quarta-feira, 28 de abril de 2010

sobre O Vermelho e o Negro - 3 de 3







sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)

Literatura enquanto Obra Clássica
(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami)

O Romance da Vitória do Mundo Burguês

3 de 3

Julien passa então a ser convidado para integrar a 'rodinha' de jovens nobres que se reunem ao redor da beleza da Senhorita de La Mole. Os jovens nobres afogam o tédio ao ironizar os convivas, principalmente os arrivistas aduladores à espera de cargos e comissões. (Mostra que os jovens – e os aduladores – não mudaram muito...) Verdade é que Julien pouco entende da 'graça' das “charmants finesses d'une moquerie légère”, onde os nobres ironizam os artistas e os escritores, mas os nobres eles mesmos são incapazes de criar arte ou escrever uma simples carta! Então os burgueses letrados/eruditos passam adiante e os nobres são superados. Entende-se porque os nobres não suportam os escritores (sejam ou não liberais...)
Os nobres ironizam os autores liberais: “Querem falar de tudo e não têm mil escudos de renda” (Hoje são os liberais que ironizam os socialistas: “Querem mudar o mundo, mas não conseguem pagar as contas do mês”) Assim, enquanto Julien for erudito sobre poetas clássicos, tudo bem. Se ele escrever algo sobre autores liberais, cairá em desgraça...! No mais, os nobres ironizam os próprios nobres. O que fariam então com um plebeu tal qual o Sr. Julien Sorel?!
Julien assessorando o Marquês na administração dos bens/propriedades. É tão bem sucedido que até ganha um cavalo de presente: eis a generosidade do nobre. Mas, Julien continua a frequentar o curso de Teologia, “em seu espírito a ideia de religião está irredutivelmente ligada a de hipocrisia e enriquecimento” ("Julien fut étonné, l'idée de la religion était invinciblement liée dans son esprit à celle d'hypocrisie et d'espoir de gagner de l'argent” cap. V, p. 311) Os devotos e, ao mesmo tempo, liberais deixam Julien perplexo.

O Narrador evita apresentar cenas onde o amor-próprio de Julien foi ferido, “Passemos em silêncio um bocado de pequenas aventuras onde Julien sofreu com o ridículo, se ele não tivesse tido envolvido em algo abaixo do ridículo. Uma sensibilidade louca fazia com que ele cometesse milhares de deselegâncias.” (“Nous passons sous silence une foule de petites aventures qui eussent donné des ridicules à Julien, s'il n'eût pas été en quelque sorte au-dessous du ridicule. Une sensibilité folle lui faissait commettre des milliers de gaucheries.” p. 312)

Romance do século 19 tem que ter duelo! Julien sofre o insulto de um estranho, num café de Paris. O grosseirão atira-lhe cartões ao rosto. Julien agora precisa de um amigo, para ser testemunha no duelo. Será um tenente, que o acompanha ao endereço no faubourg Saint-Germain. Recanto das belas residências dos nobres! Lá, Julien e o tenente encontram um cavalheiro 'très elegant', um “ideal de homem amável”: não o grosseirão do dia anterior. O 'figurão' é o Sr. Charles de Beauvoisis, chevalier e diplomata.

O grosseirão é apenas o cocheiro do nobre. Julien não hesita em derrubar o serviçal à golpes. Mas o nobre não recusa o duelo! E sem perder o bom humor! O duelo é rápido: resulta num tiro de raspão que Julien sofre num braço. E os nobres não perdem a 'afetação diplomática', em anedotas 'picantes', ousando (ou posando) um 'espírito livre'. Mas o nobre não gosta da ideia de ter duelado com um secretário do Marquês de La Mole! Afinal, os nobres somente duelam com nobres! Logo inventam uma história na qual Julien seria o 'filho natural' de uma nobre amigo do Marquês.

