terça-feira, 7 de dezembro de 2010

sobre os Contos de Terror de E A Poe (2:3)









Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror


Quando o terror jaz no inexplicado


p2

O Gato Preto / The Black Cat


Temos neste conto atormentado um narrador em 1ª pessoa, um narrador que sofreu os acontecimentos, foi o protagonista dos fatos descritos, e tenta agora – preso e condenado – explicar (e justificar) o crime.


“Para a narrativa um tanto excêntrica um tanto caseira sobre a qual agora escrevo, eu não espero qualquer credibilidade. Seria loucura esperar isso, no caso que meus próprios sentidos rejeitam a evidência. Mas louco eu não sou – e não estou sonhando. Mas amanhã morrerei, e hoje quero tirar o peso da minha alma. Meu propósito imediato é expor diante do mundo, de forma franca, sucinta, e sem comentários, uma série de eventos domésticos. Na consequência deles, estes eventos que me aterrorizaram – me torturaram – me destruíram.”

“FOR the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their own evidence. Yet, mad am I not - and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-day I would unburthen my soul. My immediate purpose is to place before the world, plainly, succinctly, and without comment, a series of mere household events. In their consequences, these events have terrified - have tortured - have destroyed me.”

O Narrador está condenado, sabe que pouco poderá alegar em sua defesa, pouco crédito receberá, mas mesmo assim contará o estranho episódio – e os leitores já se inquietam. Que eventos são estes? “eventos que me assustaram – me torturaram – me destruiram”.

Uma atmosfera de horror, 'barroca' nos envolve – mas o narrador busca o recurso do intelecto para contar o drama (interessante o mesmo formato narrativo de “The Turn of the Screw” - meio século depois...) o narrador pretende mais calma, mais intelecto, mais lógica


Interessante: o narrador se descreve do mesmo modo que encontramos depois em “Memórias do Subsolo” (ou “Notas do Subterrâneo”), de 1864, do russo Dostoiévski, onde se pensa: a auto-análise é possível? ("Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem desagradável. Creio que sofro do fígado".)Vejamos o diário de Amiel, Gide, de Kafka, de J P Sartre, a obra de Proust, Nava, etc

sobre o relato existencial – existencialista de Dostoiévski
http://www.eternoretorno.com/2009/03/08/notas-do-subterraneo-de-dostoievski/


O Narrador faz auto-elogios quanto a própria docilidade – principalmente quanto aos animais domésticos – e descreve o tal 'gato preto'. E a superstição de que os gatos pretos são bruxas em disfarce. O nome do gato é sombrio – Pluto (ou seja, Hades, o deus do mundo dos mortos)

Mas o temperamento do narrador se alterou com o tempo, sua intemperança 9que ele confessa com vergonha), “Dia após dia, fiquei mais temperamental, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros” (“I grew, day by day, mere moody, more irritable, more regardless of the feelings of others”)

A irritação do narrador se estendeu à esposa e aos animais de estimação – ainda que ele evitasse maltratar o tal gato preto, Pluto. Mas a doença – sabemos que se trata do alcoolismo – do narrador (e sabemos que também afligia o Autor) se agrava – e até Pluto começa a sofrer, com agressões.


Num momento de fúria - “a fúria de um demônio de repente tomou apossou-se de mim. Não me reconhecia mais.” (“the fury of a demon instantly possessed me. I knew myself no longer”) - o narrador chega a – numa demoníaca malevolência – a arrancar , com um canivete, um dos olhos do gato Pluto – e se envergonha de tal atrocidade.

A tragédia então se precipita – o narrador nutre a culpa – fruto do horror e do remorso. E quanto mais culpa, mais sofre e acaba por se embriagar para esquecer... Vício atraindo remorso, e mais vício... um círculo vicioso infernal.

