terça-feira, 27 de setembro de 2011

sobre OLIVER TWIST - de Charles Dickens








Sobre “Oliver Twist” (1838 )
do escritor inglês Charles Dickens (1812-1870)


Testemunho literário da criança órfã

Ao retratar as condições da exploração e da miséria no país pioneiro da industrialização – a Inglaterra pós-Revolução Industrial de meados do século 18 –, ao apresentar o estado de tantos cidadãos privados da real cidadania, enquanto alguns privilegiados reservam para si os ganhos da nova expansão econômica, o autor inglês Charles Dickens dá voz a uma denúncia na obra literária onde o protagonista é uma criança.


Nesta obra “Oliver Twist” - nome do protagonista – há um interesse de desvelar as condições de miséria, numa obra em folhetins que visa além das vicissitudes do pobre menino órfão, figura central numa obra onde se evidencia o desejo de retratar a realidade da desigualdade social – após a Revolução Industrial de meados do século 18, na Inglaterra e na França. Os pobres são seres excluídos das benesses do novo mundo comercial – e apenas podem recorrer ao paternalismo das instituições públicas.


Ao mostrar em forma literária estes lados sombrios da industrialização, Dickens se projeta enquanto escritor além da própria época, pois é notado enquanto testemunho, não apenas para os contemporâneos, mas até para os historiadores. Como foi a época dita Vitoriana na Inglaterra? Como se expandia o Império Britânico? Como as condições sociais se apresentavam nas distintas classes em relação aos ganhos e perdas do industrialismo?


O autor Dickens é testemunha de uma época de mudanças, com a França napoleônica derrotada, com o reacionarismo na Europa central – com os governos austríacos e russo firmes no poder centralizador -, com o atraso econômico das futuras Itália e Alemanha, ainda em processo de unificação, somente completado no ano da morte do escritor inglês. No sentido de autor-testemunha temos outros 'Dickens'. Assim, o Charles Dickens da França seria Victor-Hugo, enquanto o da Rússia seria Dostoiévski. Autores que não hesitam em mostrar os lados pouco gloriosos de suas sociedades.


Especificamente, o tema de “Oliver Twist” é o da orfandade, o do desamparo de uma criança num sistema injusto. Se o mundo já é cruel para os adultos, então imagine para as crianças!


Não faltam outros órfãos na literatura da Era vitoriana, vide o caso de David Copperfield, protagonista de romance do mesmo Dickens, e de Jane Eyre da escritora Charlotte Brontë do romance homônimo publicado em 1847. Na França temos o Gavroche, no romance “Les Misérables” de Victor-Hugo. A questão dos 'meninos de rua' (na Inglaterra, 'street child'; na França, 'gamin';) já era visível no século 19. No século 20, a triste condição das crianças abandonadas se fez visível no Brasil – basta lermos “Capitães da Areia”, 1935, de Jorge Amado.


Meus artigos sobre “Os Miseráveis
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/05/sobre-os-miseraveis-de-victor-hugo-1.html
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/06/continua-o-ensaio-sobre-os-miseraveis.html

.
mais info sobre “Jane Eyre
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jane_Eyre
movie 2011 trailer
http://www.youtube.com/watch?v=C8J6Cjn06kA

movie 1996
http://www.youtube.com/watch?v=MsB3pTdg3RM


Mais sobre os órfãos na literatura da Era Vitoriana
http://www.victorianweb.org/genre/childlit/childhood4.html
.



No formato folhetim – em publicação seriada, descontínua, não em livro, mas jornal – ajuda a criar um clima de suspense, pois o narrador interrompe a ação muitas vez num ápice, num aparente beco-sem-saída, onde o protagonista está nas mãos do(s) antagonista(s). Assim o leitor é 'fisgado' para acompanhar o desenrolar do enredo no próximo capítulo – na próxima edição do jornal. Assim cada capítulo apresenta uma súmula dos acontecimentos, para excitar a curiosidade dos leitores. (Assim faziam também um Cervantes, em seu extenso “Dom Quixote”, no século 17; Defoe e Swift, no século 18, com suas respectivas obras “Robinson Crusoé” e “Viagens de Gulliver”)

Vejam meus ensaios sobre estas obras em:

http://leoliteratura.zip.net/arch2008-09-28_2008-10-04.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/01/sobre-robinson-crusoe-de-d-defoe.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/09/as-viagens-de-gulliver-swift-parte1.html


O narrador de Oliver Twist se simpatiza evidentemente com o protagonista, o pobre órfão Oliver, e não hesita em caricaturas ao ironizar os antagonistas – os gentlemen, um tanto quanto obesos, que fazem caridade, os protetores de órfãos (Protetores? Como assim? Parecem mais uns carcereiros...) As contradições do sistema social são todas desmascaradas. A presença da riqueza (sugada das colônias ao redor do mundo) ao lado da miséria mais vergonhosa. Contradições. A bondade precisa da miséria? É preciso haver pobres para que os ricos possam exercer a piedosa caridade?


Conhecemos as 'workhouses' inglesas, os abrigos para os pobres e miseráveis, uma amostra do paternalismo dos Estado burguês em relação aos pobres. Uma forma de conter a miséria? Ou de isolar e controlar os pobre? Podemos ver análises mais profundas na leitura que o francês Michel Foucault faz dos asilos, hospícios, orfanatos e prisões enquanto benevolências estatais que visam 'vigiar e punir'.

O livro de Foucault chama-se justamente “Vigiar e Punir”, “Surveiller et Punir”, publicado em 1975

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vigiar_e_punir


Vários cidadãos se aproveitam da miséria alheia. O limpa-chaminés emprega crianças num trabalho insalubre e perigoso (ver outros casos na Europa, principalmente norte da Itália e Suíça, onde as crianças faziam o trabalho sujo, e morriam entaladas nas chaminés ou com câncer nos pulmões...) com a conveniente (para os exploradores...) aprovação dos ditos filantropos, além das autoridades.



É um drama real. Existem dois poemas do poeta William Blake que testemunham a presença miserável dos limpador-de-chaminés, “The Chimney-Sweep”, vejam o links. Blake fazia uma denúncia da modernidade industrial que condenava tantos a uma vida de misérias, enquanto alguns fidalgos lucravam.
.
The Chimney Sweep
http://www.online-literature.com/blake/628/
http://en.wikisource.org/wiki/The_Chimney_Sweeper_(Blake,_1794)
.

As descrições longas e complexas transmitem as imagens da London sombria, aquela mesma do fog noturno, com médicos e monstros, a London dos bairros miseráveis no país pioneiro do industrialismo. Seria justamente em London que o exilado Karl Marx ( 1818- 1883) escreveria a obra O Capital (“Das Kapital”, 1867), denunciando as explorações que moviam a acumulação capitalista.


Daí o assistencialismo para aliviar as agruras do capitalismo nascente, causador do êxodo rural para as grandes cidades, onde os camponeses são mão-de-obra barata para as indústrias em criação, ou então tripulação para os navios mercantes que percorrem o mundo na formação do Império Britânico (século 16 ao 20).


Foram assim as trágicas condições do êxodo rural, com a consequente exploração da mão-de-obra, que se repetiram na Alemanha e na Rússia no final do século 19 e no Brasil no início do século 20.


meu ensaio sobre “O Médico e o Monstro
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html

filme 1990
http://www.youtube.com/watch?v=ENrdQ2gStYU&feature=related

o trailer do filme “Sweeny Todd” (2007)
http://www.youtube.com/watch?v=L_hgrfZVlJA


Além do contexto, da época, da denúncia, temos o fenômeno da linguagem, da narrativa, do modus operandis da obra. Há uma linguagem prosaica e coloquial em Charles Dickens (assim como encontramos antes em outro clássico: Victor Hugo) quando apresenta aspectos do mundo que não eram interessantes aos círculos literários.


Assim como Victor Hugo, na obra “Os Miseráveis”, ao usar os termos de baixo calão e gírias de bandidos – a ponto de causar escândalo entre os literatos conservadores – , também Dickens usa gírias de criminosos e de miseráveis do subúrbio em suas obras, com destaque para “Oliver Twist”, onde o desejo de retratar a realidade da desigualdade social precisa se aliar a um registro das culturas à margem do mundo letrado e literário.


Nas citações de trechos do livro de Dickens (com tradução by LdeM) as fontes são a edição “Oliver Twist”, 1966, da Penguin Books e o arquivo da Wikisource.

O tom irônico do narrador é amargurado quando cita as condições de precariedade da infância de Oliver, vítima, cativo numa casa para pobres. Subnutrido, reprimido, sujeito a todo tipo de humilhação. A alimentação precária cria crianças doentias, anêmicas, apáticas. Nada de bom sairá deste assistencialismo para inglês ver.

“Não pode se esperar que este sistema de cultivo produzisse algum tipo de safra extraordinária ou esbelta. O nono aniversário de Oliver Twist encontrou-o na condição de criança pálida e franzina, diminuto em tamanho, e decididamente pequeno em dimensão. Mas a natureza ou a herança implantou no coração de Oliver um bom ânimo robusto. E tivesse tido pleno espaço para se expandir, graças à dieta disponível do estabelecimento; e talvez à esta circunstância seja atribuída o fato de ele ter afinal um nono aniversário.”
.
“It cannot be expected that this system of farming would produce any very extraordinary or luxuriant crop. Oliver Twist's ninth birthday found him a pale thin child, somewhat diminutive in stature, and decidedly small in circumference. But nature or inheritance had implanted a good sturdy spirit in Oliver's breast. It had had plenty of room to expand, thanks to the spare diet of the establishment; and perhaps to this circumstance may be attributed his having any ninth birth-day at all.” (p. 49, cap. 2)


Sabemos o quanto Oliver sofreu no orfanato (aqui, workhouse, termo intraduzível, por ser típico do contexto britânico), onde vivera toda a infância, e agora seria 'negociado' como aprendiz para algum explorador de mão de obra infantil. Ao deixar seu 'lar', onde tanto sofreu, ele ainda chora.


“Esta não foi grande consolo para a criança. Jovem como ele era, de qualquer modo, ele tinha senso suficiente para fazer um dissimular de sentimento a continuar em grande mágoa. Não era questão difícil para o menino ter lágrimas nos olhos. Fome e mal-tratos são bons ajudantes quando se quer chorar; e realmente Oliver chorava mui naturalmente. A Sra. Mann dava-lhe mil abraços, e o que Oliver preferia mais, um pedaço de pão com manteiga, menos ele pareceria tão faminto quando ele fôra para a workhouse. Com uma fatia de pão na mão, e o pequeno gorro paroquial de tecido marrom sobre a cabeça, Oliver foi então levado pelo Sr. Bumble do lar miserável onde nem uma palavra ou olhar gentil jamais iluminou o tom sombrio de sua infância. E ainda ele irrompia numa agonia de mágoa infantil, quando o portão da cabana fechou-se atrás dele. Miserável tal qual os pequenos companheiros de miséria que ele deixava para trás, eles foram os únicos amigos que ele conhecera; e um senso de sua solidão no grande mundo, imergiu em seu peito infantil pela primeira vez.”
.

This was no very great consolation to the child. Young as he was, however, he had sense enough to make a feint of feeling great regret at going away. It was no very difficult matter for the boy to call tears into his eyes. Hunger and recent ill-usage are great assistants if you want to cry; and Oliver cried very naturally indeed. Mrs. Mann gave him a thousand embraces, and what Oliver wanted a great deal more, a piece of bread and butter, less he should seem too hungry when he got to the workhouse. With the slice of bread in his hand, and the little brown-cloth parish cap on his head, Oliver was then led away by Mr. Bumble from the wretched home where one kind word or look had never lighted the gloom of his infant years. And yet he burst into an agony of childish grief, as the cottage-gate closed after him. Wretched as were the little companions in misery he was leaving behind, they were the only friends he had ever known; and a sense of his loneliness in the great wide world, sank into the child's heart for the first time.” pp. 52-53, cap. 2


Temos descrições detalhadas da cidade, capital britânica, numa época que supomos de prosperidade – no ápice do Império Britânico, a Era Vitoriana – mas que não é tão próspera assim para todos. Somente alguns lucram com o imperialismo. Lembramos das descrições de Paris na prosa de Victor Hugo e na poesia de Baudelaire. As cidades grandes enquanto lugares pouco convidativos, enquanto espaços desiguais, onde a miséria é a contraparte do luxo.


