mesmo se julga moralmente e se absolve. Tudo para garantir uma boa noite de sono.

Para controlar sua consciência e conseguir dormir, Zeno se entrega aos meios de terapia, ao escrutínio da psicanálise, a escrita de seus devaneios e detalhes de outrora. Mas pode confiar no médico? Pode acreditar na teoria freudiana? Ela não está sempre sendo irônico consigo mesmo, então como pode levar à sério algo fora de si mesmo? Como pode aceitar uma teoria com suas fórmulas? Pode aceitar que deseja a mãe e odeia o pai? Que tem um mundo onírico labiríntico e não desvelado? Pode ele conhecer a si mesmo, encontrar-se, enquanto escreve seus relatos?

Empregarei o tempo que me resta livre para escrever. Por isso escreverei sinceramente a história de minha cura.” [p. 372] Está revelada a motivação de sua escrita, e a razão de ser do livro que temos em mãos. Sua narrativa nasce da consciência que tem sobre si mesmo – e a busca de autoconhecimento. Sabe mais sobre si mesmo quando se observa a agir junto aos outros: junto ao pai, junto à noiva, ao lado da esposa, na cama da amante, na empresa do cunhado. Todos são figurantes em sua vida, mas que permitem que entenda melhor seu protagonismo.

Além disso, ele tem consciência de sua doença. Uma doença que habita o corpo e a mente, que transborda dos nervos para os músculos, da vontade para as câimbras. Mas não é uma doença que o analista vá explicar. Não é um complexo com raízes na mitologia grega, de Édipo matando o pai e possuindo a mãe. Não é uma doença catalogada num manual de psicanálise,

A melhor prova de que eu não tinha aquela doença decorre do fato de não estar curado. Esta prova convenceria inclusive o doutor. Ele não precisa preocupar-se: suas palavras não conseguiram conspurcar a recordação da minha juventude. Cerro os olhos e vejo imediatamente, puro, infantil, ingênuo, o amor por minha mãe, e meu respeito e grande afeto por meu pai. [p. 372]

Mas o quanto a sua escrita é autêntica enquanto autoconhecimento? Não haverá um empecilho na própria linguagem? “Uma confissão escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos. Podemos falar com naturalidade das coisas para as quais temos frases prontas, mas evitamos tudo quanto nos obrigue a recorrer ao dicionário!” [p. 373] pois “quem me forneceria o verdadeiro vocabulário? “ [p. 382] Zeno não se sente confortável diante da figura do médico, que com suas análises, em muitas suspeitas e só a pensar na cura. Mas como controlar imagens do passado que carregam emoções quando se presentificam através da memória?

Retorno a tempo de minha longa viagem e me encontro seguro aqui, adulto, velho. Mas devo confessá-lo: por um instante sofri com a ameaça da punição e logo após lamentei não ter podido assistir ao gesto de proteção que sem dúvida terá partido de minha mãe. Quem pode deter essas imagens quando começam a fugir através de um tempo que jamais foi tão semelhante ao espaço? Tal era o conceito que dele tinha, quando acreditava na autenticidade daquelas imagens! Agora, infelizmente (oh! Quanto o lamento!), não creio mais nelas e sei que não eram as imagens que fugiam, mas os meus olhos enevoados, abertos de novo para o verdadeiro espaço em que não há lugar para fantasmas. [p. 377]

O médico acha que Zeno sofre de remorsos e quer logo uma cura: que ele aceite ser inocente e comum que se tenha desejo pela mãe e hostilidade contra o pai. Que Zeno aceite tranquilo a cura do freudismo: lembrar, assumir e se libertar. Mas não é tão fácil assim. “Que mal me podiam causar? Um dia, disse-me que eu não passava de um convalescente que ainda não se acostumara a viver sem febre. Pois bem: haveria de me acostumar.” [p. 378] Certamente as obsessões do protagonista com as imagens oníricas muito se aproximam de suas obsessões com o fumo ou com o bem-estar doméstico. Ele poderia muito bem se intoxicar de vida onírica quanto de nicotina.

Zeno precisa de obsessão e de ódio, vive de rivalidade. “Há muita gente neste mundo que não consegue viver sem um afeto; eu, ao contrário, segundo ele, perdia o equilíbrio emocional se me faltava uma razão de ódio.” [p. 381] E com que rivaliza agora? Com o médico! “Acabei por me sentir muito cansado da luta que era obrigado a manter com o médico a quem pagava.” [p. 383] O narrador não quer ser arrastado por uma “charlatanice”, precisa encontrar doenças reais, como bom hipocondríaco, com câimbras, bronquite, coisas palpáveis, visíveis, curáveis. Doenças que podem ser medidas e diagnosticadas, pois “não há lugar para simulações”, não são analisadas por subjetividades que interpretam e distorcem. Por isso, o narrador prefere as doenças reais, as físicas, mais simples. Então dispensa as 'imaginárias', que se livrar de sonhos e lembranças.

Enquanto a guerra se alastra pela Europa – estamos em 1915, em plena Grande Guerra, depois chamada Primeira Guerra Mundial [1914-1948] – Zeno viaja com a família para uma cidade provinciana, Lucinico, próxima a fronteira da Itália com o Império Austro-Húngaro, que se estendia até ao Mar Adriático, incluindo Trieste. Lá Zeno encontra sossego e recolhimento e pode pensar na vida que levou, e na consciência de ter convivido com sua doença, a qual acerita. “Foi um verdadeiro recolhimento o meu, um dos raros instantes que a vida avara nos concede, de grande e verdadeira objetividade em que finalmente cessamos de nos crer e de nos sentir vítimas. Em meio àquele verde, ressaltado tão deliciosamente pelos reflexos do sol, eu soube sorrir à vida e até à minha doença. […] E revendo a minha vida e também a minha doença, eu as amei e compreendi!” [p. 387]

Então Zeno anda pelo campo, interagindo com os camponeses, ainda mais as jovens filhas dos camponeses, as quais não hesita em cortejar, mesmo em sua maturidade. Enquanto isso a guerra avança, pois é justamente em 1915 que as tropas italianas entram em confronto com as tropas austro-húngaras, e o horror da luta bélica não é mais uma história que se ouve, ou se lê nos jornais, mas passa a fazer parte da vida. Tropas inimigas acabam de cercar a cidadezinha! E como poderá Zeno reencontrar sua família? “A guerra apoderou-se de mim, sacudiu-me como um trapo, privou-me de uma só vez de toda a minha família e até de meu administrador. De um dia para o outro, eu era um homem totalmente diferente, ou, para ser mais exato, todas as minhas vinte e quatro horas foram inteiramente diversas.” [p. 390] Então finalmente a guerra o atingira, e durante um mês sequer tivera notícias da família. Agora, quando escreve, ele se percebe mais aliviado, após o transtorno inesperado. “Hoje, que me sinto bem mais calmo, trouxe comigo para o escritório este manuscrito, que pode ajudar-me a passar o tempo sem fim.” [p. 391]

