segunda-feira, 5 de abril de 2010

sobre "Romeu e Julieta" (W Shakespeare)





sobre “Romeu e Julieta” (Romeo and Juliet, 1595)
peça teatral (tragédia) de William Shakespeare
(GBR, 1564 – 1616)

O amor enquanto encontro e desencontros

O dramaturgo William Shakespeare, ao lado de Montaigne e Cervantes, é um dos primeiros autores universais, fala de sua 'terrinha', de seu país, mas pretende uma 'crítica universal' (ou, ao menos, 'ocidental') Suas personagens não são apenas os britânicos e seus reis e dinastias, mas os romanos, os franceses, os italianos, os mouros, etc. É um autor britânico que descobre a Europa, a África e a Ásia, enquanto a Grã-Bretanha estende seus tentáculos marítimos pelo mundo. Mesmo seu 'regionalismo' é 'universal'.

Shakespeare é o centro do Cânone [Ocidental]”, escreveu o scholar Harold Bloom. Há um certo exagero, mas perdoemos o 'europocentrismo' do Sr. Bloom. Na verdade, Shakespeare (e Cervantes) são os primeiros escritores universais (precedidos apenas por Marco Polo, entre os séculos 13 e 14, convenhamos) Shakespeare e Cervantes tratam de temas universais, mesmo quando abordam Grã-Bretanha e Espanha, as duas potências em conflito, entre os séculos 16 e 17. (Até que os britânicos alcançassem a hegemonia nos séculos 18 e 19) Olhares que dissecam a 'alma humana' e o próprio fazer literário (digamos que há muita metalinguagem...) Ou então, estes autores desembarcam em outras nações, seja Itália, França, Noruega, África, etc. É o começo de uma 'literatura mundial'.

Com a temática amor e paixão muitas peças do Bardo se destacam, mas é nosso desejo destacar basicamente duas peças de Shakespeare que têm em cena personagens italianas, falamos aqui de Romeo e Julieta e A Tempestade. (Em breve, falaremos de Otelo, pois aí o amor se mistura ao ciúme... ) Amores que podem surgir como 'pontes' entre mundos em conflito. Em Romeu e Julieta existem duas famílias (Montecchio e Capuleto) que vivem uma rixa, e em “A Tempestade” temos dois irmãos, onde um usurpa o trono do outro.

O fascínio de “Romeu e Julieta” é o amor mutuamente correpondido, como se 'guiados pelas estrelas', um amando o outro no mesmo instante e com igual intensidade. Quantos de nós vivemos um amor assim? Pois a tragédia do amor (ou a 'inutilidade do amar') é o 'não ser correspondido', é 'desperdiçar afeto' com seres indiferentes, é amar e não ser amado, com na 'quadrilha' de Carlos Drummond de Andrade, “João amava Teresa que amava Raimundo /que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém.”

Romeu e Julieta participam de uma imensa lista de amores fulminantes e trágicos, que se destacam no imaginário do Ocidente, a lembrar, Píramo e Tisbe, Páris e Helena, Édipo e Jocasta, Lancelot e Guinevere, Tristan e Isolda, Heloísa e Abelardo (de verdade!), Troilus e Cressida, Pelléas e Mélisande (da obra de M. Maeterlinck), Heathcliff e Catherine Earnshaw (de “Morro dos Ventos Uivantes”/Wutheing Heights), Conde Drácula e Mina Harker, entre outros. Os filmes e as novelas dramáticas (da TV) sempre exploraram essas paixões que somam o máximo de amor com o máximo de tragédia.

Contudo, Romeu e Julieta não é apenas uma 'história de amor' ou a 'tragédia de dois amantes' – ainda que amor e paixão sejam destaques no 'enredo' – é mais uma fábula dos desencontros – onde há apenas um 'encontro' sem continuidade. Temos Romeu que ama Rosalinda, e não é correspondido. Temos Páris que espera casar com Julieta, mas ela o ignora. Mas então ocorre que Romeu e Julieta se encontram – num baile de máscaras na casa desta, dos ricos Capuletos – e os jovens se apaixonam ao mesmo tempo e com o mesmo ardor!