“Eles andaram, por algum tempo, através da parte mais tumultuada e densamente povoada da cidade; e então, avançando por uma ruela mais suja e miserável do que qualquer outra na qual passaram, pararam para procurar a casa que era objeto da procura. As casas de um lado ou outro eram altas e largas, mas muito antigas, e ocupadas por pessoas da classe mais pobre: como a aparência negligente deles teria sido suficientemente notada, sem o concorrente testemunho permitido pelos esquálidos olhares dos poucos homens e mulheres que, com braços inclinados e corpos meio dobrados, ocasionalmente a se esconderem. A grande maioria dos blocos de casas tinham lojas na frente; mas estas eram logo fechadas, e decaíam; apenas os cômodos superiores eram habitados. Algumas casas que ficaram inseguras devido a idade e decadência, eram prevenidas de caírem na rua, por imensos vigas de madeira apoiadas contra as paredes, e firmemente plantada na rua; mas mesmo estes antros loucos pareciam ter sido selecionados como os abrigos noturnos de alguns miseráveis sem-casa, pois muitas tábuas rudes que substituíam o lugar de porta e janela, eram arrancadas de seus lugares, para permitir uma abertura suficiente para a passagem de um corpo humano. O canil estava imundo. Os muitos ratos, que aqui e ali jaziam putrefatos em sua podridão, estavam horrendos com fome.”
.
“They walked on, for some time, through the most crowded and densely inhabited part of the town; and then, striking down a narrow street more dirty and miserable than any they had yet passed through, paused to look for the house which was the object of their search. The houses on either side were high and large, but very old, and tenanted by people of the poorest class: as their neglected appearance would have sufficiently denoted, without the concurrent testimony afforded by the squalid looks of the few men and women who, with folded arms and bodies half doubled, occasionally skulked along. A great many of the tenements had shop-fronts; but these were fast closed, and mouldering away; only the upper rooms being inhabited. Some houses which had become insecure from age and decay, were prevented from falling into the street, by huge beams of wood reared against the walls, and firmly planted in the road; but even these crazy dens seemed to have been selected as the nightly haunts of some houseless wretches, for many of the rough boards which supplied the place of door and window, were wrenched from their positions, to afford an aperture wide enough for the passage of a human body. The kennel was stagnant and filthy. The very rats, which here and there lay putrefying in its rottenness, were hideous with famine.” p. 81, cap. 5


Oliver é o pobre órfão explorado e humilhado na casa do fazedor de caixões, então o pequeno órfão resolve fugir – a pé para Londres. (Em “David Copperfield”, é o protagonista que, assaltado e desamparado, vai a pé de Londres a Dover, numa longa caminhada de quatro dias.) Estamos diante do menino em crescimento, ao perceber o mundo, quando Oliver passa a ficar mais interessante, pois ele toma atitudes, não se deixará tão passivo – ou ingênuo, como queiram.


Ele chegará em Londres, ou antes, no caminho, já entrará em contato com outras personagens, outras figuras à margem, vultos do submundo, pessoas que lutam para sobreviver na miséria gerada pela desigualdade de renda. Meninos que roubam para viver. Mas Oliver, ainda aprisionado (ou protegido) pela ingenuidade, demorará um tempo para se aperceber disso.


O garoto, com aspecto de pequeno adulto, que Oliver encontra, de modo tão inesperadamente, meio a jornada, será então o guia para o submundo, onde as vítimas do sistema se tornam novos criminosos, novos réus. Aparece a figura do judeu Fagin, que explora as crianças pobres, treinando-as para um interessante 'jogo' de tirar os pertences dos gordos gentlemen, enquanto os cidadãos flanam pelas tumultuadas ruas londrinas.


As descrições de Dickens são primorosas – ele deseja que o leitor veja o que ele imagina – monta tudo como um cenário, no qual inserir as personagens, que completam a descrição com a sequência de diálogos – tal qual estamos acostumados hoje nas telenovelas: pois tudo começou com as novelas em folhetim, no século 19. É primorosa a descrição do habitat do desonesto Fagin.


“As paredes e teto da sala eram totalmente sujos e enegrecidos com o tempo. Havia uma mesa de madeira diante do fogo: sobre a qual havia uma vela, enfiada numa garrafa de cerveja, dois ou três potes, um pão e manteiga, e um prato. Numa frigideira, que estava ao fogo, e que estava segura à cornija da lareira por um fio, algumas salsichas cozinhavam; e estando de pé sobre elas, com um garfo nas mãos, estava um enrugado velho judeu, cuja perversa e repulsiva face estava obscurecida por uma entrelaçada mecha de cabelo rubro. Ele vestia um roupão de flanela todo seboso, com o pescoço exposto; e parecia dividir a atenção entre a frigideira e o cabide, sobre o qual pendia um grande número de lenços de seda. Muitas camas rudes feitas de sacos, estavam ajuntadas lado a lado no chão. Sentados ao redor da mesa estavam quatro ou cinco meninos, nenhum deles mais velhos que Dodger, fumando longos cachimbos de argila, e bebendo aguardente com ares de velhos senhores. Todos estes se amontoaram ao redor do companheiro deles quando ele sussurrou ao judeu umas poucas palavras; e então voltaram-se e sorriam em careta para Oliver. Assim fez o próprio judeu, com o garfo na mão.”
.
The walls and ceiling of the room were perfectly black with age and dirt. There was a deal table before the fire: upon which were a candle, stuck in a ginger-beer bottle, two or three pewter pots, a loaf and butter, and a plate. In a frying-pan, which was on the fire, and which was secured to the mantelshelf by a string, some sausages were cooking; and standing over them, with a toasting-fork in his hand, was a very old shrivelled Jew, whose villainous-looking and repulsive face was obscured by a quantity of matted red hair. He was dressed in a greasy flannel gown, with his throat bare; and seemed to be dividing his attention between the frying-pan and the clothes-horse, over which a great number of silk handkerchiefs were hanging. Several rough beds made of old sacks, were huddled side by side on the floor. Seated round the table were four or five boys, none older than the Dodger, smoking long clay pipes, and drinking spirits with the air of middle-aged men. These all crowded about their associate as he whispered a few words to the Jew; and then turned round and grinned at Oliver. So did the Jew himself, toasting-fork in hand." p. 105, cap. 8


Oliver é 'convidado' a integrar-se ao grupo de meninos e participar dos treinamentos para um interessante 'jogo' – o de como tirar os lenços e carteiras dos bolsos e paletós alheios – mas sem despertar a atenção das vítimas. Ser o mais sutil e eficiente possível, tirar um pertence sem levantar suspeitas...


Certamente que a narrativa é irônica. Afinal que 'hopeful pupils' (discípulos esperançosos) temos aqui? Não são apenas pobres crianças exploradas por um bandido? Ele, o judeu com ares suspeitos, 'ampara' as crianças desde que elas 'trabalhem' para ele – ou seja, pratiquem os pequenos furtos. As crianças estão sob a 'proteção' de um criminoso em tanto desamparo como quando sob a tutela dos 'sábios cavalheiros' das instituições públicas filantrópicas.


Qual a diferença entre os 'gentlemen' que lucram com a 'venda' das crianças para os cargos de 'jovens aprendizes' em relação ao bandido que usa as crianças para lucrar com pequenos furtos? Em ambos, as crianças servem a interesses alheios – que em nada aliviam a miséria e desamparo delas.


O uso da fala coloquial e de gírias aumenta o teor de hilaridade trágica – afinal, as crianças são mais vítimas de um sistema mercenário do que realmente culpadas pelos pequenos roubos.

Assim, Oliver entra no estilo de vida bem animado dos pupilos do Sr. Fagin, crápula, sem escrúpulos, explorador de crianças pobres. O 'jogo' de tirar pertences alheios é exaustivamente praticado para manter os meninos em forma para o 'jogo' lá nas ruas do mercado, no meio da multidão. Oliver vê como um 'jogo', mas sabemos – enquanto bons leitores que somos – que toda a cena é por demais clara: os meninos treinam para serem batedores-de-carteira, para serem eficientes ladrões. Que belo aprendizado!


Mais tarde, Oliver perceberá finalmente em que espécie de jogo ele está envolvido, ao contemplar Dodger e Bates, os eficiente meninos, em ação,

“Com que horror e alarme estava Oliver quando ele parou a poucos passos, com suas pálpebras bem abertas, tanto quanto possível, a ver Dodger mergulhar sua mão dentro do bolso do velho cavalheiro, e tirar de lá um lenço! A ver a mão de Charley Bates fazer o mesmo; e finalmente observá-los, ambos correndo a fugir rumo a esquina com toda velocidade!

Num instante o completo mistério dos lenços, e os relógios, e das joias, e o judeu, percorreu a mente do menino. Ele parou, por um momento, com o sangue pulsando de terror, a ponto de sentir-se queimando vivo; então, confuso e assustado, ele escapuliu; e, sem saber o que fazia, ele correu tão rápido quanto poderia seus pés no chão.

Tudo foi num espaço de um minuto. No instante exato em que Oliver começou a correr, o velho cavalheiro, ao colocar a mão no bolso, e sentindo falta do seu lenço, voltou-se brusco ao redor de si. Ao ver o menino escapulir com rapidez, ele naturalmente concluiu que aquele era o ladrão; e começou a gritar 'Pega ladrão!' com toda força, correu atrás dele, a segurar um livro.”
.
"What was Oliver's horror and alarm as he stood a few paces off, looking on with his eyelids as wide open as they would possibly go, to see the Dodger plunge his hand into the old gentleman's pocket, and draw from thence a handkerchief! To see him hand the same to Charley Bates; and finally to behold them, both running away round the corner at full speed!

In an instant the whole mystery of the hankerchiefs, and the watches, and the jewels, and the Jew, rushed upon the boy's mind. He stood, for a moment, with the blood so tingling through all his veins from terror, that he felt as if he were in a burning fire; then, confused and frightened, he took to his heels; and, not knowing what he did, made off as fast as he could lay his feet to the ground.

This was all done in a minute's space. In the very instant when Oliver began to run, the old gentleman, putting his hand to his pocket, and missing his handkerchief, turned sharp round. Seeing the boy scudding away at such a rapid pace, he very naturally concluded him to be the depredator; and shouting 'Stop thief!' with all his might, made off after him, book in hand."
p. 114, cap. 10


Encontrar Oliver assim envolvido no mundo dos criminosos é de partir o coração. E era exatamente isso que o autor Dickens pretendia : emocionar a plateia com as vicissitudes do protagonista tão ingênuo. Eis onde a ingenuidade leva: o pequeno órfão entra para uma gangue de menores infratores. Aumenta-se o ingrediente de peripécias – e emoção! - com as cenas de pequenos roubos, ainda que tenha-se que arruinar a pureza de Oliver – até então irreprovável.

Esta complexa condição da criança-protagonista enquanto herói envolvido com anti-heróis está presente também em obras como “Meninos da Rua Paulo” (1906, de Ferenc Mólnar) e “Capitães da Areia” (1935, de Jorge Amado), obras das quais brevemente nos ocuparemos aqui.


Mas Oliver consegue atrair a atenção do cavalheiro que foi vítima – o Sr. Brownlow – que não acreditar que o pequeno Oliver seja mesmo um batedor-de-carteiras. E o cavalheiro faz de tudo para esclarecer o roubo, e assim inocentar o nosso protagonista. Para evitar que Oliver seja incriminado, o Sr. Brownlow intervém junto às autoridades e consegue obter permissão para cuidar do menino.


O narrador onisciente alterna cenas de Oliver sob os cuidados do Sr. Brownlow e da Sra. Bedwin, com as cenas no interior do covil do meninos criminosos. O contraste entre os solícitos e altruístas com os egoístas e mercenários. A figura do Sr. Brownlow é contrastada com a presença do destemido bandido arrombador, o cruel Bill Sikes, que traz afetivamente cativa uma mocinha, meio anti-heroína, chamada Nancy.


Mas a permanência de Oliver na confortável casa do Sr. Brownlow é muito curta. Logo, o menino, ao ser enviado para devolver uns livros, é 'resgatado' por uma mocinha do grupo de pequenos ladrões. Oliver é levado de volta ao covil do judeu Fagin, pois este teme que o menino denuncie os avanços 'pedagógicas' do grupo de 'esperançosos pupilos'.


Logo Oliver está envolvido em crimes mais sérios, por exemplo, arrombamentos. O professor é o cruel Sikes, que usa os meninos para adentrar uma mansão e localizar bens preciosos para o roubo. A invasão, felizmente e infelizmente, não obteve sucesso e o indefeso Oliver é ferido. Mas para a sua sorte – felizmente – ele é acolhido pelos donos da casa, quando os 'colegas' ladrões fogem.