Em meio a guerra – que o encontrou de um 'modo violento' – Zeno, nosso narrador, encontra a sua paz! “Parece-me que só agora estou definitivamente desligado tanto de minha saúde quanto de minha doença.” [p. 391] Ele que enfrentara um dia de violência e fome, entende que muitos ainda perecerão sem nada saber, sem qualquer consciência. Ele tem seu excesso de consciência, que mesmo quando tranquiliza os próximos, se sente culpado. Devia antes anunciar que o horror da guerra se aproximava? “Depois, isso pesou-me na consciência. No horrendo temporal que desabou, provavelmente todas aquelas pessoas que eu tranquilizara pereceram.” [p. 397]

Um ano depois, em março de 1916, temos a última anotação de Zeno, que enviará seus manuscritos ao médico – que então vai disponibilizar para nós, os leitores, como o Doutor S. declara logo no Prefácio, “publico-as por vingança e espero que o autor se aborreça.” [p. 7] – que terá noção do quanto Zeno despreza o tratamento. Afinal, é um homem saudável, ocupado com seus negócios comerciais, enfim curado! “Estou curado! Além de não querer submeter-me à psicanálise, também não tenho necessidade dela.” [p. 400] Ele está agora convisto da sua saúde, como antes tinha obsessão pela doença. Zeno que prosperou e venceu, a concretizar seus negócios, onde Guido, o negociante genial, perdera, e sente que o sucesso é fruto da vida saudável. A vida que tem algo da enfermidade, mas sem cura, “a vida é sempre mortal. Não admite tratamento.” [p. 402]

Afinal, é a civilização que se manifesta doente, envolvida em guerras e massacres, a poluir o planeta, quando somente deseja o lucro. Zeno Corsini encontra sua saúde no mundo dos negócios, acomodado cidadão de um mundo em conflito, a observar o mundo doente, que ainda acredita no mito do progresso. Uma civilização de artificialismos que espera suplantar a 'lei do mais forte', mas que só consegue se impor pela violência, pela intervenção em nome da democracia e do desenvolvimentismo, nivelando povos inteiros pelos critérios da globalização, que se iniciara com o imperialismo do século 19, que teve como consequências as Guerras Mundiais do século 20. Canhões, trincheiras, gases tóxicos, tanques blindados, campos de extermínio, mísseis balísticos, bombas atômicas, eis a escalada da agressão de uma civilização deveras adoentada. Talvez finalmente assim o homem, o parasita, o doente, se elimine da face do planeta.

Assim, a noção de doença e saúde é mais do que física ou imaginária, é uma questão de contexto, pois um homem saudável pode adoecer numa civilização doente, absorver a doença, a sentir-se culpado, enquanto um homem doente pode contaminar toda uma vida social, todo um sistema político. Uma pessoa pode se manter lúcida num campo de concentração, enquanto outra enlouquece num bunker. A vida burguesa age no romance de Italo Svevo como uma forma de sufocar a doença, ou de idealizar uma saúde, numa vida de prosperidade, mas que acaba por criar mais doenças, em repressão, em resignação, enquanto fermenta o retorno do recalcado em inesperados sintomas. Saques, violações, extermínios. Então sobra apenas uma consciência ora aguçada e ora nublada que se volta sobre si mesma, com ironia ou amargura, mas incapaz de abarcar a totalidade, assim como o narrador que somente consegue ser parcial, ou mesmo inautêntico, mesmo quando se dispõe a narrar a própria vida.


fonte: SVEVO, Italo. A Consciência de Zeno. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001



jan/14


Leonardo de Magalhaens






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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

sobre A Consciência de Zeno - de Italo Svevo / P1





Sobre A Consciência de Zeno [La coscienza di Zeno, 1923]
trad. Ivo Barroso [2001]
do autor italiano Italo Svevo [Ettore Schmitz, 1861-1928]


A irônica voz do narrador sempre a se analisar


parte 1

Assim como já abordamos em obras já lidas e analisadas, aqui no Meu Cânone Ocidental, a saber O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, e Lolita, de Vladimir Nabokov, o nosso olhar se detêm mais sobre quem narra a história do que exatamente o que é narrado, ou seja, nos interessa mais a figura do Narrador. Aqui uma voz em 1ª pessoa a se debruçar sobre si mesmo, e aqueles ao redor, olhando para o passado, rememorando a infância, os conflitos familiares, até suas relações com o médico psiquiatra, para quem escreve estas notas (estas que nós, os leitores, agora acessamos).

Temos uma narrativa de uma vida, e, mais do que isso, um olhar sobre a vida que é narrada. Realmente algo de proustiano aqui (como bem explicitava o narrador Humbert em Lolita) com as imagens do passado revistas sob uma perspectiva de um narrador mais maduro, mais próximo da finitude. Logo no Prefácio somos informados que o romance resulta de uma sugestão do Doutor S., um psicanalista, ao seu paciente, o Sr. Zeno Cosini, para que este faça um relato de sua vida, com suas memórias, e possa atingir assim uma cura. O que não acontece, e somente sobrou a obra escrita, cheia de comentários e surpresas, que ora nos é oferecida para que o “leitor se aborreça”.

Em seguida, no Preâmbulo, já percebemos que a voz narrativa é a de um homem com mais de sessenta anos, a lançar um olhar para seu passado, “Rever a minha infância? Já lá se vão mais de dez lustros, mas minha vista cansada talvez pudesse ver a luz que dela ainda dimana, não fosse a interposição de obstáculos de toda espécie, verdadeiras montanhas: todos esses anos e algumas horas de minha vida.” [p. 9] O tema da velhice, do olhar de maturidade já estava explícito, desde o título, na obra anterior de Svevo, a Senilidade (de 1898), onde um certo cansaço, um certo distanciar-se da vida é perceptível em quem narra.

Mas escrever para que? Para se analisar, para se descrever, para averiguar erros e acertos. “O médico com quem falei a esse respeito disse-me que iniciasse meu trabalho com uma análise histórica da minha propensão ao fumo! - Escreva! Escreva! O que acontecerá, então, é que você vai se ver por inteiro.” [p. 11] Ao escrever, o narrador de depara consigo mesmo, com seus vícios, constantes vícios,

Todas essas coisas jaziam em minha consciência ao alcance da mão. Só agora ressurgem, porque não sabia antes que pudessem ter importância. Mas com isso já registrei a origem do hábito pernicioso e (quem sabe?) talvez assim esteja curado. Para certificar-me, vou acender um último cigarro, que talvez atire fora em seguida, enojado. [p. 12]

Eis um narrador ambíguo, que detesta o vício que o aprisiona, sempre promete a si mesmo abandonar o fumo, mas sempre volta ao vício, a prometer ser o 'último cigarro'. Será auto-engano ou ironia mesmo? Por que ele se promete o que não pode cumprir? Afinal, o vício é maior do que ele ! Assemelha-se a um viciado que diz 'só mais um gole' e, aos poucos, bebe a garrafa toda!