Há toda uma percepção do 'espírito de perversidade' – também abordado em “The Imp of the Perverse” e “The Tell-Tale Heart” - enquanto “um dos impulsos primitivos do coração humano” (“one of the primitive impulses of the human heart”) - mal íntimo a ser tematizado em “O Médico e o Monstro” (de Stevenson), onde dentro do bondoso e correto Dr. Jekyll há o cruel e egoísta Mr. Hyde.


Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a stupid action, for no other reason than because he knows he should not?”, isto é fazer por que é justamente proibido – o impulso de contrariedade – fazer o errado por saber que é errado (“to do wrong for the wrong's sake only”)! Embebedar-se para consumar um sucídio lento! Tal impulso perverso levou o narrador – com lágrimas nos olhos! - a enforcar o gato preto.

“E então veio, como se para a derrocada final e irrevogável, o espírito de PERVERSIDADE. A filosofia pouco diz sobre este espírito. Tenho menos certeza de que minha alma vive do a de que aquela perversidade é um dos primitivos impulsos do coração humano – uma das indivisíveis faculdades primitivas, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do Homem. Quem não tem, em centenas de vezes, se percebido a cometer uma ação vil ou idiota, sem outra razão que a de saber que não deve fazer? Não temos a perpétua tendência, no fio de nosso melhor juízo, de violar o que seja a Lei, meramente porque nos entendemos que é assim mesmo? Este espírito de perversidade, eu digo, veio para a minha derrocada final.”

“And then came, as if to my final and irrevocable overthrow, the spirit of PERVERSENESS. Of this spirit philosophy takes no account. Yet I am not more sure that my soul lives, than I am that perverseness is one of the primitive impulses of the human heart - one of the indivisible primary faculties, or sentiments, which give direction to the character of Man. Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a silly action, for no other reason than because he knows he should not? Have we not a perpetual inclination, in the teeth of our best judgment, to violate that which is Law , merely because we understand it to be such? This spirit of perverseness, I say, came to my final overthrow.”


Enforca o bichano, simplesmente. Por saber que comete uma barbaridade – tal um desafio! Quer colocar-se além de qualquer perdão! E paga o preço! Pouco tempo depois, na noite seguinte, a casa é destruída por um incêndio – o narrador e a família conseguem escapar por pouco. Restaram ruínas da casa – só uma parede se manteve, nela se nota uma 'estranha' e 'singular' imagem de um grande gato!

Estamos mergulhados na fantasmagoria. Mas o Narrador – em pleno terror – ainda quer explicar racionalmente o evento! Crê, assim, que a lógica pode abafar o sobrenatural. (No mais, só temos a versão dele - a explicação não convence) Aconteceu assim – ou ele interpretou assim?

De qualquer modo, ele encontra outro gato – tão preto quanto o outro, e maior. E, com o novo animal doméstico, ele deseja corrigir o erro de outrora. Tudo vai bem – até que o caprichoso temperamento do Narrador se modifica – se irrita com o que antes o agradava!

“De minha parte, logo percebi um desgosto a surgir dentro de mim. De modo que era o reverso do que disse antes; mas – eu não sei como nem porque era assim – esta preferência [do gato] por mim antes desgostava e aborrecia. Em lento progresso, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se tornaram amargura e ódio.” (“For my own part, I soon found a dislike to it arising within me. This was just the reverse of what I had anticipated; but - I know not how or why it was - its evident fondness for myself rather disgusted and annoyed. By slow degrees, these feelings of disgust and annoyance rose into the bitterness of hatred.”)

Também o novo gato desperta aversão (ou intensifica a irritação do narrador?) de modo a deixar prever outra 'perversidade', “Com minha aversão por este gato, de qualquer modo, a afetividade dele por mim parecia crescer. Ele seguia meu passos com uma teimosia que dificilmente seria possível fazer o leitor compreender.” (“With my aversion to this cat, however, its partiality for myself seemed to increase. It followed my footsteps with a pertinacity which it would be difficult to make the reader comprehend.”) O narrador tenta abafar a aversão – para não repetir as agressões de outrora, com o gato Pluto.

