sábado, 11 de dezembro de 2010

sobre Contos de Terror - de Edgar Allan Poe (3:3)









Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror
horror fiction

Quando o terror jaz no inexplicado



p3


The Masque of the Red Death


Aqui a fantasia gótica não poupa o leitor. Tudo é sinistro, angustiante. A praga, a peste, a epidemia lastra-se sobre um reino. A peste chamada “red death” - morte rubra – devasta um país, os domínios do Príncipe Prospero (há uma personagem de Shakesperare com nome igual. Vide “The Tempest”)


A morte rubra devastava o país. Nenhuma pestilência tinha sido antes tão fatal, ou tão horrível. Sangue era seu avatar e seu símbolo – a vermelhidão e o horror do sangue. Sobrevinham dores agudas, e uma súbita vertigem, e então um sangramento pelos poros, até a decomposição.” (“The "Red Death" had long devastated the country. No pestilence had ever been so fatal, or so hideous. Blood was its Avatar and its seal -- the redness and the horror of blood. There were sharp pains, and sudden dizziness, and then profuse bleeding at the pores, with dissolution.”)


Os nobres abandonam a plebe ao terror da peste. Não se importam muito com 'bem-estar coletivo' (aliás, isso é invenção pós-Iluminista) e querem mais é se proteger, perder-se em devassidão – tal uma corte romana, enquanto Nero incendeia Roma – do que lutar contra a propagação da calamidade. O povo que se vire.

Assim os cortesão não hesitam em se abrigar junto ao Príncipe, que promete diversão num magnífico baile.

“Era uma cena voluptuosa, aquela mascarada. Mas primeiramente deixe-me descrever os aposentos onde acontecia. Eram sete – uma suíte imperial. Em muitos palácios, de qualquer modo, tais suítes formam uma longa e contínua perspectiva, enquanto portas dobradiças deslizavam de volta quase até às paredes ao alcance, assim a visão da completa extensão é raramente impedida. Aqui o caso era bem diferente; como se esperaria da paixão que o duque tinha pelo que era bizarro. Os aposentos eram tão irregularmente dispostos que a visão apenas abarcava um pouco de cada vez. Após certa distância havia uma virada brusca e um novo efeito. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma longa e estreita janela gótica vislumbrava o corredor mais próximo o qual seguia as sinuosidades da suíte. Estas janelas eram de vidro tingido cuja cor variava de acordo com a tonalidade predominante das decorações do aposento para o qual se abria.”
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(“It was a voluptuous scene, that masquerade. But first let me tell of the rooms in which it was held. There were seven -- an imperial suite. In many palaces, however, such suites form a long and straight vista, while the folding doors slide back nearly to the walls on either hand, so that the view of the whole extent is scarcely impeded. Here the case was very different; as might have been expected from the duke's love of the bizarre. The apartments were so irregularly disposed that the vision embraced but little more than one at a time. There was a sharp turn at every twenty or thirty yards, and at each turn a novel effect. To the right and left, in the middle of each wall, a tall and narrow Gothic window looked out upon a closed corridor which pursued the windings of the suite. These windows were of stained glass whose color varied in accordance with the prevailing hue of the decorations of the chamber into which it opened.”)
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Cada vitral com uma cor, cada salão decorado com uma cor singular, cada jogo de luz ampliando os efeitos da orgia e da luxúria. A decoração, o luxo, a devassidão tudo parece debochar o sofrimento dos plebeus, dos camponeses, da população abandona ao terror da peste lá fora. Os nobres se divertem enquanto Roma pega fogo. Nada mudou.

“Mas estes outros aposentos eram densamente ocupados, e nestes pulsava febrilmente o coração da vida. E a festa seguia em turbilhão, até que começaram a ressoar as badaladas da meia-noite no relógio.” (“But these other apartments were densely crowded, and in them beat feverishly the heart of life. And the revel went whirlingly on, until at lenght there commenced the sounding of midnight upon the clock.”)

Todo o baile de máscara pretende ocultar o terror – mas o terror se manifestará dentro do palácio. Um vulto não convidado – aliás, um ser indesejado – virá 'divertir' no baile. O ápice é justamente o ressoar das batidas do relógio – a pre-anunciar um evento trágico - “foram doze badaladas a soar no relógio” (“there were twelve strokes to be sounded by the bell of the clock”)

As fantasias grotescas são um sarcasmo ao terror da peste. Aliás, a 'Peste' é encarada como outro mascarado, outro fantasiado, como se a Peste mesma se convidasse!