O próprio narrador tem consciências das alternâncias e vicissitudes que afligem a vida do pobre protagonista. É assim logo no início do Capítulo 17, quando apresenta um novo antagonista. O narrador se permite uma espécie de pausa meditativa, para abordar a própria tarefa de narrar, a própria condição de autor, aquele que é responsável pelos focos narrativos, pela escolha das sequências, ao manter uma atmosfera de suspense, ainda no gênero descontínuo do folhetim “sendo a habilidade de um autor, para tais críticos, principalmente considerados em relação aos dilemas nos quais ele deixa seus personagens ao final de cada capítulo: esta breve introdução agora talvez deva ser considerada desnecessária” (“an author's skill in his craft being, by such critics, chiefly estimated with relation to the dilemmas in which he leaves his characters at the end of every chapter: this brief introduction to the present one may perhaps be deemed unnecessary.” p. 169)


Não bastavam os inimigos que Oliver já coleciona – autoridades, gentlemen, limpadores-de-chaminés, agentes funerários, bandidos – agora outra personagem rasteja nas sombras. Quem é o tal Monks que se obstina em perseguir Oliver? Por que tanto esforço em arruinar a vida do menino? De onde Monks conhece o nosso protagonista?


O misterioso Monks demonstra saber muito sobre as circunstâncias do nascimento de Oliver – e ele quer saber mais. Por que tanta obstinação? Interesse que muito intriga o próprio antigo bedel. Será que Monks é o pai de Oliver? É possível que ele tenha abandonado a mãe do menino quando ela se declarou grávida... Agora Monks quer ter certeza?


Eis o mistério que re-aquece o interesse de nós leitores para prosseguirmos no folhetim por mais uns 40 capítulos … Uma verdadeira novela – futuramente teremos as 'telenovelas' - em longas sequências arquitetadas de modo a cativar a atenção dos leitores (ou telespectadores) enquanto durar a série. O enredo é dado aos poucos – é impossível para o leitor folhear até o final para saber como vai acabar a trama.


Enquanto os bandidos da gangue de Fagin, Sekis, e o misterioso Monks armam para destruir o protagonista, de outro lado o Sr. Brownlow não desistiu de sua simpatia por Oliver. Quer saber mais sobre o nascimento do menino, inclusive descobrir onde nasceu e em que circunstâncias. Assim temos duas personagens a 'vasculharem' o passado do protagonista, mas com propósitos diversos. Enquanto Monks quer 'provar' o caráter irrecuperável de Oliver, o Sr, Brownlow quer provar o contrário, que o menino é bom, e não será corrompido.


Enquanto Oliver recebe cuidados e carinho na casa, que ajudara antes a invadir, os gatunos da gangue do Fangin traçam planos para recapturar o menino. Mas providencialmente – ou porque o autor assim deseja – acontece a volta do Sr. Brownlow, que é reconhecido por Oliver. É preciso que o protagonista prove que não sumiu com os livros, mas foi capturado antes pelos bandidos.


Os inícios dos capítulos geralmente são descritivos – assim montam o cenário – para a introdução das personagens, com suas ações e diálogos. O tipo de descrição já faz prever o que será narrado – ora lúgubre, ora irônica – de acordo com as situações vivenciadas, sofridas, toleradas pelo protagonista (ou pelos antagonistas dele). O narrador é esperto ao alternar descrições, dramas, diálogos, novas descrições, numa tessitura verbal que mantém o leitor em suspense. (Hoje em dia isso é feito pela mídia visual – teatro, cinema, televisão – não sendo mais exclusividade da boa literatura)

Quando a narração perde o impulso, quando há uma pausa na sequência de vicissitudes, o narrador aproveita para se manifestar, se explicar, dialogar com os possíveis leitores (é aquele narrador de Sterne, de Machado de Assis, e de José Saramago, uma voz manifesta e explícita, que bem conhecemos). Vejamos um exemplo, quando na súmula do capítulo, o narrador se explica, quase pede paciência ao leitor. Este capítulo parece pouco importante? Nada disso: tem algo que será importante nos seguintes.

Capítulo 36 “É um bem curto, e deve até parecer aqui sem muita importância. Mas deve ser lido, apesar disso, como uma sequência ao último [capítulo], e uma chave para o que se segue quando for o momento” (“Is a very short one, and may appear of no great Importance in its Place. But it should be read, notwithstanding, as a Sequel to the last, and a Key to one that will follow when its Time arrives.” p. 318)

O narrador não hesita em lembrar que se trata de uma narração, e que há um leitor ali do outro lado. “Capítulo 37 – No qual o Leitor deverá perceber um contraste, não incomum em casos matrimoniais” (“In which the Reader may perceive a Contrast, not uncommon in matrimonial Cases”)


O pequeno resumo no início de cada capítulo cria uma expectativa, levada ao ápice durante a leitura, que se encerra no momento de anunciar o próximo capítulo. Esta forma de enredo serial acabou por gerar formas culturais que temos até hoje nas telenovelas e séries (veja por exemplo os seriados norte-americanos, que se estendem por várias temporadas, em enredos complexos) que exploram a curiosidade - sempre incentivada - da plateia.


O enredo precisa ser complexo – com vários sub-tramas paralelas – para alongar as aventuras (e desventuras) antes de apresentar as resoluções dos conflitos. Quem é mesmo Oliver? Quem é o Sr. Brownlow que pesquisa sobre o passado de Oliver? Quem é Monks que tenta apagar o passado de Oliver? O que acontecerá com a gangue de meninos ladrões de Fagin? O que acontecerá com o cruel arrombador Bill Sikes? São estes os motivos que cativam o leitor.


Sabemos que o(s) antagonista(s) merecem uma punição. Punição esta que terá vez em momento oportuno – isto é, nas páginas finais do romance-folhetim. E muitas vezes o que parece ser o pior vilão ainda mostra-se 'fraco' perto de alguém ainda mais perverso. Aqui em “Oliver Twist” se pensamos que os vilões são o aliciador de menores Fagin ou o ladrão-arrombador Sikes, é porque ainda não entendemos o verdadeiro papel de Monks neste enredo. Ele é a verdadeira sombra na vida do menino Oliver. Monks é em verdade o antagonista-mor nesta triste história do órfão. Quem é ele? Qual o interesse em destruir a vida do pobre órfão? O mistério vale a leitura.


A quantidade de antagonistas e figurantes (muitos são explícitas caricaturas como o bedel Bumble ou o vilão Fagin) que cercam o protagonista servem ao mesmo tempo para destacar a importância do contexto – a sociedade ao redor de Oliver – como para ressaltar o indivíduo Oliver – a personagem mais bem apresentada. Sendo Oliver o foco da narrativa, com tudo girando ao seu redor, não é de se admirar que os eventos aconteçam a partir de Oliver – e não, como é lógico, da sociedade (os outros) para Oliver (geralmente o afetado, o vitimado). Isso acontece porque nossa atenção está toda em Oliver, que cativa nossa compaixão.


Mas podemos por alguns momentos abstrair o protagonista e imaginar que temos um painel de época – ao estilo Balzac – onde as personagens servem mais para apresentarem 'tipos' humanos, num recorte de cima a baixo no tecido social. Oliver então deixa de ser o indivíduo Oliver e torna-se caricatura, o 'tipo' do 'pequeno órfão'. Mas então perde-se muito do sentimento que o leitor pode nutrir pelo protagonista – que precisa gerar alguma simpatia ou admiração ou identificação. Caso contrário, o leitor vai abrir outro livro, ler outro folhetim. E sabemos o quanto isso desagradaria ao caro autor Dickens.



Set/ 11






Um site com as tantas personagens das obra de Charles Dickens
http://www.fidnet.com/~dap1955/dickens/characters.html



Oliver Twist na Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/Oliver_Twist

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=euIaw5TPJSk&feature=related


filmes baseados em “Oliver Twist

Oliver Twist” (2005)
http://www.youtube.com/watch?v=xpYVXdpm6zg

Oliver Twist” (TV movie, 1997)
http://www.youtube.com/watch?v=tlVXyO-zmJY&feature=related

Oliver !” (1968)
http://www.youtube.com/watch?v=TDIRNqNdsTI

Oliver Twist” (1948)
http://www.youtube.com/watch?v=hHv14Fbq1UM

Oliver Twist” (1933)
http://www.youtube.com/watch?v=XMvB8wKUZ_4&feature=related


LdeM


.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Novos Ensaios para MEU CÂNONE OCIDENTAL











MEU
CÂNONE
OCIDENTAL


Novos Ensaios

2º semestre / 2011




A Literatura tematiza a Infância

Oliver Twist (1838)
de Charles Dickens


Tom Sawyer / Huckberry Finn (1876)(1884)
de Mark Twain


Os Meninos da Rua Paulo (1906)
de Ferenc Molnar


...



A Literatura tematiza a Juventude


Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774)
de J W von Goethe


O Ateneu (1888)
de Raul Pompéia


Tonio Kroeger (1903)
se Thomas Mann


O Jovem Törless (1906)
de Robert Musil


Retrato do Artista quando Jovem (1916)
de James Joyce


Catcher in the Rye (1946)
(Apanhador no Campo de Centeio)
de J D Salinger




Aguardem!



Leonardo de Magalhaens








.

.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

sobre 'Fahrenheit 451' - de Ray Bradbury









Sobre “Fahrenheit 451” (EUA,1953)
romance distópico
do autor Ray Bradbury (1920-)
(tradução de Cid Knipel. Ed. Globo, 2003)


A literatura denuncia a queima da literatura


Introdução


A literatura incomoda muita gente – governos, plutocratas, ditadores – assim os literatos são os primeiros a serem condenados, exilados, presos quando surge uma ditadura. Alguma coisa parece existir nos livros – desde que a civilização é letrada, desde que existam registros – que incomoda muito os conservadores, os revolucionários, os ditadores de plantão.


Os livros são logo rotulados, catalogados, indexados, prontos para as gavetas, para a censura, para a pira funerária em praça pública – isso quando não queima também os autores em seguida, na mesma fogueira. A livre expressão, a criatividade, o prazer da leitura, parece não cair bem nos padrões de controle das sociedades modernas, ávidas por diversão fácil, consumo fácil, pensamento fácil, facilmente alienadas. Se alguém 'fala demais' é sutil - ou violentamente – censurado.


Não é a primeira vez que o Autor Bradbury trata do assunto proibição e queima de livros - lembremos o conto “Usher II” nas “Crônicas Marcianas” onde um bibliófilo milionário constrói em Marte uma mansão mal-assombrada para se vingar dos censores do governo – os queimadores de livros.

.
link para o meu artigo sobre
os contos marcianos de Bradbury
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/05/sobre-as-cronicas-marcianas-de-ray.html
.

A época de Fahrenheit 451 é mais ou menos ano 2000 (ou seja, a nossa época!) numa descrição nem tão tecnológica quanto em Brave New World de Huxley, nem tão opressora quanto 1984, mas igualmente distópica, onde os bombeiros não são chamados para apagarem os incêndios – mas para causar incêndios – assim fazem jus ao nome 'fireman' – homem do fogo – que seria mais um 'bookburner', aquele que queima livro.


Similaridades são evidentes entre Fahrenheit 451 e Brave New World com diversão e entretenimento alienante para a população, que passa a desprezar os livros e a filosofia, a leitura estética, e busca emoções fortes, artificiais. A televisão está em todo lugar, atraindo atenções. Os narcóticos estão liberados, para manter o povo domesticado


Paralelos entre Fahrenheit 451 e 1984 também incluem as televisões onipresentes – com a diferença de que no mundo distópico de Orwell as televisões servem como câmeras que vigiam os cidadãos dentro e fora de suas casas. Em ambas as distopias temos o autoritarismo, a repressão, a censura, o Estado contra os cidadãos, o utilitarismo


De certa forma o mundo de Fahrenheit 451 é mais 'realista' e verossímil do que aqueles de Brave New World e 1984, com menos aparato tecnocrata, e menos repressão totalitária (o ápice é sempre 1984 onde até uma nova linguagem é inventada para impedir os cidadãos de pensarem livremente).


Os donos do poder – em nosso mundo, e ainda mais nos 'mundos distópicos' - não aceitam vozes dissonantes, sempre há uma figura que simboliza o poder contra o desejo de livre-pensamento do protagonista. Podemos comparar a figura do capitão Beatty com o Grande Inquisidor de “Os irmãos Karamázovi” (1879) de Dostoiévski – assim como podemos comparar Beatty com o Mustapha Mond de Brave New World e com o O'Brien de 1984. Antagonistas que explicam o funcionamento das distopias para os protagonistas – e, assim, para os leitores.


Onde se queima livros, também pode se queimar os autores, as pessoas. O escritor Thomas Mann falava algo semelhante quando se referia aos nazistas (do tipo, Hoje eles queimam meus livros, porque ainda não podem queimar o autor) enquanto Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, mostrava uma ironia amarga, “É um grande progresso em relação à Idade Média. Agora queimam meus livros, naquela época eu mesmo seria jogado na fogueira.”


