domingo, 13 de março de 2011

sobre ORLANDO - de Virginia Woolf (1:2)







Sobre “Orlando” (Orlando – A Biography, 1928)
da autora inglesa Virginia Woolf (1882-1941)


A Criação Literária enquanto ânsia de Imortalidade

1:2

Introdução

Existem obras que pretendem desvelar e revelar o mundo aos leitores. Surgem assim como verdadeiros depoimentos de testemunhas, como já presenciamos no movimento realista – que deve algo a Stendhal e Victor-Hugo, mas alcança autonomia nos escritos de Balzac e Flaubert até o olhar naturalista de Maupassant e Zola. Estes abordam fatos externos a forma literária – trabalham sobre contextos.

Em contraponto, temos a forma literária que se olha no espelho. Percebe que há todo um universo dentro da própria criação, a Obra. É quando a literatura trata da própria literatura. Temos um ênfase na questão metalinguística - literatura fala de si-mesma e de literatos. Há um mundo lá fora, mas este é 'filtrado' pelo estilo que apenas assimila os contextos enquanto molduras – não analisa, permite-se sentir.

Os românticos já sentiam assim: o mundo lá fora é apresentado pelas emoções – que podem distorcer o 'mundo observado' – e entendido enquanto 'experimentação', não 'algo dado' a ser dissecado. Assim as paisagens se alteram aos olhos do Dr. Victor Frankenstein assim como alteram seus sentimentos. Assim os castelos góticos existem apenas para os anseios fantasiosas da senhorita Morland na Abadia de Northanger. Assim a Casa da Usher é mais sombria quanto mais deprimido está o narrador.


Depois os simbolistas resgataram este 'mundo interior' : o externo é reconfigurado em símbolos para a assimilação do indivíduo. Digerimos o mundo em sensações mutáveis e descontroladas. O Sentido não existe lá fora: mas reconformado aqui dentro. O mundo surge como uma representação da vontade individual e simbologia de uma rede de 'correspondências'. O mundo não é observável, mas sensível.

Assim o simbolismo abre portas ao psicologismo. O indivíduo se apresenta no centro do foco e só depois há o mundo externo, com seus movimentos políticos-sociais-históricos. Pois os autores sentiam a obra não como 'espelho' do mundo, ou algum relatório sobre o cotidiano, mas enquanto outra 'representação' do mundo. Um mundo separado entregue à auto-reflexão. A fantasia podia ser um dos itens. Afinal, a 'realidade' poderia ser meio 'fantástica'. O estado alterado da mente era um outro método de 'desvelar' o que julgamos como 'percepção'. Afinal, o quanto o mundo é o que percebemos?

A Obra em auto-reflexão é também um 'símbolo', o do esteticismo – ou seja, ênfase na estética, na forma – segundo presenciamos em “Fleurs du Mal” de Baudelaire e “Picture of Dorian Gray” de Wilde, e veremos em “A La Recherche du Temps Perdu” de Proust – onde a Obra vale não como 'espelho' ou 'relatório', ou veículo panfletário, mas enquanto portadora de qualidades formais – uso da linguagem, desenvolvimento do enredo, capacidade de emocionar. É a qualidade formal que valoriza a Obra, independente de conteúdos morais e políticos do Autor.

Lado a lado com a qualidade da Obra temos o prazer da leitura. Ler não para se informar ou para aderir a uma causa política, mas pelo prazer da leitura – o leitor nada espera além da própria leitura. O ler não se destina a nada além de usufruir da qualidade da Obra – independente de outros parâmetros/exigências. (Ler para passar no vestibular? Ler para prestar concurso público? Ler para conseguir promoção de cargo? Ler para se exibir para os amigos? Ora, perda de tempo.)

Assim como a degustação da qualidade da obra provoca o prazer da leitura, num momento a sós, há correspondentemente a solidão da criação literária. O Leitor diante do texto é uma imagem futura do Autor diante do texto em feitura. Um degusta o que o outro se esforça para criar. Não há exatamente comunicação entre eles : há apenas a Obra. Podem sequer chegar a uma acordo: a Obra lida é a Obra escrita? De quem é a Obra: do autor ou do leitor?

Mas e o contexto de época – o 'espírito da época' ? Onde o contexto que influencia o Autor e determina parâmetros para o Leitor? A Obra em si pode até ter uma data de publicação, de edição, mas sua 'datação' não é determinada. Sua sobrevivência pode ser secular como atestam as obras de Cervantes e Shakespeare. Podem ser efêmeras – qual é mesmo o título do best-seller do ano passado? - podem ser 'datadas' (valem para uma dada época, e logo descartadas), podem ser 're-editadas' (adaptadas para outros tempos), ou seja, o tempo da Obra não é algo que seja calculável ou controlável. Afinal, só o tempo o dirá.


A Obra

O 'biógrafo' e a personagem – mais que um ser, Orlando é uma 'figura de linguagem', um símbolo ambulante do 'viciado em literatura', ou da própria criação literária ao longo dos séculos – a personificação das estilísticas da Literatura Inglesa! A Autora Virginia Woolf (1882-1941) sabia o que é ser 'leitor compulsivo', sabia o que era ter o 'vício da literatura'. (Há um interessante volume 'antológico' de sua autoria sobre o prazer da leitura, “The Common Reader”, além da obra ensaística feminista “A Room of One's Own”, de 1929)

Encontramos o biografado, o 'viciado em literatura' Orlando, em cenas familiares, com figuras da nobreza, e em momentos de recolhimento, quando ousa escrever. Ato artístico não muito 'conveniente' para um nobre. Orlando, percebemos, está sempre pressionado pelas contradições entre o sentido e o idealizado, o mundo lá fora e o mundo da linguagem.

