quarta-feira, 27 de julho de 2011

sobre 'Fahrenheit 451' - de Ray Bradbury









Sobre “Fahrenheit 451” (EUA,1953)
romance distópico
do autor Ray Bradbury (1920-)
(tradução de Cid Knipel. Ed. Globo, 2003)


A literatura denuncia a queima da literatura


Introdução


A literatura incomoda muita gente – governos, plutocratas, ditadores – assim os literatos são os primeiros a serem condenados, exilados, presos quando surge uma ditadura. Alguma coisa parece existir nos livros – desde que a civilização é letrada, desde que existam registros – que incomoda muito os conservadores, os revolucionários, os ditadores de plantão.


Os livros são logo rotulados, catalogados, indexados, prontos para as gavetas, para a censura, para a pira funerária em praça pública – isso quando não queima também os autores em seguida, na mesma fogueira. A livre expressão, a criatividade, o prazer da leitura, parece não cair bem nos padrões de controle das sociedades modernas, ávidas por diversão fácil, consumo fácil, pensamento fácil, facilmente alienadas. Se alguém 'fala demais' é sutil - ou violentamente – censurado.


Não é a primeira vez que o Autor Bradbury trata do assunto proibição e queima de livros - lembremos o conto “Usher II” nas “Crônicas Marcianas” onde um bibliófilo milionário constrói em Marte uma mansão mal-assombrada para se vingar dos censores do governo – os queimadores de livros.

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link para o meu artigo sobre
os contos marcianos de Bradbury
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/05/sobre-as-cronicas-marcianas-de-ray.html
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A época de Fahrenheit 451 é mais ou menos ano 2000 (ou seja, a nossa época!) numa descrição nem tão tecnológica quanto em Brave New World de Huxley, nem tão opressora quanto 1984, mas igualmente distópica, onde os bombeiros não são chamados para apagarem os incêndios – mas para causar incêndios – assim fazem jus ao nome 'fireman' – homem do fogo – que seria mais um 'bookburner', aquele que queima livro.


Similaridades são evidentes entre Fahrenheit 451 e Brave New World com diversão e entretenimento alienante para a população, que passa a desprezar os livros e a filosofia, a leitura estética, e busca emoções fortes, artificiais. A televisão está em todo lugar, atraindo atenções. Os narcóticos estão liberados, para manter o povo domesticado


Paralelos entre Fahrenheit 451 e 1984 também incluem as televisões onipresentes – com a diferença de que no mundo distópico de Orwell as televisões servem como câmeras que vigiam os cidadãos dentro e fora de suas casas. Em ambas as distopias temos o autoritarismo, a repressão, a censura, o Estado contra os cidadãos, o utilitarismo


De certa forma o mundo de Fahrenheit 451 é mais 'realista' e verossímil do que aqueles de Brave New World e 1984, com menos aparato tecnocrata, e menos repressão totalitária (o ápice é sempre 1984 onde até uma nova linguagem é inventada para impedir os cidadãos de pensarem livremente).


Os donos do poder – em nosso mundo, e ainda mais nos 'mundos distópicos' - não aceitam vozes dissonantes, sempre há uma figura que simboliza o poder contra o desejo de livre-pensamento do protagonista. Podemos comparar a figura do capitão Beatty com o Grande Inquisidor de “Os irmãos Karamázovi” (1879) de Dostoiévski – assim como podemos comparar Beatty com o Mustapha Mond de Brave New World e com o O'Brien de 1984. Antagonistas que explicam o funcionamento das distopias para os protagonistas – e, assim, para os leitores.


Onde se queima livros, também pode se queimar os autores, as pessoas. O escritor Thomas Mann falava algo semelhante quando se referia aos nazistas (do tipo, Hoje eles queimam meus livros, porque ainda não podem queimar o autor) enquanto Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, mostrava uma ironia amarga, “É um grande progresso em relação à Idade Média. Agora queimam meus livros, naquela época eu mesmo seria jogado na fogueira.”


Bombeiros provocam queimas


Em Fahrenheit 451 o protagonista é Guy Montag, um bombeiro, ou queima-livros, que tem por antagonista um inteligente oficial, seu superior no quartel, o Capitão Beatty, enquanto tem por interlocutores a esposa Mildred, a vizinha Clarisse e o bibliófilo clandestino Faber.