Em sua cela, à espera da condenação, o Narrador explicita todo o medo que a figura felina desperta – é um caso de obsessão, paranoia, sadomasoquismo? A fantasia maníaca do Narrador poderá nos contagiar enquanto leitores? Ele enxerga – ou quer enxergar – no pelo do felino uma mancha em forma de forca!

Então o impulso de perversidade se apodera novamente do Narrador – que resolve eliminar o gato com uma machadada. Para desventura de todos, a esposa tenta intervir – e é ela quem sofre o golpe – que é fatal.

“Sob a pressão de tormentos tais, o resto febril de bondade dentro de mim sucumbiu. Pensamentos malévolos tornaram-se meus únicos íntimos – os pensamentos mais sombrios e malévolos. Aumentou o mau humor de meu temperamento comum a ponto de ter ódio de todas as coisas e todas as pessoas; enquanto, de súbita, frequente e incontrolável explosão de uma fúria a qual eu me abandonei cegamente, da qual a minha pobre esposa, ai de mim! era a vítima mais comum e paciente.”

“Beneath the pressure of torments such as these, the feeble remnant of the good within me succumbed. Evil thoughts became my sole intimates - the darkest and most evil of thoughts. The moodiness of my usual temper increased to hatred of all things and of all mankind; while, from the sudden, frequent, and ungovernable outbursts of a fury to which I now blindly abandoned myself, my uncomplaining wife, alas! was the most usual and the most patient of sufferers.”

Eis o crime – e a ocultação do crime. O cadáver é emparedado – comparar com os criminosos de “The Tell-Tale Heart” e “The Imp of the Perverse”- que se julgam seguros após ocultarem o cadáver (acreditam-se, arrogantes, realizando o crime perfeito – principalmente em “Tell-Tale Heart” e “Imp of the Perverse” -) pois em “Gato Preto” o narrador não planejava matar a esposa, mas o seguindo gato preto.

Em “The Tell-Tale Heart” o narrador quer explicar que não é louco, ao contrário, um pragmático, um criminoso apenas derrotado por si-mesmo! “como, então, eu sou louco? Ouçam! E observem como coerente e calmamente eu vou contar para vocês esta estória toda.” (“How, then, am I mad? Hearken! And observe how healthily – how calmly I can tell you the whole story.”) Ele se garante não louco – por que é capaz de NARRAR a própria estória, o crime cometido por ele.

“Se vocês ainda pensam que eu sou louco, não vão pensar mais assim quando eu descrever as prudentes precauções que eu tomei para ocultar o corpo.” (“If still you think me mad, you will think so no longer when I describe the wise precautions I took for the concealment of body. (...)” O criminoso se julga seguro – o crime foi perfeito! - mas a culpa (o pulsar do coração após a morte da vítima!) acaba por aterrorizar o narrador-criminoso e levá-lo a confessar o crime.


Para ler “The Tell-Tale Heart” (original)
http://www.online-literature.com/poe/44/
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Também o narrador de “O Gato Preto” julga-se acima de qualquer suspeita – o cadáver foi ocultado, não há prova do crime. (Na Idade Média, os monges emparedaram suas vítimas. Referência à fatos históricos ou enredos de romances góticos? Afinal, Poe leu romances góticos – ao contrário do que muitos pensam ele não inventou o conto de terror, ele atualizou, adicionou o psicologismo ao deixar o 'sinistro' nas entrelinhas, na sanidade (ou não) dos narradores – o que 'perturba' a interpretação dos leitores – sem explicitar, sem revelar. Até porque os melhores contos são em 1ª pessoa – o quanto podemos confiar nos narradores?)

Pois o miado sinistro do gato revela a falsa parede – o felino estava emparedado junto com o cadáver. “Um grito de lamento, meio de terror e meio de triunfo” (“a wailing shriek, half of horror and half of triumph”), “neste momento, o grupo [de policiais] ficou paralisado nos degraus da escada, no extremo de pasmo e terror (“for one instant the party on the stairs remained motionless, through extremity of terror and awe.”) pois “eu tinha emparedado o monstro dentro da tumba (“I had walled the monster up within the tomb.”)