Bombeiros provocam queimas


Em Fahrenheit 451 o protagonista é Guy Montag, um bombeiro, ou queima-livros, que tem por antagonista um inteligente oficial, seu superior no quartel, o Capitão Beatty, enquanto tem por interlocutores a esposa Mildred, a vizinha Clarisse e o bibliófilo clandestino Faber.


Primeiramente encontramos Montag ('segunda-feira' em alemão) um tanto ambíguo – gosta, tem prazer em queimar livros, mas não entende bem porque tem que fazer isso. É um exemplo de trabalhador alienado – trabalha e não se reconhece no trabalho que executa.


Neste momento algo – na verdade, alguém – rompe a vida rotineira de Montag, quando ele é abordado pela vizinha Clarisse McClellan, uma mocinha de 17 anos, que gosta de conversar e não tem medo dele – afinal, os bombeiros são queimadores-de-livros, gente antipática. A vizinha Clarisse faz perguntas um tanto excêntricas, espontâneas, fora dos padrões, do tipo “Você é feliz?” Ela quer saber se é verdade que antes os bombeiros apagavam o fogo – ao contrário de iniciar o fogo, ao queimar livros. Ele acha a pergunta deveras perturbadora. Desde quando os bombeiros queimam livros? Ele não sabe.


Clarisse gosta de observar pessoas – e Guy Montag acha a mocinha estranha, o problema deve ser que ela pensa demais. Ela indaga sobre os outdoors, a propaganda constante, a televisão interativa (tipo os 'big-brothers', os reality-shows da atualidade) e assim ficamos sabendo que há tudo isso no mundo futuro – um excesso de entretenimento que dispensa a leitura, o recolhimento e a solidão - exatamente o mesmo que acontece em Admirável Mundo Novo, onde a diversão é incentivada.


Ao chegar em casa, após o dia de serviço, e depois da breve conversa com a mocinha da casa vizinha, Montag encontra a esposa Mildred em plena overdose de entorpecente – que nem tem esse nome, são 'apenas' pílulas para dormir. Assim como hoje em dia nos entupimos de pílulas, estimulantes, viagras, anti-depressivos, em nossa vidinha artificial farmacológica.


Quando os paramédicos chegam, estes parecem mais uns desentupidores de pia – chegam e trocam o sangue da vítima. Sujeitos impessoais que tratam a mulher de Montag como se fosse uma boneca de pano, uma coisa. Como se trocassem óleo de um carro... Não se importam se morre mais uma, pois tem gente demais no mundo. A superpopulação, o acúmulo populacional nas cidades, cria o anonimato e a solidão meio a multidão, onde ninguém conhece ninguém, todos vivem suas vidas indiferentes às vidas alheias.


Mildred se recupera da overdose de pílulas para dormir e apenas para voltar a sua vida alienada, como se nada tivesse acontecido. Ela até nega que tenha tomado tanta pílula – comporta-se como uma adolescente viciada que nega o próprio vício. A esposa de Montag quer sempre mais conforto, mais diversão, quer televisão de tela plana nas quatro paredes da casa, com direito a ver todas as novelas interativas, os reality-shows da semana! Em suma, nada de pensar na vida, nada de parar para pensar, vamos nos embriagar de enlatados televisivos.


Temos então um interessante contraponto na perspectiva de Montag: a vida alienada da esposa versus a presença estranha da vizinha. De um lado a rotina doméstica e de outro a possível aventura (inclusive amorosa?). É um tanto ambíguo, pois Clarisse acha Montag interessante, julga que ele não é igual aos outros bombeiros com poses de durões a incendiarem pilhas de livros.


Acompanhamos Montag até o trabalho no Corpo de Bombeiros. Lá está um cão-robô ('mechanical hound'), o 'Sabujo Mecânico, que é uma espécie de mascote dos firemen. O tal cão-robô parece farejar aqueles 'fora-do-padrão' e não está muito amistoso com o desconfiado Montag. Até o robô ameaça Montag?


Mas o Capitão Beatty explica paternalmente que uma máquina 'não gosta nem desgosta', ela 'apenas funciona'. A máquina, o cão-robô, é apenas ajustada – para 'caçar, localizar e matar'. O capitão acha que Montag está com a consciência culpada ao imaginar ameaças. Realmente o capitão tem todo um tom paternal, de padre ou pastor, de xamã ou pajé, um guia tecnocrata para os seus subordinados. O capitão zela pela ordem – e pela consciência de seus comandados!


Montag reencontra Clarisse outras vezes e ela mesma se considera 'excêntrica' e até 'antissocial' – pois não aceita a vida padronizada. Ele sempre acha perturbadora a curiosidade da mocinha – ele que vive inserido numa rotina a ponto de demorar a perceber que a vizinha Clarisse desapareceu. Ela não estava mais na calçada para surpreendê-lo. O que teria acontecido? Uma viagem? Uma doença?


O protagonista vive entre o quartel e a casa, a sentir-se gradativamente desconfortável. Um mal-estar, uma ou outra reflexão, agora se insinua. Algo do contexto aflora – outra guerra? Outra! Lembrar que o romance Fahrenheit 451 foi escrito nos anos 1950, foi publicado em 1953, no início da Guerra Fria, com os Estados Unidos (e as Nações Unidas, ONU) enviando tropas para a Guerra na Coreia (1950-53) contra os comunistas norte-coreanos e chineses. (Guerra que oficialmente não terminou até hoje...)


Temos acesso em vários trechos a uma lista dos livros proibidos condenados pelas autoridades. Uma espécie de Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica Romana na época da fogueiras acesas da Inquisição. Também os nazistas alemães tinham suas listas de autores proibidos, ou artistas da “Arte Degenerada”. Em suma, os regimes de padronização não permitem qualquer pensamento não-catalogado, nenhuma excentricidade intelectual é aprovada.

.
Os livros censurados do Index Librorum Prohibitorum
http://historica.com.br/hoje-na-historia/1406



Aquele que não se encaixa no padrão é rotulado como excêntrico, louco, e é sujeito a readaptação, internado em hospício, ou eliminado. E Montag logo desperta suspeitas quando faz perguntas. Quer saber, por exemplo como era a corporação de bombeiros antes, no passado? Justamente a pergunta de Clarisse nas primeiras cenas do romance.


Mas na distopia da História reescrita não é de se espantar se descobrimos que os 'firemen' foram – desde o século 18! - uma equipe de incendiários, e que o primeiro bombeiro foi ninguém menos que Benjamin Franklin!


Então, Montag tem uma experiência traumática – uma subversiva, dona de uma imensa biblioteca decide deixar-se queimar junto com os preciosos livros! Por que tanto sacrifício? O que os livros guardam de tão importante? A Sra. Blake morre com um olhar impassível – será loucura? Em nome de quê ela morre? Ela mesma acende os fósforo!


Este martírio da estranha Sra. Blake (referência ao poeta visionário William Blake, 1757-1827) causa um abalo emocional em Montag – ele finalmente questiona o próprio trabalho, estes incêndios de livros.


Enquanto isso, o capitão Beatty cita trechos de livros queimados. Onde e quando o capitão pôde ler os livros? (Também Mustapha Mond lia o proibido Shakespeare e citava trechos para o confuso Sr. Selvagem, em Admirável Mundo Novo. Também o ditador Adolf Hitler conservava na biblioteca pessoal alguns livros que eram queimados pelos próprios nazistas! Quem faz as leis sempre está acima das leis!)


Montag então questiona o trabalho, a queima de livros, a esposa – que ele percebe enfim pouco conhecer – o que une o casal? A casa em comum? A rotina de casados?) Interrompendo a esposa – entretida num programa da televisão interativa – Montag tenta um diálogo, e consegue saber o que aconteceu com Clarisse. A família vizinha se mudou, porque a mocinha sofrera um acidente. Certamente morrera.


Morrera? Como assim? Do mesmo modo como as pessoas somem, desaparecem – são 'vaporizadas' em '1984', num regime de Terror - aqui a diferente Clarisse é logo dada como morta – nada mais se sabe sobre ela. Nem Montag – nem o/a leitor/a saberá o que aconteceu. O trauma de Montag se torna psicossomático e ele adoece. Não vai ao quartel – e conta à esposa o caso da leitora-mártire, e ele quer que ela avise o capitão.


E finalmente sabemos porque Montag é bombeiro! “Que escolha eu tinha? Meu avô e meu pai eram bombeiros. Em meus sonhos, eu corria atrás deles.” (p. 76*) Ele é bombeiro porque é filho e neto de bombeiros, por tradição familiar. Assim como muitos são médicos ou militares por pressão familiar. Não escolheram a carreira, não decidiram o próprio futuro profissional. Seguem uma inércia de modo inconsciente. E depois, subitamente, a 'ficha cai', surge a angústia a revelar toda uma vida não-autêntica. Questão que muito interessava ao filósofo existencialista Jean-Paul Sartre.


Montag pensa então nos livros – o que realmente há nos livros? - e nos autores – quem são estes que escrevem livros? - e sabemos que ele ocultava livros – inclusive sob os travesseiros! Justo quando o Capitão Beatty vem saber o motivo da ausência ao trabalho. A figura paternal do Capitão é impressionante – parece um diretor de colégio em visita a uma aluno indisciplinado.


Beatty resolve esclarecer para Montag as reais origens dos 'firemen'. Depois de uma Guerra Civil (a de Secessão?), depois de um excesso populacional, depois de uma indústria cultural massificada (tudo nivelado por baixo). Livros – Filmes – Resumos de livros – Sinopses – Novelas. O importante não é pensar – mas se divertir. Domesticar os livros com versões cinematográficas. Abaixo a fadiga do pensamento – pensar pra quê? Temos sinopses de resumos, temos resumos de resumos de resumos. (O leitor não tem tempo de ler, absorver, a leitura atual, como vai ter concentração para ler os clássicos? Vide “Por que ler os clássicos?” de Ítalo Calvino)


Mas ler pra quê? Se há outras mil diversões? Mas ler é se divertir? Ora, temos TV, teatro, cinema, esportes, reality-show, etc. Leitura é apenas outro produto na estante... O importante é agradar a todos! Nada de incomodar minorias, ou fazer caricaturas de políticos! 'Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever!” Maus pensamentos? Quais? Todos aquele pensar que não está 'dentro do padrão', que é crítica ao estabelecido. Toda ditadura se dedica a censurar, a eliminar livros e autores. O pensamento não-ortodoxo é o primeiro a ser banido – seja pelas Direitas ou pelas Esquerdas – em prol das tradições ou do 'politicamente correto'.


O pensamento excêntrico, diferente, deve ser silenciado. Deve haver uma padronização para manter o controle – há o império da Maioria, o auge da mediocridade. Viva o senso comum! (As palavras de Beatty soam irônicas, como se ele tivesse lido num livro. Livros que contestam livros. Livros que são ambíguos.) A crítica ao mundo de Fahrenheit 451 deve ter por referência as advertências do pensador Nietzsche quanto a 'moral de rebanho' e as de Adorno & Horkheimer quanto a 'indústria cultural'.

.
Mais info
contra a 'moral de rebanho'
http://niilismo.net/forum/viewtopic.php?t=540
http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/nietzschecotrim.html
.
sobre a 'Indústria Cultural
http://www.urutagua.uem.br/04fil_silva.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Culture_industry
http://www.culturabrasil.org/frankfurt.htm
.


O importante é divertir o povo, que as massas populares sejam felizes. Exatamente o mesmo argumento do Administrador Mustapha Mond em Brave New World. Todo o sistema de dominação e alienação teria por objetivo a felicidade dos cidadãos dominados e alienados! Pelo discurso das Elites para manter a submissão dos não-privilegiados.


Excesso de diversão, de entretenimento, de programas televisivos. Excesso de informações em rede mundial, excesso de links disponíveis – para causar desinformação! Nunca houve tanta informação – daí nunca dantes sermos tão desinformados. O professor que fornece miríades de informações aos alunos não é exatamente o bom mestre – ele apenas enche a mente dos doutrinados – não apresenta um método para 'digerir' tanta informação.


Tal um professor irônico o Capitão Beatty se despede de Montag, “Preciso ir. A aula acabou” - e toda a atitude de Montag até ali é a de um aluno aplicado a ouvir o professor. O aluno que não constrói o aprendizado – mas engole tudo o que o professor enfia-lhe goela abaixo. Assim como Winston Smith ouvia as palestras professorais de O'Brien nas torturas na sala 101 de '1984', de Orwell.


O protagonista - e nas três distopias – enfrenta uma mente superior, um tecnocrata, um oficial, que compreende o sistema e adere ao status quo, ainda que com ironia (Mustapha Mond), amargura (Beatty) ou fanatismo (O'Brien).