Entre o mundo lá fora e o eu da personagem há uma visível escolha pelo segundo elemento – temos uma ênfase na psicologia da personagem, no que denominamos 'psicologismo'. Suas emoções, sua 'visão de mundo' é mais importante aqui do que o contexto, ou o que chamamos 'mundo'. As mudanças de ânimo da personagem interessam mais que as mudanças sociais-políticas – que são mencionadas apenas para 'situar' o leitor num 'espaço-tempo'.

Acrescente-se aqui a singularidade da Obra dentro da singularidade da Autora. Temos uma obra de cunho 'psicologista' dentro de uma abrangência autoral de 'olhar feminino'. A causa do feminismo não é apenas uma luta contra o machismo (a dominação masculina) mas um 'situar-se' no mundo – assim diria uma existencialista da categoria de uma Simone de Beauvoir – onde a voz feminina se expressa. Afinal, antes as poucas mulheres que publicavam até usavam pseudônimos masculinos!

Se há um tema aqui sobre o qual a literatura se debruça além de si-mesma é a questão do Gênero sexual. A Obra espelha (ou deve espelhar) uma sexualidade autoral? Há algo que podemos denominar 'escrita masculina' ou 'escrita feminina'? O quanto o 'olhar' do gênero influência a escolha de personagens e enredos? Por que autoras preferem personagens masculinas – veja Mary Shelley ou Emily Brontë, enquanto outros autores preferem se dedicar às personagens femininas – veja Henry James ou Machado de Assis ? (1)

O entrelaçar de literatura e o gênero jaz justamente na sexualidade dúbia de Orlando: homem? Mulher? Homem que vira mulher? Homem-mulher? Enfim, é de se perguntar: Literatura tem gênero? O quanto se limitar a um gênero é justamente isso: se limitar? Há uma voz narrativa que pode ou não se apresentar. Pode ou não 'representar' o/a Autor/a. Esta voz narrativa precisa ter sexo/sexualidade? São questões.

Mas os desafios de Orlando se situam além de gênero – de início ele é ele, um gentleman – mas se complicam no 'adaptar-se' ao mundo da Corte, da nobreza. O que se espera de um nobre? Que ele leia e escreva livros? Nada disso. Mas que se dedique a se exercitar, se esmerar em comandos, cuidar das propriedades. (Tema já abordado, por exemplo, em “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, onde o 'letrado' Julien Sorel, aluno de seminário, busca 'ascendência social' entre os nobres ignorantes, que só têm riqueza)

'Viciado em literatura', Orlando destoa dos ambiente da aristocracia, ao preferir se isolar para compor um poema – ou outra criação literária – pouco se importando com propriedades e títulos nobiliárquicos. Descobre que há uma luta entre a realidade e a 'representação' da realidade, entre o mundo do sensível e o mundo do descrito. Uma coisa é a Natureza lá fora, tocável e cheirável, outra é o Texto, em papel frio coberto de letras, sem toque e sem cheiro. Têm o mesmo alvo, contudo, Natureza e Texto: a sensibilidade humana.


“Ele descrevia, como todos os jovens descrevem, a natureza, e de modo a comparar o tom do verde precisamente com o que observava (e aqui ele mostrava mais audácia que muitos) a coisa em si-mesma, que acontecia ser uma moita de loureiro a crescer sob a janela. Claro que depois de tudo isso ele não poderia escrever mais. O verde na natureza é uma coisa, o verde na literatura era outra. Natureza e literatura parecem ter uma natural antipatia: aproxime ambas e elas se despedaçam. O tom de verde que Orlando viu agora viciava sua rima e desfazia sua métrica. No mais, a natureza tem seus próprios truques.” (trad. LdeM)
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He was describing, as all young are for ever describing, nature, and in order to match the shade of green precisely he looked (and here he showed more audacity than most) at the thing itself, which happened to be a laurel bush growing beneath the window. After that, of course, he could write no more. Green in nature is one thing, green in literature another. Nature and letters seem to have a natural antipathy; bring them together and they tear each other to pieces. The shade of green Orlando now saw spoilt his rhyme and split his metre. Moreover, nature has tricks of her own. p. 18


Em seu esforço para dominar as letras, imortalizar-se através da literatura. Orlando acaba por desenvolver uma 'patologia', digamos. Eis a idealização da figura do poeta. Quem era o homem sério, sentado, pensativo com uma pena em mãos? Teria ele as respostas para as questões existenciais do jovem Orlando? O quanto o Poeta poderia comunicar seus pensamentos sublimes?