Romance do século 19 não pode ignorar a figura do 'nobre decadente', meio entediado meio dândi, meio cínico meio sedutor. Aqui é o Sr. Beauvoisis. Com rápida passagem – assim também o filósofo liberal P. Vane e o conspirador hispânico Conde de Altamira – como persongens para 'montar o cenário', não sofrendo toda a 'dissecação' psicológica que o Narrador exercita com as personagesn principais, Julien, Madame de Rênal e Mademoiselle de La Mole. [Outro exemplo de 'nobre decadente' num romance sobre adultério? Vejam o Visconde Reinaldo em “Primo Basílio” (1878) do português Eça de Queiroz. ]

De início, o Marquês culpa Julien pela mentira, mas depois passa a aceitar a 'fantasia', Julien tem um 'ar tão nobre' que não pode ser apenas o 'filho de um carpinteiro'. Mas o duelo não gera nada além de uma projeção maior de Julien no mundo parisiense, ao mesmo tempo em que assessora o Marquês, além de fazer leituras de autores latinos (Roma antiga). Assim, o secretário faz companhia ao nobre e conquista-lhe a confiança. “Uma época de uma franqueza total entre o patrão e o seu protegido” O Marquês percebe o quanto Julien é diferente dos outros provincianos. E também Julien se afeiçoa ao Marquês (que sabe tratar o jovem com respeito, assim como o abade, e outrora o velho cirurgião-major, liberal, das tropas de Napoleão) O Marquês – quando não trata de negócios – trata Julien como se o secretário fosse o filho de um amigo. E diz que tal fato é verdade – diante do abade Pirard. “Eu sei sobre o nascimento de Julien.” Ao fim da doença do Marquês, este envia Julien a London (Londres).

Em Londres, na pátria dos inimigos de Napoleão e da França, Julien encontra o pedantismo exibicionista dos dandys, e o filósofo Philippe Vane, preso por suas ideias heréticas, “A ideia mais útil aos tiranos é a de Deus” (L'idée la plus uttile aux tyrans est celle de Dieu” cap. VII, p. 326) Julien não gosta dos ingleses, mas admira as paisagens britânicas.

De volta, Julien fica sabendo que o Sr. Valenod, agora “M Le baron de Valenod” será o novo prefeito de Verrières. E que o Sr. de Rênal é acusado de ser 'liberal' ! Julien descobre que a política é mesmo um jogo, e que o poder é um exercício de injustiças. “Ainda precisarei cometer outras injustiças, se eu quero subir na vida e ainda saber ocultá-las” (p. 329) Enquanto isso, o tempo passa. A Senhorita Mathilde De La Mole passa a ver Julien com 'outros olhos'. Julien não é mais aquele provinciano, é agora confundido com um nobre – parece mais um espirituoso parisiense! Ainda mais, conserva um ar sério e introspectivo.

Mathilde faz com que o irmão, Conde Norbert, convide Julien para um baile da nobreza. “Não sou um bom julgador de bailes, senhorita; eu passo a vida a escrever. É esse o primeiro baile de tal magnificência que eu já vi”, diz Julien a Senhorita. Ainda diálogos em que os nobres ironizam os republicanos e os liberais. Aqui, o Narrador não hesita em mesclar diálogos políticos no meio do enredo 'romanesco' : bailes não podem faltar nos romances do século 19!

Enquanto os nobres zombam dos arrivistas, Mathilde admira a 'forte ambição' de Julien, prevê que ele fará fortuna. (Afinal, o 'sucesso' de um homem é a volumosa conta bancária dele!) Ironias com os 'liberais' (que os nobres chama de 'jacobinos', mais por depreciação), enquanto a Senhorita admira/despreza o perseguido exilado político Conde de Altamira. “O olhar de Mathilde zomba do liberalismo de Altamira com o Marquês de Croisenois [o pretendente dela], mas ela o escutava com prazer.” (p. 338, cap. VIII) Afinal, era algo a afastar o tédio, imaginem: um conspirador aqui no baile!

Liberal espanhol, o Conde de Altamira conta com os movimentos latino-americanos de libertação, numa época em que batalhavam Bolívar, San Martín e Sucre, generais que derrotavam as hostes espanholas. Assim, o Conde logo se afasta para conversar com um general peruano.

O Narrador alterna os pontos-de-vista: ora acompanha Mathilde, ora o Marquês de Croisenois, ora o Conde de Altamira. Mathilde, a heroína romântica, acha a vida nobre muito entediante, um excesso de luxo com pessoas sem caráter – que é marcante em Altamira e em Julien! Mesmo no ápice da vida social, a Senhorita não está feliz! (O que mostra que a insatisfação humana independe de classe social) Mathilde compara a fina educação dos nobres – que ela admira, mas 'morre de tédio' – com o jovem Julien em ascensão, sempre sério, com algo de 'heróico'. “Este Sorel é singular”.

Vejamos. Duelos, bailes, nobres decadentes – e triângulo amoroso, adultério. Peças básicas para um bom romance do século 19. Aqui temos dois triângulos. O casal (ou possível casal) Mathilde e Marquês de Croisenois sofre uma 'torção' pela presença de Julien. Assim também antes sofrera o casal Madame e Monsieur de Rênal. O 'triângulo amoroso' é o ambiente de conflito ideal para qualquer trama romanesca. Outros exemplos? Vejam o clássico Rainha Guinevere e o Rei Arthur que são 'torcidos' pela presença do chevalier Lancelot, ou bravo Tristan e a bela Isolda que acabam traindo o Rei Mark. Ou Julieta que deveria se casar com o nobre Páris, mas acaba se apaixonando tragicamente por Romeu. E no século 19: Madame Bovary entedia-se com o marido Charles Bovary. Logo ela se entrega a casos extra-conjugais. O proprietário Rodolphe, ou o escrevente de notário Léon Dupuis. Ou Luísa que vai trair o marido Jorge ao surgir a figura galante do primo Basílio. Ou Anna que vai trair Karênin com o Conde Vronski. Se há algo de comum nestas obras de Flaubert, Eça de Queiroz e Tolstoi é a trama baseada no desvelamentos da hipocrisia e das infidelidades do mundo burguês (e que não se restringem ao mundo burguês...)

A cena do Baile continua – e o Narrador ainda a inserir 'dissertações políticas' no meia da cena romanesca – e Mathilde sempre a comparar os nobres tediosos com os arrivistas heróicos. O que seria esta 'figura heróica'? “Danton era um homem!”, ela provoca. Os revolucionários, ao menos, são heróicos. “Danton não era um açougueiro?”, ela pergunta a Julien, que responde: “aos olhos de certas pessoas”, istoé, dos nobres! E ele lança aquele olhar de desprezo aos convivas do salão, os nobres e grandes burgueses, em busca de medalhas, rendas, promoções, cargos, títulos, tronos, enquanto lutam a vida toda, derrubando uns aos outros! (De fato, nada mudou nos últimos 200 anos!)

Mathilde admira-se com a conversação política entre o Conde de Altamira e o Sr. Julien durante um baile onde a 'elite' se diverte. O conde diz: “Estamos eu e vós aqui neste jantar, somos os únicos genuínos, mas eu serei desprezado e odiado, tal um monstro sanguinário e jacobino, e vós desprezado por ser um homem do povo que entrou de intruso na boa sociedade” (“Vous et moi à ce dîner, nous serons les seuls purs de sang, mais je serai méprisé et presque haï, comme un monstre sanguinaire et jacobin, et vous méprisé simplement comme homme du peuple intrus dans la bonne compagnie.” cap. IX, p. 345)

Não é raro que Mathilde e Julien se vejam face a face na grande biblioteca. Mas o orgulho de ambos é uma parede espessa. Mas a curiosidade dela rompe a frieza dele. A moça nobre dirige a palavra ao serviçal, que é indiferente a ela. Afinal, percebemos que a Senhorita também é uma pessoa 'singular', a nutrir toda uma obsessão pelo 'heroísmo', e assim como Julien idolatra Napoleão, Mathilde admira fervorosamente a Rainha Marguerite de Navarra, a Rainha Margot da macabra “Noite de São Bartolomeu” de triste lembrança, em pleno século 16, meio as 'guerras de religião' desencadeadas pela Reforma de Lutero e Calvino. Mathilde lembra da decapitação, em abril de 1574, de Boniface de La Mole (amante de Marguerite), devido ao um complô, por isso no aniversário do evento histórico, a Senhorita veste trajes de luto. Eis o culto ao passado: os nobres se mantêm olhando para trás!

A Senhorita desabafa as tragédias históricas diante do lisonjeado Julien, mero secretário. “O amor-próprio de Julien estava lisonjeado” (“L'amour-propre de Julien était flatté”) e “Ele esquecia seu triste papel de plebeu revoltado” (“Il oublait son triste rôle de plébéien révolté.” p. 355) Basta apenas que a mocinha nobre passe a dar atenção ao serviçal para que ele esqueça a revolta! A idealização do passado contagia Julien, que torna-se confidente da Senhorita. E ele ousa até uma meia confissão sobre a admiração dele por Napoleão.

Em dias de orgulho e mal-humor voltam a ser 'filha do patrão' acima do 'secretário'. E ele diz não ser pago para manter conversações e confidências com a 'filha do patrão'. Julien tem consciência de encontrar-se diante de uma jovem de 'espírito forte' que 'faz tremer' a família toda, principalmente o pretendente, o Marquês de Croisenois. Mas Julien sente-se admirado mais que o jovem nobre que deve desposar a Senhorita. Então, Julien se mostra frio e respeitoso, e Mathilde é que se aproxima, e ele se deixa envolver. Mas conserva desconfianças! “Essa moça zomba de mim!”

Por mais singulares que sejam os romances, os relacionamentos erótico-afetivos, uma série de eventos – tal uma 'curva normal' – se generaliza: o casal se conhece (pessoal ou virtualmente), há uma curiosidade mútua, um enamoramento ou encantamento, uma paixão (dura em média três a seis meses), um conhecimento físico, uma fase de tentar 'mudar o outro' ou 'adaptar' o Outro a um estilo de vida comum, depois começam as frustrações, e ressentimentos, até a separação (amigável ou ressentida).

Mathilde idealiza os séculos de batalhas e a bravura dos homens. Considera os nobres da Restauração como acomodados e entediantes, para a Senhorita o amor é um 'sentimento heróico'. A Senhorita pensa: Julien, um Danton em potencial? “Serait-ce un Danton?” Julien é pobre, mas tem estudos. Os nobres só têm a força das armas e o peso da tradição.

Julien duvida da afeição de Mathilde: nada mais que um capricho de moça entediada. Os interesses de 'trono e altar' (ou seja, da nobreza e do matrimônio) certamente farão a Senhorita hesitar em confessar em público seus afetos por um simples secretário. E Julien pensa se não é melhor aperfeiçoar sua atuação de 'tartufo', ou seja, de devoto hipócrita. Ele pensa consigo, “Não serei idiota. Cada um por si nesse deserto de egoísmo que se chama vida” (“Ma foi, pas si bête; chacun pour soi dans ce désert d'egoïsme qu'on appelle la vie.” cap. XIII, p. 376) [Logo veremos que – quatro décadas depois – Maupassant coloca ideias semelhantes na mente de Georges Duroy, em “Bel-Ami”]

As hesitações de Julien: a que riscos estará exposto se aceitar o encontro com Mathilde? ... Uma hora após a meia-noite, usando uma escada, Julien sobe ao quarto de Mathilde. (Qualquer semelhança com a cena de Julien adentrando os aposentos da Madame de Rênal não é mera coincidência! As escadas são uma 'imagem' da ascensão de Julien até as amadas: a grande burguesa Madame de Rênal e a nobre Mademoiselle de La Mole.) Mathilde mostra-se polida e formal, sem o calor de uma paixão que Julien esperava... As precauções de uma heroína de romance! Descer a escada até o jardim, por uma corda...! E também Julien revela as suas precauções com as cartas. Quando o casal se livrará das desconfianças?

A paixão heróica-romântica ainda é 'literária', extraída das leituras dos livros, visto que tanto Mathilde quanto Julien nutrem admirações pelas obras clássicas. Mathilde relembra cenas de Manon Lescaut (obra de 1753, do abade Prévost) enquanto Julien recita trechos de Nouvelle Heloïse (romance epistolar de 1761, de Rousseau, inspirado nas cartas medievais dos apaixonados Heloïse e Abélard) Em suas falas as personagens fazem referências a Madame de Staël, Molière, Rousseau, Voltaire... As próprias epígrafes mostram a 'intertextualidade' influenciada pelas leituras do autor Stendhal, a citar as obras de Mérimée, Schiller, Goethe, Jean Paul, Musset, Lord Byron, Shakespeare! O romântico e o ultraromântico num romance com predominância realista, ou psicologismo e sociologismo com testemunho histórico.

Logo surgem os ressentimentos. Julien despreza a vaidade e o orgulho de Mathilde, que o diminui lembrando sempre as origens plebeias e provincianas do secretário. E não podem faltar as cenas 'romanescas': as brigas de amantes, discussões épicas na Biblioteca, onde Julien ergue uma espada medieval contra a Senhorita! Mas mantem o sangue-frio e devolve a arma à bainha. “Tout ce mouvement, fort lent sur la fin, dura bien une minute; Mlle de La Mole le regardait étonné. J'ai donc été sur le point d'être tuée par mon amant” se disait-elle.” p. 403) Mas o furor esfria. Nada acontece. Cai o pano.

Após uma semana de frieza e distância, Mathilde e Julien passeiam pelo jardim, e ela aproveita para humilhá-lo, ao abordar o tema dos pretendentes nobres. O que a Senhorita deseja é sufocar a admiração pelo jovem, desprezando-o. No capítulo seguinte, diante do anúncio da viagem de Julien, a afeição e a admiração de Mathilde por ele faz derreter o orgulho da moça. É oportunidade que Julien não ignora: sobe novamente ao quarto dela, onde é prontamente recebido. Ela confessa o próprio orgulho.

Mas Mathilde tem horror a entregar-se, ainda mais a um homem que não é nobre, por mais que Julien tenha 'gênio' ou 'heroísmo'. Mathilde não quer, mas admira a força de vontade do jovem. No rompimento, no entanto, é Julien quem sofre, e denuncia o 'orgulho infinito' da nobre Senhorita.

“Nos caracteres ousados e orgulhosos não há senão um passo de cólera contra si mesmo à exaltação contra os outros; em tais casos, os arrebatamentos de furor são nesse caso um intenso prazer.” (“Dans les caractéres hardis et fiers il n'y a qu'un pas de la colère contre soi-même à l'emportement contre les autres; les transports de fureur sont dans ce cas un plaisir vif.” cap XX, p. 423)

A narrativa – nos capítulos seguintes – foge a temática amorosa e destaca a vida política da época – as epígrafes mudam (citações de Napoleão, Machiavel, Schiller, Lope de Vega, etc) com as reuniões dos conservadores monarquistas contra as campanhas liberais.

Na reunião dos nobres reacionários contra os liberais (que são chamados de 'jacobinos'), o Marquês de La Mole diz claramente: “Quereis continuar a falar sem agir? Dentro de cinquenta anos, na Europa, não haverá mais que presidentes de república, e nenhum rei. E com essas três letras, R, E, I, acabam-se os padres e os nobres. Não vejo mais que candidatos cortejando maiorias imundas” (“Voulez-vous continuer à parler sans agir? Dans cinquant ans il n'y aura plus em Europe que des président de république, et pas un roi. Et avec ces trois lettres R, O, I, s'en vont les prêtres et les gentilshommes. Je ne voi plus que des candidats faisant la cour à des majorités crottées.” cap. XXII, p. 440) Não imaginamos hoje um discurso mais 'anti-democrático'!

Que os nobres franceses se ajudem - “Aidez-vous vous mêmes” - sem esperar o apoio dos reacionários da Inglaterra, da Áustria, da Prússia, da Rússia (os mesmos do Congresso de Viena, que 'desmontou' o Império Napoleônico) Um importante Cardeal lembra o poder do clero na manutenção da monarquia, e cita o episódio de Vendéia [de 1793]. E hostiliza o Sr. De nerval, o primeiro-ministro, que reafirma, então, sua missão de restaurar a monarquia na França, 'ao tempo de Luís XV'. O bispo de Agde execla Paris, onde se encontra a podridão, a “nouvelle Babylone”, “nova Babilônia”, a causa da decadência da França. “É preciso decidir entre o altar e Paris” (“Entre l'autel et Paris, il faut en finir. Cette catastrophe est même dans les intérets mondains du trône.” cap. XXIII, p. 445)

Distração para um jovem apaixonado. Uma missão de Julien: encontrar com um importante nobre. Viagem para Strasbourg. Lá Julien permanece uma semana, e reencontra o Prince Korasoff, próximo a fronteira alemã. O Narrador comenta os modos do russo, caricaturas galantes e cartas de amor, e solta uma ou outra ironia. “Os russos copiam os modos franceses, mas sempre com cinquenta anos de atraso. Atualmenre, eles estão no século de Luís XV.” (“Les Russes copient les moeurs françaises, mais toujours à cinquante ans de distance. Ils em sont maintenant au siècle de Louis XV. “ p. 452) Confissões epistolares – cartas entre Mathilde e Julien: quem zomba de quem?

Nas entrelinhas – paralelo ao embate amoroso entre Julien e Mathilde – temos as intrigas dos bastidores da política (só para os leitores da época...!) A influência da Marechala de Fervaques invade a hegemonia do Marquês de La Mole: títulos e cargos eclesiásticos em disputa. A figura da Madame de Fervaques invade literalmente o romance, a partir da cena na ópera. Aqui uma montagem baseada no clássico “Manon Lescaut”, que foi ao palco em maio de 1830.

Julien ainda espera se reconciliar com Mathilde. A frieza dele apens aumenta o orgulho dela. Numa cena romanesca, na Biblioteca, Mathilde desfalece aos pés de Julien, que exclama “Eis a orgulhosa aos meus pés!” E Julien passa a manter uma correspondência com a Sra. De Fervaques, a marechala. Será para fazer ciúmes em Mathilde?

Na ópera, Julien acorre ao camarote da Madame de La Mole, ao notar as lágrimas de Mathilde. Mas ele não se entrega. Julien esforça-se por mostrar-se digno. Ele realmente acredita que mostrar desprezo faz aumentar o domínio passional sobre Mathilde, que se humilha.

E realmente Mathilde se entrega, enquanto Julien é prudente. Não que ela tenha perdido o orgulho,

“Engravidou e comunicou o fato a Julien com alegria. Essa notícia feriu Julien com um espanto profundo.” “-Posso ter compaixão do meu benfeitor; vou ficar desolado por dar-lhe este desgosto; mas não temo e não temerei ninguém.”
Elle se trouva enceinte et l'apprit avec joie à Julien. Cette annonce frappa Julien d'un étonnement profond. “ “-Je puis avoir pitié de mon bienfaiteur, étre navré de lui nuire; mais je ne crains et ne craindrai jamais personne.” (pp. 492/ 493)

Mathilde escreve ao pai uma longa carta de desabafo. E percebemos o 'Inferno da fraqueza' quando Julien é levado a presença do Marquês, que descarrega sobre o secretário toda a ira e frustração. Julien procura conselho junto ao Abade Pirard. O religioso aconselha o nobre a apoiar o casamento público do casal. Enquanto isso, Mathilde, desesperada, desafia o pai. Ele pede a Julien que se afaste até que o rancor do Marquês se apague. E o Abade passa a apoiar o casal [algo que vem lembrar o Frei Lourenço que ajuda Romeu e Julieta.] E o Marquês acaba por culpar de tudo a “decadência do século”, “O século vem confundir tudo! Seguimos direto para o caos” (“Le siècle est fait pour tout confondre! Nous marchons vers le chaos” p. 501)

Passa-se um mês para a apaziguar a fúria do Marquês. Enquanto isso, Julien pensa na paternidade (“La destinée de son fils absorbait d'avance toutes ses pénsees.” p. 503) Mathilde se encontra com Julien no presbitério do Abade Pirard. Destaca-se neste e nos capítulos seguintes, o uso narrativo de correspondências – típicas nos 'romances epistolares', tais como “Nouvelle Heloïse” e “Les Liaisons dangereuses” (de 1782, de Choderlos de Laclos)

O Narrador concentra-se nos pensamentos e ações do Marquês, que finalmente – num momento de crise familiar – revela uma riqueza psicológica que o leitor desconhecia. O Marquês doa ao casal algumas propriedades no Languedoc. Com uma renda de 36 mil libras, acende-se a ambição de Julien – com seu mérito pessoal' ele se elvara da posição de nascimento. Agora falta somente a presença de seu sogro no casamento, evitando uma afronta a família e uma ação violenta do Conde Norbert, na defesa da honra da irmã. O Marquês nomeia Julien, Chevalier Julien Sorel de La Vernaye, tenente de hussardos, e a filha insiste: quer o casamento público.

Julien, ou o Cavaleiro de La Vernaye, assume o posto de tenente no 15o regimento de Hussardos, em Strasburgo. E ele volta àquela fantasia de ser um 'filho natural' de um nobre. “Seu ar impassível, seus olhos severos e quase maus, sua palidez, seu inalterável sangue-frio deram-lhe reputação desde o primeiro dia. - Há de tudo nesse jovem - diziam os velhos oficiais veteranos - menos juventude.”(“Son air impassible, ses yeux séveres et presque méchants, sa pâleur, son inaltérable sang-froid commencèrent sa réputation dès le premier jour”; “Il ya a tout dans ce jeune homme, disaient les vieux officiers goguenards, excepté de la jeunesse.” cap. XXXV, p. 510/511)

Mas desce a tormenta: o Marquês vê desmascarada a ambição de Julien. O nobre declara à sua filha, “Eu podia perdoar tudo, menos o projeto de seduzi-la por ser rica”. (“Je pouvais tout pardonner, excepté le projet de vous séduire parce que vous êtes riche” p. 512) Por que isso? O caso é que o Marquês mandara investigar a vida de Julien, e descobrira a Madame de Rênal, que ainda ressentida com sua antiga paixão, envia uma carta na qual acusa Julien de hipocrisia e ambição.

“Não posso culpar o Sr. De La Mole, diz Julien, após findar [a leitura da carta]; ele é justo e prudente. Qual pai desejaria entregar a filha querida a um homem assim! Adeus!” (“Je ne puis blâmer M de La Mole, dit Julien, après l'avoir finie; il est juste et prudent. Quel père voudrait donner sa fille chérie à un tel homme! Adieu!” p. 513)

O que se precipita então? Julien abandona Mathilde e cavalga para Verrières, onde adquire um par de pistolas. Encontrando a Madame na missa, ele logo atira contra ela.

Julien atira contra a Madame e é logo preso. A vítima não morre, sendo ferida no ombro. Ela intercede, junto ao carcereiro, pela segurança de Julien. Seguem-se os interrogatórios.

O cura Chélan visita Julien em Besançon, onde ocorre o julgamento. Cruel abatimento prosta o antes febril prisioneiro. “Não havia mais nada de rude e de grandioso nele, mais nada da virtude romana; a morte lhe aparecia a grande altura, e como coisa menos fácil.” (“Il n'y avait plus rien de rude et de grandiose em lui, plus de vertu romaine; la mort lui apparaissait à une grande hauteur, et comme chose moins facile.” cap. XXXVII, p. 524) Também Fouqué, o velho amigo, aparece para aliviar o fardo de Julien.

No XXXVIII Mathilde encontra Julien e mostra-se finalmente fiel – até o crime o distingue! Ele tenta conter dela o desvario. A jovem nobre resolve apelar ao (todo-poderoso) Vigário de Frilair (que é adversário do Marquês de La Mole!) Mas Mathilde é também amiga da Marechala de Fervaques, “que faz os bispos” na França, e Frilar, em sua ambição, assinala pronta cooperação. E o vigário sabe como 'dominar' a apaixonada jovem. (“M. De Frilair tortura voluptuesement et à loisir le coeur de cette jolie fille, dont il avait surpris de côté faible.”cap. XXXVIII)

No XXXIX, A Intriga, Prontamente Mathilde escreve a Marechala de Fervaques, e menciona o Sr. De Frilair. Enquanto isso, Julien entedia-se, não sendo tocado pelo heroísmo idealizado pela jovem Mathilde, que esforça-se por salvar o abalado réu. A ambição no peito de Julien cede lugar ao remorso por ter alvejado a Madame de Rênal. Mathilde acaricia um desejo de suicídio, caso Julien seja condenado. Ele insiste que ela deve viver, e casada com o Sr. De Croisenois.

No âmbito do processo, o Narrador apresenta os trâmites judiciários da época, onde havia pouca separação dos poderes (na terra de Montesquieu!) os grandes do Clero influenciavam os grandes do Judiciário... com troca de favores (e cargos) para manipular a 'justiça'. Afinal, os religiosos e os nobres indicavam seus favorecidos para os cargos públicos. Novo interrogatório. Julien confessa novamente, e recolhe-se à sua solidão, insensível até mesmo a dedicação de Mathilde, que já conseguira um contato epistolar entre a Sra de Fervaques e o Sr. De Frilair. A Sra de Rênal escreve aos jurados e pede clemência para o réu.

No XLI o Julgamento quando Mathilde confia na intervenção do Monsenhor de Frilair, e Julien resolve não se pronunciar. Ele é conduzido ao Palácio da Justiça, onde farta plateia feminina suspira. O promotor se arrasta em 'mau francês' e o advogado de defesa dedica-se a enternecer as damas. Julien decidira não falar, mas emocionado agora, não resite: fala aos 'messieurs les jurés' e ataca todos os que impedem a ascensão social dos jovens virtuosos, conservando um sistema de classes altamente escludente. Julien percebe que ali o julgam nobres decadentes e burgueses indignados, nenhum camponês enriquecido está presente ou representado. O julgamento assim se transforma numa denúncia da 'luta de classes'.

O júri se reúne – e o Sr Valenod (que ironia final!) declara Julien Sorel culpado, por ousar homicídio premeditado. Julien, condenado, nada espera do Deus cristão, “é um déspota, e, assim, cheio de ideias de vingança” (“c'est un desposte, et, comme tel, il est rempli d'idées de vengeance” p. 551)

Cedo pela manhã, Mathilde o abraça e destila seu furor contra o Monsenhor de Frilair. Mas logo ela está distante do ar febril de Julien, que resiste em mostrar fraqueza, e não pensa em assinar a Apelação. Lembra da Sra de Rênal: “Ela vai chorar lágrimas quentes, eu a conheço; em vão desejei matá-la, tudo será esquecido. E a pessoa a quem eu desejei roubar a vida será a única pessoa sinceramente a chorar a minha morte”. (“Elle pleurera à chaudes larmes, je la connais; en vain j'ai voulu l'assassiner, tout sera oublié. Et la personne à qui j'ai voulu ôter la vie sera la seule qui sincèrement pleurera ma mort” cap. XLII, p. 555)

Os eventos finais se precipitam, os capítulos (XLII a XLV) não tem epígrafes e sequer título. Todo o castelo de cartas já caiu, o Narrador quer logo fazer cair o pano. No XLIII Julien é desperto pelas lágrimas da Senhora de Rênal. Então Julien perde todo o auto-controle. Ela roga aflita para que ele assine a apelação. Ele concorda, e o escândalo se propaga. No XLIV o ambiente da província enfraquece o ânimo de Julien... Cada vez mais ele se deixa envolver – e percebe o ridículo de sua 'atuação'...

No XL Julien é finalmente executado. Fouqué resgata seus restos mortais. Mathilde sepulta a cabeça do amado – tal qual fizera a Rainha Marguerite de Navarra com a cabeça do amante De La Mole. E a Senhora de Rênal morre de desgosto.

“A Senhora de Rênal foi fiel a sua promessa. Ela não busca de nenhum modo atentar contra a própria vida; mas três dias após Julien, ela morre abraçando seus filhos.” (“Mme de Rênal fut fidèle à sa promesse. Elle ne chercha em aucune manière à attenter à sa vie; mais trois jours après Julien, elle mourut em embrassant ses enfants.” p. 576)

Tal qual uma grande ária ou uma ópera italiana – ah, como Stendhal amava a Itália! - o Autor fecha o livro num retorno ao início – a paixão de Julien pela Madame de Rênal que abre o romance é concluída com a morte de ambos, num fechamento romanesco e trágico que agradaria a Shakespeare, que nos alegou a morte por amor 'clássica', a união na morte de Romeu e Julieta. Os leitores – e outros escritores influenciados - do século 19 não suspiraram em vão.

jan-mar/10

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