Como se ele fizesse uma auto-análise, sob um prisma freudiano, o narrador Zeno expõe seus medos, inseguranças, suas fantasias, seu temor diante da figura do pai, seus relacionamentos com as mulheres, a prisão do vício, seus momentos trágicos ou risíveis. Assim a morte do pai doente, a escolha da esposa, o internamento na tentativa de deixar o fumo, os negócios com o sogro, a vida afetiva dividida entre a esposa e a amante, os novos negócios com o cunhado. Episódios de sua vida que são narrados-analisados como numa sessão de terapia, com sua autoconsciência irônica em digressões e lembranças.

Logo de início, inseguro quando a própria sanidade, Zeno se submete a um psiquiatra apenas para conseguir um certificado de que não é louco! Indeciso, ele estuda direito, para em seguida trocar por química, para depois voltar ao direito. Consciente do vício, Zeno odeia o fumo, mas sofre por ser incapaz de abandonar os cigarros. Entre as filhas do seu parceiro de negócios, ele não sabe qual escolher para esposa.

Ele analisa a própria vida, agora que nada mais pode mudar, apenas ser descrito e revisto com um olhar de maturidade, onde um eu-de-hoje enuncia julgamentos sobre um eu-de-ontem.

A ciranda do último cigarro começou aos vinte anos e ainda hoje está a girar. Minhas resoluções são agora menos drásticas e, à medida que envelheço, torno-me mais indulgente para com minhas fraquezas. Ao envelhecermos, sorrimos da vida e de todo o seu conteúdo. Posso assim dizer que, desde há algum tempo, tenho fumado muitos cigarros … que não serão os últimos. [p. 15]
e

Agora que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: não me teria apegado tanto ao cigarro para poder atribuir-lhe a culpa de minha incapacidade? Será que, deixando de fumar, eu conseguiria de fato chegar ao homem forte e ideal que eu me supunha?” [p. 16]




No mais, ele se debate na questão do prometer a si mesmo: honraríamos a promessa? Um eu-do-futuro cumpriria as promessas feitas por um eu-de-agora?

Para atenuar-lhe a aparência ridícula, tentei dar um conteúdo filosófico à enfermidade do último cigarro. Assume-se uma atitude altiva e diz-se: 'Nunca mais!' Porém, o que é feito da atitude se mantemos a promessa? Só podemos reassumi-la se renovamos o propósito. Além disso, o tempo para mim não é essa coisa insensata que nunca para. Para mim, só para mim, ele retorna. [p. 17]

Há uma certa ironia, que se volta para o narrador, e suas relações com os próximos, amigos ou desafetos. Há um denunciado jogo de interesses, cada um a manipular os vícios do outro, assim para conseguir cigarros ele não hesita em embebedar uma enfermeira, que guarda a saída. Ele aposta com seu procurador : quem fumar primeiro perde. Mas ele já sabe que perderá! Ele que se engana, fuma escondido, a achar que engana o outro! Ele não é senhor do vício, mas um escravo.

Por que ele fuma tanto? Por que deseja abandonar o fumo tão bruscamente? Bastaria que ele diminuísse gradativamente os cigarros. Mas ele é incapaz de se controlar. Tal um bêbado que beberia um frasco de perfume, ele fuma qualquer marca que lhe cai nas mãos. Como poderá se curar? Se ele, ao menos, não sabotasse o processo de cura... Ele vai se internar, mas não consegue vencer a ansiedade, a insegurança, o ciúme. Assim ele é derrotado novamente pela nicotina.

A morte do pai, numa agonia longa e penosa, acaba por abater o ensimesmado jovem, que o narrador recupera nessas páginas. Seu pai morreu dez anos antes da aurora do turbulento século 20. O jovem Zeno teve pouco contato com a mãe, morta quando ele era adolescente, mas com o pai a relação foi diferente, mais próxima e mais tensa. Ele superou a perda da mãe, mas a perda do pai foi uma 'verdadeira catástrofe'. “Muitas vezes, ao pensar nisto, fico intrigado pelo fato estranho de que essa desesperança quanto ao meu futuro só se veio a produzir com a morte de meu pai, e não antes.” [p. 34]

A relação com pai é sempre fundamental para a perspectiva freudiana, que centra a psicanálise num 'complexo de Édipo' que gera admiração e competição entre pai e filho, para se reafirmarem diante da figura da mãe. “Ele foi o primeiro a duvidar de minha força de vontade e – ao que me parece – um pouco cedo demais. Suspeito, embora sem apoio de uma convicção científica, que duvidasse de mim pelo fato mesmo de ser seu filho, o que contribui – e aqui com perfeita base científica – para aumentar minha falta de confiança nele.” [p. 34]

O narrador Zeno não vê no pai o seu herói, alguém a ser admirado e superado. Julga que o pai não é bom o suficiente. “Posso dizer que eu representava a força e ele a fraqueza. O que venho registrando neste relato já prova que em mim existe e sempre existiu - talvez para minha maior desventura – um impetuoso impulso para o melhor.” [p. 35] O narrador não hesita em julgar o pai, em fazer desbotar sua imagem, mas percebe que agora, na maturidade, muito se aproxima dele, “Agora que envelheço e me aproximo daquele tipo de patriarca” [p. 35] com o diferencial da consciência aguçada. O narrador vislumbra seu passado, está ciente de seu presente, encara sua condição. “Em suma, comparado com ele [o pai], eu representava a força e às vezes penso que o desaparecimento daquela criatura fraca, diante da qual eu me elevava, foi sentido por mim como uma quebra de energia.” [p. 37]

A doença tem um papel de aproximação e trauma. Zeno diante do pai doente não tem alternativa senão abrir diálogo, tentar reconciliação, diminuir os mal-entendidos. Zeno descobre-se fraco, pouco resistente, até sugestionável, diante de um homem que considera fraco, um homem que é seu pai, mas não o compreende. O pai não tem confiança nele e assim, no testamento, delega a outro homem a administração da herança do filho. Como se comportar diante do pai adoentado? Como não sentir o constrangimento e a culpa? A qual crença, a qual religiosidade, se apegar? Afinal, são ambos tão diversos! “Ele evitava enfrentar o meu ceticismo: uma luta difícil demais para ele naquele momento; eu, porém, esperava poder atacá-lo suavemente de flanco, como convinha a um enfermo.” [p. 41]