“Os olhos dele, globulares e nublados tal alguma pedra esverdeada de curiosa textura, eram fixos. Ele sequer vira Orlando. Apesar de toda a pressa, Orlando se paralisou. Era este o poeta? Ele estava escrevendo poesia? 'Diga-me', ele queria dizer, 'todas as coisas do mundo' – pois ele tinha as ideias mais selvagens, absurdas e estravagantes sobre a poesia e os poetas – mas como falar a um homem que nem vê você? Que, ao contrário, vê ogros, sátiros, talvez que profundezas do mar?”
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His eyes, globed and clouded like some green stone of curious texture, were fixed. He did not see Orlando. For all his hurry, Orlando stopped dead. Was this a poet? Was he writing poetry? “Tell me”, he wanted to say, “everything in the whole world” - for he had the wildest, most absurd, extravagant ideas about poets and poetry – but how speak to a man who does not see you? Who sees ogres, satyrs, perhaps the depths of the sea instead? pp. 22-23


O protagonista e o mundo. É um verdadeiro sair do casulo. Orlando diante da princesa russa Sasha – é a descoberta da paixão erótica. Ele passa a vivenciar a própria época (que logo não será dele), a época da Rainha Elizabeth (fim do século 15) e da Grande Geada (1683-84), justamente em relação com a aparição da enigmática e sedutora princesa. É o 'exótico' que dá a ele a noção do 'familiar' – eis o mundo da Corte inglesa.

Primeiramente confundindo o ser exótico com um nobre, Orlando percebe ser uma dama, ali a deslizar com os patins sobre o gelo. É mesmo uma princesa russa? Na primeira oportunidade, devido a felicidade de ambos falarem francês, podem estabelecer uma comunicação que não demora a ser afetiva.

Antes de Sasha, “Amor nada siginificava para ele além de cinzas e serragem. AS alegrias que ele tivera pareciam de todo insípidas.” (“Love had meant to him nothing but sawdust and cinders. The joys he had had of it tasted insipid in the extreme.”) depois ao se expressar, e conquistar a atenção da princesa, ele “percebeu como a espessura de seu sangue derretia; o gelo tornava-se em vinho em suas veias; ele ouvia as águas fluindo e as aves cantando; a primavera irrompeu sobre a paisagem de pesado inverno; sua masculinidade despertou; ele apertou a espada nas mãos;” (“For as he looked the thickness of his blood melted; the ice turned to wine in his veins; he heard the waters flowing and the birds singing; spring broke over the hard wintry landscape; his manhood woke; he grasped a sword in his hand; [...]” p. 39)

e nesta percepção de 'masculinidade' – o desejo de posse do Outro despertou finalmente nele! - cria um clima de sedução ao perceber a aceitação da beldade eslava,

“Aquecidos ao patinar e com o amor eles se lançariam até alguma paragem solitária, onde os vincos amarelos bordavam as margens, e envoltos numa grande casaco de peles Orlando a tomava em seus braços, e conhecia, pela primeira vez, ele murmurava, as delícias do amor. Então, quando o êxtase passava e eles repousavam acalmados num desmaio no gelo, ele falaria sobre seus outros amores, e como, comparados com ela, eles tinham sido lã, pano de saco, e de cinzas.”
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Hot with skating and with love they would throw themselves down in some solitary reach, where the yellow osiers fringed the bank, and wrapped in a great fur cloak Orlando would take her in his arms, and know, for the first time, he murmured, the delights of love. Then, when the ecstasy was over and they lay lulled in a swoon on the ice, he would tell her of his other loves, and how, compared with her, they had been of wood, of sackcloth, and of cinders. p. 43


Ao experimentar tais êxtases com os Outros – o que prova que ele não é tão 'solipsista' - Orlando alterna estado de euforia com melancolia, ao vivenciar a paixão e ao meditar sobre a paixão vivenciada, “Pois os filósofos estão certos quando dizem que nada é mais densa que a lâmina de punhal que separa a felicidade da melancolia; e ele chega a comentar que são gêmeos um do outro; e tira disto a conclusão que todos os extremos de sentimento são aliados à loucura;” (“For the philosopher is right who says that nothing thicker than a knife's blade separates happiness from melancholy; and he goes on to opine that one is twin fellow to the other; and draws from this the conclusion that all extremes of feeling are allied to madness; [...]” p. 44)


A paixão de Orlando e Sasha é tão intensa quanto efêmera – pelo menos para ela, a russa – pois para Orlando é um trauma que será carregado durante séculos. Drama de tragédia shakespeariana, digamos. Uma entrega tão grande pode levar à decepção. É explicitado isso quando Orlando e Sasha assistem uma peça na praça tumultuada de gente. Tudo leva a crer que se trata de “Othelo” de Shakespeare. A cena mais marcante é aquela em que o Mouro (Othelo) estrangula a esposa Desdêmona, que ele crê ser infiel.

Mas quem na realidade mostra-se infiel é a mocinha russa, que desaparece numa noite escura e chuvosa, deixando Orlando a esperar em vão. Uma cena que alcança tons traumáticos. O que é ser abandonado quando mais se ama?
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“De súbito, com uma voz pavorosa e agourenta, uma voz de horror e alarme que levantava cada fio de cabelo de angústia na alma de Orlando, na catedral de São Paulo ressoou a primeira badalada da meia-noite. [...] O apaixonado e sensível coração de Orlando percebeu a verdade. Outros relógios ressoaram, retinindo um ao outro. O mundo todo parecia ressoar com as notícias da traição dela e da desilusão dele. As velhas suspeitas que trabalhavam subterraneamente nele emergiram então abertamente dos esconderijos.”
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Suddenly, with an awful and ominous voice, a voice full of horror and alarm which raised every hair of anguish in Orlando's soul, St. Paulo's struck the first stroke of midnight. [...] The passionate and feeling heart of Orlando knew the truth. Other clocks struck, jangling one after another. The whole world seemed to ring with the news of her deceit and his derision. The old suspicions subterraneously at work in him rushed forth from concealment openly. p. 57
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No capítulo seguinte, já em pleno século 17, adensa-se a mágoa de Orlando após a desilusão com a Princesa russa, “Agora Orlando resignava-se a viver em extrema solidão. Sua desgraça na Corte e a violência de sua mágoa eram parcialmente a razão disso, [...] Como ele passava seu tempo, ninguém sabia. [...] Ninguém ousava segui-lo, pois a casa era assombrada por uma grande variedade de espectros, e a extensão da casa fazia qualquer um se perder [...]” (“Now Orlando gave himself up to a life of extreme solitude. His disgrace at Court and the violence of his grief were partly the reason of it, [...] How he spent his time, nobody quite knew. [...] None dared follow him, for the house was haunted by a great variety of ghosts, and the extent of it made it easy to lose one's way .” [...] p. 65, c. 2)

