terça-feira, 30 de novembro de 2010

sobre Frankenstein - de Mary Shelley (3:3)




Sobre “Frankenstein” (1818)
de Mary Shelley (1797-1851)

Literatura de terror
(horror fiction)


Frankenstein
Contos de E A Poe
Dracula


O terror do que foge ao controle: a criatura contra o criador



p3




Saberemos como o monstro se 'educou'. Tal uma criança, ele aprende a usar os sentidos. Sofre com a solidão e o desamparo – como qualquer criança! É como se ele fosse o primeiro homem – Adão – jogado no mundo, um mundo ao qual deve se adaptar e, ao mesmo tempo, observar, descobrir, dominar. Desde o início, ele é bom, está fascinado com a natureza, os astros, os gorjeios dos pássaros, e a consciência de si – a deformidade – surge lentamente. Ele é um exemplo básico daquela teoria da 'tábula rasa' de Locke – pois deve aprender tudo – e também uma prova do nosso narcisismo – quando ele se percebe feio, começa o drama.

O monstro aprende a partir das experiências – precisa tocar as brasas da fogueira para saber que o fogo queima – eis o empirismo de Locke. De experiência em experiência ele cria 'conceitos' mentais – as ideias. Ou seja, nada há de um 'inatismo', um 'relembrar' segundo a doutrina platônica. O monstro está na natureza tal um homem pré-histórico, da idade da pedra, aprendendo a usar o fogo, a assar os alimentos, a guiar-se pela posição dos astros (o sol e a lua, principalmente) – ou seja, não sendo educado na civilização do século 18, o monstro repete os primeiros passos dos primeiros homens, antes da civilização.

Aliás, os primeiros contatos com os 'civilizados' são nada agradáveis – a deformidade do monstro sempre traz horror e rejeição. Agredido, a criatura passa a temer os humanos! A agressão – a maldade? - do monstro vem da agressão que ele sofreu primeiro. Ele é a vítima – rejeitado devido a aparênica! Às ocultas, o monstro passa a observar os humanos, nas aldeias, nos campos, nos casebres – o convívio das famílias.


Em alguns momentos, o monstro parece mesmo um anjo caído, um Lúcifer, no Paraíso Perdido, a observar o primeiro casal, no Jardim do Éden. Mas, na realidade, os humanos não são felizes. O sofrimento vem da carência, da pobreza (material ou intelectual). A vida no campo, nas aldeias mostra a divisão entre abundância urbana e penúria rural. O monstro até evita roubar os aldeões – para não prejudicar as pessoas! O monstro revela-se comovido com o sofrimento alheio!

E assim ele consegue aprender sobre os humanos. Descobre as palavras – que sons articulados significam coisas! - que transmitem emoções, conceitos, ideias, ofensas. A criatura passa a se afeiçoar aos humanos que observa – e até ajudá-los. Mas hesita em se revelar aos humanos. Pois começa a perceber a própria aparência que é mostruosa, “Ai de mim! Eu ainda não sabia inteiramente os fatais efeitos desta deformidade miserável.” (“Alas! I did not yet entirely know the fatal effects of this miserable deformity.” c. XII)

Ao reclamar de sua aparência, a criatura diante do Criador, lembra o Homem a se comparar aos Anjos, a querer dizer, 'por que não me fizeste tão belo quanto eles?' Não é outra a fonte de decepções do monstro (ainda não malévolo). A criatura aprende a entender o idioma, a entender a leitura dos livros – que um dos camponeses lê em voz alta. Ou seja, o monstro vai se instruindo, um belo autodidata! Percebe que o ser humano é capaz de ser nobre – mas também perverso e cruel.


A criatura passa a questionar a própria criação, o propósito do Criador – no caso, o Dr. Frankenstein – em fazê-lo tão disforme. “E o que eu era? Sobre a minha criação e sobre o meu criador eu nada sabia, mas sabia que não tinha dinheiro, nem amigos, nem propriedade. Eu era, além disso, dotado de uma figura horrivelmente deformada e abominável; eu não era da mesma natureza que o homem.” (“And what was I? Of my creation and creator I was absolutely ignorant, but I knew that I possessed no money, no friends, no kind of property. I was, besides, endued with a figure hideously deformed and loathsome; I was not even of the same nature as man.” c. XIII)

A criatura percebe ser um não-humano, um excluído, uma aberração! Um monstro do qual todos fogem e todos repudiam. Mas a criatura não é um animal selvagem – tem percepções e sentimentos humanos (aliás, tem a faculdade da linguagem...) O monstro percebe-se sem parentes, sem infância, sem carinho – como pôde ser possível a sua existência? O monstro é complexado pela falta de beleza – que impossibilita o 'narcisisimo'. Ele deseja e odeia a Beleza.