“Mas o mascarado foi longe demais ao assumir o tipo da Morte Rubra. A gesticulação borrifada de sangue – e sua fronte, com todas as feições estava salpicado de terror escarlate.” (“But the mummer had gone so far as to assume the type of the Red Death. His gesture was dabbled in blood – and his broad brow, with all the features of the face, was besprinkled with the scarlet horror.”)

O sarcasmo da fantasia é sarcasmo diante da indiferença dos nobres com o terror dos plebeus. A Morte, the grand leveller, a grande niveladora, não pode deixar que os nobres se livrem assim tão facilmente do destino comum – afinal de contas, a Morte não distingue classe social.

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para ler Máscara da Morte Rubra
no original
http://www.online-literature.com/poe/36/

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The Masque of the Red Death
na Cultura
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para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=UjrLFW0Y50I&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=LDxjXG84a9w&feature=related
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em español
http://www.youtube.com/watch?v=SICyoXyshQc&feature=related
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video
http://www.youtube.com/watch?v=m1NWXq7Hy90
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animation
http://www.youtube.com/watch?v=iLZ1EYuSNYQ&feature=related

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William Wilson


Novamente um conto em 1ª pessoa, o narrador-personagem é pouco confiável. Mas só temos a versão dele – uma parte dele – afinal ele parece ser duplo – existem duas partes dele mesmo – dois William Wilson. Ele depara-se com um outro garoto que se apresenta como o mesmo nome - e até a mesma face, mesmos gestos. Uma obsessão em ser William Wilson.

Quando o conto é intitulado “William Wilson” o Wilson-narrador quer contar a estória do outro-Wilson, mas é contando a própria estória é que sabemos quem ele é – ou diz ser. O título é, portanto, ambíguo. Qual William Wilson? O original ou o sósia? Quem é sósia de quem?

É um nome fictício, ele esclarece. Não quer envergonhar a família – ele que provem de uma raça de temperamento excitado e imaginativo. Ele igualmente é um inquieto, mas tende ao sadismo, ao exercer poder, ao dominar. Ele mesmo revela ao tendência à perversão – onde os outros homens foram gradativamente, ele afunda de só vez – segue aquele 'impulso de perversidade' que tanto causa infortúnio entre os narradores-personagens de “O Coração Denunciador”, “O Gato Preto”, e o próprio “Impulso de perversidade”.

“Em geral os homens descem pouco a pouco. De minha parte, num instante, todas as virtudes caíram do corpo como se fosse um manto. De uma crueldade comparativamente trivial eu passei, com um passo de gigante, às devassidões de um imperador romano Heliogabalus. Que oportunidade – que acontecimento levou-me à coisas perversas, sejam pacientes comigo enquanto eu relato.
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(“Men usually grow base by degrees. From me, in an instant, all virtue dropped bodily as a mantle. From comparatively trivial wickedness I passed, with the stride of a giant, into more than the enormities of an Elah-Gabalus. What chance -- what one event brought this evil thing to pass, bear with me while I relate.”)

Agora que William Wilson está diante da morte, ele resolve confessar – eis o relato que temos de uma vida de luxúria, jogatina, egoísmo, e tudo assombrado pela figura de um duplo – tal qual no conto “O Elixir do Diabo” de Hoffmann, onde há a figura do sósia, o Doppelgänger. Com o seu relato, Wilson espera a nossa piedade – que reconheçamos que as circunstâncias são mais fortes que a vontade humana – ele não seria assim tão culpado.

“A morte se aproxima; e a sombra que a anuncia lança uma entorpecente influência sobre o meu ânimo. Eu espero, ao passar este vale obscuro, pela simpatia – Eu quase disse piedade – de meus semelhantes. Eu ficaria satisfeito se eles acreditassem que eu tenho sido, em alguma medida, o escravo das circunstâncias além do controle humano. Gostaria que eles procurassem por mim, nos detalhes eu apresento, algum pequeno oásis de fatalidade meio a um deserto de erros.”
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(“Death approaches; and the shadow which foreruns him has thrown a softening influence over my spirit. I long, in passing through the dim valley, for the sympathy -- I had nearly said for the pity -- of my fellow men. I would fain have them believe that I have been, in some measure, the slave of circumstances beyond human control. I would wish them to seek out for me, in the details I am about to give, some little oasis of fatality amid a wilderness of error.”)