Alguns ‘traços biográficos’ que se destacam em referências na Escrita do Autor são o vício do álcool (tal o Narrador do conto “O Gato Preto”!), a precoce perda da mãe natural, a perda da mãe adotiva, a morte das mulheres amadas (a morte da Mulher Amada é um dos símbolos mais fortes), que se materializam na escrita de “Ligeia”, “Berenice”, “Morella”, “Eleonora”, “O Retrato Oval”, ou “O Corvo” (“The Raven”) quando a Escrita serve para o desabafo de abismos interiores. Assim se referencia a crítica baseada nos ‘traços biográficos’, que procura as causas da Escrita, os eventos exteriores ao próprio texto.


A vida de E. A. Poe foi cheia de atribulações, perseguido por um ‘demônio da perversidade’, rejeições, perdas de entes amados, mergulho nos vícios e luxúrias, desvios de conduta, atritos com a família que o adotou, vida militar cheia de advertências (e posterior exclusão), via literária cheia de vicissitudes, vida afetiva cheia de decepções e mortes. Assim o pesar de Roderick diante da doença, e morte aparente, da irmã, ou a decadência familiar (pois a Casa de Usher pode ser a mansão fantasmagórica, mas também referir-se a Família Usher) tudo seria um espelho (ou projeção) do que ocorreu na vida do Autor.

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Fonte: http://www.online-literature.com/poe/24/

cotejado com a edição de “Great Tales & Poems of E A Poe” 1965

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The Black Cat na Cultura

movies
http://www.youtube.com/watch?v=--sKsoah51c&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=eraK3sktNDc&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=xT0RV7CQFuU
http://www.youtube.com/watch?v=LyswpL67tuA&feature=related

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=FiVuIICPBgg&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=lEP32uFWPM8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9xPp3ZkQTrs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=-2doc-cGLs0&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=LOjNaKEqbws&feature=related

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animation
http://www.youtube.com/watch?v=xWiLtgFs728&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=x5iC6tTdw9M&feature=related




The Oval Portrait

O conto “O Retrato Oval” está situado entre dois polos – o século 18, com os romances góticos (“gothic novels”) e o final do século 19, com a publicação de “The Picture of Dorian Gray”. Tanto por citar a obra de Ann Radcliffe, quanto por tematizar o terror que há na obra de Oscar Wilde.

É também uma narração em 1ª pessoa, onde há o narrador-personagem e um valete (criado). O viajante não está bem, precisa de um abrigo. Há um casarão que poderá servir para um descanso durante a noite.

“O chateau no qual o meu valete se aventurou em entrada forçada, que assim permitiu-me, em condição desperadamente doentia, preferível a passar a noite ao ar livre, era um daqueles de mesclada desolação e grandeza que há muito tempo mostram suas carrancas ao longo dos Apeninos, não menos que na ficção da Sra. Radcliffe)

(“The chateau into which my valet had ventured to make forcible entrance, rather than permit me, in my desperately wounded condition, to pass a night in the open air, was one of those piles of commingled gloom and grandeur which have so long frowned among the Apennines, not less in fact than in the fancy of Mrs. Radcliffe.”)

Ao citar a autora de gothic novels – do século 18 – com suas paisagens sobrias do sul da França - o narrador também descreve a própria situação – adentra o casarão para se abrigar e adentra um espaço tal um ateliê de artista (ou tão desarrumado quanto) – lá ele encontra um quadro belíssimo – e uma obra que descreve a criação do quadro.

“Voltando ao número o qual designava o retrato oval, lá eu pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem.” (“turning to the number which designated the oval portrait, I there read the vague and quaint words which follow.”) e transcreve o trecho do livro que descreve as pinturas e a históeia de cada uma.

