sábado, 17 de abril de 2010

sobre O Vermelho e o Negro - STENDHAL






sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)


Literatura enquanto Obra Clássica



(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami)



O Romance da Vitória do Mundo Burguês
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Por que ler os Clássicos? Pergunta que sempre empolgou Borges e Calvino, literatos que usaram a Literatura para analisar a Literatura, nos aspectos de intertextualidades e influências (que inspiraram escritos teóricos de Bakhtin, Kristeva e H Bloom) A Obra Clássica: obra memorável e de reconhecido valor. Por que? Primeiramente, pelo fato de ser um 'testemunho de uma época', o “romance é um espelho”, escreveu o próprio Stendhal (1) Encontramos uma radiografia (estetizada, porém) de uma certa época, de uma cultura de uma dada sociedade.

O 'testemunho de época' seria uma referência externa. Mas e a Obra em si-mesma? Então considera-se a riqueza artística, a qualidade, a linguagem, as peripécias narradas, etc. É um crítica intrínseca para detectar um 'valor literário' atemporal. Seja um valor de Beleza, de Denúncia, de Experimentalismo. (Assim, o anti-clássico 'Ulisses' tornou-se um 'clássico' entre as obras de experimentações linguísticas...) Depois, na questão da intertextualidade e da influência, pode-se pesquisar quais as Obras posteriores – e não apenas obras literárias! - que foram influenciadas e inspiradas – por homenagem, paródia, ou quase-plágio – pela Obra dita 'clássica'.
Neste ensaio pretende-se uma leitura atenta de uma Obra Clássica. Tanto pela referência externa ('testemunho de época') quanto pelo intrínseco ('valor literário' a influenciar os demais). Publicado em 1830, antes da nova onda de Revoluções na Europa (que seguiram até 1848/49), o romance “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et Le Noir) de Stendhal (pseudônimo de Henry-Marie Beyle) representa um exemplo de clássico, reconhecido e louvado.

O romance de Stendhal seria baseado num 'caso real', o chamado caso Berthet, acontecido em 1827, com a execução de um criminoso, Antoine Berthet, de origem pobre, mas tendo cursado um seminário, por influência de um cura. Tornou-se preceptor de uma família, seduziu a Senhora, virou amante, e depois precisou fugir. Depois de um tempo em outro seminário, foi ser preceptor em outra família, ainda mais rica, onde seduzia a filha do Senhor. Não conseguindo 'dar o golpe', por intervenção da antiga amante, Berthet vai se vingar. Preso, é logo executado, aos vinte e cinco anos.

Na cidade francesa de Verrières, no Franco-Condado (Franche-Comté), encontraremos Julien, um jovem inflado de ambição que vai 'jogar' literalmente sua vida entre o 'vermelho' dos sonhos bélicos – as heróicas campanhas napoleônicas – e a encenada vocação de seminarista, futuro padre, com sua batina negra. O título evoca o ' jogo de azar' onde a bola na roleta de cassino gira, saltitando entre o vermelho e o preto.

O prefeito de Verrières, Monsieur le maire M. de Rênal, de família espanhola, foi industrial, e governa para os proprietários, para os conservadores. Entre eles o dono da madeireira : vieux Sorel (ou père Sorel) , o pai de Julien Sorel, 'notre héros' (nosso herói). De Rênal tem como antagonista político (e depois veremos que também 'amoroso') o diretor da casa de detenção (directeur du dépôt de mendicité) M. Valenod e no campo religioso o eclesiástico enviado de Besançon: M. le vicaire Maslon.

A fala predileta do Prefeito, “ne rapporte pas de revenue” (contar nada além do rendimento) é o lema do capitalismo na aurora do século 19: “contar os rendimentos é a razão que decide tudo nessa pequena cidade que vos parece tão bonita” (“rapporter du revenu est la raison qui décide de tout dans cette petite ville qui vous semblait si jolie.” p. 29) Basicamente, o 'sensato' é fazer algo porque é útil, lucrativo, e não porque seja belo e benéfico.