O pai tem tanto a ensinar – por que o filho não se dispõe a aprender? Há mesmo um choque de gerações? O filho descrente diante do pai sapiente, eis aí o niilismo diante da tradição? Algo que encontramos desde o romance Pais e Filhos [1861], de Ivan Turgueniev [1818 -1883], com os filhos a se reafirmarem quando ousam de negar as crenças paternas. O filho se encontra submisso diante do fardo da experiência do pai, que é pesado, mas ultrapassado. “[Ele] agora sentia menos a incapacidade de expressar-se, pois até sorria ante a própria força, a própria grandeza. […] Lisonjeava-me o afeto que demonstrava por mim, manifestando desejo de transmitir-me a ciência de que se julgava possuidor, embora eu estivesse convicto de que nada aprenderia como ele.” [pp.42-43]

Depois da compaixão e do remorso, o narrador, agora velho, confessa que julgou de modo desprezível o próprio pai. Agora, o narrador tem também algo a que pode chamar 'experiência de vida'. “Hoje que escrevo, depois de me haver avizinhado da idade que meu pai tinha àquela época, sei por experiência que um homem pode ter a consciência de possuir um elevado intelecto, mesmo quando essa consciência é a única prova que tem isso.” [p. 43]

A consciência! Sim, voltamos ao título da obra: a percepção de si mesmo consigo mesmo, de estar-no-mundo, sendo um Eu rodado de Outros, e de ser Eu justamente em relação aos Outros-Eus. O saber de si vem de uma primordial Alteridade – o bebê que percebe não ser o seio materno. A consciência de Zeno é ainda mais aguda quanto mais sofrimento e falta de sentido ele percebe ao seu redor. A doença e a agonia do pai é uma cena de tragédia narrada com profundo senso de compassiva alteridade – sofre-se junto com o sofredor. Sobra apenas o desespero, “Minha resistência esmoreceu. […] fui tomado de grande pavor.” [p. 45]

Conservo lembrança bastante nítida daquelas horas” [p. 46] revela o narrador, e dá mostras de que sua memória é detalhista. Uma memória constituída de momentos dolorosos, cenas de agonia. Nem no leito de morte há reconciliação. O narrador quando jovem não teve chance, a reprovação acompanha-o até o último instante, até o último gesto do pai à morte. “Enquanto escrevo ou quase gravo estas dolorosas recordações no papel, descubro que a imagem que me obcecou desde a primeira tentativa de perscrutar o passado, a locomotiva que arrasta uma série de vagões ladeira acima, surgiu em meu espírito, ouvindo daquele sofá a respiração de meu pai.” [pp. 46-47]

O pai sofre de edema e a agonia será longa, a cena é dramática, e a memória traumatizada registra tudo em detalhes. “Meu primeiro esforço para evocar o passado conduziu-me precisamente àquela noite, às horas mais importantes da minha vida.” [p. 47] Falas, gestos, olhares, remoroso, tudo num enorme painel do sofrimento humano. Todo um sofrer que o médico, julgado 'pedante', vê com olhares clínicos, profissionais. O narrador sente ódio por esta medicina que não cura, mas prolonga a dor, mantém o paciente vivo, em nome de uma esperança.

Hoje, até mesmo aquele remorso desapareceu, juntamente com todos os outros sentimentos de que falo aqui com a frieza de quem descreve fatos ocorridos a um estranho. Em meu coração perdura apenas, desde então, o sentimento de antipatia por esse médico que se obstina em viver até hoje. [p. 51]

e
Já agora, na noite passada, depois de haver estado boa parte do dia de ontem entretido em evocar estas recordações, tive um sono tão nítido, tão real, que me transportou de um salto, através do tempo, àqueles dias. […] Parece que me agitei no sonho, pois fui despertado por minha mulher. Sombras distantes! Creio que para vos vislumbrar seja necessário um instrumento óptico, que inverte vossa imagem. [p. 53]

A experiência de velar junto ao agonizante causa um abalo emocional ao jovem Zeno, que precisa cuidar do pai acamado e entender a situação tão penosa. Uma irritação constante, um rancor, cresce em ressentimento, a ponto de então causar remorsos. Terá ele sido um bom filho? Por que o pai o reprovava até na hora da morte? “Ocorreu então a cena de que jamais me esquecerei e que estendeu sua sombra imensa para ofuscar toda a minha coragem, toda a minha alegria. Para esquecer essa dor foi necessário que todos os meus sentimentos se embotassem com o tempo.” [p. 57] O filho deveras dedicado evita que o pai se levante, mas o pai não o perdoa, resiste e é capaz de uma bofetada. É o último gesto, antes de cair morto. Não há mais chance de perdão para o filho, que carregará o trauma – o gesto final de seu pai não foi de agradecimento.

As hesitações e inseguranças de Zeno se evidenciam também quando da escolha da esposa. Três irmãs em idade de casamento são apresentadas a ele, que se perde no labirinto das possibilidades. O critério deverá ser beleza? Ou será estudo? Ou afinidade de personalidade? Como escolher a mulher que o acompanhará? Deve ele casar-se apenas para afastar a solidão e o tédio?

Minha vida constituía-se de uma única nota, sem variações, certamente alta e invejada por muitos, mas horrivelmente tediosa para mim. Meus amigos dedicaram-se durante toda a vida sempre a mesma estima, e creio que eu mesmo, a partir da idade da razão, não terei mudado muito o conceito que fazia de mim.

Daí talvez ter-me vindo a ideia de casar-me apenas pelo cansaço de emitir e ouvir aquela mesma nota. [p. 61]

De amigo a sogro, o Sr. Malfenti tem filhas casadouras que atraem a atenção do jovem Zeno. São quatro irmãs – todas com a letra A – sendo que uma ainda é criança. Cada um com certa beleza e personalidades singulares. Mas qual será a escolhida? Como mostrar-se amadurecido e atrair a admiração do sogro e de sua família? O sogro passa a ser admirado e visto como um homem de experiência. Está destinado a ser um 'segundo pai'? Sim, sendo admirado, Giovanni Malfenti é uma figura de sucesso comercial a ser referência para o jovem Zeno, em busca da carreira do lucro. O que não impede que o sogro o 'passe para trás' algumas vezes nas negociações.

Logo o jovem Zeno é apresentado à família do Sr. Malfenti, que já estava ciente dos estudos e sucessos do visitante. Um lar acolhedor muito bem cuidado por uma mulher de homem de negócios. O narrador revela que não se trata de um lar perfeito, pois o marido tem relações extraconjugais, e a mulher, ciente, até consente. Tudo em nome da instituição casamento. Em sua visita, Zeno conhece a pequena Anna, a jovem Augusta, a adolescente Alberta, e a madura Ada. Se o seu propósito é o casamento, o jovem precisa ser admirado pela observadora Ada, a quem atribui seriedade e energia.