O retrato acaba por perturbar o já agitado visitante noturno, “que a novidade do que vi não poderia sequer duvidar; pois ao primeiro tremeluzir das velas sobre a tela parecera dissipar o onírico estupor que roubava-me os sentidos, e a dar-me um sobressalto a jogar-me na vida mais desperta.” (“that I new saw aright I could not and would not doubt; for the first flashing of the candles upon that canvas had seemed de dissipate the dreamy stupor which was stealing ever my senses, and to startle me at once into waking life.”)

Diante do narrador o quadro retrata uma jovem belíssima – e de qua modo ela perdeu a vida ao ser sempre requerida como modelo para o artista obsessivo – é como se a vida fosse 'transposta' ao quadro – uma transmigração da 'força vital'. “Este quadro é realmente a própria vida!” e voltou-se de súbito para ver sua (dele) amada. - Ela estava morta!” (“This is indeed Life itself!' turned suddenly to regard his beloved: - She was dead!”)


Em Oval Portrait estão presentes não apenas o clima (atmosfera lúgubre) dos romances góticos, mas também o poder de sugestão (que Poe compartilha com Hoffmann) além do lirismo (a morte da bela mulher) que, sendo sombrio, lembra a beleza noir de um “Flores do Mal” (Baudelaire, leitor e tradutor de Poe). A tematização do quadro/ retrato – uma espécie de duplo (igual aos espelhos que duplicam o mundo – segundo Jorge Luis Borges, “Os espelhos são malditos pois multiplicam o número dos homens”) está na base da maldição de Dorian Gray, no romance de Wilde, quando o retrato torna-se um duplo, ao envelhecer, enquanto Dorian permanece jovem.

O tema da bela mulher que morre jovem está em Oval Portrait, em Berenice, em Ligeia, no tema do longo poema The Raven (fruto da saudade de Lenora), enquanto o tema do duplo estará presente no conto “William Wilson” - onde muito críticos encontram um paralelo com o conto “O elixir do Diabo” de Hoffmann, onde há o Doppelgänger)

Narração em 1ª pessoa, o narrador lamenta a morte da amada, outra mulher marcante. Mulheres marcantes e idealizadas cuja morte é motivo de pranto e melancolia (ver a obra de Freud, “Luto e Melancolia”, onde o estado depressivo após a morte do ente querido se prolonga numa tristeza que não se cicatriza com o luto. Ou seja, a melancolia é resultado de um luto não-completado)
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sobre “Luto e Melancolia” (1915/17)
http://www.institutohypnos.org.br/v4/index.php/2009/10/sigmund-freud-luto-e-melancolia/

http://www.spectrumgothic.com.br/gothic/luto.htm


Outras mulheres memoráveis – cuja perda é pranteada obsessivamente – são a Lenore do poema The Raven / O Corvo, a Annabel Lee, do poema homônimo, e as mulheres patológicas, aquelas que sofrem de catalepsia, tais como os exemplos de Madeleine Usher e Berenice.

Mas voltemos a Ligeia, de bela e personalidade excepcionais. Aliás, para que ama, a mada será sempre excepcional. Ligeia, obsessivamente pranteada, é mesmo inesquecível.

“Eu não posso, juro por minha alma, lembrar-me como, ou precisamente aonde, Eu primeiramente conheci a senhorita Ligeia. Muitos anos já se passaram, e minha memória está febril ao longo de tanto sofrimento.” (“I cannot, for my soul, remember how, when, or even precisely where, Ifirst became acquainted with the lady Ligeia. Long years have sinceelapsed, and my memory is feeble through much suffering.”)

Amada que se destaca em beleza, elegância e erudição – aos olhos do amante, do homem que se perde na melancolia do luto nunca concluído. Amada que sempre será um vulto obsessivo quando outras mulheres surgirem no horizonte afetio, erótico, carnal ou idealizado.