Em Verona, as famílias Montecchio e Capuleto vivem nutrindo um rixa, e que já chega aos servos, a ponto de brigarem entre si! Brigam para provar quem é o 'melhor amo', o patrão mais benévolo! (ou menos pior carrasco...) [Assim como os proletários lutam entre si para provar qual pátria burguesa é melhor – e morrem em nome de reis e presidentes...] Os serviçais se envolvem – entre si – numa rixa que não é deles, e acabam em encrencas. Volta e meia o poder do Príncipe precisa intervir para manter a ordem [como uma grande ONU apaziguando conflitos...]

Meio a esta rixa, os corações jovens desabrocham. Passeios na praça, festas à fantasia. Encontramos Julieta Capuleto que aspira por um amor, mas precisa obedecer ao pai, que prepara um 'casamento arranjado', com um nobre que ela sequer conhece. Temos Romeu Montecchio que anda a suspirar por uma tal Rosalinda, mas é esnobado, não é amado e assim sofre. Mas acontece que, no baile de máscara, Julieta vê um jovem e se apaixona - e de imediato ele também – e ela descobre que é Romeu ! Um amor instantâneo e cheio de barreiras: são de famílias rivais. É um amor mútuo/correspondido que será barrado pelos Outros, o tabu ou a sociedade.

É de se pensar: e se Julieta encontrasse antes o nobre Páris? Pois ela diz não querer se casar com alguém que ela sequer conhece – mas ela não conhecia Romeu e se apaixonou toda de repente! E amar é desejar apenas quem se conhece? O que irrita Julieta é ser obrigada a casar por vontade alheia – da família, do pai – e não de um sentimento dela. Mas naquela época, a mulher passava do pai para o marido... O Sr. Capuleto tem todo o interesse em unir sua família a de um nobre. Esses 'casamentos arranjados' não raramente acabavam em tragédia (conhecida ou não), com a mulher tolerando o marido, resignada, sem satisfação afetiva ou sexual, e depois até entregando-se à 'aventuras', à paixão com o amante (como são célebres os exemplos literários de Madame de Rênal (Le rouge et le noir), Madame Bovary e Anna Karenina, dentre outras)

Pensamos também: mas se Julieta se apaixonasse pelo nobre Páris, e assim agradando a família, sequer haveria tragédia. A donzela não se envolveria com um 'inimigo da família', e o mundo seguiria em sua órbita. No máximo, Romeo acrescentaria o nome de Julieta em sua lista de amores não correspondidos... Para haver a tragédia é essencial o 'amor proibido' – o amor sofrer uma série de obstáculos e desencontros, e não haver o clássico “e eles foram felizes para sempre”.

Paixões à parte, a personagem mais interessante de “Romeo and Juliet” não o Romeu nem a Julieta, nem a 'paixão' de ambos. Quem mais se destaca é o nobre Mercútio, parente do Príncipe e de Páris, e amigo de Romeu Montecchio. Mercútio é um sujeito falador, engraçado, zombeteiro, bon-vivant, carismático, vivaz, imprevisível, e um tanto 'político' (por ser um nobre, e não ser Montecchio nem Capuleto), em suma, só faltava mesmo ele ser um fã de Shakespeare... É cômica a cena em que Romeu 'define' o amigo para a Ama de Julieta (na cena IV do Ato 2)

A gentleman, nurse, that loves to hear himself talk,
and will speak more in a minute than he will stand
to in a month.

Um gentil-homem, Ama, que adora se ouvir falar,
e a falar mais em um minuto que ele falaria
em um mês.

Pois Mercútio é aquele que adora zombar do amor alheio (principalmente do amor/paixão exagerado do jovem amigo Romeu) ao lembrar que Amor (ou Paixão) é cegueira, desencontro, desejar e sofrer.

You are a lover; borrow Cupid's wings,
And soar with them above a common bound.

Você é um apaixonado; use as asas de Cupido
e voe mais alto que os seres comuns.

Diante dele, Romeu se debate no 'sofrer de amor', confessando ao primo Benvólio:

Is love a tender thing? it is too rough,
Too rude, too boisterous, and it pricks like thorn.
É o amor algo suave? É muito áspero,
muito rude, violento, e fere como espinho.
(Ato I, Cena IV)

Diante das confissões, Mercútio não poupa a língua ferina para representar o amor como um feitiço das fadas, ou da rainha da fadas, a passear pela mente dos apaixonados, a provocar sonhos amorosos, ou a acariciar os lábios das donzelas, que suspiram pelos beijos de príncipes encantados...