Assim, Wilson oscila entre um certo cinismo e uma esperança de piedade alheia. Mas é difícil ter piedade diante do sofrimento de Wilson. Ele era perverso sabendo que era perverso - e tendo prazer – até que encontrou um rival – alguém que estava à altura – e interferia para 'salvá-lo' : outra não era a origem de tanta curiosidade – e mal-estar – diante do outro Wilson. Pois era como a encarnação de uma 'boa consciência' – o Outro Wilson alertava quando Wilson estava sendo um 'mau garoto'.

Na escola, Wilson passa a reconhecer a existência de um 'rival'. Rival que seria um irmão gêmeo – enquanto os outros garotos até acham que o rival seria o 'melhor amigo' de Wilson – afinal, não eram inseparáveis. Essa ironia é não pode deixar de ser uma outra fonte de angústia.

“Ainda que este acontecimento não deixasse um vívido efeito sobre a minha imaginação desordenada, ainda foi evanescente quanto vívido. Por algumas semanas, realmente, ocupei-me em aguda inquirição, ou envolto em nuvem de mórbida especulação. Eu não pretendia disfarçar de minha percepção a identidade do singular indivíduo que assim perversamente interferia nos meus negócios, e atormentava-me com seus insinuantes conselhos. Mas quem e o que era este Wilson? - de onde ele surgira? - e o quais eram seus objetivos?”)
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(“Although this event failed not of a vivid effect upon my disordered imagination, yet was it evanescent as vivid. For some weeks, indeed, I busied myself in earnest inquiry, or was wrapped in a cloud of morbid speculation. I did not pretend to disguise from my perception the identity of the singular individual who thus perseveringly interfered with my affairs, and harassed me with his insinuated counsel. But who and what was this Wilson? -- and whence came he? -- and what were his purposes? “)


O sósia – o Doppelgänger – de Wilson não hesita em alertar o 'mau garoto', o jovem devasso, ao sussurrar ditos morais em seu ouvido, como se uma parte de Wilson se destacasse para ser seu super-Ego sempre alerta – ou uma real projeção do super-Ego – na forma de um outro-Eu, com características moralmente positivas.

Assim como Dorian Grey – no romance de Oscar Wilde – transfere a feiúra do vício para o retrato – que envelhece, enquanto o 'original' fica jovem – aqui William Wilson transfere o 'positivo' para o outro-Wilson, que passa a ser um imperativo categórico ambulante, enquanto Wilson é um perverso sem escrúpulos. Um imperativo a insinuar conselhos – que nunca são considerados, seguidos.


Sobre o 'Imperativo Categórico' em Kant
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Imperativo categórico é um dos principais elementos da
filosofia de Immanuel Kant. Sua ética e moral têm como base esse preceito. Para o filósofo alemão, imperativo categórico é o dever de toda pessoa de agir conforme os princípios que ela quer que todos os seres humanos sigam, que ela quer que seja uma lei da natureza humana.
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Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Imperativo_categórico


O ódio de Wilson é justamente ter um outro-Eu que é sensato, moderado, bom. Virtuoso é o outro-Eu que desafia a perversidade do 'original' – é como se ele tivesse um bom irmão que a qualquer momento fosse delatar as travessuras aos pais distraídos. E então Wilson precisaria prestar contas.

O 'duplo' vem desmascarar o narrador – que usa o nome de William Wilson.

“Eu fugia em vão. [...] E de novo e de novo, em secreta comunhão com meu próprio espírito, eu perguntaria 'quem era ele? - de onde ele surgira? E quais eram os objetivos dele?” (“I fled in vain. [...] And again, and again, in secret communion with my own spirit, would I demand the questions 'who is he? - Whence came he? - and what are his objects?”)

Que inimigo é este tão próximo? Tão empenhado em seguir e desmascarar? Não tem outra coisa para fazer senão 'patrulhar' a vida de Wilson? É esse terror que angustia o narrador – como poderia existir alguém dedicado plenamente a 'reproduzir' os passos de outra? Os gestos, as palavras? O outro Wilson não tinha vida própria? Não tinha carreira? Não tinha ambições?