Primeiramente encontramos Montag ('segunda-feira' em alemão) um tanto ambíguo – gosta, tem prazer em queimar livros, mas não entende bem porque tem que fazer isso. É um exemplo de trabalhador alienado – trabalha e não se reconhece no trabalho que executa.


Neste momento algo – na verdade, alguém – rompe a vida rotineira de Montag, quando ele é abordado pela vizinha Clarisse McClellan, uma mocinha de 17 anos, que gosta de conversar e não tem medo dele – afinal, os bombeiros são queimadores-de-livros, gente antipática. A vizinha Clarisse faz perguntas um tanto excêntricas, espontâneas, fora dos padrões, do tipo “Você é feliz?” Ela quer saber se é verdade que antes os bombeiros apagavam o fogo – ao contrário de iniciar o fogo, ao queimar livros. Ele acha a pergunta deveras perturbadora. Desde quando os bombeiros queimam livros? Ele não sabe.


Clarisse gosta de observar pessoas – e Guy Montag acha a mocinha estranha, o problema deve ser que ela pensa demais. Ela indaga sobre os outdoors, a propaganda constante, a televisão interativa (tipo os 'big-brothers', os reality-shows da atualidade) e assim ficamos sabendo que há tudo isso no mundo futuro – um excesso de entretenimento que dispensa a leitura, o recolhimento e a solidão - exatamente o mesmo que acontece em Admirável Mundo Novo, onde a diversão é incentivada.


Ao chegar em casa, após o dia de serviço, e depois da breve conversa com a mocinha da casa vizinha, Montag encontra a esposa Mildred em plena overdose de entorpecente – que nem tem esse nome, são 'apenas' pílulas para dormir. Assim como hoje em dia nos entupimos de pílulas, estimulantes, viagras, anti-depressivos, em nossa vidinha artificial farmacológica.


Quando os paramédicos chegam, estes parecem mais uns desentupidores de pia – chegam e trocam o sangue da vítima. Sujeitos impessoais que tratam a mulher de Montag como se fosse uma boneca de pano, uma coisa. Como se trocassem óleo de um carro... Não se importam se morre mais uma, pois tem gente demais no mundo. A superpopulação, o acúmulo populacional nas cidades, cria o anonimato e a solidão meio a multidão, onde ninguém conhece ninguém, todos vivem suas vidas indiferentes às vidas alheias.


Mildred se recupera da overdose de pílulas para dormir e apenas para voltar a sua vida alienada, como se nada tivesse acontecido. Ela até nega que tenha tomado tanta pílula – comporta-se como uma adolescente viciada que nega o próprio vício. A esposa de Montag quer sempre mais conforto, mais diversão, quer televisão de tela plana nas quatro paredes da casa, com direito a ver todas as novelas interativas, os reality-shows da semana! Em suma, nada de pensar na vida, nada de parar para pensar, vamos nos embriagar de enlatados televisivos.


Temos então um interessante contraponto na perspectiva de Montag: a vida alienada da esposa versus a presença estranha da vizinha. De um lado a rotina doméstica e de outro a possível aventura (inclusive amorosa?). É um tanto ambíguo, pois Clarisse acha Montag interessante, julga que ele não é igual aos outros bombeiros com poses de durões a incendiarem pilhas de livros.


Acompanhamos Montag até o trabalho no Corpo de Bombeiros. Lá está um cão-robô ('mechanical hound'), o 'Sabujo Mecânico, que é uma espécie de mascote dos firemen. O tal cão-robô parece farejar aqueles 'fora-do-padrão' e não está muito amistoso com o desconfiado Montag. Até o robô ameaça Montag?


Mas o Capitão Beatty explica paternalmente que uma máquina 'não gosta nem desgosta', ela 'apenas funciona'. A máquina, o cão-robô, é apenas ajustada – para 'caçar, localizar e matar'. O capitão acha que Montag está com a consciência culpada ao imaginar ameaças. Realmente o capitão tem todo um tom paternal, de padre ou pastor, de xamã ou pajé, um guia tecnocrata para os seus subordinados. O capitão zela pela ordem – e pela consciência de seus comandados!