Montag resolve revelar para Mildred, sua esposa, o local onde ele escondia os livros – e ela fica horrorizada. Ler livros é crime! (A mulher surge aqui como uma 'agente da lei' dentro de casa – e é quem vai denunciá-lo) Montag não quer mais queimar livros – preferiria antes queimar os bombeiros – e todo o aparato de segurança. Há uma paranoia militar e nuclear no ar – as mesmas guerras constantes que encontramos em “1984” - “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas”.


Afinal de contas, os Estados Unidos da América são a superpotências – e os cidadãos deveriam pensar no que representa a hegemonia ianque no mundo – em concorrência com a URSS – aos olhos dos povos ditos subdesenvolvidos. (“Será por que somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza?”)


O excesso de propaganda – nos outdoors, no metrô – cria um incentivo constante ao consumo – também importante para a dinâmica do Admirável Mundo Novo, mas ausente em '1984', onde há penúria, escassez, nenhum consumismo. O excesso de promoções, mercadorias, programas de TV, tudo isso dispersa o pensamento do cidadão incapaz de 'totalizar' as informações – apenas partes, fragmentos, sem nexo são despejados sobre retinas e mentes.


Decidindo tomar uma atitude, Montag resolve procurar Faber, um antigo subversivo investigado. Faber entende de livros, mas desconfia de Montag. Depois de Beatty, Faber é a melhor persona deste romance – sabe algo que o protagonista – e nós, leitores - não sabe. Tanto que Faber e Beatty vão duelar pelo destino de Montag – o bibliófilo versus o oficial representam alegorias da arte versus a ordem.


Faber é aquela figura do bibliófilo, do 'rato de biblioteca', que gosta mais de livros do que de gente – que adora folhear, cheirar os livros... mas acha 'romântica' a ideia de Montag – a de que os livros poderia ajudar a mudar as coisas, o status quo...

Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo.” (pp. 109-110*)


Os livros incomodam os privilegiados, as dirigentes, porque eles revelam o que queremos ocultar, esquecer, pois colocam os pontos nos 'is' da nossa (ir)realidade cotidiana.


Os livros, aliás, não incomodam somente as autoridades – mas também aos cidadãos comuns, os medíocres, as minorias, os conservadores, as 'patrulhas ideológicas', os defensores do 'politicamente correto' – em suma, aqueles que preferem ver TV do que abrir um livro – daí os livros passarem a ser 'persona non grata', desprezados, logo censurados, depois eliminados. Chamem os queimadores-de-livros!


Faber sabe o que diz quando declara que “Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos.” (p. 113*) daí incomodarem muita gente. Então quem poderá resistir aos queimadores de livros? Os antigos leitores? Os historiadores? Os autores? Os atores de teatro? Os bibliófilos? Quem? Quem se importa com leituras? “Os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis.” (p. 117*)


O bibliófilo Faber acha que os livros perderam a guerra – é melhor Montag desistir. O bombeiro renegado não sabe se o bibliófilo é prudente ou um covarde. Mas Faber é pressionado a ajudar Montag e ambos mantêm contato por um microfone transmissor. É o apoio que Montag precisa para 'enfrentar' Beatty. Ainda que Faber ache que o capitão é 'um dos nossos'. Será mesmo?



A guerra iminente: caças e bombardeiros cruzam o céu... notícias na TV... um clima de paranoia sobre os cidadãos. Montag não suporta: passa dos limites, ele resolve impulsivamente ler poemas para as amigas da esposa na hora do chá das visitas! Faber o adverte, mas é inútil. Montag está fora de controle: imagine ler poema para as visitas! É crime! Ainda mais um bombeiro...!


Percebemos o quanto a conversa das mulheres é completamente padronizada e alienada – nenhum pensamento autêntico. Montag, ao ler o poema, causa um estranhamento – justamente o papel da Arte: atentar o olhar para além do cotidiano, do padronizado. Para o mundo da padronização, a Poesia é coisa de sentimentalóides – as visitas se sentem ofendidas ou perturbadas. Nenhum vê o mundo com a autenticidade de uma Clarisse...


Faber adverte Montag para não incomodar os anti-livros, que ele deve ter paciência – Faber dá o apoio moral que Montag precisa, ainda mais quando o bombeiro volta ao quartel da salamandra no fogo, onde Beatty o recebe com ironia,


A ovelha voltou ao redil. Somos todos ovelhas que às vezes se extraviam. A verdade é a verdade, até o fim das contas, é o que proclamamos.” (p. 136*)


Aqui o coletivo X indivíduo, tal qual vimos em Brave New World e 1984. Beatty tem segurança, fala com autoridade, pois fala em nome de um coletivo, uma abstração – a Ordem, a Disciplina, a Sociedade – enquanto Montag é frágil pois é apenas um indivíduo contra a multidão, contra a Ordem.


Beatty se dá ao luxo de ser irônico e amargo ao rechear suas falas com citações de livros – ora, Beatty é um leitor? Mas ele lê quais livros? Afinal, ele é o responsável pela queima de livros! (Mas percebemos em Brave New World que Mustapha Mond tem Shakespeare e Blake na biblioteca particular, e O'Brien em 1984 conhece História – a mesma História que ele ajuda a apagar, deturpar...)


Que traidores os livros podem ser! - Beatty tira citações de livros e embaralha todas para dizer o contrário – que os livros se contradizem – assim tirar frases de um contexto : uma técnica que qualquer sofista conhece bem para construir argumentos falaciosos... Faber precisa alertar Montag de que


Lembre-se de que o capitão está alinhado com os inimigos mais perigosos da verdade e da liberdade, com os rebanho impassível da maioria.” (p. 138*)


Mas a sirene ressoa – há um chamado, outra delação! “Aqui vamos nós para manter o mundo feliz, Montag!” (p. 140*) diz o capitão.


Montag não consegue ocultar o mal-estar em continuar no trabalho de bombeiro – então ele percebe que está diante da própria casa! Realmente, a esposa Mildred não demorou a delatar as leituras do marido.


A partir daqui – a Parte 3 – a cronologia do enredo se acelera, se precipita, o protagonista precisa tomar decisões, assumir sua subversão, fugir das autoridades. É o mesmo caminho de John, o Selvagem, em Brave New World, e de Winston Smith, em 1984. o indivíduo encontra-se só contra o governo, contra a sociedade, contra o mundo.


Montag será obrigado a queimar a própria casa! E depois será preso! Mas enquanto incendeia tudo, enquanto apaga o próprio passado, ele precisa suportar as provocações do capitão, que desconfia que Montag não está sozinho na 'subversão' – e para proteger Faber, Montag vira o lança-chamas contra o capitão Beatty. Mas – e somente depois o ex-bombeiro percebe – é como se Beatty QUISESSE que Montag o mata-se, como se Beatty tivesse desistido de também ser queima-livros.


Na fuga, Montag precisa enfrentar o tal cão-robô que injeta entorpecente e mata a vítima de paralisia. O mocinho do romance consegue fugir – ao contrário de John, o Selvagem e de Winston. Mas toda a vida anterior do protagonista está perdida, deletada, literalmente queimada! Ele passa a ser um fugitivo, um marginal. Ele precisa da ajuda de Faber para fugir da cidade, para além do rio.


Ao mesmo tempo a guerra é declarada – e para distrair o povo, a TV transmite a perseguição ao subversivo e assassino Montag! Aqui o romance se torna uma paródia de livro policial, de ação, que a indústria cultural de Hollywood adoraria filmar! E que Truffaut evitou no filme clássico de 1966. Um filme mais lírico do que thriller explosivo.


O mais sensacional e original nesta etapa final não é a fuga, mas o encontro – o encontro com os estranhos andarilhos ao redor de uma fogueira. Poderíamos confundi-los com hippies, hipsters beatniks nas estradas. Mas são literatos, ex-professores, ex-escritores, ex-bibliófilos, poetas do mundo sem-bibliotecas, homens-livros ambulantes!


Eles decoram trechos, ou livros inteiros, e conservam assim a literatura! “Decore o meu poema / livros duram pouco”, escreveu o poeta húngaro György Faludy (1910-2006), lembrando que a literatura não está apenas nos livros – os livros apenas 'armazenam' um texto – que somente ganha vida quando tem um leitor (é a relação texto-leitor que presentifica a obra e ressuscita a voz autoral, segundo podemos ler na “Estética da Recepção”, a escola teórica dos críticos alemães H. R. Jauss e W. Iser) – a ponto de se perguntar, Você, leitor? Que livro você gostaria de ser?

.
link para o poema de G. Faludy
http://www.opendemocracy.net/arts/faludy_3872.jsp
.
minha tradução em
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/07/decore-este-meu-poema-g-faludy.html
.
sobre a Estética da Recepção
http://ptmiriamfajardo.pbworks.com/w/page/19749775/Estética-da-Recepção
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/recepcao/textos/livia2.htm



Realmente vale a pena ler o romance só para encontrar estes homens-livros que resguardam em suas mentes verdadeiras obras-primas da literatura mundial. Montag imagina se não delira! Ele não está num livro, vive uma outra vida realmente! (O que soa no mínimo irônico, pois, afinal, ele é personagem de um romance!)


É a parte mais literária do romance. A fuga de Montag é até poética, ainda que dramática. Mesmo com Montag fora de alcance, a 'caçada continua'. Um desavisado qualquer será preso e/ou morto para salvar a honra da polícia. Um inocente morre no lugar de Montag – que agora está oficialmente morto. Ele adere ao grupo de homens-livros - “Bem-vindo a terra dos mortos!”


Ali perambulam os ex-professores, ex-literatos, reverendos, poetas, eis o que são os hippies, os párias do mundo-anti-livros. Nas margens do rio, fora da cidade – a cidade agora é alvo de bombardeios! - eles vivem, ou sobrevivem, como nômades, fugitivos, a decorarem livros, e depois se livrando das 'provas' que incriminam.


Os homens-livros, ao redor de suas fogueiras, assim se apresentam, entre irônicos e heréticos,


Eu sou a República de Platão. Gostaria de ler Marco Aurélio? O Sr. Simmons é Marco Antonio.” (p. 186*)

Lemos os livros e os queimamos. Guardamos na cabeça. Somos todos fragmentos de obras de história, literatura e direito internacional.” (p. 187*)

Se formos destruídos, o conhecimento estará morto, talvez para sempre.” e “Somos a minoria excêntrica que clama no deserto.” (p. 187*)


Estes verdadeiros João Batistas esperam um Messias no futuro para re-instaurar a cultura letrada. Cada pessoa decorou capítulos, trechos, livros inteiros, e narra estas histórias aos outros, ou espera um momento, no futuro, para reescrever e reeditar os livros, assim como os monges copistas conservaram a literatura clássica (dos gregos, dos romanos) ao longo da Idade Média.


Os marginais exilados do mundo anti-livros formam uma quase comunidade de leitores banidos que somente sobrevivem para conservarem obras literárias. Uma bela metáfora, uma bela fábula do nosso fanatismo da leitura, nós, os leitores compulsivos, que somente ganhamos da leitura a própria leitura – como dizia Virginia Woolf – que somente temos da leitura o prazer de ler, nada mais.


O livro somente é literatura quando aberto pelos leitores e saboreado e deglutido e digerido – pois os leitores, como se fossem boas traças, se nutrem de estórias, histórias, fábulas, parábolas, contos, poemas, romances, baladas, epopeias, em suma, tudo isso revivido enquanto processo de leitura, enquanto re-criação na mente do/a leitor/a daquele universo ficcional – e confessional – criado/a pelo Autor/a.


O recado do autor Ray Bradbury com o seu (já clássico!) “Fahrenheit 451” é a de que os leitores precisam proteger – com seus próprios corpos e mentes, se necessário – os livros que conservam, que dialogam, que transmitem de geração a geração um saber que não é de Direitas ou Esquerdas, de maiorias ou minorias, nem dos autores nem de leitores, mas manifestação da obra de arte enquanto superação, enquanto contestação, enquanto novidade num mundo massificado e alienado. Qualquer censura é apenas a conservação e perenização da mediocridade e da mesmice.



(*)todas as citações são da tradução de Cid Knipel (São Paulo: Globo, 2003)



jun/11



Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com








Referências


BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. tradução: Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2003.



Links

sobre “Fahrenheit 451
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451
http://www.cliffsnotes.com/study_guide/literature/Fahrenheit-451-Critical-Essays-Dystopian-Fiction-and-Fahrenheit-451.id-106,pageNum-16.html




LdeM


.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

sobre a distopia '1984' - de G. Orwell (2/2)









sobre “1984” (“1984”, 1949)
romance de George Orwell (Eric Blair, 1903-50)


A denúncia da distopia totalitária




2/ 2




O'Brien ao fazer parte do inner circle do Partido tem alguns privilégios – não é constantemente vigiado, pode desligar a tv-tela quando quiser, em suma, não sofre policiamento como um membro qualquer. Sua liberdade relativa tem relação com as suas responsabilidades – se o Partido não confiasse nele, ele já teria sido 'vaporizado'. Mas as esperanças de Winston levam-no a acreditar mais na Irmandade, assim o protagonista dá o passo fatal, como veremos.