A esposa do prefeito, a Madame de Rênal, com seus 28 anos (casou aos 16 e o filho mais velho tem 11 a .) “A senhora de Rênal parecia uma mulher de trinta anos, mas ainda muito bonita” (“Mme de Rênal paraissait une femme de trente ans, mais encore assez jolie.”) A singela Senhora de Rênal, sem perceber o sucesso da beleza da mulher de trinta anos sobre os homens da província, “Se ela tivesse percebido esse tipo de sucesso, a Senhora de Rênal teria ficado bem embaraçada. No coração ela jamais havia abrigado nem a sedução, nem a afetação.” (“Si elle eût appris ce genre de succès, Mme de Rênal em eût été bien honteuse. Ni la coquetterie, ni l'affectation n'avaient jamais approché de ce coeur”)

O Narrador não hesita em tecer todo elogios à virtude da Senhora de Rênal. “Era uma alma ingênua, que jamais ousara julgar o marido, e a pensar que ele se incomodaria. Ela suponha, sem o dizer, que entre marido e mulher não deveria haver mais que bons relações.” (“C'était une âme naïve, qui jamais ne s'était élevée même jusqu'à juger son mari, et à s'avouer qu'il l'ennuyait. Elle supposait, sans se le dire, qu'entre mari et femme il n'y avait pas de plus douces relations.” p.36)

Encontramos um 'cura virtuoso' (cap. III/ Le Bien des Pauvres), o curé Chélan, que é um dos 'pais intelectuais' de Julien Sorel, como veremos. “Ao ler a carta que lhe escreveu o senhor Marquês de La Mole, par da França, e o mais rico proprietário da província, o cura Chélan ficou pensativo” (“En lisait la lettre que lui écrivait M. Le marquis de La Mole,pair de France, et le plus riche proprietaire de la province, le curé Chélan resta pensif.”)

O ambiente em torno de Julien é o do ódio dos proprietários contra os liberais ('libéraux') que participaram das campanhas de Bonaparte.

A 'estória' começa mesmo no Capítulo IV, quando o Senhor de Rênal resolve contratar um preceptor para cuidar da educação espiritual de seus filhos. Sabendo, através do cura Chélan, da inteligência e piedade de um dos filhos do madeireiro Sorel, vai negociar os 'serviços' do jovem Julien Sorel. O pai Sorel é um 'fripen', um velhaco (“o ar de falsidade e quase de velhacaria natural estava na cara”, “l'air de fausseté et presque de friponnerie naturel à sa physionomie...”)

O père Sorel vai chamar o filho Sorel, que está lendo no alto da serralheria, “no lugar de vigiar atentamente a ação de todo o mecanismo, Julien estava lendo. Nada causava mais desgosto ao velho Sorel; ele até perdoaria a Julien seu físico delicado, podo apropriado para o trabalho pesado, e tão diferente dos irmãos mais velhos, mas essa mania de leitura para ele era odiosa, ele mesmo que sequer sabia ler” (“Au lieu de surveiller attentivement l'action de tout le mécanisme, Julien lisait. Rien n'était plus antipathique au vieux Sorel, il eût peut-être pardonné à Julien sa taille mince, peu propre aux travaux de force, et si différence de celle ses aînes, mais cette manie de lecture lui était odieux, il ne savait pas lire lui-même.” p. 39)

Julien lia, apesar do barulho das serras!, o adorado livro “Mémorial de Sainte Hélène”, que diziam ter sido 'ditado' pelo Imperador exilado. O Narrador aprecia mostrar o contraste entre o leitor atento e a fúria dos maquinismos. E deixa-se descrever o 'herói', “era um pequeno jovem entre dezoito e dezenove anos, de aparência frágil, com traços irregulares, mas delicados, e um nariz aquilino.” (“C'était un petit jeune homme de dix-huit à dix-neuf ans, faible em apparence, avec les traits irréguliers, mais délicats, et un nez aquilin.” p. 40)

Acostumados ao trabalho pesado, a família Sorel despreza o 'espiritual' Julien, pensativo e pálido, “extrêmement pensif et sa grande pâleur”, por isso “objeto do desprezo de todos na família” e “desprezado por todo mundo, como um fraco” (“objet des mépris de tous à la maison”; “méprisé de tout le monde, comme un être faible”)

O Sr. Sorel quer saber de onde Julien conhece a família de Rênal, principalmente a Senhora de Rênal. Por que o prefeito desejaria como preceptor o seu filho viciado em livros? Mas pressionado a ser um 'doméstico', Julien pensa em fugir até Besançon, e engajar-se como soldado. (Suas aspirações influenciadas pelo glamour do ex-Imperador Napoleão...) Julien vive entre um destino de soldado e o de seminarista, entre a Bíblia e o “Memorial de Santa Helena”. Mas, enquanto isso, o Sr. Sorel se assegura que Julien 'será bem tratado', além de que o prefeito pretende financiar o hábito para o 'futuro padre'. Assim, toda a vida de Julien é decidida, a 400 francos por ano, 35 francos por mês. (Não sem uma árdua negociação entre dois sovinas, o madereiro e o prefeito)