Montag reencontra Clarisse outras vezes e ela mesma se considera 'excêntrica' e até 'antissocial' – pois não aceita a vida padronizada. Ele sempre acha perturbadora a curiosidade da mocinha – ele que vive inserido numa rotina a ponto de demorar a perceber que a vizinha Clarisse desapareceu. Ela não estava mais na calçada para surpreendê-lo. O que teria acontecido? Uma viagem? Uma doença?


O protagonista vive entre o quartel e a casa, a sentir-se gradativamente desconfortável. Um mal-estar, uma ou outra reflexão, agora se insinua. Algo do contexto aflora – outra guerra? Outra! Lembrar que o romance Fahrenheit 451 foi escrito nos anos 1950, foi publicado em 1953, no início da Guerra Fria, com os Estados Unidos (e as Nações Unidas, ONU) enviando tropas para a Guerra na Coreia (1950-53) contra os comunistas norte-coreanos e chineses. (Guerra que oficialmente não terminou até hoje...)


Temos acesso em vários trechos a uma lista dos livros proibidos condenados pelas autoridades. Uma espécie de Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica Romana na época da fogueiras acesas da Inquisição. Também os nazistas alemães tinham suas listas de autores proibidos, ou artistas da “Arte Degenerada”. Em suma, os regimes de padronização não permitem qualquer pensamento não-catalogado, nenhuma excentricidade intelectual é aprovada.

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Os livros censurados do Index Librorum Prohibitorum
http://historica.com.br/hoje-na-historia/1406



Aquele que não se encaixa no padrão é rotulado como excêntrico, louco, e é sujeito a readaptação, internado em hospício, ou eliminado. E Montag logo desperta suspeitas quando faz perguntas. Quer saber, por exemplo como era a corporação de bombeiros antes, no passado? Justamente a pergunta de Clarisse nas primeiras cenas do romance.


Mas na distopia da História reescrita não é de se espantar se descobrimos que os 'firemen' foram – desde o século 18! - uma equipe de incendiários, e que o primeiro bombeiro foi ninguém menos que Benjamin Franklin!


Então, Montag tem uma experiência traumática – uma subversiva, dona de uma imensa biblioteca decide deixar-se queimar junto com os preciosos livros! Por que tanto sacrifício? O que os livros guardam de tão importante? A Sra. Blake morre com um olhar impassível – será loucura? Em nome de quê ela morre? Ela mesma acende os fósforo!


Este martírio da estranha Sra. Blake (referência ao poeta visionário William Blake, 1757-1827) causa um abalo emocional em Montag – ele finalmente questiona o próprio trabalho, estes incêndios de livros.


Enquanto isso, o capitão Beatty cita trechos de livros queimados. Onde e quando o capitão pôde ler os livros? (Também Mustapha Mond lia o proibido Shakespeare e citava trechos para o confuso Sr. Selvagem, em Admirável Mundo Novo. Também o ditador Adolf Hitler conservava na biblioteca pessoal alguns livros que eram queimados pelos próprios nazistas! Quem faz as leis sempre está acima das leis!)


Montag então questiona o trabalho, a queima de livros, a esposa – que ele percebe enfim pouco conhecer – o que une o casal? A casa em comum? A rotina de casados?) Interrompendo a esposa – entretida num programa da televisão interativa – Montag tenta um diálogo, e consegue saber o que aconteceu com Clarisse. A família vizinha se mudou, porque a mocinha sofrera um acidente. Certamente morrera.


Morrera? Como assim? Do mesmo modo como as pessoas somem, desaparecem – são 'vaporizadas' em '1984', num regime de Terror - aqui a diferente Clarisse é logo dada como morta – nada mais se sabe sobre ela. Nem Montag – nem o/a leitor/a saberá o que aconteceu. O trauma de Montag se torna psicossomático e ele adoece. Não vai ao quartel – e conta à esposa o caso da leitora-mártire, e ele quer que ela avise o capitão.


E finalmente sabemos porque Montag é bombeiro! “Que escolha eu tinha? Meu avô e meu pai eram bombeiros. Em meus sonhos, eu corria atrás deles.” (p. 76*) Ele é bombeiro porque é filho e neto de bombeiros, por tradição familiar. Assim como muitos são médicos ou militares por pressão familiar. Não escolheram a carreira, não decidiram o próprio futuro profissional. Seguem uma inércia de modo inconsciente. E depois, subitamente, a 'ficha cai', surge a angústia a revelar toda uma vida não-autêntica. Questão que muito interessava ao filósofo existencialista Jean-Paul Sartre.