“Ele fez uma pausa, entendendo, pela primeira vez, a vagueza de seus próprios motivos. Desde que ele de fato não sabia que tipo de ajuda ele esperaria de O'Brien, não era fácil dizer porque ele viera até ali. Ele continuou, consciente que o que ele estava dizendo devia soar tanto débil quanto pretensioso:

'Nós acreditamos que há algum tipo de conspiração, algum tipo de organização secreta trabalhando contra o Partido, e que você está involvido nela. Queríamos nos juntar a ela e trabalhar por ela. Somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do Soc.Ing. Somos criminosos-do-pensamento. Somos também adúlteros. Digo isso porque nós queremos nos colocar a sua mercê. Se você quiser nos incriminar de algum modo, estamos prontos.”

.
He paused, realizing for the first time the vagueness of his own motives. Since he did not in fact know what kind of help he expected from O'Brien, it was not easy to say why he had come here. He went on, conscious that what he was saying must sound both feeble and pretentious:

'We believe that there is some kind of conspiracy, some kind of secret organization working against the Party, and that you are involved in it. We want to join it and work for it. We are enemies of the Party. We disbelieve in the principles of Ingsoc. We are thought-criminals. We are also adulterers. I tell you this because we want to put ourselves at your mercy. If you want us to incriminate ourselves in any other way, we are ready.'
p. 140, P.II



Uma vez em contato com O'Brien – e um suposto conhecimento que este tem, e que chegará às mãos de Winston – e obviamente saberemos – a narrativa ora adquire panoramas históricos ora prende-se a detalhes de uma vida íntima de casal. É um jogo de 'vida social' versus 'vida pessoal', pois conheceremos um pouco mais de 'História' – sabe-se lá qual versão agora – e um pouco mais dos pensamentos – e atividades – íntimas do protagonista, que torna-se mais corajoso porque não está mais sozinho. (Enquanto leitor até penso que Júlia poderia ser uma ótima delatora...)


No momento Winston só pode mesmo confiar. Acreditar em contato com os discípulos de Emmanuel Goldstein (os trotskistas?), com aqueles que vão derrubar o todo-poderoso Grande Irmão (que não sabemos se existe – pode ser apenas a 'personificação' do Partido...), e acabar com o controle do pensamento e com a História reescrita. Winston está disposto a morrer em luta, disposto a matar, a trair o país, a forjar documentos, etc, ou seja, tudo o que os revolucionários faziam em nome da “Causa” - que levou justamente à ditadura do Partido único e onipotente. Subversão para tirar a subversão oficializada? Novos revolucionários contra os revolucionários-reacionários de hoje? Confusão- eis o que envolve o protagonista (e nós, os leitores).


Winston então recebe um livro – aliás, O livro – como uma bíblia sagrada do movimento anti-Partido – assim como antes o “Manifesto Comunista” era a bíblia oculta dos revolucionários que se encastelam no poder. Para abater o Partido é preciso um livro com revelações? Ou seria um manual de táticas de guerrilha? Como ser um revolucionários bem-sucedido contra aqueles que já foram revolucionários um dia? De qualquer modo, vamos folhear, portanto, “A Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico” (“The Theory and Pratice of Oligarchical Collectivism”), 'coletivismo oligárquico' que poderia ser denominado também como o “socialismo real”, ou o “capitalismo de Estado”.


Mas não se assuste o leitor se ler - de repente - que a Oceânia está em guerra com a Estásia! A guerra é mesmo uma 'caixinha de surpresas'! E Winston vai descobrindo como a História é farsa – mais forjada do que ele imaginava! Teremos uma aula de História – na versão dos subversivos – assim como os Comunistas contam a História ocidental como uma 'luta de classes' – mas cada grupo social cria sua própria História. Os cristãos escrevem a História do pecado e da Redenção, os budistas esperam outra reencarnação de Buda, e os materialistas anotam as safras e entressafras e oscilações das bolsas de Valores. A chamada 'História Oficial' apenas serve aos grupos hegemônicos, os que dominam a máquina de propaganda e oficializam uma versão que é mais conveniente aos seus interesses.


Se a guerra é bom negócio, um modo de manter as massas populares eletrizadas e aceitando as medidas restritivas, então porque parar a guerra? Se a guerra é de interesse do Estado, por que não transformar a guerra numa rotina? Por que não educar as crianças para a economia de guerra? Para a doutrinação de guerra – nós somos os mocinhos e os inimigos são os vilões? Assim é mais fácil dominar – pelo medo e pela doutrinação – quando as populações esperam a qualquer momento uma proclamação de vitória ou um estrondo de bomba ali ao lado. Tanto a vitória quanto a derrota são manipuladas segundo os interesses dos poderosos. O povo sempre perde.


As potências, incapazes de derrotarem definitivamente uma a outra, mantendo-se em conflitos de fronteiras ou 'guerra fria', garantem às suas populações que somente uma medida defensiva ( que poder ser ofensiva...) com exércitos em prontidão, com toda a 'eficiência militar', é possível manter a 'paz' – por isso a confusão guerra = paz. Para manter a paz nós entramos em guerra...!


“Numa combinação ou outra, estas três potências [Oceania, Eurásia e Estasia] estão em guerra permanente, e tem sido assim nos últimos vinte e cinco anos. A guerra, de qualquer modo, não é mais a luta desesperada e aniquilante que foi nas primeiras décadas do século vinte.” (“In one combination or another, these three super-states are permanently at war, and have been so for the past twenty-five years. War, however, is no longer the desperate, annihilating struggle that it was in the early decades of the twentieth century.” p. 153, P.II)


“O objetivo primário da guerra moderna (de acordo com os princípios do duplo-pensar, este objetivo é simultaneamente reconhecido e não-reconhecido pelas mentes dirigentes do Partido Interior) é usar os produtos da maquinaria sem elevar o padrão geral de vida. Mesmo desde o fim do século 19, o problema do que fazer com o excesso de bens de consumo tem estado latente na sociedade industrial. Atualmente, quando poucos seres humanos têm o suficiente para comer, este problema é obviamente não urgente, e nem se tornaria assim, mesmo se nenhuma processo artificial de destruição não estivesse em funcionamento.”
.
The primary aim of modern warfare (in accordance with the principles of doublethink, this aim is simultaneously recognized and not recognized by the directing brains of the Inner Party) is to use up the products of the machine without raising the general standard of living. Ever since the end of the nineteenth century, the problem of what to do with the surplus of consumption goods has been latent in industrial society. At present, when few human beings even have enough to eat, this problem is obviously not urgent, and it might not have become so, even if no artificial processes of destruction had been at work. p. 155, P. II



“O essencial do ato de guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. Guerra é um modo de despedaçar, ou espalhar na atmosfera, ou afundar no fundo do mar, materiais que deveriam de outro modo fazer as massas viverem mais confortáveis, e assim mais inteligentemente. Mesmo quando armas de guerra não sejam realmente destruídas, a fabricação delas é ainda um modo conveniente de gastar a força de trabalho sem produzir algo que possa ser consumido.”
.
The essential act of war is destruction, not necessarily of human lives, but of the products of human labour. War is a way of shattering to pieces, or pouring into the stratosphere, or sinking in the depths of the sea, materials which might otherwise be used to make the masses too comfortable, and hence, in the long run, too intelligent. Even when weapons of war are not actually destroyed, their manufacture is still a convenient way of expending labour power without producing anything that can be consumed. p. 157 P.II


“A guerra é negociada por cada grupo dirigente contra os seus próprios súditos, e o objetivo da guerra não é conquistar ou defender territórios, mas manter intacta a estrutura da sociedade. A palavra 'guerra', assim, tornou-se enganosa. Seria provavelmente certo dizer que ao tornar-se contínua a guerra deixa de existir.

[…]

A paz que fosse de fato permanente seria o mesmo que uma guerra permanente. Este – apesar de que a vasta maioria dos membros do Partido entendam apenas um sentido raso – é o significado profundo do slogan do Partido: GUERRA É PAZ.”

.
The war is waged by each ruling group against its own subjects, and the object of the war is not to make or prevent conquests of territory, but to keep the structure of society intact. The very word 'war', therefore, has become misleading. It would probably be accurate to say that by becoming continuous war has ceased to exist.

[…]

A peace that was truly permanent would be the same as a permanent war. This--although the vast majority of Party members understand it only in a shallower sense--is the inner meaning of the Party slogan: WAR IS PEACE.
p. 164, P. II



As guerras servem aos interesses das oligarquias que conservam privilégios, enquanto deviam as atenções para os inimigos externos. Estes poderosos mantêm todo um sistema de hierarquias, de comando, de senhas e contrassenhas, de arquivos confidenciais, de informações privilegiadas, que mantem sua força justamente com a ignorância das massas. Daí Ignorância = Força, como bem proclama o Partido.


E o Partido impera porque o ser humano tem medo da igualdade, da prosperidade, das utopias, em suma. Durante as revoltas da década de 1930, o pensador alemão Erich Fromm escreveu uma obra com o elucidativo título “Escape from Freedom”, Fuga da Liberdade, ou também “The Fear of Freedom”, pois as pessoas teriam um medo diante da liberdade. É por isso que seguiam slogans, líderes, numa marcha de 'maria-vai-com-as-outras', que desembocou nos movimentos de massas – nacionalismos, bolchevismo, fascismos, nazismo, estalinismo – que eram verdadeiros exemplos do que o pensador francês Étienne de La Boètie chamava de “servidão voluntária”. A obediência ao líder é uma forma de 'doença coletiva'.


“A mutabilidade do passado é o dogma central do Soc.Ing. Acontecimentos do passado, é argumentado, têm nenhuma existência objetiva, mas sobrevivem apenas em registros escritos e nas lembranças humanas. O passado está de qualquer modo em acordo com os registros e lembranças. E desde que o Partido tem pleno controle de todos os registros e igualmente pleno controle das mentes dos membros, segue-se que o passado é de qualquer modo o que o Partido escolher.”
.
The mutability of the past is the central tenet of Ingsoc. Past events, it is argued, have no objective existence, but survive only in written records and in human memories. The past is whatever the records and the memories agree upon. And since the Party is in full control of all records and in equally full control of the minds of its members, it follows that the past is whatever the Party chooses to make it. p. 176, P. II



Durante a longa leitura de trechos, e até capítulos inteiros, do livro proibido, podemos pensar numa troca da Narração pela Dissertação, onde o Autor preferiria explicar, tematizar do que tecer figurações. Claro que o Leitor – como indica Wolfgang Iser, em “O Ato da Leitura” - preenche as 'lacunas' – pois se o protagonista lê, ele lê em algum lugar, em algum tempo, sozinho ou acompanhado, em silêncio ou em voz alta (aqui sabemos que ele está com Júlia, e lê para ela em voz alta...), então a seção dissertativa está INSERIDA na teia narrativa.


O que Orwell deseja é fazer uma crítica do Poder – assim como Kant fizera uma Crítica da Razão – pois enquanto socialista-à-la-anarquista, o Autor teme que grupos oligárquicos – sejam revolucionários-profissionais, sejam burocratas-partidários, sejam milícias populares – alcancem o poder e lá se acomodem, perseguindo todos os outros grupos e sub-grupos, que poderiam querer ascender aos núcleos de decisão. É assim que as Elites se mantêm no poder – basta ler “Os Donos do Poder” do sociólogo e historiador Raymundo Faoro (1925-2003), que aborda a formação das Elites brasileiras.


Os burocratas do Partido formam uma 'nova classe' – e não destroem todas as classes, como pregava a Revolução – quando ao modo de uma 'nobreza' ocupam os melhores cargos e usufruem de privilégios. Não exatamente uma hierarquia de nascimento – não há transferência de títulos nobiliárquicos – mas os filhos dos burocratas terão mais chances de ocuparem cargos – assim como nas castas militares, os filhos de militares têm mais acesso à carreira das armas.