Na amplidão da casa de longa linhagem aristocrática, Orlando segue em visita aos túmulos da famíĺia, a meditar junto aos ossos dos ancestrais, sobre a Glória e a efemeridade das vaidades humanas, bem ao estilo Hamlet,

“Orlando tinha um estranho prazer em pensamentos de morte e decadência, e após caminhar ao longo de galerias e salões de baile com um círio em mãos, olhando quadro após quadro enquanto ele procurava a semelhança de alguém a quem não poderia encontrar, se ajeitaria no banco da família e sentado durante horas a observar as flâmulas se moverem e o luar oscilar com um morcego ou mariposa-caveira a fazer-lhe companhia. Mesmo desse jeito não era suficiente para ele, mas ele desceria até a cripta onde os ancestrais jaziam, caixão empilhado sobre caixão, ao longo de dez gerações.”
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Orlando now took a strange delight in thoughts of death and decay, and, after pacing the long galleries and ballrooms with a taper in his hand, looking at picture after picture as if he sought the likeness of somebody whom he could not find, would mount into the family pew and sit for hours watching the banners stir and the moonlight waver with a bat or death's head moth to keep him company. Even this was not enough for him, but he must descend into the crypt where his ancestors lay, coffin piled upon coffin, for ten generations together. pp. 66/67
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Podemos comparar esta prosa soturna (e simbolista) com o poema em prosa Igitur, do simbolista francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), onde o ser medita sob a finitude tal um Hamlet em seus tormentos existenciais, Sobre as cinzas dos astros, as indivisas da família, estava o pobre personagem, após haver bebido a gota de nada que falta ao mar. (O frasco vazio, visão, loucura, tudo o que resta do castelo?) O Nada tenho partido, resta o castelo da pureza. (2)

Meio aos pensamentos de morte e decadência – os Graveyards Poets (antes de Hamlet, Werther, os loucos homicidas de Poe... - Orlando procura a ordem no caos das ossadas, o que sobrou das glórias do passado épico, os duques e as princesas, os reis e as baronesas, protagonistas de decisões históricas agora jazem no pó.

“Assim, levando sua lanterna e observando se os ossos estariam em ordem, pois apesar de romântico, ele era metódico e detestava nada mais que um novelo de fios no chão; abandonava o crânio de um ancestral; ele retornava ao curioso caminhar volúvel ao longo das galerias, a procurar por algo meio aos quadros, [...] Então parecia-lhe que a vida não merecia mais ser vivida.”
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So, taking his lantern and seeing that the bones were in order, for though romantic, he was singularly methodical and detested nothing so much as a ball of string on the floor, let alone the skull of an ancestor, he returned to that curious, moody pacing down the galleries, looking for something among the pictures, [...] Then it seemed to him that life was not worth living any more. p. 68



sobre os Graveyards Poets
http://en.wikipedia.org/wiki/Graveyard_poets
http://lucy3621.tripod.com/poets/
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autor / filósofo Thomas Browne (de Norwich)
http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Browne
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O estilo do capítulo 2 lembra o de Sterne – com digressão, divagação, volteios retóricos, figuras de linguagem (o mesmo estilo que encontramos no século 20 com o estilo floreado e prolixo de Proust abalado pelos acessos da 'memória involuntária'!) É o narrador que sempre procura 'ordenar' os eventos, afinal reconhece ser esta a tarefa do 'biógrafo' (em vários momentos metalinguísticos o Leitor é lembrado que está diante de uma tentativa de 'biografia'...”é para os leitores que escrevemos coisas tais como estas”)
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sobre Sterne (século 18)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Laurence_Sterne
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Não é fácil escrever sobre o instável Orlando, entenda-se 'emocionalmente instável', pois ele tem sólida genealogia, extensas propriedades, em breve terá título nobiliárquico como todo gentleman inglês. Mas tem um probleminha: seu oscilar sentimental o conduz a doença da... literatura!