Montag pensa então nos livros – o que realmente há nos livros? - e nos autores – quem são estes que escrevem livros? - e sabemos que ele ocultava livros – inclusive sob os travesseiros! Justo quando o Capitão Beatty vem saber o motivo da ausência ao trabalho. A figura paternal do Capitão é impressionante – parece um diretor de colégio em visita a uma aluno indisciplinado.


Beatty resolve esclarecer para Montag as reais origens dos 'firemen'. Depois de uma Guerra Civil (a de Secessão?), depois de um excesso populacional, depois de uma indústria cultural massificada (tudo nivelado por baixo). Livros – Filmes – Resumos de livros – Sinopses – Novelas. O importante não é pensar – mas se divertir. Domesticar os livros com versões cinematográficas. Abaixo a fadiga do pensamento – pensar pra quê? Temos sinopses de resumos, temos resumos de resumos de resumos. (O leitor não tem tempo de ler, absorver, a leitura atual, como vai ter concentração para ler os clássicos? Vide “Por que ler os clássicos?” de Ítalo Calvino)


Mas ler pra quê? Se há outras mil diversões? Mas ler é se divertir? Ora, temos TV, teatro, cinema, esportes, reality-show, etc. Leitura é apenas outro produto na estante... O importante é agradar a todos! Nada de incomodar minorias, ou fazer caricaturas de políticos! 'Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever!” Maus pensamentos? Quais? Todos aquele pensar que não está 'dentro do padrão', que é crítica ao estabelecido. Toda ditadura se dedica a censurar, a eliminar livros e autores. O pensamento não-ortodoxo é o primeiro a ser banido – seja pelas Direitas ou pelas Esquerdas – em prol das tradições ou do 'politicamente correto'.


O pensamento excêntrico, diferente, deve ser silenciado. Deve haver uma padronização para manter o controle – há o império da Maioria, o auge da mediocridade. Viva o senso comum! (As palavras de Beatty soam irônicas, como se ele tivesse lido num livro. Livros que contestam livros. Livros que são ambíguos.) A crítica ao mundo de Fahrenheit 451 deve ter por referência as advertências do pensador Nietzsche quanto a 'moral de rebanho' e as de Adorno & Horkheimer quanto a 'indústria cultural'.

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Mais info
contra a 'moral de rebanho'
http://niilismo.net/forum/viewtopic.php?t=540
http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/nietzschecotrim.html
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sobre a 'Indústria Cultural
http://www.urutagua.uem.br/04fil_silva.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Culture_industry
http://www.culturabrasil.org/frankfurt.htm
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O importante é divertir o povo, que as massas populares sejam felizes. Exatamente o mesmo argumento do Administrador Mustapha Mond em Brave New World. Todo o sistema de dominação e alienação teria por objetivo a felicidade dos cidadãos dominados e alienados! Pelo discurso das Elites para manter a submissão dos não-privilegiados.


Excesso de diversão, de entretenimento, de programas televisivos. Excesso de informações em rede mundial, excesso de links disponíveis – para causar desinformação! Nunca houve tanta informação – daí nunca dantes sermos tão desinformados. O professor que fornece miríades de informações aos alunos não é exatamente o bom mestre – ele apenas enche a mente dos doutrinados – não apresenta um método para 'digerir' tanta informação.


Tal um professor irônico o Capitão Beatty se despede de Montag, “Preciso ir. A aula acabou” - e toda a atitude de Montag até ali é a de um aluno aplicado a ouvir o professor. O aluno que não constrói o aprendizado – mas engole tudo o que o professor enfia-lhe goela abaixo. Assim como Winston Smith ouvia as palestras professorais de O'Brien nas torturas na sala 101 de '1984', de Orwell.


O protagonista - e nas três distopias – enfrenta uma mente superior, um tecnocrata, um oficial, que compreende o sistema e adere ao status quo, ainda que com ironia (Mustapha Mond), amargura (Beatty) ou fanatismo (O'Brien).