Mas mal sabia William Wilson que o seu pior inimigo era ele mesmo, pois ao 'acertar as contas' com o rival – ou sósia, ou duplo – ele golpeia o que resta de 'bom senso' nele mesmo – assim como Dorian Gray golpeará a si-mesmo quando apunhalar o retrato deformado! no romance de Wilde, meio século depois.

Eis o terror do encontro com o outro-Eu, “quando eu tropeçava no extremo do terror, ali a minha própria imagem.” (“as I stepped up to it in extremity of terror, mine own image”), pois “assim parecia ser, mas não era [uma imagem num espelho]. Era o meu antagonista – era Wilson, que então estava diante de mim nas agonias de morte.” (“thus it appeared, I say, but was not. It was my antagonist – it was Wilson, who then stood before me in the agonies of his dissolution.”)

Assim o narrador é confrontado com um outro-Eu, um Eu que 'insinuava conselhos', que desmascarava as ambições e perversidades de Wilson – alguém que o conhecia intimamente! Um outro-Eu que era uma imagem invertida num espelho inexplicável – fruto da duplicidade de consciência!

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William Wilson
na Cultura
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videos
http://www.youtube.com/watch?v=2QemjP8cQxA&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=iXDmKJD7tCg
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para ouvir
(auf Deutsch)
http://www.youtube.com/watch?v=X_283O0y-YM&feature=related


A Escrita de Edgar Allan Poe, sendo mais pensada numa totalidade de Forma e Efeito (como ele deixa claro em seu ensaio “A Filosofia da Composição” ), é mais que uma conseqüência das experiências reais vividas pelo ser humano, antes de ser o Artista, ‘fatos sublimados’ que estão além da ‘intenção autoral’. A importância da genialidade estaria justamente na superação dos traumas, no momento de repensá-los e retraduzí-los em Literatura. O ‘carimbo da genialidade’, o ‘estilo autoral’, estaria justamente no Texto, em sua semelhança com outros Textos do mesmo Autor.

Assim chegamos ao fim dessa saga entre alguns contos memoráveis do mestre do terror psicológico Edgar Allan Poe. São os contos de minha predileção - integram o Meu Cânone Ocidental – e são uma amostra da Obra – muito vasta para ser tratada num artigo – sequer numa série de artigos. Dissertações acadêmicas são escritas ano após ano sobre o Autor e jamais serão capazes de explicar os contos – muito menos delimitar as interpretações possíveis. Até porque os narradores – nossa única fonte de relatos – são demasiadamente suspeitos ou, como diria Nietzsche, são 'demasiadamente humanos'.



nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/


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textos de Edgar Allan Poe
online
http://xroads.virginia.edu/~hyper/POE/contents.html
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blogs sobre E A Poe
http://www.houseofusher.net/index.html
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http://www.spectrumgothic.com.br/literatura/autores/allan.htm
http://www.lpm-editores.com.br/blog/?p=3753
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Poe em español
http://www.youtube.com/watch?v=8Z-dwzClyLw
http://www.youtube.com/watch?v=9wTwFuhSgEU

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Poe em Deutsch
http://www.youtube.com/watch?v=ztHqoi4oS4U&feature=related
http://www.internetschriftsteller.de/halloween/edgar-allan-poe/der-rabe-edgar-allan-poe.html
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Programa Entrelinhas
em homenagem a Edgar Allan Poe
http://www.youtube.com/watch?v=SnX8t4BTjlw
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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

sobre os Contos de Terror de E A Poe (2:3)









Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror


Quando o terror jaz no inexplicado


p2

O Gato Preto / The Black Cat


Temos neste conto atormentado um narrador em 1ª pessoa, um narrador que sofreu os acontecimentos, foi o protagonista dos fatos descritos, e tenta agora – preso e condenado – explicar (e justificar) o crime.


“Para a narrativa um tanto excêntrica um tanto caseira sobre a qual agora escrevo, eu não espero qualquer credibilidade. Seria loucura esperar isso, no caso que meus próprios sentidos rejeitam a evidência. Mas louco eu não sou – e não estou sonhando. Mas amanhã morrerei, e hoje quero tirar o peso da minha alma. Meu propósito imediato é expor diante do mundo, de forma franca, sucinta, e sem comentários, uma série de eventos domésticos. Na consequência deles, estes eventos que me aterrorizaram – me torturaram – me destruíram.”