“Orlando era estranhamente composto por muitos humores – de melancolia, de indolência, de paixão, de amor da solidão, a dizer nada sobre todas estas contorsões e subtilezas do temperamento [...] Quando criança às vezes ele era encontrado ainda lendo uma página. Eles tiravam a vela, e ele criava vagalumes para poder ter luz. Eles tiravam os vagalumes, e ele quase queimava a casa com uma brasa. Em resumo, deixando que o romancista alise a seda amassada e todas as suas implicações, ele era um nobre afligido pelo amor da literatura.”
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[...] Orlando was strangely compounded of many humours – of melancholy, of indolence, of passion, of love of solitude, to say nothing of all those contortions and subtleties of temper [...] As a child he was sometimes found at midnight by a page still reading. They took his taper away, and he bred glow-worms to serve his purpose. They took the glow-worms away, and he almost burnt the house down with a tinder. To put it in a nutshell, leaving the novelist to smooth out the crumpled silk and all its implications, he was a nobleman afflicted with a love of literature. [...] p. 69
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É o nobre que 'viciado' em literatura que despreza os bens – que vieram por herança, ele nada conquistou por esforço próprio – e passa a dedicar-se (mesmo que apenas na intimidade) ao esforço com as palavras, ao prazer e à labuta do combate literário.

“Era a natureza fatal desta doença o substituir um fantasma pela realidade, assim bastava que Orlando a quem a sorte dera tantas dádivas – prataria, linho, casas, criados, carpetes, camas em fartura – apenas abrisse um livro para que toda esta vasta acumulação se tornasse em neblina. [...] Assim era, e quando Orlando se sentasse sozinho consigo mesmo para ler era como se fosse um homem sem a roupa do corpo.
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It was the fatal nature of this disease to substitute a phantom for reality, so that Orlando to whom fortune had given every gift – plate, linen, houses, men-servants, carpets, beds in profusion – had only to open a book for the whole vast accumulation to turn to mist. [...] So it was, and Orlando would sit by himself, reading, a naked man. p. 70
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Profundamente enfermo em sua 'doença literária', Orlando “tinha escrito, antes de completar os vinte-e-cinco, umas quarenta-e-sete peças, histórias, romances, poemas; algo em prosa, algo em verso; algo em francês, algo em italiano; tudo romântico, tudo extenso.” (“Thus had been written, before he was turned twenty-five, some forty-seven plays, histories, romances, poems; some in prose, some in verse; some in French, some in Italian; all romantic, and all long.” p. 72) Obra considerável em quantidade – não sabemos se igualmente em qualidade – mas que nada acrescenta ao valor de um nobre. Ao contrário, é uma “desgraça sem expiação” (“was, he knows, for a nobleman an inexpiable disgrace.”)

O 'biógrafo' se entrega às digressões onde encontramos descrito o próprio ato de escrita e o quanto escrever 'memórias' é selecionar 'memórias' que fluem sem controle, assim frívolas. Não somos nos que dominamos a memória – mas é a memória que nos domina.

“A memória é uma costureira, e daquelas volúveis. A memória corre com suas agulhas pra cá e pra lá, pra baixo e pra cima, saindo e entrando. Não sabemos o que vem em seguida. Assim, o movimento mais comum no mundo, tal como se sentar à uma mesa e pegar uma pena para escrever, deve agitar um milhar de estranhos fragmentos desconexos, ora brilhantes ora embaçados, pendendo e boiando e mergulhando e se exibindo, tal uma fina peça-de-baixo de família suspensa num varal em plena ventania. Ao contrário de ser uma simples, direta e franca obra da qual pessoa nenhuma se envergonha, nossas tarefas mais comuns são iniciadas com um ondular e bruxulear de asas, uma luz que cresce e diminui.”
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Memory is the seamstress, and a capricious one at that. Memory runs her needle in and out, up and down, hither and thither. We know not what comes next, or what follows after. Thus, the most ordinary movement in the world, such as sitting down at a table and pulling the inkstand towards one, may agitate a thousand odd, disconnected fragments, now bright, now dim, hanging and bobbing and dipping and flaunting, like the underlinen of a family of fourteen on a line in a gale of wind. Instead of being a single, downright, bluff piece of work of which no man need feel ashamed, our commonest deeds are set about with a fluttering and flickering of wings, a rising and falling of lights. p. 74


Nesta questão de 'memórias' os autores Marcel Proust e Pedro Nava têm muito a dizer com suas obras 'memoralísticas', onde vivem o presente para relembrar o passado (ou re-criá-lo na escrita).


sobre os memoralistas Proust e Nava
http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Proust
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Nava


Encontramos Orlando em seu Esforço ('a luta com as palavras', dizia CDA) na busca da Glória Literária (aliás, nos séculos 17 e 18 era costume a Escrita com o uso de Maiúsculas): os nobres batalharam, conquistaram, mas não deixaram memória... enquanto a batalha do literato é para arduamente dominar a linguagem...

"Ele percebia logo que, de qualquer modo, que as batalhas que Sir Miles e os outros tinham movido contra os cavaleiros armados para conquistar um reino, não eram metade tão árduas quanto as que ele agora movia para conquistar a imortalidade lutando contra a língua inglesa." (“He soon perceived, however, that the battles which Sir Miles and the rest had waged against armed knights to win a kingdom, were not half so arduous as this which he now undertook to win immortality against the English language.” p. 77)

Afinal, eis que Orlando percebe-se não adaptado à vida social (“his unfitness for the life of society”) – pois é um literato – o que é péssimo para a 'reputação' de gentleman! Ele prefere as glória literária do que as posses, aherança, o poder. Afinal, ele tem imaginação e sensibilidade. Gostaria imensamente de compartilhar tudo com os 'homens de letras' – aos quais ele idealiza como semideuses! - seres que se dedicam 'à solidão e aos livros', hábito que ele mesmo cultiva.

Na fantasia ingênua de Orlando, ser escritor (literato/ scholar) é ser mais sublime, nobre, do que ser nobre de nascimento e herança – Orlando prefere pertencer a 'fraternidade' dos literatos. O caso é que Orlando idealiza os literatos, os nobres cortejam os escritores, os nobres que se apresentam nos bastidores – enquanto mecenas. Ao conhecer o poeta Green, Orlando tem uma decepção – onde o sublime num ser tão prosaico?

Qual o status do Poeta? Nobre? Servo? Cavalheiro? Ele, o poeta, não é gentil-homem nem servo, é uma 'flutuação' na hierarquia das classes sociais – transita entre todas? Abriga-se em uma e observa as outras. Trata sempre de 'temas sagrados'? Não confunde o poeta com a figura de um santo?


O culto a literatura do passado – o poeta da era isabelina elogia os gregos e clássicos romanos – Cícero! - pois a “Arte da Poesia estava morta na Inglaterra” (“the art of poetry was dead in England.”) e mais, “a grande era da literatura está no passado; a grande era da literatura foi na Grécia clássica; a era isabelina era inferior aos gregos clássicos, em todos os aspectos.” (“the great age of literature is past; the great age of literature was the Greek; the Elizabethan age was inferior in every respect to the Greek.” p. 83)

A 'Glória' está no passado? Aliás o que muito incomoda o poeta Greene – que 'ama a literatura assim como ama a própria vida' – não tendo esperanças no presente nem no futuro. Ora, assim a literatura seria apenas um patrimônio grego e romano? A arte escrita parou no tempo? Quem são então os semideuses da era isabelina? (Obviamente não seriam reconhecidos na própria época...)

Não demora a desmitificação: quem são os literatos? A vida pessoal dos 'deuses'. Quem era Marlowe? Quem era o tal Shakespeare? “Greene esclarecia que eles [Marlowe e Shakespeare) estavam à beira de uma grande era na Literatura Inglesa, e que Shakespeare seria um poeta de alguma importância. Felizmente para ele [Marlowe] foi morto duas noites depois numa briga de bêbados, e assim ele não viveu para ver o que seria de sua predição. 'Pobre sujeito', dizia Greene, 'dizer uma coisa como esta. Uma grande era, com certeza – a era isabelina uma grande era!”
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[...] Greene explained, that they [Marlowe e Shakespeare] were trembling on the verge of a great age in English literature, and that Shakespeare was to be a poet of some importance. Happily for himself, he [Marlowe] was killed two nights later in a drunken brawl, and so did not live to see how this prediction turned out. 'Poor foolish fellow,' said Green, 'to go and say a thing like that. A great age, forsooth – the Elizabethan a great age! pp. 84/85

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Shakespeare / 1564-1616
http://pt.wikipedia.org/wiki/Shakespeare
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Marlowe / 1564-1593
http://pt.wikipedia.org/wiki/Christopher_Marlowe
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As ironias: o poeta que despreza os colegas da época – e que se tornariam depois 'monstros sagrados' para as novas gerações. E o poeta 'bucólico' que desconhece o campo – se entedia no campo! E escreve seus versos - meio ao barulho urbano da Londres! – para ironizar o jovem nobre.

O Poeta Greene mostra-se importante aqui – há até um deslocamento de foco narrativo! O narrador se afasta de Orlando e acompanha o poeta até a tumultuada London. Afinal de contas, o escritor escreve sobre 'pressão'. Na dificuldade, no tumulto da casa pobre. Enquanto, no campo, no conforto da casa nobre, o poeta se acomodava e não escrevia sequer uma linha.

Quando Orlando rejeita a crítica, e as musas, e passa a escrever para 'se agradar', sendo original, Orlando está sento até 'romântico' – que publicaram entre os séculos 18 e 19. Quanto a Orlando, este abre mão da Fama – prefere antes ser livre anônimo (sem esperar a 'Glória')

O biógrafo-narrador tece considerações sobre o tempo psicológico – o mesmo tema de Thomas Mann em “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924), onde no sanatório Hans Castorp medita sobre a passagem do tempo – ainda mais quando Orlando parece ser uma espécie de 'imortal', conservando seus trinta anos ao longo de mais de um século! Seria ele uma espécie de Dorian Gray? A imortalidade da personagem simboliza a permanência da Literatura?

(Encontramos o nobre literato em reinado da Rainha Elizabeth, e agora ele vive no reinado de Charles II, na segunda metade do século 17. Na p. 100 lê-se “os dias odiosos do Parlamento acabaram e havia agora de novo um Monarca na Inglaterra, “the odious Parliament days were over and there was now a Crown in England again” - referência à Restauração monárquica após o governo republicano parlamentarista de Oliver Cromwell (1599-1658). O novo rei é Charles II)


“Esta extraordinária discrepância entre o tempo do relógio e o tempo psicológico é menos conhecido do que deveria ser e merece completa investigação. Mas o biógrafo, cujos interesses são, como dizemos, altamente restritos, deve confinar-se a uma simples regra: quando um homem atinge a idade dos trinta anos, como agora Orlando atingia, o tempo quando ele está pensando é excessivamente longo; o tempo quando ele está fazendo algo é excessivamente curto.”
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This extraordinary discrepancy between time on the clock and time in the mind is less known than it should be and deserves fuller investigation. But the biographer, whose interests are, as we have said, highly restricted, must confine himself to one simple statement: when a man has reached the age of thirty, as Orlando now had, time when he is thinking becomes inordinately long; time when is doing becomes inordinately short. pp. 91/92
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Assim, estamos na época de John Milton, poeta épico (autor do teológico-herético “Paraíso Perdido”/ Paradise Lost) e o 'Eu' de Orlando não anseia mais do que ser um 'Eu lírico'. Despreza os literatos e críticos que nada têm de 'sublimes' – basta ver a decepção com o arrogante Nick Greene. O que vale ser o 'poeta de sua raça'? Ainda mais quando se é avaliado por literatos que se mostram tão mesquinhos?

Deixando o Idealismo, Orlando adota um tom pragmático – decide então cuidar da casa da família – dedica-se às reformas, móveis novos... Assim como a Grã-Bretanha saíra das crises de poder no século 17 – com o conflito interno Coroa versus Parlamento – para ocupar um lugar ao sol, isto é, uma hegemonia na geopolítica europeia – contra Holanda, contra Espanha, contra França – e depois mundial – a criação do Império Britânico - “no qual o sol nunca se põe” - na América, África, Ásia e Oceania.

Nestes paralelos Orlando – literatura inglesa – história britânica – notamos o quanto os contextos sociais e históricos atuam sobre o indivíduo, e como este reagindo provoca – em ação coletiva – influência sobre os contextos. Assim um literato do porte de Shakespeare, que foi influenciado pela própria época, acabou por influenciar épocas futuras, restaurando a 'glória' para a literatura nacional (e atualmente, internacional). Definitvamente, a Glória não estava no passado – como dizia o cético Sr. Greene – mas no futuro!

Após as reformas e novas mobílias, Orlando começa a 'vida social', ou seja, recebe visitas, promove festas, etc. Assim, ele gasta a fortuna mas ganha prestígio social, além de cargos, etc. Ele evita, obviamente, as mulheres exóticas e os literatos. Orlando ainda escreve em momentos de solidão, mas apaga os versos. Mudança de estilo – ver História da Literatura Inglesa. Basta uma leitura das cartas do nobre...
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“Eis algo para o historiador de cartas comentar que ele tinha mudado seu estilo de modo impressionante. Seus floreados estavam contidos; sua teu tom prolixo, controlado; a época da prosa estava congelando aquelas fontes aquecidas. A grande paisagem lá fora estava menos fixada com suas grinaldas e suas rosas silvestres estavam menos cheias de espinhos e intricadas. Talvez os sentidos estivessem um pouco embrutecidos e o mel e a nata menos sedutores ao paladar. Além de que as ruas estavam melhor drenadas e as casas melhor iluminadas o que tinha seus efeitos sobre o estilo, o que não se pode duvidar.”
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For it is for the historian of letters to remark that he had changed his style amazingly. His floridity was chastened; his abundance curbed; the age of prose was congealing those warm fountains. The very landscape outside was less stuck about with garlands and the briars themselves were less thorned and intricate. Perhaps the senses were a little duller and honey and cream less seductive to the palate. Also that the streets were better drained and the houses better lit had its effect upon the style, it cannot be doubted. pp. 104-105
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É desta época que se destaca a autora – primeira voz feminina! - Aphra Behn (1640-1689) com sua obra de 'biografia' “Oroonoko” (1688), cujo enredo se passa na América Latina - que se insere no verdadeiro panorama que é “Orlando”, tendo um foco sobre a presença da mulher que escreve.
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mais sobre Aphra Behn
http://en.wikipedia.org/wiki/Aphra_Behn
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Aparece uma intrusa: a arquiduquesa romena – prima da Rainha Inglesa (seria Catarina de Bragança? Ou Maria II ou Ana I?) não se esclarece. Aliás, não se trata mesmo de um romance histórico. Três séculos se sucedem sem maiores informações ao longo de trezentas páginas. A História só merece atenção quando atinge a 'psicologia' do/a protagonista.

No capítulo seguinte (cap. 3) , Orlando, quando decide fugir da vida na Corte e de certas damas inconvenientes, solicita um cargo de embaixador em Constantinopla (Istambul). Assim ele (que logo será ela!) passa um bom tempo longe da metrópole, época, durante o reinado de Charles II (1660-85) ocorreram a peste negra e o Grande Incêndio de London.

mais sobre o reinado de Charles II
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_II_de_Inglaterra


Assim Orlando segue viagem para a exótica Constantinopla, ou Istambul, que fora capital de dois impérios – o Bizantino e o Otomano – tal qual a literatura imortalizou a figura romântica do nobre inglês no Oriente – que é sempre fascinante. Lá ele é adorado pelas mulheres e admirado pelos homens – lembra mais o mítico poeta romântico Lord Byron, do século 19, autor de contos orientais em verso.
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Sobre a obra poética de Lord Byron
ver o meu ensaio
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/09/sobre-obra-poetica-de-lord-byron-12.html
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O charme do nobre inglês meio ao exotismo oriental é apenas uma das alegorias – a literatura da era colonialista nos séculos 19 e 20 mostraria bem estas 'figuras de linguagem' entre dominadores e dominados – apenas uma das leituras de símbolos que são possíveis. Daí possibilitar uma leitura como uma obra simbolista, sempre fartas em símbolos, além da presença de alegorias.