Montag resolve revelar para Mildred, sua esposa, o local onde ele escondia os livros – e ela fica horrorizada. Ler livros é crime! (A mulher surge aqui como uma 'agente da lei' dentro de casa – e é quem vai denunciá-lo) Montag não quer mais queimar livros – preferiria antes queimar os bombeiros – e todo o aparato de segurança. Há uma paranoia militar e nuclear no ar – as mesmas guerras constantes que encontramos em “1984” - “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas”.


Afinal de contas, os Estados Unidos da América são a superpotências – e os cidadãos deveriam pensar no que representa a hegemonia ianque no mundo – em concorrência com a URSS – aos olhos dos povos ditos subdesenvolvidos. (“Será por que somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza?”)


O excesso de propaganda – nos outdoors, no metrô – cria um incentivo constante ao consumo – também importante para a dinâmica do Admirável Mundo Novo, mas ausente em '1984', onde há penúria, escassez, nenhum consumismo. O excesso de promoções, mercadorias, programas de TV, tudo isso dispersa o pensamento do cidadão incapaz de 'totalizar' as informações – apenas partes, fragmentos, sem nexo são despejados sobre retinas e mentes.


Decidindo tomar uma atitude, Montag resolve procurar Faber, um antigo subversivo investigado. Faber entende de livros, mas desconfia de Montag. Depois de Beatty, Faber é a melhor persona deste romance – sabe algo que o protagonista – e nós, leitores - não sabe. Tanto que Faber e Beatty vão duelar pelo destino de Montag – o bibliófilo versus o oficial representam alegorias da arte versus a ordem.


Faber é aquela figura do bibliófilo, do 'rato de biblioteca', que gosta mais de livros do que de gente – que adora folhear, cheirar os livros... mas acha 'romântica' a ideia de Montag – a de que os livros poderia ajudar a mudar as coisas, o status quo...

Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo.” (pp. 109-110*)


Os livros incomodam os privilegiados, as dirigentes, porque eles revelam o que queremos ocultar, esquecer, pois colocam os pontos nos 'is' da nossa (ir)realidade cotidiana.


Os livros, aliás, não incomodam somente as autoridades – mas também aos cidadãos comuns, os medíocres, as minorias, os conservadores, as 'patrulhas ideológicas', os defensores do 'politicamente correto' – em suma, aqueles que preferem ver TV do que abrir um livro – daí os livros passarem a ser 'persona non grata', desprezados, logo censurados, depois eliminados. Chamem os queimadores-de-livros!


Faber sabe o que diz quando declara que “Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos.” (p. 113*) daí incomodarem muita gente. Então quem poderá resistir aos queimadores de livros? Os antigos leitores? Os historiadores? Os autores? Os atores de teatro? Os bibliófilos? Quem? Quem se importa com leituras? “Os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis.” (p. 117*)


O bibliófilo Faber acha que os livros perderam a guerra – é melhor Montag desistir. O bombeiro renegado não sabe se o bibliófilo é prudente ou um covarde. Mas Faber é pressionado a ajudar Montag e ambos mantêm contato por um microfone transmissor. É o apoio que Montag precisa para 'enfrentar' Beatty. Ainda que Faber ache que o capitão é 'um dos nossos'. Será mesmo?



A guerra iminente: caças e bombardeiros cruzam o céu... notícias na TV... um clima de paranoia sobre os cidadãos. Montag não suporta: passa dos limites, ele resolve impulsivamente ler poemas para as amigas da esposa na hora do chá das visitas! Faber o adverte, mas é inútil. Montag está fora de controle: imagine ler poema para as visitas! É crime! Ainda mais um bombeiro...!


Percebemos o quanto a conversa das mulheres é completamente padronizada e alienada – nenhum pensamento autêntico. Montag, ao ler o poema, causa um estranhamento – justamente o papel da Arte: atentar o olhar para além do cotidiano, do padronizado. Para o mundo da padronização, a Poesia é coisa de sentimentalóides – as visitas se sentem ofendidas ou perturbadas. Nenhum vê o mundo com a autenticidade de uma Clarisse...