“FOR the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their own evidence. Yet, mad am I not - and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-day I would unburthen my soul. My immediate purpose is to place before the world, plainly, succinctly, and without comment, a series of mere household events. In their consequences, these events have terrified - have tortured - have destroyed me.”

O Narrador está condenado, sabe que pouco poderá alegar em sua defesa, pouco crédito receberá, mas mesmo assim contará o estranho episódio – e os leitores já se inquietam. Que eventos são estes? “eventos que me assustaram – me torturaram – me destruiram”.

Uma atmosfera de horror, 'barroca' nos envolve – mas o narrador busca o recurso do intelecto para contar o drama (interessante o mesmo formato narrativo de “The Turn of the Screw” - meio século depois...) o narrador pretende mais calma, mais intelecto, mais lógica


Interessante: o narrador se descreve do mesmo modo que encontramos depois em “Memórias do Subsolo” (ou “Notas do Subterrâneo”), de 1864, do russo Dostoiévski, onde se pensa: a auto-análise é possível? ("Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem desagradável. Creio que sofro do fígado".)Vejamos o diário de Amiel, Gide, de Kafka, de J P Sartre, a obra de Proust, Nava, etc

sobre o relato existencial – existencialista de Dostoiévski
http://www.eternoretorno.com/2009/03/08/notas-do-subterraneo-de-dostoievski/


O Narrador faz auto-elogios quanto a própria docilidade – principalmente quanto aos animais domésticos – e descreve o tal 'gato preto'. E a superstição de que os gatos pretos são bruxas em disfarce. O nome do gato é sombrio – Pluto (ou seja, Hades, o deus do mundo dos mortos)

Mas o temperamento do narrador se alterou com o tempo, sua intemperança 9que ele confessa com vergonha), “Dia após dia, fiquei mais temperamental, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros” (“I grew, day by day, mere moody, more irritable, more regardless of the feelings of others”)

A irritação do narrador se estendeu à esposa e aos animais de estimação – ainda que ele evitasse maltratar o tal gato preto, Pluto. Mas a doença – sabemos que se trata do alcoolismo – do narrador (e sabemos que também afligia o Autor) se agrava – e até Pluto começa a sofrer, com agressões.


Num momento de fúria - “a fúria de um demônio de repente tomou apossou-se de mim. Não me reconhecia mais.” (“the fury of a demon instantly possessed me. I knew myself no longer”) - o narrador chega a – numa demoníaca malevolência – a arrancar , com um canivete, um dos olhos do gato Pluto – e se envergonha de tal atrocidade.

A tragédia então se precipita – o narrador nutre a culpa – fruto do horror e do remorso. E quanto mais culpa, mais sofre e acaba por se embriagar para esquecer... Vício atraindo remorso, e mais vício... um círculo vicioso infernal.

Há toda uma percepção do 'espírito de perversidade' – também abordado em “The Imp of the Perverse” e “The Tell-Tale Heart” - enquanto “um dos impulsos primitivos do coração humano” (“one of the primitive impulses of the human heart”) - mal íntimo a ser tematizado em “O Médico e o Monstro” (de Stevenson), onde dentro do bondoso e correto Dr. Jekyll há o cruel e egoísta Mr. Hyde.


Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a stupid action, for no other reason than because he knows he should not?”, isto é fazer por que é justamente proibido – o impulso de contrariedade – fazer o errado por saber que é errado (“to do wrong for the wrong's sake only”)! Embebedar-se para consumar um sucídio lento! Tal impulso perverso levou o narrador – com lágrimas nos olhos! - a enforcar o gato preto.

“E então veio, como se para a derrocada final e irrevogável, o espírito de PERVERSIDADE. A filosofia pouco diz sobre este espírito. Tenho menos certeza de que minha alma vive do a de que aquela perversidade é um dos primitivos impulsos do coração humano – uma das indivisíveis faculdades primitivas, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do Homem. Quem não tem, em centenas de vezes, se percebido a cometer uma ação vil ou idiota, sem outra razão que a de saber que não deve fazer? Não temos a perpétua tendência, no fio de nosso melhor juízo, de violar o que seja a Lei, meramente porque nos entendemos que é assim mesmo? Este espírito de perversidade, eu digo, veio para a minha derrocada final.”