“Pois o segredo da dominação é combinar uma crença na própria infalibilidade com o Poder de aprender com os erros do passado. É necessário ser dito que o praticantes mais sutis de duplo-pensar são aqueles que inventaram o duplo-pensar e sabem que é um vasto sistema de dissimulação mental. Em nossa sociedade, que tem o melhor conhecimento do que está acontecendo estão também aqueles que estão longe de ver o mundo tal como é. Em geral, quanto maior o entendimento, maior a ilusão; o mais inteligente, o menos saudável mentalmente.”
.
For the secret of rulership is to combine a belief in one's own infallibility with the Power to learn from past mistakes. It need hardly be said that the subtlest practitioners of DOUBLETHINK are those who invented DOUBLETHINK and know that it is a vast system of mental cheating. In our society, those who have the best knowledge of what is happening are also those who are furthest from seeing the world as it is. In general, the greater the understanding, the greater the delusion; the more intelligent, the less sane. p. 177, P.II



Os revolucionários chegam ao poder, atuam para fortalecer o poder, tudo em nome do Socialismo, mas na verdade toda a ação vem a engessar ou destruir as atitudes socialistas – não socializam, mas estatizam; não descentralizam os fóruns de decisão, mas centralizam o poder. Os revolucionários desistiram do socialismo? Os revolucionários foram derrotaram por reacionários dentro do próprio Partido? Houve uma 'quartelada' sem que os não-membros soubesem? Winston entende como o poder se consolidou, mas não entende os motivos. Impossibilidade do socialismo? Desistências e desânimos dos revolucionários? Acomodação e sede de poder?


Já que Winston descobre – e nós sabemos – quais foram os métodos e processos de consolidação do Poder das 'oligarquias coletivistas' que se proclamam 'socialistas', o importante agora é entender as motivações – e é o que nos prende agora ao texto. Afinal, o leitor é uma espécie de investigador; e no caso de '1984', sabemos junto com o protagonista, aprendemos com ele a cada nova fase. Ele desconfia, nós desconfiamos; ele teoriza, nós teorizamos; ele escolhe a subversão, nós acompanhamos sua subversão; ele trai o Partido, e nós também traímos. O que ele sabe é o que nós sabemos, e só sabemos o que ele sabe. Não sabemos se ele sairá vivo dessa aventura.


Winston sabe que até pensar contra o Partido é um crime, aliás, é já estar morto. Mas a segurança que ele imagina ter – num quarto de subúrbio, junto aos proles, longe das telas, monitores, crianças delatoras, etc – pode muito bem ser outra armadilha. Há uma paranoia de conspiração constante aqui. Ele desconfia até de si-mesmo: quando se sente satisfeito tem até momentos de culpa. Ele pode se afastar dos centros do Partido, mas o controle partidário está instilado dentro dele – chega um momento em que não se precisa mais de tv-telas para vigiar o cidadão: o próprio cidadão vigia a si-mesmo.


O quarto que parecia um útero de segurança, uma fuga da padronização, até uma nova oportunidade de vida íntegra, revela-se outra peça do jogo do poder. O que parecia inofensivo pode revelar câmeras ocultas e microfones embutidos. Tudo aquilo que conhecemos dos filmes de espionagem da Guerra Fria. Um casal numa cena de amor, numa quarto em penumbra, e desconhecem que tudo o que fazem e tudo o que dizem está sendo filmado e gravado. Não há mais privacidade no mundo controlado. Vivemos rastreados por câmeras. “Você pode estar sendo filmado”.


Obviamente que o casal é preso e torturado. Estão agora nas mãos da Polícia do Pensamento (Thought Police), uma mistura de Gestapo com KGB e Stasi, a personificação em uniforme do Estado contra o cidadão. De praxe em livros e filmes de totalitarismos. Não há 'habeas corpus', nem 'direitos humanos', nem 'dignidade humana' numa mundo totalitário – apenas o poder do Estado, do Governo, do regime político. O que faz a diferença no '1984' de Orwell é a explicitação das violências antes veladas – tanto físicas quanto psicológicas. Somos convidados a assistir as cenas de tortura e lavagem cerebral. Adentramos as salas abafadas, fétidas, cheias de sangue, onde a individualidade do detento é esmagada, desfigurada, eliminada. Ao fim da tortura ele pode estar ainda vivo – mas não é mais ele mesmo. Está pronto para trair os companheiros e a Causa. Ele é um convertido ao regime que o esmagou.


Na Parte III do romance, o protagonista está face a face com os torturadores nas masmorras do ironicamente denominado Ministério do Amor, mas que poderia ser o Quartel da Gestapo na Prinz-Albrechtstrasse em Berlim ou o prédio da KGB na Praça Lubianka em Moscou. Lugares amaldiçoados por todos os revolucionários e que se tornaram aparatos de poder para os revolucionários no poder, ou para os reacionários. Num movimento de avanço e recuo numa verdadeira estratégica bélica para assegurar as rédeas do poder.


Na prisão – onde os prisioneiros políticos são os mais temerosos – acabam o que restava de dignidade humana, num antro de prostituição, miséria, drogas, subornos, que nada tem de 'ressocializante', ao contrário, somente aumenta a sede de vingança e o instinto assassino dos presos. Há uma atmosfera de medo que já destrói o prisioneiro antes mesmo de ele ser torturado, pisado, quebrado até a medula. Por exemplo, a simplesmente menção de uma sala 101 um curto-circuito de arrepios percorre os presos políticos.


“Mais prisioneiros iam e vinham, misteriosamente. Um, uma mulher, estava indicada para a 'sala 101', e, Winston notou, parecia arrepiar-se e ficar pálida quando ouvia as palavras.” (“More prisoners came and went, mysteriously. One, a woman, was consigned to 'Room 101', and, Winston noticed, seemed to shrivel and turn a different colour when she heard the words.” p. 193, P. III”)


Na sala da prisão, Winston reencontra O'Brien. Também investigado? Também preso? Ou O'Brien apenas apareceu para delatar mais alguns 'companheiros' da tal Irmandade? Neste romance todo muito é suspeito, pois todos desconfiam de todos, todos vigiam todos. O famigerado Grande Irmão é o olhar de cada cidadão ao vigiar o cidadão ao lado – não é uma 'entidade', é um símbolo da não-privacidade.


É de se imaginar porque os torturadores não acabam logo com o serviço. Porque os policiais perdem tanto tempo em destruir um homem. Por divertimento? Por sadismo? Para sentirem o gosto do poder? Por que O'Brien perde tanto tempo em extrair os pensamentos de Winston? Por que explica e revela os fatos que tanto ele – quanto nós – desconhecemos? É para esclarecer ao protagonista – ou aos leitores? O papel de O'Brien aqui é o mesmo do Grande Inquisidor no romance “Os Irmãos Karamázovi” de Dostoiévski. É o mesmo papel de Mustapha Mond em “Admirável Mundo Novo” e do Capitão Beatty em “Fahrenheit 451” - eles têm o poder de eliminar o 'subversivo' mas ainda se dão ao trabalho de conversar com o condenado, explicar tudo, revelar tudo, justificar-se.


No interrogatório de Winston há toda uma paródia dos Expurgos de Moscou, durante os anos de 1930, quando Stalin limpava os quadros do Partido, expulsando os velhos bolcheviques, para instalar os novos burocratas. Os condenados, em verdadeiras exibições, os julgamentos públicos, confessavam até o que nunca poderiam ter feito. Crimes que sequer poderiam cometer! (Talvez até quisessem, mas só pensar em cometer um crime – é um crime?)


“Ele [Winston] confessou que durante anos ele estivera em contato pessoal com Goldstein e fora membro de uma organização secreta que incluía quase todas as pessoas que ele conhecera. Era mais fácil confessar tudo e implicar todos. Além disso, em certo sentido era tudo verdade. Era verdade que ele fora o inimigo do Partido, e aos olhos do Partido não havia distinção entre o pensar e o agir.”
.
He confessed that he had murdered his wife, although he knew, and his questioners must have known, that his wife was still alive. He confessed that for years he had been in personal touch with Goldstein and had been a member of an underground organization which had included almost every human being he had ever known. It was easier to confess everything and implicate everybody. Besides, in a sense it was all true. It was true that he had been the enemy of the Party, and in the eyes of the Party there was no distinction between the thought and the deed. p. 200, P.III

.
mais sobre os Expurgos de Moscou – 1934-39
http://www.coladaweb.com/historia/revolucao-russa-parte-2
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Expurgo
.

Novamente, no momento da tortura, O'Brien surge como o que sabe-demais, o que pode conduzir tanto à libertação quanto à prisão – ele pode ser mesmo o líder de um 'grupo de resistência', mas apenas para atrair os 'resistentes' para as redes de vigilância da 'Polícia do Pensamento'. O'Brien pretende extrair os pensamentos criminosos de Winston – ora o torturador se mostra irascível, ora mostra-se 'camarada', alterna ira com piedade, confunde as percepções do prisioneiro, destrói toda a resistência física e mental.


“Ele [Winston] estava se erguendo da cama de tábua na semi-certeza que ele ouvira a voz de O'Brien. Durante todo o seu interrogatório, apesar de nunca tê-lo visto, ele [Winston] sentira que O'Brien estava junto, fora de vista. Era O'Brien quem estava dirigindo tudo. Fora ele quem enviara os guardas até Winston e quem impedira-os de o matarem. Fora ele quem decidira quando Winston deveria gritar de dor, quando dar uma pausa, quando alimentá-lo, quando ele devia dormir, quando injetar os entorpecentes. Era ele [O'Brien] quem fizera as perguntas e sugerira as respostas. Ele era o torturador, ele era o protetor, ele era o inquisidor, ele era o amigo. E certa vez – Winston não podia se lembrar se era num sono entorpecido, ou num sono normal, ou mesmo num momento de vigília – uma voz murmurara em seu ouvido: 'Não se preocupe, Winston; você está sob a minha guarda. Durante sete anos eu observei você. Agora o ponto decisivo chegou. Eu salvarei você, eu farei você perfeito.' Ele não esta certo se fora a voz de O'Brien; mas fora a mesma voz que dissera a ele, 'Nós nos encontraremos no lugar onde não há escuridão,' naquele outro sonho, sete anos antes.”
.
He was starting up from the plank bed in the half-certainty that he had heard O'Brien's voice. All through his interrogation, although he had never seen him, he had had the feeling that O'Brien was at his elbow, just out of sight. It was O'Brien who was directing everything. It was he who set the guards on to Winston and who prevented them from killing him. It was he who decided when Winston should scream with pain, when he should have a respite, when he should be fed, when he should sleep, when the drugs should be pumped into his arm. It was he who asked the questions and suggested the answers. He was the tormentor, he was the protector, he was the inquisitor, he was the friend. And once--Winston could not remember whether it was in drugged sleep, or in normal sleep, or even in a moment of wakefulness--a voice murmured in his ear: 'Don't worry, Winston; you are in my keeping. For seven years I have watched over you. Now the turning-point has come. I shall save you, I shall make you perfect.' He was not sure whether it was O'Brien's voice; but it was the same voice that had said to him, 'We shall meet in the place where there is no darkness,' in that other dream, seven years ago. p. 201, P. III


O'Brien tortura e, paternalmente, ministra explicações, dá aulas tal um professor atencioso, “Quando ele falava sua voz era gentil e paciente. Ele tinha o ar de um doutor, um professor, ou mesmo um padre, ansioso para explicar e persuadir mais do que punir.” (“O'Brien's manner became less severe. He resettled his spectacles thoughtfully, and took a pace or two up and down. When he spoke his voice was gentle and patient. He had the air of a doctor, a teacher, even a priest, anxious to explain and persuade rather than to punish.” p. 203, P. III)


A imagem do torturador se confunde com a do professor que conversa com aluno indisciplinado, “O'Brien olhava-o com atenção. Mais do nunca ele tinha o ar de uma professor se esforçando com uma criança teimosa, mas promissora.” (“O'Brien was looking down at him speculatively. More than ever he had the air of a teacher taking pains with a wayward but promising child". p. 204, P. III)


A necessidade da mutabilidade do passado – o mudar da memória – para se manter o poder. O partido deve ser infalível – mesmo que para isso os acontecimentos históricos tenham que ser mudados. Ou melhor, os registros dos acontecimentos históricos. “Nós, o Partido, controlamos todos os registros, e nós controlamos todas as lembranças. Então controlamos o passado, não é?” ( “We, the Party, control all records, and we control all memories. Then we control the past, do we not?'” p. 205, P. III )


Assim os governos controlam os registros, decretam 'top secret' e ninguém sabe o que acontece nos bastidores das políticas, das diplomacias. Mas, ainda bem que hoje temos o Wikileaks para adentrar arquivos confidenciais e disponibilizar tudo na rede mundial de computadores.


Para o inquisidor, o crime de Winston : não disciplinar-se, não controlar a própria memória. “Você não fez o ato de submissão que é o preço da sanidade. Você preferiu ser um lunático, uma minoria de um apenas. Apenas a mente disciplinada pode ver a realidade, Winston.” ( “You would not make the act of submission which is the price of sanity. You preferred to be a lunatic, a minority of one. Only the disciplined mind can see reality, Winston.” p. 205, P. III)


Aqui, O'Brien atua como um inquisidor-psicanalista ao declarar que Winston é louco, não o mundo em que ele vive. A Realidade existe deformada nos cidadãos deformados – e Winston é louco porque não é suficientemente deformado!