No capítulo XIV temo uma história dentro de uma narrativa dentro de uma história. É quando o monstro narra para Victor o drama da família De Lacey, exilada da França. (A estrutura narrativa deste romance de Mary Shelley é mesmo um jogo de encaixes – uma narrativa dentro de outra narrativa) Enquanto isso, são citadas as obras lidas pelo monstro (o que explicaria a fala até coerente ), obras encontradas numa mala perdida, lá a cobrir-se de bolor as páginas de Paradise Lost (Milton), Vidas (de Plutarco) e Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe), livros que passam a compor a cosmovisão (Weltanschauung) da criatura. Quer se explicar assim a 'erudição' do monstro que tece considerações sobre a 'moralidade humana' como se fosse um filósofo iluminista! (No mais o que pensamos ser o 'estilo' do monstro é o 'estilo' de Victor – e até que o 'estilo' de Victor não passe do 'estilo' do Capitão Walton, que escreve as cartas, diário de bordo...)

A criatura – horrenda e abandonada – passa a odiar o Criador (o Dr. Frankenstein a quem narra agora suas vicissitudes...) Se a criatura é uma espécie de Adão, onde está a Eva? Aqui, é evidente, o monstro parece mais um 'herói romântico' (até byroniano) do que um ser de filme de terror (como as tantas versões o retrataram...) O terror é a condição, a solidão – a crueldade é fruto amargo desta desesperança!

Igual a um Manfred, tal um Caim, a fala da criatura no capítulo XV, ao velho cego De Lacey, resume o drama do 'monstro de Frankenstein', “Eu sou uma criatura infeliz e abandonada; eu olho ao redor e não vejo parente ou amigo sobre a terra. [...] Estou cheio de medo, pois se eu fracassar, serei para sempre um pária no mundo.” (“I am an unfortunate and deserted creature; I look around and I have no relation or friend upon earth. [...] I am full of fears, for it I fail there, I am an outcast in the world forever.” c. XV)

Realmente, a horrenda criatura – com toda uma vida interior de 'poeta romântico' é um 'herói byroniano' por excelência. Rejeitado pelos humanos comuns, isolado, sozinho, rasteja nas margens, caminha na noite, jura vingança, nutre o ódio, é um maldito. Quer, então, uma noiva, para assim poder viver longe dos humanos – e evitar a maldade. O Adão monstruoso pede ao criador a esperada Eva monstruosa.

A cruel criatura é, na verdade, uma vítima de preconceitos – hoje, diríamo 'bullying' – e paga com crueldade a rejeição que recebeu. Assim são as crianças de ruas, os excluídos, que assaltam e matam os 'bons cidadãos'. A criatura era até bondosa, de sentimentos nobres – mas todos veem apenas a aparência disforme, o monstro. Então o monstro da aparência passa a contaminar a criatura do sentimento – e logo haverŕa um monstro 'por fora e por dentro'. Não hesitará em matar – e destruirá a felicidade da família Frankenstein.


“Pela primeira vez os sentimentos de vingança e ódio encheram meu peito, e não me esforcei para contê-los, mas deixei que brotassem numa torrente, inclinei-me para o prejuízo e para a morte.” (“For the first time the feelings of revenge and hatred filled my bosom, and I did not strive to control them, but allowing myself to be borne away by the stream, I bent my mind towards injury and death.” c. XVI)

É quando o monstro passa a procurar o criador - o Dr. Frankenstein – para se vingar. Então o monstro chega a Geneva (Genebra) e não demora a encontrar a propriedade dos Frankenstein – por puro acaso, como pode-se imaginar – e encontra o menino, o pequeno William, o irmão de Victor, e que será a primeira vítima. Agora o monstro tornou-se em definitivo aquele protagonista de um conto de terror.

O monstro é guiado pelo 'demônio interior' – tema muito frequente na obra de Edgar Allan Poe - “o pensamento virou loucura; esta atiçou o demônio dentro de mim” (“the thought was madness; it stirred the fiend within me -” c. XVI) Para cessar a vingança, o monstro tem uma exigência: quer que o Dr. Crie uma noiva para ele – será a noiva do monstro de Frankenstein! O monstro passa a perseguir Victor, pois exige a tal 'companheira'. Victor passa a sentir o peso da maldição tal um Manfred byroniano, a clamar por descanso na morte e nas trevas!