Zeno tenta agradar a todas, ser um visitante espirituoso, atento as palavras, principalmente de Ada, preocupada com a condição das mulheres, que “falava com simplicidade, sem carregar nas cores, alheia a qualquer intenção de nos maravilhar ou divertir.” [p. 74], bem diversamente dele, que enfeita e floreia sua fala, até exageradamente. “Eu apreciava essa maneira simples de narrar, já que no meu caso era impossível abrir a boca sem desfigurar pessoas ou coisas, pois de outra forma me parecia inútil falar. Sem ser orador, sofria da doença da palavra. Para mim, a palavra devia ser um acontecimento em si e por isso não devia ser aprisionada por nenhum acontecimento.” [p. 74]

O jovem Zeno tinha a mania de querer agradar aos outros, de copiar a quem admira, de se adaptar ao interlocutor (como bem demonstram alguns políticos e burocratas), para ser melhor aceito e, se possível, ser amado. “É certo que senti, vagamente e logo de início, que, para ser agradável a Ada, teria que me mostrar um pouco diferente do que era; julguei que me seria fácil tornar-me o ser que ela queria.” [p. 77] Ele passa a se comportar segundo um propósito, atento a cada reação da futura noiva, “percebi que Ada estava imbuída do desejo de não desagradar-me. Por isso hesitava; mas todo o seu esforço não conseguia fazê-la vencer a hesitação.” [p. 77], pois acha que ser divertido é ideal para conquistar, “em geral a alegria me ajudava a fazer a boa figura que me havia favorecido junto às mulheres.” [p. 77].

O fato é que Zeno quer se casar, tem antes a motivação do que exatamente a noiva. Não quer 'perder tempo' em procurar, ou em esperar, como em 'romances de amor', antes tomar uma decisão e concluir o assunto. Que é mais fácil ele se adaptar, do que esperar a mulher ideal. Assim é melhor que ele se acostumasse a séria Ada, com que quem ele tem o propósito de se casar. As outras jovens têm talentos, gostam de música ou leituras. Mas não se encaixam no propósito, além do que ele tece seus julgamentos (ao mesmo tempo em que é julgado...) e só realiza o que agrada a possível noiva. “Era a mulher que u havia escolhido, já portanto minha, e adornei-a com todos os predicados para que o prêmio da vida me parecesse mais belo.” [p. 79] Assim, não seguir rumo a mulher ideal, mas idealizar a mulher que está acessível.

O narrador, a olhar para a jovem versão de si mesmo, percebe o quanto tal aventura é um tanto 'estúpida', motivada apenas pelo propósito de casar-se. “Essa aventura, que foi a mais cândida de minha vida, até hoje, já velho, recordo-a como se fosse a mais torpe.” [p. 80] Ele não quer se declarar logo, antes agradar a escolhida, em quem nota desdém. Ele confunde a idealização com a realidade a ponto de se equivocar, pois a moça não manifesta interesse por ele. Daí mais inferioridade, ao perceber que se enganara. Ele tenta ser agradável, até compartilha seus pensamentos, suas lembranças, suas aventuras, suas narrativas.

Ocorre lembrarmo-nos com mais fervor do passado quando o presente adquire uma importância especial para nós. Diz-se mesmo que os moribundos, em seu último delírio, reveem toda a sua vida. O meu passado então se agarrava a mim com a violência do último adeus, pois eu tinha a sensação de afastar-me muito dele.” [p. 81]

O insucesso de Zeno em desposar 'sua eleita' mostra o quanto ele é idealizador e demasiado inseguro. Ele que idealiza o casamento, idealiza a esposa, confiante na conquista, que se revela mero devaneio. Em algum momento a moça lhe dera sinal positivo? A amabilidade não seria antes cortesia, hospitalidade? Ele não sabe se situar, o que pensar. Ele mesmo idealizara a mulher e agora sofre com a recusa. Deverá renunciar ao casamento? “Sua recusa mudaria a minha vida. E continuava a sonhar, confortando-me no pensamento de que talvez aquela recusa representasse uma felicidade para mim.” [p. 86]

Quais as atitudes de um jovem viril disposto ao casamento? Mostrar segurança e colher a admiração da noiva. Pois ela deve admirá-lo, não casar apenas por interesse ou imposição familiar. Não basta que ela aceite a proposta, mas deseje ser a escolhida. Por outro lado, a família julga que o interesse dele visa outra – que ele pode comprometer outra. Deve ele esclarecer tudo? Deve se afastar da família? De parar de querer ser cortês e agradável? Assim: o que todo mundo vê que ele não consegue ver? Qual das irmãs seria a sua noiva?

Zeno tem sempre seus propósitos, os quais não cumpria. Sabe que é preciso cuidar dos negócios, ser um bom marido, abandonar o vício do fumo, ser sério e parar de inventar aventuras, que é preciso se dedicar às leituras proveitosas (economia? direito? filosofia? Ele não esclarece... ), assim sempre seus 'propósitos heróicos' que não passam de boas intenções fracassadas. Quando se vê afastado das irmãs casadouras, e principalmente da possível noiva, Zeno, o pretendente, se abrasa de ciúmes, deseja ardentemente aquela que está fora de alcance, até se julga apaixonado, destinado a um amor puro. Ao narrar, mais velho, ele se ri desse arrebatamento romântico, “Tão puro me tornava aquele amor!”, para considerar: “De tais dias sei ainda que os devaneios de amor eram aniquilados pela dura realidade. O sonho era agora diferente. Sonhava com a vitória em vez de com o amor.” [p. 97]

O narrador diz sofrer de algum mal-estar, uma doença, de origem psicossomática, devido aos seus anseios e insatisfações, num desgosto de auto-reprovação que se corporifica, “Desde muito me considerava enfermo, de uma enfermidade que antes fazia sofrer aos outros que a mim. Foi então que conheci a enfermidade 'dolorosa', uma quantidade de sensações físicas desagradáveis que me deixaram bastante infeliz.” [p. 98] Zeno sente compaixão de si mesmo, e espera a comiseração alheia, que ninguém lhe inveje o destino. “Senti-me mais infeliz do que nunca, e num mórbido estado de compaixão por mim mesmo compreende-se que eu me mostrasse bastante vulnerável.” [p. 100] Ele se torna altamente sugestionável, e apenas em ouvir falar de uma doença, um reumatismo, por exemplo, ele adquire os sintomas!

Zeno se sente em posição inferior, sempre percebendo outros com 'maior desenvoltura', enquanto ele sempre fracassa, como se fosse vítima de conspiração, daí não poder confiar nas pessoas ao seu redor. Afinal, quem levaria à sério um perdedor? Assim, é o martírio de Zeno, dono de grande sensibilidade, sem nutrir ilusões sobre si mesmo, mas sem qualquer 'desenvoltura' na vida social. Sempre outros ocupam espaço, conquistam as vagas, realizam as vendas, casam com as noivas em flor.

O jovem precisa voltar ao convívio da família de moças casadouras, nem que sejam para participar de 'mesas girantes' de sessão espírita (que ele, mente positivista, se soubesse antes que causaria tal sucesso, teria sugerido à mesmerizada família!) para protagonizar uma cena bufa de confissões e mal-entendidos entre as mocinhas que esperam antes que um espírito se manifeste do que um pretendente! Como é difícil contentar estas mocinhas casadouras – e que imprevisíveis! A quem foi concede atenção, retribui com desdém! E a quem você desprezava, mostra um olhar amoroso! No mais, a coisa se complica, quando surge um rival.