Faber adverte Montag para não incomodar os anti-livros, que ele deve ter paciência – Faber dá o apoio moral que Montag precisa, ainda mais quando o bombeiro volta ao quartel da salamandra no fogo, onde Beatty o recebe com ironia,


A ovelha voltou ao redil. Somos todos ovelhas que às vezes se extraviam. A verdade é a verdade, até o fim das contas, é o que proclamamos.” (p. 136*)


Aqui o coletivo X indivíduo, tal qual vimos em Brave New World e 1984. Beatty tem segurança, fala com autoridade, pois fala em nome de um coletivo, uma abstração – a Ordem, a Disciplina, a Sociedade – enquanto Montag é frágil pois é apenas um indivíduo contra a multidão, contra a Ordem.


Beatty se dá ao luxo de ser irônico e amargo ao rechear suas falas com citações de livros – ora, Beatty é um leitor? Mas ele lê quais livros? Afinal, ele é o responsável pela queima de livros! (Mas percebemos em Brave New World que Mustapha Mond tem Shakespeare e Blake na biblioteca particular, e O'Brien em 1984 conhece História – a mesma História que ele ajuda a apagar, deturpar...)


Que traidores os livros podem ser! - Beatty tira citações de livros e embaralha todas para dizer o contrário – que os livros se contradizem – assim tirar frases de um contexto : uma técnica que qualquer sofista conhece bem para construir argumentos falaciosos... Faber precisa alertar Montag de que


Lembre-se de que o capitão está alinhado com os inimigos mais perigosos da verdade e da liberdade, com os rebanho impassível da maioria.” (p. 138*)


Mas a sirene ressoa – há um chamado, outra delação! “Aqui vamos nós para manter o mundo feliz, Montag!” (p. 140*) diz o capitão.


Montag não consegue ocultar o mal-estar em continuar no trabalho de bombeiro – então ele percebe que está diante da própria casa! Realmente, a esposa Mildred não demorou a delatar as leituras do marido.


A partir daqui – a Parte 3 – a cronologia do enredo se acelera, se precipita, o protagonista precisa tomar decisões, assumir sua subversão, fugir das autoridades. É o mesmo caminho de John, o Selvagem, em Brave New World, e de Winston Smith, em 1984. o indivíduo encontra-se só contra o governo, contra a sociedade, contra o mundo.


Montag será obrigado a queimar a própria casa! E depois será preso! Mas enquanto incendeia tudo, enquanto apaga o próprio passado, ele precisa suportar as provocações do capitão, que desconfia que Montag não está sozinho na 'subversão' – e para proteger Faber, Montag vira o lança-chamas contra o capitão Beatty. Mas – e somente depois o ex-bombeiro percebe – é como se Beatty QUISESSE que Montag o mata-se, como se Beatty tivesse desistido de também ser queima-livros.


Na fuga, Montag precisa enfrentar o tal cão-robô que injeta entorpecente e mata a vítima de paralisia. O mocinho do romance consegue fugir – ao contrário de John, o Selvagem e de Winston. Mas toda a vida anterior do protagonista está perdida, deletada, literalmente queimada! Ele passa a ser um fugitivo, um marginal. Ele precisa da ajuda de Faber para fugir da cidade, para além do rio.


Ao mesmo tempo a guerra é declarada – e para distrair o povo, a TV transmite a perseguição ao subversivo e assassino Montag! Aqui o romance se torna uma paródia de livro policial, de ação, que a indústria cultural de Hollywood adoraria filmar! E que Truffaut evitou no filme clássico de 1966. Um filme mais lírico do que thriller explosivo.


O mais sensacional e original nesta etapa final não é a fuga, mas o encontro – o encontro com os estranhos andarilhos ao redor de uma fogueira. Poderíamos confundi-los com hippies, hipsters beatniks nas estradas. Mas são literatos, ex-professores, ex-escritores, ex-bibliófilos, poetas do mundo sem-bibliotecas, homens-livros ambulantes!


Eles decoram trechos, ou livros inteiros, e conservam assim a literatura! “Decore o meu poema / livros duram pouco”, escreveu o poeta húngaro György Faludy (1910-2006), lembrando que a literatura não está apenas nos livros – os livros apenas 'armazenam' um texto – que somente ganha vida quando tem um leitor (é a relação texto-leitor que presentifica a obra e ressuscita a voz autoral, segundo podemos ler na “Estética da Recepção”, a escola teórica dos críticos alemães H. R. Jauss e W. Iser) – a ponto de se perguntar, Você, leitor? Que livro você gostaria de ser?

