sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)
Literatura enquanto Obra Clássica
(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami)
O Romance da Vitória do Mundo Burguês
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A partir daqui a história se precipita, pois o Sr. Valenod recebe uma visita da camareira Elisa, serviçal dos Rênal, aquela que foi 'rejeitada' por Julien. Ambos enciumados com a 'felicidade' do casal Julien e Madame. Valenod está enlouquecido – não pode acreditar que a Madame o desprezou e agora se entrega a um plebeu! Assim, o enciumado escreve uma carta anônima. E cartas anônimas não faltam nos próximos capítulos. Onde o Narrador não poupa a fina ironia – a elegância francesa é insuperável até quando sarcástica!
Onde está a senhora singela dos primeiros capítulos? Agora a Madame escreve 'cartas anônimas' para despistar o marido, horrorizado com as cartas indignas que recebe. A Madame quer se mostrar 'digna' de Julien, sendo tão dissimulada quanto ele! O Narrador explica que “as verdadeiras paixões são egoístas” (“les vraies passions sont égoïstes” p. 166) Realmente, com esta leitura de Le Rouge eu não preciso escrever sobre Madame Bovary ou Anna Karenina ou O Primo Basílio (e 90 % das novelas globais...) Está tudo aqui: os ciúmes, as intrigas, os crimes velados. Não há 'mocinhos' e 'vilões': no 'amor' – e no 'jogo' – todas as armas são válidas.
Seguem-se digressões sobre a condição da mulher no início do século 19, submissa e discreta. Mulher, filhas e jovens esposas desconhecendo a paixão e temendo os escândalos. Tudo isso Julien observa, surpreendido com a 'esperteza' da Madame de Rênal. Quase lembra o pai de Desdêmona, em “Otelo” (“se ela enganou o pai, ela pode enganar o marido”) e despreza todo o 'falso moralismo' burguês. É necessário um afastamento, uma separação... Logo, o jovem recebe propostas para deixar a família Rênal. Será ele um 'jesuíta' entre os jesuítas, o mesmo que dizer: um hipócrita meio aos hipócritas.
Afinal de contas, Julien é bom de 'retórica', tem “verve jésuitique”, escreve uma carta de nove páginas para a Madame ! “A palavra foi dada ao homem para ocultar o seu pensamento” (“La parole a été à l'homme pour cacher sa pensée”, R. P. Malagrida) Mas a hipocrisia de Julien não está a altura da hipocrisia da vida social. Para quem considera Julien um anti-herói, o que pensará de um Sr. Valenod? Logo logo, o 'anti-herói' vai se tornar 'mocinho' se comparado a toda uma corja de vaidosos e ambiciosos na 'nata da sociedade'! (Tanto que para Julien, Napoleão é um símbolo de 'vida heroíca', acima da 'vida mesquinha'. O mesmo efeito provocado em Raskólnikov, a imaginar-se o 'homem superior', em “Crime e Castigo”)
Cenas da vida social. Julien recita o Novo Testamento em latim, aborda peças teológicas ou narra fábulas de La Fontaine, “auteur bien immoral”. Os proprietários comentam o preço das bebidas, enumeram as propriedades, exibem poder. Julien deseja 'subir na escala social', mas não suporta o desprezo pelos burgueses! Burgueses que apoiavam a Restauração, quanto os burgueses 'liberais' queriam uma nova revolução! Mas, em verdade, os revolucionários são os 'jacobinos', tal qual o geômetra M. Gros.
Cenas de famílias, cenas idílicas. As personagens da província: os grosseirões com pose de aristocratas. Cenas que não faltam nas obras de Balzac a comporem a “Comédia Humana”. Uns se aliam aos nobres realistas, outros se aproximam dos liberais. A figura da Autoridade e o ressentimento da plebe – que se vinga daqueles que se destacam. Como contraponto temos a figura do italiano Signor Geronino, mi-français, mi-italiano, que literariamente é um 'colírio nos olhos' – tal qual o Mercútio de “Romeo and Juliet” e o Signor Settembrini, de “A Montanha Mágica”. É uma personagem que evidencia todo o fascínio de Stendhal pela itália e pelo 'espírito italiano'. No que o francês se assemelha ao inglês Lord Byron, ao francês Victor-Hugo, ao norte-americano Hawthorne, ao alemão Thomas Mann.
Através de recursos tais como descrições, digressões, cartas, narrativa dentro da narrativa, o Romance de Sthedhal cria um paradigma da Escrita Romântica como testemunho de um mundo em pluralidade – fenônemo que Balzac exploraria com abundância no ciclo de romances já citado – onde o lugar do cidadão na sociedade seria resultado de um conjunto de escolhas dentro de um conjunto de oportunidades. Bem que Julien preferiria ser um artista do que um padre ou um funcionário, um político, mas a vida é feita de escolhas: casar com a criada, ou ser sócio de um amigo, ou entrar para o seminário, ou fugir com a amante... O Narrador se aproveita desses 'vários mundos possíveis' para apresentar suas críticas às instituições que limitam o ser humano nas prisões do casamento, do sacerdócio, da vida civil ou militar.
O plano de época: a nobreza e a alta burguesia provincial teme uma nova Revolução – que aliás recomeça em 1830 e seque em processo até 1848 – com os liberais e os jacobinos na vanguarda revolucionária. Depois de 1848 outros revolucionários se apresentam: os socialistas e os anarquistas. Depois os socialistas se dividem em 'comunistas' e 'social-democratas'; e os comunistas se dividem (na Rússia) em 'bolcheviques' (majoritários, radicais) e 'mencheviques' (minoritários, moderados).
Julien no Seminário de Besançon
Ainda na Parte 1, há uma mudança de ambiente. No capítulo XXV (Le séminaire) o jovem preceptor abandona de vez a mansão dos Rênal. Com uma carta de apresentação do cura Chélan, Julien segue para o seminário. Há toda uma introdução em estilo ultra-romântico, gótico, descritivo. “Lá, Julien foi deixado sozinho; ele estava aterrado, seu coração batia violentamente; ele se sentiria feliz se ousasse chorar. Um silêncio de morte reinva em toda o casarão.” (“Là, Julien fut laissé seul; il était atteré, son coeur battait violemment; il eût été heureux d'oser pleurer. Un silence de mort régnait dans toute la maison.” p. 205)
No seminário Julien precisará de defender do diretor Monsieur Pirard, severo e sombrio, além dos preceptores e dos colegas. O jovem logo será alvo da curiosidade geral (“Julien se viu objeto da curiosidade geral. Mas não se encontrava junto a ele nada além de discrição e silêncio”) Vivendo entre filhos de camponeses, citadinos hipócritas, jesuítas, suspeitos de jansenismo ou protestantismo, Julien se esforça,pois “sob Napoleão, eu teria sido sargento, entre esses futuros padres, eu serei um grande vigário”. O velho e sagaz Julien: sempre motivado pela ambição!
O amigo Fouqué visita Julien no seminário e comenta o ardor piedoso da Madame de Rênal, mas o seminarista quer saber dos jornais dos liberais. Fouqué entre surpreso e irônico, “O quê! Até no seminário, os liberais! Pobre França,” e assume o ar hipócrita de um abade. Claro que episódios como este evidenciam que Julien não se 'converteu'. Os seminaristas consideram Julien um 'esprit fort', com 'ideias próprias'. O que nada é nada 'apropriado' para a cultura de rebanho do seminário! O espírito altivo isola Julien dos demais, e estes – ressentidos – mantem o recém-chegado afastado. O moço já se sente cansado, “Que imensa dificuldade essa hipocrisia de cada minuto! É uma tarefa que empalidece os trabalhos de Hércules” (“Quelle immense difficulté que cette hypocrisie de chaque minute! C'est à faire pâlir les travaux d'Hercule.” p. 218)
Aqui, o Narrador reduz a narrativa das ações e passa à longos períodos de dissertação, digressão, sondagem psicológica, várias referências intertextuais, principalmente relembrando o polêmico Voltaire. O Narrador se dirige ao Leitor em alguns momentos – o que faz pensar que qualquer semelhança com o Narrador 'realista' de Machado de Assis não é mera coincidência... “O leitor, que sorri talvez...” (“Le lecteur, qui sourrit peut-être,” p. 219) ou “O leitor bem gostaria de nos permitir” (“le lecteur voudra bien nous permettre” p. 223) ou ainda, “Nós tememos fatigar o leitor com a narrativa dos mil infortúnios de nosso herói.” (“Nous craignons de fatiguer le lecteur du récit des mille infortunes de notre héros” p. 227)
Na ação, ressalta-se a 'vontade de potência' em Julien, ao suportar os clérigos, a hipocrisia religiosa, para 'subir na vida', ter 'poder', “A vontade do homem é poderosa, eu o leio em tudo; mas será ela suficiente para superar tal desgosto?” (“La volonté de l'homme est puissant, je le lis partout; mais suffit-elle pour surmonter un tel dégoût?” p. 224) Todo um poder que só é 'legítimo' se aprovado pelo 'poder espiritual' do 'vigário de Deus', o Papa. Sendo o 'clericalismo' o poder do clero sobre a realeza.
Daí o grande erro de Julien: ter opinião própria, ter o hábito de pensar. E no meio eclesiástico isto é pecado! “Pois todo bom raciocínio ofende” Pois todos devem seguir o Dogma! Assim o 'pecado' de Julien Sorel se aproxima daquele pecado enorme de um Martin Luther (Martinho Lutero)!
Aqui o Narrador apresenta a cena da procissão, os day-dreams de Julien e faz o desmaio de uma devota dilacerar a cena idílica: a madame prostrada é ninguém menos que a Senhora de Rênal ! E quem ampara a madame senão a Senhora Derville! Julien é obrigado a se afastar. A cena é cortada.
De volta ao seminário, Julien precisa tolerar os seminaristas. Pois consegue 'brilhar' aos olhos dos padres. Recebe elogios até do Diretor. O que somente aumenta o 'despeito' dos colegas. Mas ele mantem a dignidade, mesmo ironizado pelos colegas (que não hesitam em chamar o 'imodesto' de 'Martin Luther') Aqui, uma cena com pedreiros lembra muito a cena dos coveiros em “Hamlet”, de W Shakespeare. É época de convocação militar, de testes para prosseguir os estudos, e preocupado Julien anda pelos pátios. Ele encontra os pedreiros que discutem a questão da ascensão social e dos feitos de Napoleão, agora tão injustamente desprezado.
Conquistando a confiança dos padres, Julien entra nos meandros e redemoinhos da política religiosa. O Narrador nos conduz aos círculos internos do sacerdócio, onde a política é mais 'maquiavélica' do que 'cristã'. Julien deixa admirados o bispo e os clérigos quando mostra os conhecimentos sobre poetas latinos humanistas – Horácio, Virgílio, Cícero – que são considerados pagãos. (Nessa época, o seminarista recebeuma carta anônima, contendo uma ordem de pagamento no valor de 500 francos, e fica a imaginar que vem da Senhora de Rênal.)
Devido as 'intrigas palacianas' do Clero, onde os jesuítas não suportam os 'jansenistas' (ditos 'calvinistas', porque pregavam a 'predestinação') o diretor do Seminário, o abade Pirard, solicita demissão. Julien perde, assim, o 'protetor'. Já, em Paris, o poderoso Marquês de La Mole quer ser Duque. Atarefado, afundado em questões judiciárias, negócios e negociatas, o nobre precisa de um secretário. Até oferece o cargo ao abade ex-diretor, mas este recusa (um valor que seria de 8 mil francos de salário, ou até o dobro) É então que o abade sugere o inteligente Julien Sorel, que será certamente perseguido caso continue no seminário de Besançon.
Surpreendentemente, tal personagem (Julien) não é estranha ao Marquês. (O abade até acha que Julien é um bastardo – 'fils naturel' – de um ricaço, e não seja o filho de um carpinteiro) O nobre aceita a indicação, e dias depois Julien recebe uma carta (disfarçada) do abade Pirard, e depois vai se apresentar ao bispo (aquele que adora poetas latinos) Julien, perplexo, logo começa a se imaginar em Paris, “le théatre des grandes choses” (o teatro das grandes coisas).
“A felicidade de ir a Paris, que ele imaginava povoada de pessoas de espírito intrigante e hipócrita, mas bem mais refinados que o bispo de Besançon e o bispo de Agde, a se eclipsarem aos seus olhos.” (“Le bonheur d'aller à Paris, qu'il se figurait peuplé de gens d'esprit fort intrigants, fort hypocrites, mais aussi polis que l'évêque de Besançon et que l'évêque d'Agde, éclipsait tout à ses yeux.” cap. XXX)
Ah, quantos romances franceses não tratam do herói provinciano que vai conhecer – e enfrentar – a grande metrópole parisiense! Temos o Jean Valjean de “Os Miseráveis”, temos o Lucien Chardon de “Ilusões Perdidas”, temos Georges Duroy de “Bel-Ami”, dentre outros. Quantos romances mineiros não tratam o do mesmo assunto? O antagonismo província X capital, ou campo X cidade. Vejamos “Totônio Pacheco”, ou “Amanuense Belmiro”, ou “João Ternura”, ou “O Encontro Marcado”, ou “O Grande Mentecapto”, ou “Hilda Furacão”, dentre outros.
Antes de viajar para Paris, o jovem deseja rever a Senhora de Rênal. Ele retorna a Verrières, e vai se explicar ao abade Chélan. Mas o interesse de Julien está no cair da noite: ele compra uma escada e vai bater à janela da madame! Ela, cheia de remorsos, fica perplexa e horrorizada. Não é a mulher amorosa que o jovem amante esperava encontrar. “Assim, a ausência destroi certamente todos os sentimentos humanos”, ele se magoa. Pregando a fidelidade, a Senhora faz penitência diante de deus, mas o que não impede que a proximidade, a penumbra do aposento, faça renascer a velha intimidade de 'amigos'. Na escuridão ressurgem as confidências. Quem terá enviado a carta anônima (com os 500 francos)? Se não foi a madame... [Nós, os leitores, sabemos que foi o abade Frilair, admirado com o conhecimento de latim do jovem seminarista]
Julien abafa a frieza de Madame com o anúncio de sua partida para Paris! “Eu abandono um lugar onde já fui esquecido até por quem eu mais tenho amado na minha vida, e eu a deixarei para não mais a rever. Eu vou para Paris...” (p. 262)
A Senhora esquece o remorso (e o olhar de deus) e abraça o jovem que já se levanta em despedida.... Julien consegue convencer a madame a deixar que ele se esconda no quarto dela durante todo o dia. A despedida faz reviver o afeto. Mas quando um criado descobre a escada, um alarme de 'pega ladrão' percorre a mansão dos Rênal. Antes de ser surpreendido, Julien pula a janela e foge, com tiros de fusil quase lhe estourando nos calcanhares. Assim, grotescamente, finda o Livro Primeiro.
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O Livro II
Nessa parte de “Le Rouge et le Noir”, encontraremos Julin Sorel em Paris, convivendo entre o clero, a alta-burguesia e os nobres da Restauração (aqueles que sobreviveram e/ou foram exilados durante a Revolução Francesa, 1789-1799) Julien segue rumo a capital francesa, ouvindo as conversas dos viajantes na estrada. Os provincianos abandonam a 'paix des champs' (a paz dos campos) – expressão deveras irônica – para viver uma 'vida tranquila' na cidade grande – vida tranquila? ou vida anônima? Sem o olhar constante dos vizinhos... Afinal, no campo não há anonimato.