Ligeia, para o narrador, é uma mulher de mente e corpo, que desperta admiração e desejo. Consciente da finitude da beleza - “a beleza deve morrer”, assim gemia o poeta inglês Keats – demonstram os versos niilistas de Ligeia – o Verme Conquistador – onde no fim do drama humano reina apenas a decomposição,


The curtain, a funeral pall,
Comes down with the rush of a storm,
And the angels, all pallid and wan,
Uprising, unveiling, affirm
That the play is the tragedy, "Man,"
And its hero the Conqueror Worm
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(“A cortina, uma mortalha, / Desce com o fremir da tormenta, / E os anjos , todos lívidos e pálidos, / Se levantam, desvelam, afirmam / Que a peça encenada é a tragédia “Homem”, e cujo herói é o Verme Conquistador.” LdeM)

A morte da mulher amada – o tema de “The Raven” e de “Lenore”, “Ela morreu; - e eu, esmagado até o pó do chão com tanta aflição, não poderia mais suportar a solitária desolação de minha morada na obscura e decadente cidade junto ao Reno.” (“She died; -- and I, crushed into the very dust with sorrow, could no longer endure the lonely desolation of my dwelling in the dim and decaying city by the Rhine.”)

O narrador de Ligeia é “dado à fantasia” - casa-se novamente mas é infeliz – não esquece a falecida Ligeia. “Minha memória volta-se (ó, com que remorso!) para Ligeia, a amada, a sublime, a bela, a sepultada.” (“My memory flew back (oh, with intensity of regret!) to Ligeia, the beloved, the august, the beautiful, the entombed.”)

“Pois tais loucuras, mesmo na infância, eu tinha sorvido um gosto, e agora voltavam para mim como se na insanidade da aflição.” (“For such follies, even in childhood, I had imbibed a taste, and now they came back to me as if in the dotage of grief.”)

Não podem faltar as descrições góticas, com todo o exagero ultra-romântico, detalhismo barroco, rococó, arabescos variados. “Mas no acortinado do apartamento jazia, ai de mim! a completa fantasia em tudo.” (“But in the draping of the apartment lay, alas! The chief phantasy of all.”)

A nova esposa adoece e o narrador se surpreende com a presença de um sombra – e vê na doente as feições da falecida – os olhos da segunda esposa, Rowena, são azuis, enquanto os de Ligeia são negros, iguais aos cabelos – “mais escuro que as asas de corvo da meia-noite” (“it was blacker than the raven wings of midnight”) – e os olhos - “plenos, escuros, selvagens olhos de meu amor perdido (“full, black, wild eyes of my lost love.”)

Também é em 1ª pessoa a narração do conto “Berenice”, onde o narrador-personagem descreve a doença própria e a doença de uma prima, a querida Berenice. O início já é arrepiante e deixa antever um mal agouro.

“A Miséria é múltipla. O infortúnio da terra é multiforme. Acima do amplo horizonte tal o arco-íris, suas nuances são tão variadas quando as nuances daquele arco – tão distintas também, tão intimamente combinadas em matizes. Acima do amplo horizonte tal um arco-íris! Como é que de tal beleza deriva um tal tipo de desamor? - de um acordo de paz, um similar de aflição?”
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(“MISERY is manifold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the wide horizon as the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch - as distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon as the rainbow! How is it that from beauty I have derived a type of unloveliness? - from the covenant of peace, a simile of sorrow?”)

Egeu, o narrador, é um erudito, um pensador, que cita suas leituras de clássicos em latim (Santo Agostinho e Tertuliano, por exemplo), enquanto descreve a própria monomania, a mania obsessiva, e lembra-se da amada prima Berenice, também doente, a sofrer de um tipo agudo de catalepsia, onde há uma paralisia corporal, semelhante ao rigor mortis.

Dele a sensibilidade alcança tons mórbidos por tal excesso doentio – ser dotado de um pensamento obsessivo, incontrolável, como uma vítima da própria condição de 'penseroso' – imagem também tematizada por nosso poeta Álvares de Azevedo, principalmente em “Macário”.