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link para o poema de G. Faludy
http://www.opendemocracy.net/arts/faludy_3872.jsp
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minha tradução em
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/07/decore-este-meu-poema-g-faludy.html
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sobre a Estética da Recepção
http://ptmiriamfajardo.pbworks.com/w/page/19749775/Estética-da-Recepção
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/recepcao/textos/livia2.htm



Realmente vale a pena ler o romance só para encontrar estes homens-livros que resguardam em suas mentes verdadeiras obras-primas da literatura mundial. Montag imagina se não delira! Ele não está num livro, vive uma outra vida realmente! (O que soa no mínimo irônico, pois, afinal, ele é personagem de um romance!)


É a parte mais literária do romance. A fuga de Montag é até poética, ainda que dramática. Mesmo com Montag fora de alcance, a 'caçada continua'. Um desavisado qualquer será preso e/ou morto para salvar a honra da polícia. Um inocente morre no lugar de Montag – que agora está oficialmente morto. Ele adere ao grupo de homens-livros - “Bem-vindo a terra dos mortos!”


Ali perambulam os ex-professores, ex-literatos, reverendos, poetas, eis o que são os hippies, os párias do mundo-anti-livros. Nas margens do rio, fora da cidade – a cidade agora é alvo de bombardeios! - eles vivem, ou sobrevivem, como nômades, fugitivos, a decorarem livros, e depois se livrando das 'provas' que incriminam.


Os homens-livros, ao redor de suas fogueiras, assim se apresentam, entre irônicos e heréticos,


Eu sou a República de Platão. Gostaria de ler Marco Aurélio? O Sr. Simmons é Marco Antonio.” (p. 186*)

Lemos os livros e os queimamos. Guardamos na cabeça. Somos todos fragmentos de obras de história, literatura e direito internacional.” (p. 187*)

Se formos destruídos, o conhecimento estará morto, talvez para sempre.” e “Somos a minoria excêntrica que clama no deserto.” (p. 187*)


Estes verdadeiros João Batistas esperam um Messias no futuro para re-instaurar a cultura letrada. Cada pessoa decorou capítulos, trechos, livros inteiros, e narra estas histórias aos outros, ou espera um momento, no futuro, para reescrever e reeditar os livros, assim como os monges copistas conservaram a literatura clássica (dos gregos, dos romanos) ao longo da Idade Média.


Os marginais exilados do mundo anti-livros formam uma quase comunidade de leitores banidos que somente sobrevivem para conservarem obras literárias. Uma bela metáfora, uma bela fábula do nosso fanatismo da leitura, nós, os leitores compulsivos, que somente ganhamos da leitura a própria leitura – como dizia Virginia Woolf – que somente temos da leitura o prazer de ler, nada mais.


O livro somente é literatura quando aberto pelos leitores e saboreado e deglutido e digerido – pois os leitores, como se fossem boas traças, se nutrem de estórias, histórias, fábulas, parábolas, contos, poemas, romances, baladas, epopeias, em suma, tudo isso revivido enquanto processo de leitura, enquanto re-criação na mente do/a leitor/a daquele universo ficcional – e confessional – criado/a pelo Autor/a.


O recado do autor Ray Bradbury com o seu (já clássico!) “Fahrenheit 451” é a de que os leitores precisam proteger – com seus próprios corpos e mentes, se necessário – os livros que conservam, que dialogam, que transmitem de geração a geração um saber que não é de Direitas ou Esquerdas, de maiorias ou minorias, nem dos autores nem de leitores, mas manifestação da obra de arte enquanto superação, enquanto contestação, enquanto novidade num mundo massificado e alienado. Qualquer censura é apenas a conservação e perenização da mediocridade e da mesmice.



(*)todas as citações são da tradução de Cid Knipel (São Paulo: Globo, 2003)



jun/11



Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com








Referências


BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. tradução: Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2003.



Links

sobre “Fahrenheit 451
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451
http://www.cliffsnotes.com/study_guide/literature/Fahrenheit-451-Critical-Essays-Dystopian-Fiction-and-Fahrenheit-451.id-106,pageNum-16.html




LdeM


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