Precisa ele agradar ao rival para agradar a sua noiva a ser conquistada? Mas não sabe ele que é a outra irmã que o deseja? Ele é obrigado a ser espirituoso, agradar aos familiares das irmãs casadouras, até tolerar o exibicionismo do rival, que se mostra competente nas melodias do violino. Zeno não quer tecer elogios ao rival, mas como evitar o encanto da melodia que inunda aquele sarau? Agora, o Zeno narrador é capaz de apreender o que aconteceu ao Zeno enamorado,

Eu protestava, e Bach seguia seguro como o destino. A apaixonante melodia das cordas altas mergulhava à procura de um basso ostinato que nos surpreendia, não obstante o ouvido e o coração já o pressentirem, dada a sua precisão! Um átimo mais tarde, e o canto se teria dissolvido antes de ser alcançado pela ressonância; um átimo antes, e ela se teria sobreposto ao canto, destroçando-o. Tal não ocorria com Guido: não lhe tremia a mão nem mesmo executando Bach, o que me deixava em verdadeira inferioridade.

Hoje que escrevo, disponho de todas as provas disto. Não me gabo de ter então percebido o fato com tanta clareza. Na ocasião, estava repleto de ódio e nem aquela música, que eu aceitava como a minha própria alma, conseguiria aplacá-lo. Em seguida, o transcurso da vida comum de todos os dias acabou por anulá-lo sem que eu a isso opusesse tais milagres. Seria horrível se os gênios não se percebessem disso! [p. 122]

Em pleno apogeu do rival, o hesitante Zeno ousa declarar seu amor pela noiva ansiada. Claro que tudo concorre para que ele se complique mais. A irmã cortejada, a mais velha, sabe do interesse da mais jovem, e tenta tornar tudo claro para o pretendente. Mais mal-entendidos se sucedem, até uma cena de ofensas. Previsível, depois de todo o emaranhado caos promovido pelo protagonista. “Esqueci as muitas palavras de desdém que ela me dirigiu, mas não a sua face, bela, nobre e sadia, enrubescida pelo desdém e cujas linhas com a indignação se tornavam mais precisas, quase marmóreas. Jamais esquecerei; e quando penso em meu amor da juventude, revejo a bela, nobre e sadia face de Ada no momento em que me eliminou definitivamente de seu destino.” [p. 125]

Recusado pela mais velhas das moças casadouras, Zeno distribui sua propostas as outras mais jovens, sem medir as consequências de suas propostas, assim tão repentinas. Afinal, as outras sabem da recusa, e do despeito do pretendente sem sucesso. O que deseja Zeno senão companhia? Caso contrário, deverá ele se afastar daquela família plena de moças em flor? Então ele anuncia seu noivado com a irmã seguinte, Augusta, a menos bela, após as recusas de Ada, a madura, e Alberta, a adolescente. Trata-se de uma decisão certa? Zeno se casou com a mulher que o ama, mas a quem ele não ama. Tudo para ter paz e uma noite de sono.

Em vão, pois novas manifestações da estranha doença psicossomática voltam a afligir o jovem Zeno, como se um ataque de artrite ou nevralgia, próprios do reumatismo. É uma dor que passa a ser a verdadeira companheira, sempre lá, em sua carne, “essa dor nunca mais me abandonou”, até sua velhice, quando se senta para escrever este relato, entre triste e irônico, que agora acessamos, enquanto bons leitores. E é ao narrar que ele percebeu enfim a origem psicológica da dor: o sentimento de derrota diante do rival. “A origem odiosa da doença se perdeu, e agora foi inclusive difícil reencontrá-la.” [p. 132] É uma dor que se manifesta em outras partes do corpo, mas sempre a mesma dor, “É estranho como todas as partes de nosso corpo sabem doer da mesma forma.” [p. 133]

É o relato a forma de identificar – e, se possível, curar – a dor constante? “Talvez a psicanálise possa trazer à luz toda a perturbação por que passou meu organismo naqueles dias, especialmente nas poucas horas que se seguiram ao meu pedido de casamento.” [p. 133] Como pode a narração ajudar no processo de cura? Poderá ele se livrar de seus vícios e dores? Poderá se encontrar redimido perante si mesmo? Ele nos apresenta seu passado – num relato para o médico – e tenta se descobrir ao observar a versão mais nova e inexperiente de si mesmo.

Zeno, o narrador, pode olhar para trás para o jovem Zeno e entender melhor o vivenciado, pode se julgar. Por exemplo quando resume seu noivado, em breves linhas, “Foi um noivado trabalhoso. Tenho a impressão de havê-lo anulado várias vezes e refeito com grande fadiga outras tantas, e surpreende-me que ninguém se tivesse dado conta disso. Nunca tomei por inteiro as iniciativas do casamento: parece, contudo, que me comportei como noivo bastante amoroso.” [p. 140] Um noivado tedioso que parece sempre infinitamente igual, com os dois casais juntos numa sala de família burguesa, com as moças em amostras de trabalhos domésticos e os pretendentes em conversa. O rival, agora parte da família, tece considerações sobre música e pintura. Assim se passa o tempo.

Ele precisava agradar a família da noiva, mostrar uma paixão que não sente, elogiar sempre e ser gentil, pois não se deve ser frio com a futura esposa. Parece que ele reconhece que enganou a todos com seu exemplo de 'grande paixão'. Mas ele ainda hesita! Quer desistir do casamento, pelo qual sofreu tanta ansiedade. Mas acaba por firmar o compromisso, para descobrir que o “casamento é coisa bem mais simples que o noivado”, que até se casaria novamente, mas não seria noivo da mesma mulher. Quanto a mulher que ele dizia amar, a esta ele agora dedica um amor fraternal, como convém na condição de cunhada.