A mente solitária de Winston é rotulada de louca, pois a sanidade é estar de acordo com os ditames do Partido. A mente do Partido é coletiva e imortal! Não pode errar – e caso ocorrer erro, é o evento que é apagado, deletado, do arquivo) O Partido diz que 2 + 2 = 5, então o cidadão deve aceitar que 2 + 2 = 5, sem pestanejar.


O'Brien, paternalista e inquisidor, é amado e temido, é admirado e demonizado por Winston – uma verdadeira 'síndrome de Estocolmo' que se estabelece entre a vítima e o carrasco.

“Ele [Winston] abriu os olhos e observou O'Brien com gratidão. À visão da pesada e delineada face, tão feia e tão inteligente, seu coração parecia revirar. […] Ele nunca o amou tão profundamente como neste momento, e não apenas porque ele fez cessar a dor. O velho sentimento, que jazia fundo que não importaria se O'Brien era um amigo ou um inimigo, voltou. O'Brien era uma pessoa com quem ele poderia conversar.”
.
[…] He opened his eyes and looked up gratefully at O'Brien. At sight of the heavy, lined face, so ugly and so intelligent, his heart seemed to turn over. If he could have moved he would have stretched out a hand and laid it on O'Brien's arm. He had never loved him so deeply as at this moment, and not merely because he had stopped the pain. The old feeling, that at bottom it did not matter whether O'Brien was a friend or an enemy, had come back. O'Brien was a person who could be talked to. p. 208, P. III


O Ministério do Amor não apenas faz confessar sob torturas, não apenas ministra dor e punição, mas sobretudo CONVERTE os 'subversivos', os 'não-adaptados' “Nós não meramente destruímos os nossos inimigos; nós os convertemos. (“We do not merely destroy our enemies, we change them.” p. 209) Converter aqui significa 'reajustar', isto é, reintegrar, curar, submeter à terapia. O Partido não pretende criar 'mártires', mas convertidos.


Aqui a ficção faz referência à realidade histórica – a mesma que o Partido 'modifica'. O'Brien faz menção aos regimes totalitários do passado, “Os nazistas alemães e os comunistas russos.” (“German Nazis and the Russian Communists”. p. 209) Os Comunistas julgavam as vítimas em público, mas antes retiravam toda a dignidade do preso – não criavam 'mártires'. Os presos se auto-acusavam!


No mais, a posteridade nada saberá dos 'subversivos' . Aqueles que se rebelaram – e que forem convertidos - serão 'vaporizados' – deletados fisicamente e da memória.


“A posteridade nunca ouvirá sobre você. Você será apagado do fluxo da História. Nada restará de você: nem nome num registro, nem memória num cérebro vivo. Você será aniquilado no passado e também no futuro. Você nunca terá existido.” (“Posterity will never hear of you. You will be lifted clean out from the stream of history. We shall turn you into gas and pour you into the stratosphere. Nothing will remain of you, not a name in a register, not a memory in a living brain. You will be annihilated in the past as well as in the future. You will never have existed.'” p. 210, P. III)


Então por que todo esse interrogatório, toda essa tortura? Objetiva uma lavagem cerebral, uma reconversão do inimigo político.


No cinema podemos nos lembrar de dois subversivos. Ambos em distopias totalitárias, o Neo de “Matrix” (1999) e o John Preston de “Equilibrium”(2002) que se rebelam contra suas vidas controladas por regimes totalitários.


“Nós convertemos [o herético], nós capturamos uma mente mais íntima, nós o reformamos. Nós queimamos todo mal e toda ilusão dele; nós o trazemos para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, coração e mente. Nós o transformamos em um de nós, antes de o matarmos.” (“We convert him, we capture his inner mind, we reshape him. We burn all evil and all illusion out of him; we bring him over to our side, not in appearance, but genuinely, heart and soul. We make him one of ourselves before we kill him." p. 210, P. III)


A vítima morre amando o Grande Irmão, é portanto uma vítima morta-viva. O'Brien não é hipócrita, ele crê fanaticamente no Partido (outro exemplo de 'lavagem cerebral', a mocinha no filme “V de Vingança” (2006). Ela foi torturada pelo próprio 'mocinho', o tal mascarado V a la 'Guy Fawkes'. No filme, baseado nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, o lema era “Strength through Unity – Unity through Faith”, ou seja, “Força através da Unidade – Unidade através da Fé”. E há até uma espécie de 'grande irmão', um tal de Alto Chanceler Adam Sutler (no filme, ou Adam James Susan, no HQ dos anos 1980).

.
mais sobre o V de Vendetta
http://pt.wikipedia.org/wiki/V_for_Vendetta
.



O'Brien, além do partidário, representa o fanático, o que crê que os métodos são justificados pelos fins, pelos objetivos: criar cidadãos disciplinados e cooperativos. Mas é de se perguntar se O'Brien não seria um dos grandes do Partido. Afinal, o Grande Irmão existe? Existe, porque o Partido existe, e o Big Brother é a corporificação do Partido. Existe até mais do que o próprio Winston – que não existe. “'Ele [Grande Irmão] existe do mesmo modo que eu existo? 'Você não existe – disse O'Brien.'”(“'Does he exist in the same way as I exist?' 'You do not exist,' said O'Brien.” p. 214)


De fato, no coletivismo o indivíduo é o que menos importa – o indivíduo existir ou não é apenas em função do Estado, do coletivo. (É nesse ponto que o anarquismo individualista do Autor se revela – e seu 'socialismo libertário' evidencia ter muito do individualismo iluminista-liberal do Ocidente. Para os Estatismos orientais – ver Arábia, Rússia, Índua, China – o indivíduo é o que menos interessa, pois o idolatrado é o 'bem estar coletivo' (desde que de acordo com os interesses dos líderes, do Partido, do Estado, etc)


A Irmandade existe? Nenhuma resposta é dada – pode ser que sim, mas é logo exterminada pelo regime; pode ser que sim, uma 'resistência' montada pelo próprio regime, para acima trair e neutralizar os subversivos; pode ser que não, ser apenas uma fábula, uma quimera, para desorientar os subversivos. Por exemplo, o tal livro escrito pelo proscrito Goldstein tem trechos escritos pelo próprio O'Brien – o livro é uma farsa montada pelo Partido!


O'Brien – isto é, o Partido – não crê na revolta dos proletários. E realmente nas revoltas bolcheviques, fascistas, hitleristas, as massas proletárias foram instrumentalizadas por vanguardas, partidos, revolucionários profissionais, golpistas – mas as decisões não foram compartilhadas, mas centralizadas nas mãos das novas oligarquias. “Os proletários nunca se revoltarão, nem em mil anos nem em um milhão. Eles não podem.” (“The proletarians will never revolt, not in a thousand years or a million. They cannot.” p. 216, P. III)


Então o Partido governa para o bem do próprio povo? A nova Elite faz tudo em interesse do povo fraco e desprotegido? Ora, o Partido quer o poder pelo próprio poder! É melhor governar do que ser governado! O Partido quer o poder, 'apenas o poder, o poder puro.' não por luxo ou felicidade.


“Somos diferentes de todas as oligarquias do passado pois sabemos o que fazemos. Todas as outras, mesmo as que se assemelham a nós, foram covardes e hipócritas. Os nazis alemãs e os russos comunistas se aproximaram de nós em seus métodos, mas ele nunca tiveram coragem de reconhecer seus próprios motivos.” (“We are different from all the oligarchies of the past, in that we know what we are doing. All the others, even those who resembled ourselves, were cowards and hypocrites. The German Nazis and the Russian Communists came very close to us in their methods, but they never had the courage to recognize their own motives.” p 217) e conclui, “Poder não é um meio; é um fim em si-mesmo.” (“Power is not a means, it is an end.”)


O'Brien não se preocupa consigo mesmo – mas com a Oligarquia. Como um papa da nova Igreja,

“Nós somos os padres do Poder. Deus é o Poder. […] a primeira coisa que você deve entender é o que o poder é coletivo. O indivíduo apenas tem o poder na proporção em que ele deixa de ser um indivíduo. […] Sozinho – livre – o ser humano é sempre derrotado. Mas se ele pode fazer-se completo, sob submissão, se ele pode escapar de sua identidade, se ele pode fundir-se no Partido então ele é o Partido, então ele é todo-poderoso e imortal.”
.
“'We are the priests of power,' he said. 'God is power. But at present power is only a word so far as you are concerned. It is time for you to gather some idea of what power means. The first thing you must realize is that power is collective. The individual only has power in so far as he ceases to be an individual. […] Alone--free--the human being is always defeated. But if he can make complete, utter submission, if he can escape from his identity, if he can merge himself in the Party so that he IS the Party, then he is all-powerful and immortal. p. 218, P. III


O Partido cria a realidade: “ A Realidade está dentro do crânio”, cada mente lavada pela propaganda, claro. “Nós fazemos as leis da Natureza” pois o Partido controla até o Saber, crente de que “Nada além da consciência humana”. O totalitarismo está justamente na fusão do indivíduo no todo do regime que se intromete em tudo – fundindo vida particula e vida pública.


Podemos comparar esse poder coletivo com a Nova Classe dos Burocratas, dos Administradores que não possuem os bens de produção, mas administram, controlam. Basta lermos os livros de Milovan Djilas, “A Nova Classe”, 1957, e de Michael Voslensky, “A Nomenklatura”, 1984. ambos os autores trabalharam em sistemas ditos 'comunistas' e sabem do que estão falando. As promessas do comunismo não se realizaram. (Culpa dos Partidos? Culpa do ser humano? Mas, os líderes do Partido não são humanos?)


O sistema do Partido é praticamente 'religioso' – não apenas pela hierarquia de castas – quase 'católico' ao ser universal, com sua crença total, fé na infalibilidade do Grande Líder, submissão islâmica às regras partidárias, etc – nada diferente dos sistemas que rotulamos de 'fundamentalismos'.


“O poder verdadeiro, o poder pelo qual lutamos noite e dia, não é poder sobre coisas, mas sobre homens.”( "The real power, the power we have to fight for night and day, is not power over things, but over men.'" p. 219)


“Poder é despedaçar as mentes humanas e reajuntá-las em novos formatos à sua própria escolha. […] É o exato oposto das estúpidas Utopias hedonistas que os velhos reformadores imaginaram.” (“Power is in tearing human minds to pieces and putting them together again in new shapes of your own choosing. […] It is the exact opposite of the stupid hedonistic Utopias that the old reformers imagined.” p. 220, P. III)

“Progresso em nosso mundo será progresso rumo a maior sofrimento.” (“Progress in our world will be progress towards more pain.” p. 220 )

“O instinto sexual será erradicado. Procriação será formalidade. Aboliremos o orgasmo. Lealdade apenas ao Partido. Amor apenas ao Grande Irmão. Nada de riso, apenas gozo com a derrota do inimigo. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência.” (“The sex instinct will be eradicated. Procreation will be an annual formality like the renewal of a ration card. We shall abolish the orgasm. […] There will be no loyalty, except loyalty towards the Party. There will be no love, except the love of Big Brother. There will be no laughter, except the laugh of triumph over a defeated enemy. There will be no art, no literature, no science.” p. 220 )


Aqui as três distopias se assemelham – a dignidade humana é abolida, e tanto artes quanto ciência são instrumentalizadas ou abolidas. O sofrimento e a guerra são usados como métodos de terror e submissão visando maior obediência e idolatria das massas populares – sempre afastados dos centros decisórios. As oligarquias – o Partido, os Burocratas – instauram a dominação permanente em nome da infalibilidade partidária, ou melhor, dos privilégios da 'nova classe'. Aos não-privilegiados somente resta o Terror.


“Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando uma face humana – para sempre.” ( “If you want a picture of the future, imagine a boot stamping on a human face--for ever.” p. 220)


A imagem aqui é a apoteose do romance distópico de Orwell. Nada mais precisaria ser acrescentado – se Winston sobrevive ou não, se reencontra a amante Júlia ou não, se será vaporizado em breve ou não. Temos aqui a imagem do totalitarismo: uma bota a esmagar uma face. Nada mais precisa ser dito. O recado está dado. O Autor faz sua opção por um socialismo desde que libertário – o que o aproxima dos anarquistas, dos libertários anti-estatistas, dos arautos da autogestão. Que ainda sobrevivem enquanto Utopia – até que uma distopia da autogestão venha a ser escrita algum dia.



jun/11


Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com






.

.