True, I talk of dreams,
Which are the children of an idle brain,
Begot of nothing but vain fantasy,
Which is as thin of substance as the air
And more inconstant than the wind, who wooes
Even now the frozen bosom of the north,
And, being anger'd, puffs away from thence,
Turning his face to the dew-dropping south.

De fato, refiro-me aos sonhos,
que são crias de um cérebro ocioso,
advindos senão da inútil fantasia,
que é tão fina quanto o ar
e mais inconstante que o vento, que corteja
ainda agora o gélido seio do norte,
e, se irrita, vem de lá soprando,
retornando ao sul coberto de orvalho.

(Ato I, Cena IV)

Até a morte de Mercútio, no Ato III, temos uma comédia áspera, cheia de ambiguidades e amores/ardores no ar, bailes de fantasias e duelos de espadas. Muito barulho por nada... Mas depois da morte de tão brilhante nobre – que é respeitado pelos dois clãs – então é que a rixa fica séria, as viganças se sucedem, e a peça vai terminar por falta de atores.

A morte de Mercútio traz a mancha trágica para o idílio amoroso, nas palavras de H Bloom, “Shakespeare, para manter Romeu e Julieta como tragédia, tem de matar Mercutio antes que ele absorva uma parte muito grande de nosso interesse.” (“O Cânone Ocidental”, cap. 6) E depois tudo se precipita: Romeu vinga Mercútio e assassina o primo de Julieta, o irascível Tybalt (Tebaldo), precisa fugir da punição do Príncipe, mas ao mesmo tempo despedir-se de Julieta (afinal de contas, é a 'noite nupcial' dos recém-casado, ainda que em segredo, por intervenção de um Frei, que diz agir segundo as 'leis santas' da Igreja...)

Mas Romeu retorna a Verona – quando todos acreditam que Julieta está morta ( na manhã do casamento forçado com Páris) – e chegando ao túmulo da amada precisa enfrentar a fúria magoada do quase-esposo, Páris, que é morto. Não acaba ainda a tragédia, pois Romeu acredita mesmo que Julieta morreu (e tudo é truque do Frei...), e se envenena. A mocinha desperta pouco depois, e ao notar a morte do amado, se apunhala. A peça acaba por falta de protagonista, bem ao estilo trágico de Shakespeare (que os dramturgos do Continente – ou seja, franceses, alemães e italianos – não hesitavam em chamar de 'bárbaro'.)

Não precisava de tanto sangue – mas o público adora! Sangue alheio para a plateia de voyeurs. A plateia adorava o estilo de Shakespeare de levar tudo aos extremos – risos histéricos em “A Megera Domada” (The Taming of the Shrew), “As Alegres Comadres de Windsor” (The Merry Wives of Windsor) ou “Muito Barulho por nada” (Much Ado about Nothing) ou o tom plangente de “sangue, suor e lágrimas” (bem o sabia o Mr. Churchill) em “Otelo”, “King Lear” e “Hamlet”, peças que acabam por falta de protagonistas.

Esta dualidade de Shakespeare (que muitos críticos ser mais um irônico que um trágico, que se 'esforçava' para criar as tragédias, daí estas serem tão extraordinárias!) é a própria dualidade do ser humano, como diz o Frei Laurence, falando consigo mesmo, meio as suas plantas medicinais, quando aparece Romeu na cena III do Ato 2,

Within the infant rind of this small flower
Poison hath residence and medicine power:
For this, being smelt, with that part cheers each part;
Being tasted, slays all senses with the heart.
Two such opposed kings encamp them still
In man as well as herbs, grace and rude will;
And where the worser is predominant,
Full soon the canker death eats up that plant.

Dentro da casca pueril desta pequena flor
Habita o veneno e o poder de curar:
Pois esta, sendo cheirada, assim alegra cada parte;
Sendo degustada, fulmina todos os sentidos até o coração.
Assim dois reis inimigos montam acampamento dentro
Do homem bem como das ervas, em graça e rudeza;
E onde o pior é predominante,
Logo a doença de morte devora toda a planta.

jan/fev/10

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