Mais uma fase se cumpriu na vida de Zeno Cosini, agora que espera no casamento uma tranquilidade que lhe foi negada antes. Ele descobre na companhia da esposa um envolvimento amoroso que não esperava. A amável esposa lhe dá uma nova segurança, com uma rotina doméstica de dedicação, e ele procura corresponder a esta segurança, e também sanidade – ser são de corpo e mente. Assim ele vê a saúde da esposa, tão segura com o lastro da tradição e da autoridade, “Estou analisando a sua saúde, mas não consigo fazê-lo, pois me acode que, ao analisá-la, converto-a em doença. E ao escrever sobre ela, começo a duvidar sobre se aquela saúde não careceria de cura ou tratamento. Vivendo ao seu lado durante tantos anos, jamais me ocorreu essa dúvida.” [p. 149]

Nada como a tradicional família patriarcal para domar e disciplinar um homem. Sim, pois a esposa contribui para o papel masculino, que antes era ironizado. “Colaborava para a constituição de uma família patriarcal e eu próprio me tornava o patriarca que no passado odiei e que agora me surgia como símbolo de saúde.” [p. 149] Ele assume este novo papel, o de homem tradicional, graças à dedicação da esposa (cúmplice no arranjo patriarcal?), mesmo que muitas vezes fosse difícil tal simulação, uma vez que a ironia pode corroer tudo. (No mundo tradicional a ironia seria uma forma de doença...) No mais, “a saúde impele à atividade e à aceitação de um mundo de enfados.” [p. 150]

É um verdadeiro dever o de se mostrar feliz e realizado! Excursões, visitas, compras, eis o que garante a sanidade dos recém-casados. Numa relação sorridente, onde um ri do outro, dos defeitos que julgam superados, dos ideais que são inalcançáveis, tudo para manter a instituição segura. Mas em vão, pois outras doenças podem surgir. Quando estamos felizes, temos medo de perder este bem-estar. Quando somos jovens, temos medo de envelhecer. Quando somos velhos, tememos a morte que se aproxima. Pois “a velhice causava-me temor pelo fato de me aproximar da morte.” [p. 152] quando ele não mais interferiria na vida da esposa, que logo o substituiria e o esqueceria. A esposa que é plena saúde, mas ele não, ele, ser de consciência, é doente, “os saudáveis não se analisam a si próprios, sequer se contemplam no espelho. Só os doentes sabemos algo sobre nós mesmos.” [p. 153] Então, quando atemorizado, ele busca conforto junto a mulher que é saudável.

Para o jovem Zeno o casamento significa paz, sossego, assim ele poderia se dedicar a alguma atividade produtiva. É quando ele resolve trabalhar, ao cuidar de seus negócios, mas apenas para descobrir que não pode administrar a própria herança. “É natural sentirmo-nos menos doentes quando temos pouco tempo para isso. Entreguei-me ao trabalho e, se nele não persisti, não foi de fato culpa minha.” [p. 155] Assim como o pai não confiava nele, o advogado com ares de tutor também não o leva à sério. As intuições de Zeno são desprezadas, o que vale é a palavra do Mercado, a intuição das Bolsas de Valores. Acontece que Zeno se afasta dos negócios e procura outros afazeres, tais como música, leituras, estudos religiosos. Ele descobre que religião é um conjunto de rituais, e que poucos se interessam por aprofundar em teologias. Ele que tem todo o tempo do mundo se debruça sobre misticismo e metafísica, mas vive um grande tédio,

Meu refúgio magnificamente organizado era vez por outra visitado pelo tédio. Tratava-se mais de uma ânsia, pois, embora me sentisse com forças para trabalhar, estava sempre à espera de que a vida me impusesse alguma tarefa. Nessa expectativa saía muitas vezes e passava horas seguidas no Tergesteo [a Bolsa de Valores de Trieste] ou num café.

Vivia numa simulação de atividade. Uma atividade aborrecidíssima. [p. 159]


No tédio, volta-se o olhar para as doenças, reais ou imaginárias. Será um quadro de hipocondria? Por que a insistência em contrapor doença à saúde? Torna-se uma verdadeira distração abordar e esmiuçar condições de enfermos e seus diagnósticos. Pior mesmo é ser um doente imaginário para o qual não há fármaco neste mundo que o possa curar! Ora, se Zeno é um doente imaginário, é um doente pacato, cuja doença a ninguém incomoda! Enquanto ao lado alguém pode desejar sinceramente ter uma doença, como uma necessidade. O doente imaginário não seria um futuro paciente de psicoterapia? Só o analista poderia propor terapia para uma doença de fundo psicológico? Como viver com uma doença nos nervos? Sentir a doença com antecedência, sofrer os sintomas meses, anos antes!

Em sua inatividade, em sua vida ociosa, Zeno esbanjava tempo em conversas, diagnósticos e filantropia. Tem a oportunidade de ajudar uma adolescente estudante de música, a quem faz um visita, ocasião na qual recolhe a gratidão alheia. Mas não fica apenas nesta visita, pois ele logo idealiza a mocinha, ao tentar vislumbrar talento na jovem de pálida beleza. Zeno sabe que nutrir desejo pela senhorita é colocar em risco a paz de seu casamento, mas como poderia fazer, ele dado aos vícios? A aventura amorosa seria uma forma de eliminar o tédio? “Por que o meu desejo haveria de infundir-me remorsos quando parecia destinado a salvar-me do tédio que àquela época me assaltava?” [p. 170] Mas ele mesmo tem consciência de seu remorso, que devia ser atenuado, “Minha consciência é de tal forma delicada que, à minha maneira, já então me preparava para atenuar meu futuro remorso.” [p. 170]

Zeno, o novo patriarca, está plenamente ciente dos riscos de uma aventura amorosa, sabe de seus deveres de homem casado. Mas esta consciência não o impede de se entregar aos vícios! Ele sabe, resiste um pouco mais, mas o vício (ou pecado, caso usemos um termo moral-religioso) acaba por vencê-lo. Tudo isso ele confessa. Por caminhos tortos, aos poucos, se desvia dos deveres, a justificar cada passo mal-fadado, a tentar legitimar cada má intenção, a manter as aparências. Camuflando suas intenções como auxílios a uma jovem artista, Zeno se aproxima daquela que deseja como amante. E ele sempre se esquivando, se explicando, cheio de bons propósitos. Ele hesita em cometer traição, mas, ao fim, se julga induzido a isso! Por ociosidade, por cegueira da esposa, por condescendência da senhorita?

Com a desculpa de entregar à jovem cantora um estudo de técnica vocal, a camuflar assim o seu desejo de revê-la, Zeno adentra o território da aventura, com até evidente cinismo, “Ser honesto é antes de tudo ser sincero, e de minha parte teria sido honestíssimo, aconselhando a pobre moça a abandonar o canto e tornar-se minha amante. Mas eu ainda não tinha chegado tão longe do jardim público e, além disso, não estava muito seguro de meu juízo crítico na arte do canto.” [pp. 175-176] Assim, em sua ociosidade, bastou a interferência de um amigo doente, dado à filantropia com dinheiro alheio, para que Zeno manchasse sua vida de casado, sabendo que só poderia ser freado “por minha própria consciência”.