A obsessão de Egeu é observar os estágios da doença da prima Berenice, cuja doença tem algo de atrativo, assim como a tristeza realça o 'charme' das heroínas góticas,

“Entre a numerosa série de doenças superinduzidas pelo que de fatal e primário tem afetado uma revolução de modo assim medonho no ser moral e físico de minha prima, deve ser mencionado como o mais aflitivo e obstinado nesta natureza, uma espécie de epilepsia que não frequentemente termina em um transe – transe quase a lembrar uma real dissolução, e da qual ela se recupera, em muitos momentos, de modo espantosamente abrupto.”

(“Among the numerous train of maladies superinduced by that fatal and primary one which effected a revolution of so horrible a kind in the moral and physical being of my cousin, may be mentioned as the most distressing and obstinate in its nature, a species of epilepsy not unfrequently terminating in trance itself - trance very nearly resembling positive dissolution, and from which her manner of recovery was in most instances, startlingly abrupt.”)


Egeu é uma maníaco – ele se confessa assim – sofre de uma monomania, concentra-se sobre algo de forma exagerada, patológica – tal qual aquela hiperestesia do Sr. Roderick Usher – em “The Fall of the House of Usher” - que sobre carrega os sentidos até o ponto da angústia. Egeu tem – ele confessa – uma fixação (até mórbida) pelos dentes de Berenice.

“Não me compreendam mal. A excessiva, extrema e mórbida atenção assim excitada pelos objetos de natureza até frívola, não deve ser confundida no caráter com aquela tendência a ruminar comum nas pessoas, e mais especialmente favorecida nas pessoas de imaginação febril.” (“Yet let me not be misapprehended. The undue, earnest, and morbid attention thus excited by objects in their own nature frivolous, must not be confounded in character with that ruminating propensity common to all mankind, and more especially indulged in by persons of ardent imagination”).
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Quando da suposta morte de Berenice, o primo lamenta em torpor a visão dos dentes na boca da morta. Todos acreditam que desta vez é real a morte de Berenice. (Assim como Madeleine Usher sofre de mortes catalépticas, rigidez de cadáver, mas ainda vive.) A visão dos dentes – brancos – luzentes – terríveis – eis o que angustia o prostrado Egeu.

“Era essa minha própria imaginação excitada – ou a nevoenta influência da atmosfera – ou a incerta penumbra do quarto – ou o cinzento cortinado que descia ao redor de sua figura – que causou nele um contorno assim vacilante e indistinto? Eu não poderia dizer. Ela nada disse; e eu – não poderia sequer formar a sílaba de uma palavra.” (“Was it my own excited imagination - or the misty influence of the atmosphere - or the uncertain twilight of the chamber - or the gray draperies which fell around her figure - that caused in it so vacillating and indistinct an outline? I could not tell. She spoke no word; and I - not for worlds could I have uttered a syllable.”)


A ação do narrador se passa num 'branco' – numa névoa de inconsciência – ele executou uma ação – da qual não guarda consciência - apenas desperta arrepios a intuição de algo terrível ! O que será não podemos prever!

“Então veio a total fúria de minha monomania, e eu lutei em vão contra esta estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior eu não tinha pensamentos exceto para os dentes. Por estes dentes eu ansiava num desejo em frenesi. Todas as outras questões e todos os diferentes interesses foram absorvidos nesta singular contemplação. Eles – eles apenas estavam presentes para a visão mental, e eles, os dentes, numa única singularidade, tornaram-se a essência da vida intelectual.”
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(“Then came the full fury of my monomania, and I struggled in vain against its strange and irresistible influence. In the multiplied objects of the external world I had no thoughts but for the teeth. For these I longed with a phrenzied desire. All other matters and all different interests became absorbed in their single contemplation. They - they alone were present to the mental eye, and they, in their sole individuality, became the essence of my mental life.”)

Então descobre-se uma caixinha sobre a mesa – uma pá suja de terra – um túmulo violado – um cadáver desfigurado - e os dentes de Berenice! Nada há mais a explicar. É o leitor quem deve reconstituir os fatos e perceber-se no centro do terror.

continua...



nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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