Julien, então, vai trocar seu culto por Napoleão pelos 'sentimentos piedosos' e se ocupa em aprender a bíblia latina, emprestada pelo cura Chélan. Mas, tudo isso será uma 'aparência', pois interiormente Julien continua imaginativo, vivendo de 'aspirações grandiosas', pois “desde sua primeira infância, ele tinha momentos de exaltação” (“Dés sa première enfance, il avait eu des moments d'exaltation”)

E Napoleão simboliza justamente essa 'grandiosidade', a superação da condição humilde até a glória do poder. (Napoleão Bonaparte foi um tenente que chegou a Imperador da França, no início do século 19. Mas um exemplo mais próximo, na primeira é o triste fenômeno do nazista Hitler, um cabo austríaco que chegou a Comandante-em-Chefe das Forças Armadas alemãs numa 'guerra total' contra os anglo-saxões e contra os russos)

Mas na época da 'Restauração', o que dá lucro é ser padre, daí 'é preciso ser padre' – tem renda maior que de 'general-de-divisão'! Por que? A Monarquia de volta ao poder precisa restaurar o duplo poder – nobres + clero – e muitos clérigos, em todos os níveis haviam sofrido com a Revolução Francesa, duas décadas antes. Com a debilidade do clero, era preciso 'incentivar' os jovens a se dedicarem a 'carreira' (pomposamente chamada de 'vocação') de sacerdote.

Quando Julien chega a casa dos Rênal, ele se deslumbra com a belza da Senhora de Rênal, e ela se vê perplexa diante da juventude do novo 'preceptor'. Este fica 'desarmado' diante da gentileza e cordialidade dela, que prontamente lhe outorga o título de 'monsieur'. Seduzido, Julien promete ser paciente com as crianças, “Não tenha medo, Senhora, eu vos obedecerei em tudo” em seguida, o jovem 'seminarista' surpreende a todos, ao recitar trechos inteiros da Bíblia latina.

Seguem-se as “afinidades eletivas”, a confiança mútua e gradual entre a Senhora de Rênal e o jovem preceptor, quando este vai sendo apresentado (e habituando-se) a 'haute société' (alta sociedade), os ricos proprietários burgueses e donos-de-terras. Logo cria inveja por sua inteligência, criando ciúmes entre os empregados da Mansão. Mas a 'pacifiicadora' é a Senhora, sempre amável. Sabemos que ela teve educação religiosa, com os jesuítas, e desde jovem foi adulada por pretendentes, pois ela é herdeira de grande fortuna. Mas ela sempre achou os homens seres grosseiros, ambiciosos, insensíveis, hipócritas, até a chegada de Julien, com aqueles ares de jovem pobre mas letrado, com inteligência sedutora, que conquista aos poucos. (No mais, o Narrador explica que o amor na província é mais 'lento', gradual)

Em contraponto ao 'liberalismo' de Julien, a Senhora de Rênal detesta tudo o que parece 'cheirar a' liberalismo, ou espírito revolucionário, pois julga tudo isso 'profano', coisas de infiéis 'jacobinos'. (O mesmo nojo que depois os socialistas – e os comunistas – vão inspirar nos liberais, quando estes subirem ao poder depois das Revoluções de 1830 e 1848. Os liberais – conservando a 'piedade cristã' não hesitam em denominar os socialistas de descrentes, profanos, demoníacos)

Meio a semelhantes contrastes, a vida de Julien resvala em hipocrisia e negociação, mantendo sua aspiração ambiciosa, a desprezar aqueles que vivem ao seu redor. Julien, na verdade, somente era sincero em sua admiração ao heróico Napoleão. A cada humilhação, o jovem mantem seu ar de 'supériorité intellectuelle', mas ainda a se sentir desconfortável na presença de mulheres, ainda mais a Senhora, pois ele está sempre sufocada pela imaginação romanesca (isto é, a idealização da mulher)

Em público ele mantém o ar sério do hábito de seminarista, ou então uma eloquência febril, mas quando junto da Senhora de Rênal, ele mantem-se em embaraçoso silêncio. O Narrador descreve cenas onde o que mais se ressalta é a hipocrisia – onde se restaura todo a 'desigualdade' de classes (e de castas) que existia antes da Queda da Bastilha.

Os burgueses assistem a restauração da nobreza e do clero, mas sabem manter os 'negócios', e desejar ambos os mundos – o material e o espiritual. Viver bem, dar esmolas, beijar a mão do padre. (Ainda que o cura Chélan avise a Julien que isso é ilusão. É preciso escolher em qual mundo 'fazer fortuna' – neste mundo ou no outro...) Pois Chélan não acredita que Julien possa ser padre, então é melhor que o jovem se dedique a uma vida de 'burguesia provinciana'. Pode, por exemplo, casar-se com a criada da Senhora de Rênal, e ter uma vida sem ambições. (“Melhor ser um burguês de província do que ser um padre sem vocação”, diz o clérigo)

Julien até reconhece a amizade e a afeição do cura, mas não retribui – o desejo de Julien é vencer a tudo e a todos. O jovem preceptor insiste em 'palavras de uma hipocrisia cautelosa e prudente' e continua a recusar a criada da Senhora – ao mesmo tempo em que a Senhora adoece de tensão (ou ciúmes). Como pode a madame considerar a camareira (femme de chambre) uma rival? Assim a madame assume sua paixão pelo serviçal, um preceptor. O Narrador descreve com fineza psicológica e secura narrativa esse 'novo estado de sensações' da Senhora, “Ingênua e inocente, jamais esta boa provinciana havia torturado a alma, para tentar arrancar um pouco de sensibilidade a qualquer nova nuance de sentimento ou de desventura” (“Naïve et innocente, jamais cette bonne provinciale n'avait torturé son âme, pour tâcher d'en arracher un peu de sensibilité à quelque nouvelle nuance de sentiment ou de malheur.” p. 73)

A 'estória' é simples, mas o estilo descritivo e psicológico do Narrador é magistral, ele descreve o cenário e apresenta a ação. Tem uma escrita pouco 'floreada', até 'seca', sucinta, sem muita retórica. Volta e meia, o Narrador refere-se a própria função – afinal, trata-se de um romance – quando diz “Como a nossa intenção é de não elogiar ninguém...” (“comme notre intention est de ne flatter personne...”) ao leitor que se indaga se ele, o Narrador, está do lado do hipócrita, mas complexo, Julien, ou da sincera, mas simplória, ingênua, Madame de Rênal.

(Este estilo de Narração deve ser comparado com o de Flaubert, Balzac, Maupassant e Dostoiévski, como bem mostram os estudos e ensaios de Jean-Paul Sartre, em L'idiot de la famille - Gustave Flaubert de 1821 à 1857. )

Enquanto a sedução prossegue, Julien precisa afogar seu 'sentimento de inferioridade' garantindo a afeição da Senhora de Rênal. O jovem preceptor se imagina em batalha pela conquista do afeto da Madame. O que se mostra evidente quando ele exige que ela aceite as mãos dele entre as delas. É aqui o preâmbulo de tantas outras descrições românticas de almas apaixonadas. Claro que antes Julien precisa superar a timidez e a Senhora perder a ingenuidade...

Mas analisando-se bem, além do idílio romântico, Julien não ama a madame, mas quer ter PODER sobre ela. É um jogo onde o 'inferior' domina o 'superior'. O empregado começa a mostrar relaxado e desrespeitoso diante do Senhor de Rênal, o patrão e prefeito, símbolo da Autoridade. O burguês até tolera o preceptor, pois não pretende ver o 'talentoso' Julien servindo ao M. Valenod ou casado com uma serviçal... No mais, os 'da alta sociedade' evitam criar ressentimentos em talentosos e eufóricos jovens das 'classes baixas'. “São tais momentos de humilhação que fizeram os Robespierres” (“ce sont sans doute de tels moments d'humiliation qui ont fait les Robespierre”), desabafa a Madame Derville, a ex-colega da Senhora de Rênal no colégio do Sacré-Coeur, quando, ao hospedar-se na mansão dos Rênal, percebe o 'jogo de forças' que ali é encenado (a mesma 'visão de fora' que nós, os leitores, temos)

As reações são ora veladas ora explosivas – bem ao estilo Romântico – e a Senhora de Rênal se ressente do 'autoritarismo' do marido – sempre disposto a 'humilhar' o preceptor – mostrando que ela não é mais aquela 'esposa ingênua e submissa', que encontramos no início do romance. Enquanto isso, Julien procura ocultar seu lado idealista, ambicioso, liberal, mantendo a atitude hipócrita, sua 'reputação' e 'ar sério'. Para acalmar os ânimos, o Senhor de Rênal só conhece uma solução: o dinheiro. Ele acalma o jovem idealista com promessas de aumento de salário. É o patrão a pensar que todo desgosto do empregado está no 'valor do salário' – esquecendo a dominação e exploração que caracteriza a relação patrão – empregado.

Julien, no entanto, acredita que pelo menos esta 'batalha' ele conquistou: a de ser valorizado (com o aumento dos rendimentos). Falta ainda a Senhora entregar-se à paixão nunca antes experimentada. Mas ela ainda resiste.

O preceptor decide se afastar por uns dias, e vai visitar o velho amigo Fouqué, que tem outros planos para 'vencer na vida', agir como negociador, empresário. (Imaginaria ele que o século 20 seria o dos 'empreendedores'? Julien recusa a oferta de Fouqué para se associarem num negócio que pode ser rentável. “Nada podia vencer a vocação de Julien. Fouqué acabou achando que ele era um pouco idiota.” (“Rien ne put vaincre la vocation de Julien. Fouqué finit par le croire un peu fou.” p. 102) e o próprio Narrador tece considerações psicológicas, recorrendo a entes da mitologia, “Tal como um Hércules, ele encontrava-se não entre o vício e a virtude, mas entre a mediocridade seguida de um bem-estar e todos os sonhos heróicos da juventude.” (“Comme Hercule, il se trouvait non entre le vice et la vertu, mais entre la mediocritè suivie d'un bein-être assuré et tous les rêves héroïques de sa jeunesse.” p. 103)

Após a 'conquista', os desassossegos continuam, pois Julien tem consciência da 'distância social' entre ele e a Senhora (distância esta que vem do nascimento, característica do sistema feudal, contra o qual a Burguesia dizia lutar em prol da 'igualdade'), “Qualquer dia depois, esta mulher vai me lembrar a distância infinita que nos separa, ela vai me tratar como o filho de um serviçal.” (“L'autre jour em partant, cette femme m'a rappelé la distance infinie qui nous sépare, elle m'a traité comme le fils d'un ouvrier.” p. 103) e também “Aos olhos dessa mulher, eu, ele se dizia, eu não sou um bem-nascido” (“Aux yeux de cette femme, mois, se disait-il, je ne suis pas bien né.” p. 105) Aqui, 'bem-nascido' é uma expressão aristocrática, sendo aquele que nasceu no berço da nobreza ou da alta burguesia. Distinção que a Revolução pretendera abolir.

Sempre osciland entre a hipocrisia complexa de Julien e a ingenuidade simplória da Madame, o Narrador volta a destacar a mulher provinciana que é bela, porque é singela e pura, numa vida sem glamour ou emoções fortes (obviamente em contraste com a vida promíscua de Paris... como veremos em Balzac e Maupassant) Sejamos até 'anacrônicos' (pois Stendhal é anterior a Balzac) e digamos que a Senhora de Rênal é uma 'balzaquiana', aquela mulher de 30 anos a convrsar toda a beleza na placidez de caráter, sem que sua maturidade resvale em cinismo.

Belíssimas páginas sobre o jogo de sedução, em avanços e recuos, revelações e resistências entre Julien e a Senhora de Rênal. Julien, influenciado pelas aventuras de Fouqué, deseja ser o 'amante' da madame. As 'maquinações' de Julien são tantas que até 'irritam' o Narrador, “Infelizmente é esta a desgraça de uma civilização excessiva! Aos vinte anos, a alma de um jovem assim educado está a milhas de uma entrega, sem a qual o amor, com frequência, não é mais que o mais aflitivo dos deveres” (“Tel est, hélas, le malheur d'une excessive civilization! A vingt ans, l'âme d'un jeune homme s'il a quelque éducation, est à mille lieues du laisser-aller, sans lequel l'amour n'est souvent que le plus ennuyeux des devoirs.” p. 107)

Incapaz de ser sincero, Julien diz que precisa ir embora, pois está 'apaixonado' e isto é pecado para um 'padre'. Para a Senhora a paixão é uma novidade. O narrador comenta sobre as 'leitoras de romance' e completa “Visto que a Senhora de Rênal jamais havia lido romances, todas as nuances de sua felicidade eram novas para ela.” (“Comme Mme de Rênal n'avait jamais lu de romans, toutes les nuances de son bonheur étaient neuves pour elle.” cap. XIII, p. 108)

O importante para Julien é ser um bom 'soldado de Napoleão' e traça planos de 'batalha' para 'conquistar' a Madame de Rênal. Mas as coisas não seguem o 'plano'. Julien se faz de cândido, de 'gauche', e Madame adora essa 'candura' do jovem... (Madame Derville acha que Julien acha premeditado, um 'político', um 'sournois' – dissimulado ) Mas Julien torna-se outro 'amoroso' perseguidor – igual ao incansável Sr. Valenod, a tal ponto que a Senhora evita ficar à sós com o jovem 'apaixonado'.

A Madame se surpreende com as oscilações de Julien entre o preceptor cândido e o sedutor 'hardi' (ousado), “É timidez de amor de um homem de espírito”, ela se alegra. A ambição de Julien espera que no mínimo, quando a Madame aceitar o 'amor múuo', ela psse a tratá-lo com igualdade, pois “não se pode amar sem igualdade”. Sabe ele que não se sai bem no seu 'papel de don Juan' ('le rôle d'un don Juan', o famoso personagem das baladas de Lord Byron) Tanto que Julien vai ajudar o cura Chélan em sua mudança, e depois tem a ideia de escrever a Fouqué, para se desculpar, ao recusar-se a ser sócio num negócio. Julien alega sua 'vocação irresistível' para ingressar nas 'ordens sacras'.

A sedução não é algo 'natural' para Julien, “seu papel de sedutor lhe pesava tão horrivelmente”. Se para outros, a sedução é tão 'natural', para alguns, que querem seduzir, surge como uma 'maquinação', um 'jogo de máscaras', ridícula e sem sucesso. Ele se fatiga inventando manobras que depois considera absurdas.

O Narrador ironiza – a recorrente expressão 'notre héros' (nosso herói) – as cenas entre Julien e a Madame, como frases do tipo “pode-se dizer, em estilo de romance”, o que lembra que tudo não passa de literatura... (ou alguém influenciado pela literatura, tais os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary) Pois Julien quer criar a imagem de um 'sedutor' que ele não é! Enquanto a Senhora ama no jovem justamente a introspecção, a 'candura' e a timidez!

O idílio amoroso de Julien e a Senhora de Rênal é – obviamente – cercado de prudências para ocultar a paixão. Mas a Madame não evita os remorsos para com o marido. E a Sra. Derville não hesita em avisar a amiga dos 'perigos'. Os contratempos aumentam o amor - e o amor aumenta os remorsos. “Em poucos dias, Julien rendeu-se a todo o ardor de sua idade, perdidamente apaixonado” e também “Ele tinha perdido efetivamente a ideia de um papel a atuar”. Mas sabemos que o 'amor' para Julien é 'a alegria de possuir', de 'subir na escala social', de não 'ser apenas um serviçal', em suma, é ambição. Uma verdadeira “Vontade de Potência” contra o mundo, diria F Nietzsche – que escreveu sobre Stendhal, “O último dos grandes psicólogos franceses”. [O Stendhal que não considerava a França um país muito civilizado – ele certamente imagina a Grã-Bretanha como mais 'liberal'... ] Julien, descuidado com a paixão, quase confessa à Madame sua ambição...

O 'realismo psicológico' - que evita que todo o idílio fique deveras 'romântico' – é pontuado pelo Narrador, quando lembra que Julien continua pensando no dinheiro (que cria a trágica 'diferença de classe') enquanto a Madame de Rênal coloca o 'amor' acima de tudo. Mas – pensemos – um jovem 'liberal' pode ser sincero com uma mulher de grande proprietário? Julien logo compreende que a Senhora está 'no campo inimigo' (“dans le camp ennemi”) E o Narrador revela o que está por detrás da 'aparência', e insistir na repetição do irônico 'notre héros', “Il manque à notre héros d'oser être sincere” - 'falta ao nosso herói ousar ser sincero'- o que lembra muito um “romance picaresco” (2), onde o herói pode 'aprontar' alguma encrenca...

Sejamos 'anacrônicos' e digamos que Julien sofre de um 'complexo de inferioridade', sofrendo por não ser um 'bem-nascido' e querendo se igualar – nem que seja na 'paixão' – com a rica herdeira burguesa. (No mais, é toda uma época quando é visível o desprezo dos 'bem-nascidos' pelos Robespierres que advêm das classes baixas.) E Julien aprende sua 'éducation de l'amour' com uma dama 'ignorante' no assunto, uma esposa de província, submissa ao marido...

Continuando o 'realismo' – que dilacera o idílio 'romântico' – temos as mesquinharias da 'política de província' [depois melhor descritas na “Comédia Humana” de Balzac, o literato de olhar 'sociológico'] e Julien se interessa mais pelas manobras da política do que pelas manobras de guerra – mas ele não pode esquecer que é um 'estudante de teologia' – esta divisão entre 'aparência' e 'essência', ao ser obrigado a aparentar o que não é: eis a ruína/tragédia de Julien Sorel.

Enquanto isso, a Senhora sonha com um Julien futuro, coberto de glórias, “Ela o imaginava Papa, ela o imaginava Primeiro-ministro, igual a Richelieu.” Justamente quando as forças monarquistas e clericais se reorganizam para assegurar a continuidade da Restauração – e abafar os anseios da 'pequena burguesia' e das classes populares. No interesse de 'notre sainte religion' os nobres e clérigos se organizam para receber um rei – e evitar a ascensão dos liberais, que só sabem enriquecer e aspirar aos cargos políticos, em fervorosa propaganda... É esta agitação festiva (e política) que distrai o amor da madame.

Julien desfila à cavalo na guarda de honra, enquanto outros 'messieurs' – até grandes proprietários – são deixados de fora! A alta sociedade se escandaliza, afinal Julien é o 'filho do carpinteiro', “nascido na lama, na ralé” (“né dans la crotte”) O jovem, empolgado, se sente um oficial de Napoléon, e “era o mais feliz dos homens”, ao ingressar no mundo das pompas, onde a vaidade é a moeda corrente. Ele se deixa fascinar pelas cerimônias eclesiásticas, o charme dos sacerdotes ofusca as glórias militares, “a admiração de nosso herói não tinha limites”. (Então o Narrador resolve não descrever a cerimônia, limitando-se a dizer que foi tema das conversas e jornais da província durante uns quinze dias...)

Quebrando o 'romântico', o Narrador não se perde em descrições, mas apresenta o ensaio, a política, as vaidades, os custos - “somente a cerimônia custou três mil e oitocentos francos” e que será paga por 'gentileza' do Marquês de La Mole, um dos nobres mais ricos da província... Por 'gentileza'? Claro que não! Tudo encenado para cativar o povo devoto e abafar o 'jacobismo', “Os camponeses estavam ébrios de felicidade e de piedade. Uma tal jornada desfazia a obra de cem números de jornais jacobinos.” (“les paysans étaient ivres de bonheur et de piètè. Une telle journée défait l'ouvrage de cent numéros des journaux jacobins” p. 137)

Os clérigos e os monarquistas criavam verdadeiros cerimoniais para iludir o povo e afastar os camponeses do 'liberalismo' , o 'jacobismo', assim como os fascistas adoravam criar 'cenas teatrais' para seduzir os proletários, com os líderes posando de semideuses a guiar o povo carente de liderança (assim os padres chegavam para curar os males do pecado...) Julien se deixa seduzir pelas pompas – Julien, o leitor de Napoleão! - e pensa emocionalmente em tornar-se padre, isto é, um sacerdote com poder.

As imagens dos monarcas ajoelhados diante dos sacerdotes são aquelas que acompanharão Julien em sua estada no Seminário de Besançon, onde precisará suportar a classe sacerdotal desde os professores até os seminaristas, seres cheios de invejas e ambições, mas alegando-se acima dos 'homens comuns', pois seguem uma 'vocação sacerdotal' de 'ensinar o amor' e 'propagar o evangelho'! Os monarcas de joelhos diante dos servos do Altíssimo “tout-puissant et terrible”, os sacerdotes tão perseguidos na terra, mas que “ils triumphent au ciel”, triunfam no Céu! Uma verdadeira simbiose entre a Monarquia e o Clero.

[Lembramos que o combate clerical X liberal foi ainda mais radical na Espanha do que em Portugal ou na França. Seguimos a radicalização de ambos os lados até a tragédia da Guerra Civil espanhola, nos anos 30 do século 20.]

Sabendo que se trata de um 'romance psicológico', onde cada detalhe do psiquismo das personagens – em interação – é essencial para o encadeamento das ações, percebemos a necessidade de seguir cada passo do 'enredo'. Assim, é um trabalho de 'ler as entrelinhas' tal como ler o “Hamlet” ou “Crime e Castigo”. Aqui podemos afirmar que o psicologismo de Stendhal leva certamente ao de Dostoiévski, assim como o sociologismo de Balzac igualmente muito deve ao mesmo autor (lembrando que toda 'psicologia' é psicologia social, abordar o indivíduo é analisar o indivíduo no social...)(3)

A psicologia de um anti-herói tal qual Julien se constrói como uma 'esponja' a sugar as expectativas dos demais, a sugar os mínimos comentários e reações às ações do Ego inflado, ambicioso, genioso. Julien sabe que seu talento incomoda os ricos medíocres, sabe que os proprietários comentam o 'absurdo' de um 'filho de carpinteiro' ter desfilado na guarda de honra, sabe que os mesmos hipócritas 'enrouquecem a pregar a igualdade', sabe que os ambiciosos culpam o capricho da mulher do prefeito, a cândida Senhora de Rênal.

Enquanto isso, o filho mais jovem da Madame está febril. A mulher se afunda em remorsos por seu adultério, “ela não tinha pensado na grandeza de seu crime aos olhos de Deus” (“elle n'avait pas songé à la grandeur de son crime aux yeux de Dieu” p. 142) A Madame se vê num dilema: a saúde do filho ou a paixão por Julien. Ela imagina que escolhendo a paixão, então ela será punida com a perda do filho. E Julien, que sente, sabe e analisa tudo, não entende como pôde inspirar tanto amor naquela mulher, esposa fiel e mãe zelosa! Ele sendo tão pobre e ignorante (no sentido de não ser 'educado') Em termos freudianos, diríamos que enquanto a Madame sofre de 'complexo de culpa', o jovem preceptor sofre de 'complexo de inferioridade'.

Se a mulher é fiel por medo – não por amor ao marido – em toda uma submissão social e religiosamente tecida, o marido aqui não demonstra qualquer suspeita – o que leva direto ao exemplo posterior de Charles Bovary, esposo traído da imaginosa Madame Bovary – e pensa que as 'cenas' emocionais da esposa não passam de “idées romanesques”! Os padres pecadores sequer sofrem tanto quanto a Madame a penalizar-se por amar um homem que não seja o marido. Ela quer se humilhar, confessar o pecado, e salvar o filho. O remorso poderá precipitar a mulher no abismo social! Julien precisa manter a calma, seu jogo de amor e ambição se emparalha, as cartas estão marcadas.

O enredo envolvendo homem pobre e mulher rica será muito explorado. Temos os exemplos de “Os Miseráveis”, também “O Morro dos Ventos Uivantes”, e “Bel-Ami”, ainda as obras brasileiras “Senhora” e “Olhai os lírios no campo”. São histórias envolvendo o conflito entre amor e ambição, desvelando as diferenças de classe e de sensibilidade, no jogo da ascensão e da promoção, nas piruetas do circo social.

[Quantos romances e novelas se influenciaram, se inspiraram em “Le Rouge et le Noir”? É difícil, senão impossível dizer. Mas fazendo uma análise tão detalhada do romance de Stendhal certamente entenderemos a força de sua narrativa. E nem precisaremos abordar as 'cópias' e 'quase plágios' que abundam pelo mundo midiático...]
continua...

jan-mar/10
notas

(1) "um romance é um espelho que passa por uma longa estrada. E ora reflete ao vosso olhar o azul do céu, ora a lama dos pântanos à margem. E o homem que carrega consigo será acusado de ser imoral! Seu espelho mostra a lama e vocês acusam o espelho! Acusem antes o caminho onde está o pântano, e antes o inspector de estradas que deixa a água acumular e pântano se formar.”

Un roman est un miroir qui se promène sur une grande route. Tantôt il reflète à vos yeux l’azur des cieux, tantôt la fange des bourbiers de la route. Et l’homme qui porte le miroir dans sa hotte sera par vous accusé‚ d’être immoral ! Son miroir montre la fange, et vous accusez le miroir ! Accusez bien plutôt le grand chemin où est le bourbier, et plus encore l’inspecteur des routes qui laisse l’eau croupir et le bourbier se former. (livro II, cap. XIX)
(2)o “romance picaresco” é um estilo romanceado da Espanha do século 16, com a presença de um herói aventureiro, em mil peripécias, meio anti-herói, meio vilão. Estilo que muito inspirou Miguel de Cervantes ao criar seu fabuloso imaginativo Don Quixote de La Mancha. No Brasil, temos um clássico do estilo, o romance “Memórias de um Sargento de Milícias” (1854-55), de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861 ), onde há toda uma fábula da 'malandragem'.

(3)Diferença entre “Le Rouge et le Noir” e “Crime e Castigo”: enquanto no primeiro o Narrador mostra o mundo (Verrières) e depois a personagem (Julien) (vai do mundo exterior ao mundo interior), no segundo a personagem (Raskólnikov) é mostrada e depois apresenta-se o mundo (São Petersburgo, Rússia)(vai do mundo interior para o mundo exterior) Basta compararmos as cenas iniciais dos dois romances.

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