“And then came, as if to my final and irrevocable overthrow, the spirit of PERVERSENESS. Of this spirit philosophy takes no account. Yet I am not more sure that my soul lives, than I am that perverseness is one of the primitive impulses of the human heart - one of the indivisible primary faculties, or sentiments, which give direction to the character of Man. Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a silly action, for no other reason than because he knows he should not? Have we not a perpetual inclination, in the teeth of our best judgment, to violate that which is Law , merely because we understand it to be such? This spirit of perverseness, I say, came to my final overthrow.”


Enforca o bichano, simplesmente. Por saber que comete uma barbaridade – tal um desafio! Quer colocar-se além de qualquer perdão! E paga o preço! Pouco tempo depois, na noite seguinte, a casa é destruída por um incêndio – o narrador e a família conseguem escapar por pouco. Restaram ruínas da casa – só uma parede se manteve, nela se nota uma 'estranha' e 'singular' imagem de um grande gato!

Estamos mergulhados na fantasmagoria. Mas o Narrador – em pleno terror – ainda quer explicar racionalmente o evento! Crê, assim, que a lógica pode abafar o sobrenatural. (No mais, só temos a versão dele - a explicação não convence) Aconteceu assim – ou ele interpretou assim?

De qualquer modo, ele encontra outro gato – tão preto quanto o outro, e maior. E, com o novo animal doméstico, ele deseja corrigir o erro de outrora. Tudo vai bem – até que o caprichoso temperamento do Narrador se modifica – se irrita com o que antes o agradava!

“De minha parte, logo percebi um desgosto a surgir dentro de mim. De modo que era o reverso do que disse antes; mas – eu não sei como nem porque era assim – esta preferência [do gato] por mim antes desgostava e aborrecia. Em lento progresso, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se tornaram amargura e ódio.” (“For my own part, I soon found a dislike to it arising within me. This was just the reverse of what I had anticipated; but - I know not how or why it was - its evident fondness for myself rather disgusted and annoyed. By slow degrees, these feelings of disgust and annoyance rose into the bitterness of hatred.”)

Também o novo gato desperta aversão (ou intensifica a irritação do narrador?) de modo a deixar prever outra 'perversidade', “Com minha aversão por este gato, de qualquer modo, a afetividade dele por mim parecia crescer. Ele seguia meu passos com uma teimosia que dificilmente seria possível fazer o leitor compreender.” (“With my aversion to this cat, however, its partiality for myself seemed to increase. It followed my footsteps with a pertinacity which it would be difficult to make the reader comprehend.”) O narrador tenta abafar a aversão – para não repetir as agressões de outrora, com o gato Pluto.

Em sua cela, à espera da condenação, o Narrador explicita todo o medo que a figura felina desperta – é um caso de obsessão, paranoia, sadomasoquismo? A fantasia maníaca do Narrador poderá nos contagiar enquanto leitores? Ele enxerga – ou quer enxergar – no pelo do felino uma mancha em forma de forca!

Então o impulso de perversidade se apodera novamente do Narrador – que resolve eliminar o gato com uma machadada. Para desventura de todos, a esposa tenta intervir – e é ela quem sofre o golpe – que é fatal.

“Sob a pressão de tormentos tais, o resto febril de bondade dentro de mim sucumbiu. Pensamentos malévolos tornaram-se meus únicos íntimos – os pensamentos mais sombrios e malévolos. Aumentou o mau humor de meu temperamento comum a ponto de ter ódio de todas as coisas e todas as pessoas; enquanto, de súbita, frequente e incontrolável explosão de uma fúria a qual eu me abandonei cegamente, da qual a minha pobre esposa, ai de mim! era a vítima mais comum e paciente.”

“Beneath the pressure of torments such as these, the feeble remnant of the good within me succumbed. Evil thoughts became my sole intimates - the darkest and most evil of thoughts. The moodiness of my usual temper increased to hatred of all things and of all mankind; while, from the sudden, frequent, and ungovernable outbursts of a fury to which I now blindly abandoned myself, my uncomplaining wife, alas! was the most usual and the most patient of sufferers.”

Eis o crime – e a ocultação do crime. O cadáver é emparedado – comparar com os criminosos de “The Tell-Tale Heart” e “The Imp of the Perverse”- que se julgam seguros após ocultarem o cadáver (acreditam-se, arrogantes, realizando o crime perfeito – principalmente em “Tell-Tale Heart” e “Imp of the Perverse” -) pois em “Gato Preto” o narrador não planejava matar a esposa, mas o seguindo gato preto.