Alegorias que se manifestam nas figuras da Pureza, da Castidade e da Modéstia, durante o longo sono de sete dias do (antes) homem Orlando. Enquanto o 'biógrafo' pensa e moraliza sobre o que narra de forma fiel numa biografia tão sui generis, algo de surreal acontece: quem é agora o protagonista, aliás A protagonista, Orlando?

Orlando agora é mulher – uma Aphra Behn? Uma Ann Radcliffe? Uma Jane Austen? - e precisa se adaptar a nova condição. Aliás, a ambiguidade sexual é um 'símbolo' que percorre toda a obra. No início, Sasha pareceu-lhe ser um homem, e agia como um homem – na sedução e ao abandoná-lo. Orlando agia como uma mulher – apaixonado, seduzido, e chorando com o abandono.

Orlando que era perseguido pela inconveniente Arquiduquesa – que vai reaparecer depois enquanto Arquiduque! - que era insistente tal um noivo em busca de casamento, e que era intrometida enquanto Orlando é quem se 'resguardava' em sua intimidade. Quem atuava em que papel?

A condição feminina da protagonista permite um maior mergulho nos recônditos da psicologia. A mulher pensa para dentro – parece sugerir a introspecção. O universo feminino – em contraponto ao masculino, do qual ele/ela antes partilhara – é analisado como um conjunto de normas e privilégios nas quais a mulher é um objeto de cobiça e uma serva elegante. A mulher se vê pelos olhares masculinos (“Ignorantes e miseráveis nós somos comparadas com o outro sexo” - “Ignorant and poor as we are compared with the other sex”, p. 145, c. IV).

Mas a mulher é também idealizada. A mulher com o pano de fundo de uma bela paisagem. Ainda mais se for de uma terra exótica – digamos, o Oriente. Pintura romântica? Pois seja. Adentramos o culto romântico – e inglês – à uma Natureza idealizada. “A doença inglesa, um amor da natureza.” ( “The English disease, a love of Nature.” )

Existem montes, lagos, vales, paisagens, que o ser humano habita e vivencia, e existem os montes e lagos e vales para o olhar do poeta – para quem tudo isso 'significa algo mais'. É como se a Natureza fosse símbolo de outra coisa (enquanto Alberto Caeiro no século 20 ama a Natureza pela própria Natureza, não como transcendência para algo mais) (3)

Uma idealização principalmente na descrição romântica, onde o estado psicológico da personagem 'filtra' a percepção. Se triste, logo a descrição é carregada de tristeza, o dia é melancólico, a floresta é sombria – obviamente que tais adjetivações não se aplicam ao dia ou à floresta, mas aos 'estados de alma' da personagem.

Os pensamentos da protagonista se 'alimentam' de cada época em que vive – e até de eras vindouras! - pois antes de Keats aparecer no cenário literário, ele é aqui lembrado. Na verdade, pensemos, pode ser uma 'influência' do narrador, o tal 'biógrafo'. É uma referência ao poeta romântico John Keats – sobre a beleza e a verdade na estrofe final de “Ode a uma Urna Grega” (Ode on a Grecian Urn) - “e se há algo no que o poeta diz sobre a verdade e a beleza” ( “and if there is anything in what the poet says about truth and beauty”)
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ver minha tradução em
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/08/ode-uma-urna-grega-john-keats.html
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Mas também sentindo pouco 'em casa' meio aos ciganos – que não entendem a idealização da Natureza e muito menos os títulos nobiliárquicos – Orlando decide voltar para a Inglaterra, onde a espera a grande casa que abrigou seus ancestrais e que custou uma fortuna para reformar e mobiliar. Assim ela deixa as montanhas da Turquia.


Continua...

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Notas

(1)Sobre as obras – e os 'narradores' - de Mary Shelley, Emily Brontë, Henry James e Machado de Assis, ver os meus ensaios anteriores, nos links,

http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/11/sobre-frankenstein-de-mary-shelley-13.html
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/05/sobre-o-morro-dos-ventos-uivantes-1-de.html

http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/11/sobre-volta-do-parafuso-de-henry-james.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/11/sobre-dom-casmurro-de-machado-de-assis.html


(2)vejamos alguns trechos de Igitur , obra poética em prosa, entre simbolista e soturna, do poeta frances Stéphane Mallarmé

I - A MEIA-NOITE
(fragmento)

Certamente subsiste uma presença de Meia-Noite. A hora não desapareceu por um espelho, não está oculta em tapeçarias, a evocar um mobiliário através de sua vazia sonoridade. Recordo-me que o seu ouro dissimularia, na ausência, uma jóia nula em fantasia, rica e inútil sobrevivência, a não ser que, na complexidade marinha e estelar de uma ourivesaria, se lesse o infinito acaso de conjunções.


Revelador da Meia-Noite, ele jamais, então, indicou semelhante conjuntura, pois aqui está a única hora que criou: e que, do Infinito, as constelações e o mar se separem, permanecidos, na exterioridade, recíprocos nadas, para lá deixar a essência, à hora unida, forjar o presente absoluto das coisas.


V - ELE SE DEITA NO TÚMULO

Sobre as cinzas dos astros, as indivisas da família, estava o pobre personagem, após haver bebido a gota de nada que falta ao mar. (O frasco vazio, visão, loucura, tudo o que resta do castelo?) O Nada tenho partido, resta o castelo da pureza.


(Do poema-prosa Igitur, ou A Loucura de Elbehnon, de Mallarmé)


Tradução: José Lino Grunewald





Leonardo de Magalhaens





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