A relação criador – criatura é turbulenta. A criatura desafia o criador quando chama a si mesma de 'mestre', sendo Victor o 'escravo' - “És o meu criador, mas eu sou teu mestre: obedeça!” (“You are my creator, but I am your master: obey!”) Uma verdadeira temática 'senhor e escravo' que tanto fascinou filósofos tais comos Hegel e Nietzsche. O monstro jura vingança – se Victor não criar a 'companheira'. Na verdade, Victor quase dá vida ao novo ser – mas teme que uma raça de monstros se alastre pela terra. A vingança do monstro é anunciada - “Estarei contigo em tua noite de núpcias” (“I will be with you on your wedding-night”) - até porque o monstro sabe que Victor vai se casar com a querida Elizabeth.

O fato é que Victor sobrevive a toda a tragédia – para poder narrar ao capitão. Pois tal um herói byroniano, Victor Frankenstein é incapaz de alcançar a paz, o conforto, a consciência tranquila, “não há em todo o mundo qualquer conforto que eu possa receber” (“on the whole earth there is no comfort which I am capable of receiving” c. XXI) Victor, na verdade, até lamenta ter sobrevivi para narrar a tragédia.

Frankenstein, o Doutor, ajudou o capitão Walton a corrigir as notas sobre a tragédia – ou seja, o livro que acabamos de ler – as consequências das ambições científicas de um jovem genial, que pecou por excesso! Quantos não fizeram o mesmo e pagaram caro?! A Hybris (arrogância) merece uma Nemesis (vingança) implacável .

Victor passa a perseguir o monstro vingativo que destruiu toda a família Frankenstein – o monstro que fugiu ao controle. E a criatura arrasta o criador até as imensidões gélidas do norte – onde ocorrerá o encontro com a tripulação do capitão Walton – e nós leitores saberemos da drama todo.

Aprenderemos que quanto maior a audácia, o apogeu da experiência, maior a queda – a obra de Mary Shelley tem assim um final moralista, uma moral : não ouse, não desafie o Criador!



Frankenstein e Science Fiction

Em Frankenstein temos a criatura que foge ao controle do criador, nos contos de robôs – principalmente de Isaac Asimov – temos as máquinas criadas pelos humanos. Máquinas que podem fugir ao controle. Ou andróides – robôs humanóides – que se passam por humanos e cometem crimes (vejam o clássico “Blade Runner”, 1982, de Ridley Scott, baseado no livro de Philip Dick, “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, 1968). O ser humano cria os robôs – e os robôs se rebelam, querem o poder, fazem a 'revolução' – ver o filme “Exterminador do Futuro” (Terminator, 1984, de James Cameron ) onde ciborgues (robôs metálicos com forma e pele humanas) são caçadores de humanos resistentes.

Ou, num estilo mais psicológico, ou drama, o robô-menino de Inteligência Artificial (A. I. – Artificial Inteligence, 2001) de Kubrick e Spielberg, baseado na obra de Brian Aldiss, “Supertoys Last All Summer Long”, de 1969, onde o robô 'acredita' ser mesmo um menino e quando descobre ser uma máquina, tal um Pinóquio (ver a obra Pinocchio, 1883, do italiano Carlo Collodi) vai em busca da Fada Azul, para que ela o transforme em criança de carne e osso.

Isaac Asimov considera “Frankenstein” um precursor da Science-Fiction – junto com a obra de Jules Verne, “A Viagem à Lua” (1865 ) - mas Asimov não comenta outro livro de Mary Shelley, “The Last Man” (1826 ) sobre uma epidemia no século XXI.


Frankenstein e o cinema

Existem várias adaptações da obra de Mary Shelley para o cinema, ao longo do século 20, mas nenhum 'resgata' plenamente o livro, dão mais ênfase aos momentos de terror, não consideravam o fundo psicológico – mais explicitado nas cartas – e por tanto podemos dizer que são apenas 'inspirados' no romance Frankenstein.

A primeira é de 1910, uma filmagem primordial feita por Thomas Edison, depois, em 1931, outra versão mais de terror, que destacou Boris Karloff como protagonista. Seguiram-se outros filmes menos expressivos e até mais para o tom cômico.

Em 1994 foi a vez da versão de Kenneth Branagh, “Mary Shelley's Frankenstein” que procurou ser mais 'fiel' que os demais, contudo ainda não segue plenamente o enredo do romance.


Frankenstein e HQ

Um link para a revista em quadrinhos de Bernie Wrightsons. Imagens góticas para um ícone da literatura gótica de terror.

http://www.johncoulthart.com/feuilleton/2008/09/14/bernie-wrightsons-frankenstein/




set & nov/10
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário