sábado, 10 de abril de 2010

sobre A Tempestade (W Shakespeare)








sobre “A Tempestade” (The Tempest, 1611 )
peça teatral (comédia) de William Shakespeare
(GBR, 1564-1616)

O amor enquanto desencontros e encontro

O 'enredo' de A Tempestade é até simples. Mas um 'simples' na escrita do Sr. Shakespeare é sempre uma complexa obra-prima, como sempre se entusiasma o Sr. Bloom. Aqui temos outro caso de ambição e traição. O irmão soberano que tem o trono usurpado pelo irmão ambicioso (outros exemplos é o Rei Hamlet morto pelo irmão Claudius, e o ambicioso bastardo Edmund atraiçoando Edgar em King Lear) Antonio, o irmão de Próspero, o Duque de Milano, usurpa o poder exila o Duque e a filha deste, que se abriga numa ilha, onde habita um ser grotesco, filho de bruxa. Doze anos depois, quando a frota do usurpador navega às costas da ilha, o ex-duque, agora um poderoso mago, provoca uma tempestade, com a ajuda de um 'espírito da natureza' e interfere para consertar o erro (e daí termos toda a peça dramática)

Enquanto Próspero se deixa fascinar por metafísicas e magias, e assim a descuidar da 'coisa pública', do papel de soberano, seu irmão Antonio conspira para usurpar o trono do Ducado de Milano – com uma cooperação interesseira do Rei de Napoli, o pai de Ferdinando. Antonio decide exilar o irmão deposto. Mas Próspero recebe a ajuda de Gonçalo, que resguarda os livros que seguem com o exilado. E estes livros de magia serão a companhia de Próspero, a evoluir para um grande mago.

O poder da magia: Ariel – o espírito do ar – serve a Próspero pois confia que o mágico vai lhe conceder a liberdade prometida. Simboliza aquele que age por recompensa. Enquanto isso, Caliban – o espírito da terra – serve a Próspero por temer os poderes do mágico. Até porque Caliban reconhece o poder da magia! Pois ele é filho da bruxa Sicorax... Ele é o nativo a ser escravizado pelo invasor, e que obedece por temor. (Tanto é assim que Caliban não hesita em 'conspirar' com dois tripulantes náufragos para usurpar o 'domínio' de Próspero na ilha... Vejam cena II, do Ato 2, e cena II do Ato 3)

A tempestade mágica se abate sobre o navio, onde a tripulação e os nobres viajantes trocam blasfêmias e impropérios, loucos de medo ao divisarem o fim nos abismos tormentosos. Tanto tripulantes rústivos quando os engomados nobres se debatem meio as chicotadas das ondas e cada um tenta salvar sua pele. A cena é descrita vivamente por Ariel – responsável pela confusão toda – e de forma irônica. (Vejam a cena II, do Ato 1) Na hora do perigo, todos os homens, de todas as castas, são iguais.

Ao se perceberem salvos da tempestade, numa ilha paradisíaca de cenário luxurioso, os nobres se perdem em devaneios, imaginando a ilha desabitada, enquanto o Rei de Napoli geme de desespero, crendo na morte do filho Ferdinando (sabemos que o moço está em andanças no outro lado da ilha...) Meio a toda esta 'dicotomia' entre tragédia e comédia, temos a 'utopia' libertária de Gonçalo – cena I, ato 2 – que, imaginando-se dono da 'ilha desabitada' diz criar uma sociedade tão harmoniosa a ponto de 'suplantar' a Era de Ouro, o paraíso terrestre, ou El Dorado, ou a “era da espiga” (como diz um dos poemas de Garcia Lorca)

I' the commonwealth I would by contraries
Execute all things; for no kind of traffic
Would I admit; no name of magistrate;
Letters should not be known; riches, poverty,
And use of service, none; contract, succession,
Bourn, bound of land, tilth, vineyard, none;
No use of metal, corn, or wine, or oil;
No occupation; all men idle, all;
And women too, but innocent and pure;
No sovereignty;--

Na minha comunidade eu executaria
Todas as coisas ao contrário; pois não
Aceitaria comércio, nem magistrados;
Nada de letrados, riquezas, pobreza,
Nenhum tipo de serviço, contrato, sucessão.
Fronteiras, divisas, títulos, lavouras, nada;
Nenhum uso de metal, grãos, vinho ou óleo;
Nenhuma ocupação; todos em ócio, todos;
E as mulheres também, inocentes e puros;
Sem dominação; -

All things in common nature should produce
Without sweat or endeavour: treason, felony,
Sword, pike, knife, gun, or need of any engine,
Would I not have; but nature should bring forth,
Of its own kind, all foison, all abundance,
To feed my innocent people.

Todas em coisas em comum a natureza produziria
sem suor ou esforço: traição, criminalidade,
violência, arma, punhal, uso de engenhos,
nada disso teria; mas, a natureza traria tudo,
por si mesma, toda colheita, toda fartura,
para alimentar meu povo inocente.

I would with such perfection govern, sir,
To excel the golden age.

Com semelhante perfeição, eu governaria,
meu senhor, até superar a Era de Ouro.

Claramente, o objetivo aqui não é resumir a peça do Grande Bardo, mas ressaltar algumas imagens, tal como esta da 'ilha desabitada' enquanto lugar possível da Utopia – o ansiado começar de novo... Algo que certamente encontramos em Robinson Crusoé, quando ele constrói sua nova sociedade de um homem só na ilha desabatada no calor dos Trópicos.

Em “A Tempestade” também temos o 'amor simultâneo' de Ferdinando e Miranda, ao estilo “Romeu e Julieta”, como é evidente na cena I do ato 3,

Miranda: Do you love me?
Ferdinand:
O heaven, O earth, bear witness to this sound
And crown what I profess with kind event
If I speak true! if hollowly, invert
What best is boded me to mischief! I
Beyond all limit of what else i' the world
Do love, prize, honour you.
Miranda: I am a fool
To weep at what I am glad of.
Prospero:
Fair encounter
Of two most rare affections!
Heavens rain grace
On that which breeds between 'em!

Miranda: Você me ama?
Ferdinando:
Ó céus, ó terra, sejam testemunhas
do que digo e coroem com boa sorte se
eu professo com verdade! Se for falso,
invertam o que é bom em desventura!
Eu, além de todo limite que há no mundo
amo, honro e idolatro você!
Miranda: Sou uma boba
A lamentar o que me faz feliz.
Próspero:
Belo encontro de duas raras afeições!
Que os céus derramem graças
Sobre os frutos da união entre eles!

Miranda, deslumbrada, ao ver agora tão povoada a sua longa solidão, se refere a um 'admirável mundo novo' (“brave new world”), na cena I, do ato 5,

O, wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in't!

Ó maravilha!
Quantas criaturas adoráveis existem aqui!
Quão belos são os humanos! Ó admirável mundo novo,
onde habitam semelhantes pessoas!

e é justamente esta 'alegoria' que Aldous Huxley usa para seu clássico da 'distopia', publicado em 1934.

Para Miranda, em sua ingenuidade favorecida pelo isolamento, na Beleza não há Maldade. E o ideal de toda Arte é a criação da Beleza. “A tristeza é a chaga em tudo o que belo”, Temos aqui um 'prenúncio' do que será o ideal da 'l'art pour l'art' do século 19, a Arte enquanto símbolo da Beleza (ideal que os modernistas destruíram...) Temos também uma influência sobre o Dorian Gray , de Oscar Wilde, que acredita ocultar sua perversidade sob uma máscara de Beleza. Uma pessoa tão bela não pode fazer o mal, ou tolerar a perversidade (e transfere a 'Feiúra da Maldade' para o belo quadro )

Outra referência (ou: outra obra que sofre com a 'síndrome da influência' em relação ao Bardo) é o romance “The Collector” (1963, O Colecionador) do britânico John Fowles, onde o sequestrador da bela Miranda, mocinha universitária que é tratada tal um belo espécime de colecionador, ele se imagina um Ferdinando a conquistar o amor de sua prisioneira. Mas o que temos é uma esperada tragédia. (Nada que Freud e a 'síndrome de Estocolmo' não explique...)

Sensivelmente, a peça dramática alcança ápices de imagética e metalinguística na cena I do Ato 4, com a digressões sobre a magia (e o encanto da própria encenação!) onde Próspero descreve para o fascinado Ferdinando a magia, a onipresença do 'mundo dos sonhos', de cujo matéria até nós somos feitos,

You do look, my son, in a moved sort,
As if you were dismay'd: be cheerful, sir.
Our revels now are ended. These our actors,
As I foretold you, were all spirits and
Are melted into air, into thin air:
And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp'd towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Ye all which it inherit, shall dissolve
And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep. Sir, I am vex'd;
Bear with my weakness; my brain is troubled:
Be not disturb'd with my infirmity:
If you be pleased, retire into my cell
And there repose: a turn or two I'll walk,
To still my beating mind.

Você parece comovido, meu filho,
Como se assustado: anime-se, senhor.
Nossas diversões findam. Nossos atores
Como já disse, eram todos espíritos e
Se dissolveram no ar, em pleno ar:
E, tal a fábrica infundada desta visão,
As torres até o céu, os palácios altivos,
Os templos solenes, o próprio Globo,
E tudo que nele há, deverá dissolver-se
E, igual a esta apresentação dramática,
Sem deixar vestígios. Nós somos feitos
Da matéria dos sonhos, e nossa vida curta
É envolta com o sono. Senhor, estou agitado;
Perdoe-me a fraqueza; minha mente perturba-se,
Não se incomode com a minha enfermidade.
Se lhe agrada, recolha-se e repouse:
Pois vou dar umas voltas, até acalmar
minha mente sem sossego.

Depois que o amor de Miranda e Ferdinando restaura a 'ordem das coisas' – a amizade entre os soberanos de Milano e Napoli (a lembrar que na época era digna de comentário a 'desunião dos povos italianos', num século em que os povos europeus formavam seus “Estados-Nações”) - Próspero, tendo perdoado os inimigos de outrora, liberta Ariel e renuncia à magia. O 'canto de cisne' de Próspero (no Epílogo) pode ser o 'canto de cisne' de William Shakespeare – quem quer que ele tenha sido – pois “A Tempestade” é considerada a última peça dramática do Grande Bardo.

...or else my project fails,
Which was to please. Now I want
Spirits to enforce, art to enchant,
And my ending is despair,
Unless I be relieved by prayer,
Which pierces so that it assaults
Mercy itself and frees all faults.
As you from crimes would pardon'd be,
Let your indulgence set me free.

... ou o meu plano falha,
Que era agradar. Agora eu
Sem espíritos para dominar
E arte para encantar,
Meu fim é o desespero,
A menos que eu seja aliviado
Pelas preces que vencem
a própria compaixão e liberta
de todas as faltas.
Como seriam dos crimes perdoados,
então a vossa indulgência me liberte.

jan/fev/10

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