Diz um viajante na estalagem (com tendência 'bonapartista'), “Você quer viver no campo sem servir às paixões dos teus vizinhos, sem mesmo escutar a tagarelice deles. Que erro!” (“Tu veux vivre à la campagne sans servir les passions des tes voisins, sans même écouter leurs bavardages. Quelle faute!..” p. 276) E o outro viajante responde (com um tom 'pseudo-liberal'), “Eu vou buscar a solidão e a paz campestre no único lugar onde estas existem na França, num apartamento de quarto andar, junto a Champs-Élysées” (“Je vais chercher la solitude et la paix champête au seul lieu où elles existent en France, dans un quatrième étage, donnant sur les Champs-Élysées.” p. 276)
Segue-se todo um debate sobre Napoleão: feridas abertas! Falar sobre o Imperador depois da Restauração (1815-20) era o mesmo que - no século 20 – falar sobre o Hitlerismo, depois da Segunda Guerra Mundial. Sempre cria polêmica – uns a favor, outros contra. Napoleão abafou a Revolução – com outra Monarquia. Fez outros barões e condes, fez concordata com os clérigos. Aqui o romance clássico é um testemunho: o que aconteceu nos quinze anos após a sangrenta Batalha de Waterloo (junho de 1815) e a queda de Napoleão (exilado em outubro de 1815). A alta-burguesia, os pseudo-liberais, os fidalgotes provincianos (hobereaux) do Império Napoleônico... E o Narrador interrompe a discussão.
O mesmo Narrador que se contem para não ironizar a chegada de Julien à Paris, “Vou me privar de contar as exaltações de Julien ao chegar a Malmaison” (“Je me garderai de raconter les transports de Julien à la Malmaison” p. 278) e “À tarde, Julien hesita bastante antes de adentrar o espetáculo, ele tinha ideias estranhas sobre esse lugar de perdição”(“Le soir , Julien hésita beaucoup avant d'entrer au spectacle, il avait des idées étranges sur ce lieu de perdition.” (p. 279) e “Eis me aqui no centro da intriga e da hipocrisia” (“Me voici donc dans le centre de l'intrigue et de l'hypocrisie!” p. 279)
O abade Pirard explica a Julien o trabalho junto ao Marquês de La Mole, “l'un des plus grands seigneurs de France”, um dos maiores senhores da França, e o Abade exige a honestidade de Julien, que se mostra indignado quando o abade insinua uma possível desonestidade. Afinal, estamos entre nobres! A nobreza dos La Mole, o Marquês é par da França, e o filho Norbert, Conde de La Mole, é 'chef d'escadron de hussards', um militar, exímio praticante de esgrima, etc. Ou seja, estamos no topo da pirâmide social: e o abade a falar de desonestidades! (Ó, pobre Julien Sorel! Não sabes em que matilha de lobos adentraste...!) E o abade bem que avisa ao ex-discípulo: não faça inimigos meio aos poderosos!
E Julien anda admirado ao adentrar a maison do Maquês de La Mole. O Narrador até solicita a cumplicidade do Leitor, pois “até a você tem parecido, ó meu leitor, também mais tristes que magníficos” (“vous eussent semblé, ô mon lecteur, aussi trsites que magnifiques”, p. 285) O Narrador aqui se mistura a Narrativa e aos pensamentos da personagem, para mostrar o 'deslocamento' do Protagonista. Luxo e grandiosidade intimidam o influenciável Julien. Afinal, ele entra no mundo. “Entrada no mundo”, é o título do capítulo II. Mas, qual mundo? O ambiente da nova Babilônia (“nouvelle Babylone”), a Paris, a grande capital cosmopolita do século 19.
Ao encontrar a Biblioteca do nobre, Julien não pode evitar um êxtase, visto que “ele contemplava com arrebatamento as lombadas brilhantes dos livros: Eu poderei ler tudo isso! Ele se dizia.” (“il contemplait avec ravissement le dos des livres: Je pourrai lire tout cela, se disait-il.” p. 288) e “ele quase ficaria louco de alegria ao encontrar uma edição de Voltaire.” (“il faillit devenir fou de joie em trouvant une édition de Voltaire.”, p. 288) Na mansão do Marquês, Julien encontra o bispo d'Agde, que não reconhece o 'provinciano'. E encontra os belos olhos (beaux yeux) frios de Mathilde, a filha do nobre. “Ao fim do jantar, Julien encontra uma palavra para descrever o tipo de beleza dos olhos da Senhorita de La Mole: são cintilantes, ele diz a si mesmo” (“Vers la fin du repas, Julien trouva un mot pour exprimer le genre de beauté des yeux de Mlle de La Mole: ils sont scintillants, se dit-il.” p. 291)
No mais, Julien admira-se com o jovem Conde Norbert e evita o ressentimento – mesmo aceitando que o Conde é mais rico e nobre do que ele, um provinciano. Julien aproveita os jantares do Marquês para demonstrar os conhecimentos de Latim (e poetas latinos) que tanto deixaram admirados os burgueses provincianos e os religiosos – Julien não tem posses, não tem poder – mas tem ERUDIÇÃO. Muita erudição humanista, cultura da Roma antiga. E sabe discutir questões do tipo: “saber se o poeta Horácio foi pobre ou rico”. Porém, julien nada conhece sobre os 'contemporâneos', por exemplo, o romântico e épico Lord Byron, “Julien nada percebia destes nomes modernos, tais como Southey, Lord Byron, George IV, que ele ouvia serem pronunciados pela primeira vez.” (“Julien ne comprenait rien à tous les noms modernes, comme Southey, Lord Byron, George IV, qu'il entendait prononcer pour la primière fois” p. 292/93)
A medida que a narrativa avança, os nomes nobres são, vez ou outra substituídos, quando Conde de La Mole dá lugar a Norbert, ou Senhorita de La Mole, a Senhorita Mathilde, ou apenas Mathilde. Esta variação de 'nomeação' é uma sutil evidência da aproximação entre Julien e os jovens nobres. A Biblioteca é um 'lugar neutro', onde as cenas podem ser mais 'autênticas' e 'românticas' do que no ambiente cortesão dos jantares. No mais, a filha do nobre lê obras de Voltaire! (obviamente que às ocultas) e encontra o novo secretário sempre mergulhado nos grossos alfarrábios da Biblioteca.
Quanto ao Conde Norbert, a vontade do jovem nobre é fazer Julien abandonar o 'claustro' da Biblioteca, ao convidar o 'provinciano' para passeios à cavalo. A inexperiência de Julien causa quedas acidentais. O fato, narrado casualmente, durante o jantar, desperta o riso (logo reprimido) da Senhorita Mathilde. Aon contrário de atrair desprezo, o episódio cria bom humor entre os nobres, seus convivas e o recém-chegado secretário. Ocorrem, depois, novos passeios à cavalo, e nenhum outro acidente.
E os jantares do Marquês sempre recebem novos convivas, para distraírem os nobres – principalmente a Marquesa – e manter o 'glamour' do salão – isto é, a bajulação constante da generosidade nobre. Pode-se falar livremente, desde que não se ofenda os símbolos do Poder. Tudo é perimtido – desde que seguindo as 'normas' (a etiqueta social) Afinal, 'liberdade' não passa de 'slogan'. [Assim, também hoje em dia, nestes tempos reacionários, não é de 'bom-tom' falar de 'causas sociais', 'socialismo', 'igualitarismo', etc, na hora do chá das senhoras.]
No salão da nobreza, “a menor ideia vivaz pareceria uma grosseria”. Segundo o 'bom tom', todos se entediavam – temiam falar algo que atraísse a suspeita de 'libre-pensamento'. Os convivas se esforçam por adular os nobres – a espera de recompensas, de cargos políticos ou eclesiásticos. Julien morre de tédio com a hipocrisia dos salões. [Quase um século depois, teremos as descrições memoralísticas entre saudosistas e risíveis de Marcel Proust, em “Em Busca do Tempo Perdido”, “À la Recherche du temps perdu”) Julien morre de tédio nestes jantares - “É a parte mais penosa do meu trabalho. Eu me entediava menos lá no seminário” desabafa o secretário com o abade. Já o abade – verdadeiro 'parvenu' (arrivista) se escandaliza ao ver o jovem desprezar semelhante 'honra'. A senhorita Mathilde, ao buscar um livro na Biblioteca, ouve a conversa.
Continua...
jan-mar/10
como pode uma bela resenha de uma obra magnífica como esta não ter comentário algum?
ResponderExcluirparabenizo e festejo seu trabalho e seu blog!