Ele ousa se aproveitar da pobreza alheia, com o pretexto de incentivar os talentos artísticos da senhorita, ao criar um personagem: a do filantropo desinteressado. A mocinha, por outro lado, precisa de um protetor, e teme não agradá-lo. Pois ela sabe que sem a proteção de um homem rico não poderá seguir sua carreira, com o dom musical que julga ter! Por isso a estudante de canto não resiste a toda a aproximação do pseudo-filantropo. Se não fosse com este 'filantropo' seria com outro. (Mas, não seria esta uma desculpa forjada por ele? Afinal, não temos a versão dela para os fatos que somente ele vem narrar.) “As mulheres sempre sabem o que querem. Não houve hesitações nem por parte de Ada, que me repeliu, nem de Augusta, que me agarrou, nem muito menos Carla, que me deixou à vontade.” [p. 179]

A traição começa como aventura, e logo a dor na consciência se manifesta num desconforto físico, “Sentia-me diminuído, culpado e doente, e sentia uma dor ao lado como um reflexo, que revelasse a grande ferida que me ia na consciência.” [p. 179] Assim como julgava proibir-se de fumar, ele se julga capaz de impedir-se de trair – mas como o viciado se livra do vício, que o domina? Ele se permite satisfazer os caprichos da esposa, para que esta não desconfie de algum outro interesse por parte do marido. Mas ele precisa também satisfazer os caprichos da outra! Afinal, a outra já julga ter domesticado o protetor ao ter permitido o beijo. Mas o que ele espera da amante é apenas a submissão, a fraqueza que o excita.

Com sua traição, o narrador sabe que traiu a esposa e amante, mesmo quando julga ser um arauto da sinceridade. Quando julga ser sincero é que ele mente melhor! E a consciência de suas confissões-mentiras o mantém afastado da tranquilidade que ele almeja – é este o destino a ele reservado! A paz traz tédio, logo surge uma aventura, e a possibilidade de risco. Com a traição ele se sente desconfortável diante da esposa que o ama e que é tão segura. Como não confessar diante dela? Afinal, ela atuaria como uma extensão de sua própria consciência. A esposa poderia sentir a insinceridade do marido – bastaria vislumbrar-lhe a face, pois “a história de minha traição poderia assim estar inscrita na minha face honesta.” [p. 191]

Assim Zeno perdia a sua paz doméstica, a cura esperada, e novo vício o domina. “Eu permaneceria mais doente do que nunca e exposto aos meus danos e aos dos outros.” [p. 192] Ele tinha consciência e, mesmo assim, se deixou arrastar, “Tinha lamentado tanto minha traição antes de cometê-la que talvez parecesse ter sido fácil evitá-la. Podemos rir das boas intenções que ocorrem depois do acontecido, como também das que os antecedem, pois não valem de nada.” [p. 192] Sim, o que ele pode fazer é isso mesmo: rir das boas intenções. Enquanto todo um drama se desenrola na mente de Zeno a ponto de fazê-lo 'bater os dentes', a esposa julga que ele se deixou afetar pelo casamento da irmã, a mais velha, a escolhida. Mas, ele de imediato nega qualquer relação com o caso, e quase confessa. Mas ele volta a lembrar-se de sua doença imaginária, sua depressão, seu medo da velhice. Não há verdadeira confissão: e a última traição torna-se a primeira traição.

O narrador confessa que a traição é uma inautenticidade, “Eu jamais consegui ser natural com ela [a amante]” [p. 199], onde só a uma satisfação momentânea, sempre ameaçada por riscos e duplicidades. Ele diz que não sentia remorsos, que voltava para o lar, para os braços da esposa, que saberia não se comprometer mais, mas é todo um discurso para legitimar o que já acontecera. Não é autêntico com a esposa, assim como não é com a amante, pois em casa assume o papel do patriarca, “portei-me como devia portar-me com a mulher que era honesta e fielmente minha.” [p. 200], ele que não era inteira e sinceramente dela. Ele não quer cometer mais traições, mas é só o que consegue fazer!

Enquanto se dedica a trair a esposa, o patriarca Zeno comparece à festa de casamento da cunhada, outrora a escolhida. E é momento de agradar a todos, mostrar-se bom esposo, até marido-modelo, e não se embriagar, como logo aconteceu. Ele quer agradar e é, então, que ele se complica mais, se observa mais. Ele desconfia de si mesmo e tem medo de se delatar! Para ele o vinho não traz a verdade, mas desnuda nossas mentiras, desvela nosso passado, a deixar-nos nus diante da sociedade! Ficar bêbado no banquete da família é uma experiência memorável. (Ainda mais depois de ter visto o amigo falecido àquela mesma tarde, e ter ousado fazer piada com a morte alheia.)

Zeno mantém-se em sua aventura amorosa como firme propósito de voltar ao aconchego do lar, assim como fazia firme propósito de abandonar o vício do fumo. Sempre vai adiando a resolução de fazer cessar o vício – pois o vício é que o domina. É em vão dizer que o vício pode ser dominado com uma forte determinação: pois o vício já é um senhor e a vontade da vítima apenas um vassalo.

O que ele buscava era uma calma junto a amante, mantendo um ar paternal com a mocinha cantora. Até que a amante passe a invejar e ofender a esposa, o que causa remorso no marido infiel. Pois enquanto a esposa passa o tempo a cuidar do pai agonizante, o infiel é convidado a passar a noite com a amante. É tamanho o peso do remorso, que ele foge, enfrenta a chuva e vai se encontrar com a esposa junto ao sogro. Assim a amante vira foco de tensão, ainda mais quando ela tem novo professor de canto, quando surge o desassossego do ciúme, pois está ciente de que o professor se 'afeiçoa' à aluna. É ainda mais sensível quando sabe que junto a esposa ele tem o “ambiente de saúde e de honestidade” [p. 228]

É evidente: a relação de Zeno com a amante Carla é a mesma com o cigarro – abandonar o vício não hoje, mas amanhã. Mas é o vício que determina. Ele cede aos caprichos dela, mas não a assume, chega mesmo a renegá-la em público, apenas para dar motivo para ser abandonado. E quando ela o abandona é que ele a compreende melhor! Sim: a amante sabe que não ocupará o lugar da esposa, “elevada aos píncaros celestes”, e ela decide se casar com o maestro, o professor de canto, sem posição social. Tudo porque a amante resolve não participar mais da traição à esposa.

Enquanto isso, Zeno fica a saber que o talentoso Sr. Guido andava a trair a bela Ada – a escolhida – com uma simples criada! E tudo dentro da própria casa! E Zeno com tantos cuidados e malabarismos para ocultar sua traição! E ele sempre a sentir a falta da amante como se fosse um sintoma de abstinência: uma crise de aflição! Ele se irrita em casa, faz cenas, se desculpa, volta a procurar a amante, que já o excluiu da vida dela. É um viciado que corre atrás de nova dose de droga. E sem amante ele se retorce com a falta em perambulações pela cidade, “num passo ritmado, que ao menos serviria para dar um pouco de ordem ao meu espírito” [p. 250] até se acalmar, até se encontrar, “vi-me como se uma grande luz me houvesse projetado de corpo inteiro sobre o calçamento observado por mim.”, sabendo que sua grande calma era o fluxo rotineiro, a correnteza da “vida honesta de minha casa”, onde ele sempre fazia grandes propósitos, que nunca cumpriria.


continua ...



fonte: SVEVO, Italo. A Consciência de Zeno. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001


jan/14


Leonardo de Magalhaens






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