Em “The Tell-Tale Heart” o narrador quer explicar que não é louco, ao contrário, um pragmático, um criminoso apenas derrotado por si-mesmo! “como, então, eu sou louco? Ouçam! E observem como coerente e calmamente eu vou contar para vocês esta estória toda.” (“How, then, am I mad? Hearken! And observe how healthily – how calmly I can tell you the whole story.”) Ele se garante não louco – por que é capaz de NARRAR a própria estória, o crime cometido por ele.

“Se vocês ainda pensam que eu sou louco, não vão pensar mais assim quando eu descrever as prudentes precauções que eu tomei para ocultar o corpo.” (“If still you think me mad, you will think so no longer when I describe the wise precautions I took for the concealment of body. (...)” O criminoso se julga seguro – o crime foi perfeito! - mas a culpa (o pulsar do coração após a morte da vítima!) acaba por aterrorizar o narrador-criminoso e levá-lo a confessar o crime.


Para ler “The Tell-Tale Heart” (original)
http://www.online-literature.com/poe/44/
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Também o narrador de “O Gato Preto” julga-se acima de qualquer suspeita – o cadáver foi ocultado, não há prova do crime. (Na Idade Média, os monges emparedaram suas vítimas. Referência à fatos históricos ou enredos de romances góticos? Afinal, Poe leu romances góticos – ao contrário do que muitos pensam ele não inventou o conto de terror, ele atualizou, adicionou o psicologismo ao deixar o 'sinistro' nas entrelinhas, na sanidade (ou não) dos narradores – o que 'perturba' a interpretação dos leitores – sem explicitar, sem revelar. Até porque os melhores contos são em 1ª pessoa – o quanto podemos confiar nos narradores?)

Pois o miado sinistro do gato revela a falsa parede – o felino estava emparedado junto com o cadáver. “Um grito de lamento, meio de terror e meio de triunfo” (“a wailing shriek, half of horror and half of triumph”), “neste momento, o grupo [de policiais] ficou paralisado nos degraus da escada, no extremo de pasmo e terror (“for one instant the party on the stairs remained motionless, through extremity of terror and awe.”) pois “eu tinha emparedado o monstro dentro da tumba (“I had walled the monster up within the tomb.”)


Alguns ‘traços biográficos’ que se destacam em referências na Escrita do Autor são o vício do álcool (tal o Narrador do conto “O Gato Preto”!), a precoce perda da mãe natural, a perda da mãe adotiva, a morte das mulheres amadas (a morte da Mulher Amada é um dos símbolos mais fortes), que se materializam na escrita de “Ligeia”, “Berenice”, “Morella”, “Eleonora”, “O Retrato Oval”, ou “O Corvo” (“The Raven”) quando a Escrita serve para o desabafo de abismos interiores. Assim se referencia a crítica baseada nos ‘traços biográficos’, que procura as causas da Escrita, os eventos exteriores ao próprio texto.


A vida de E. A. Poe foi cheia de atribulações, perseguido por um ‘demônio da perversidade’, rejeições, perdas de entes amados, mergulho nos vícios e luxúrias, desvios de conduta, atritos com a família que o adotou, vida militar cheia de advertências (e posterior exclusão), via literária cheia de vicissitudes, vida afetiva cheia de decepções e mortes. Assim o pesar de Roderick diante da doença, e morte aparente, da irmã, ou a decadência familiar (pois a Casa de Usher pode ser a mansão fantasmagórica, mas também referir-se a Família Usher) tudo seria um espelho (ou projeção) do que ocorreu na vida do Autor.

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Fonte: http://www.online-literature.com/poe/24/

cotejado com a edição de “Great Tales & Poems of E A Poe” 1965

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The Black Cat na Cultura

movies
http://www.youtube.com/watch?v=--sKsoah51c&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=eraK3sktNDc&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=xT0RV7CQFuU
http://www.youtube.com/watch?v=LyswpL67tuA&feature=related

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=FiVuIICPBgg&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=lEP32uFWPM8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9xPp3ZkQTrs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=-2doc-cGLs0&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=LOjNaKEqbws&feature=related

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animation
http://www.youtube.com/watch?v=xWiLtgFs728&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=x5iC6tTdw9M&feature=related




The Oval Portrait

O conto “O Retrato Oval” está situado entre dois polos – o século 18, com os romances góticos (“gothic novels”) e o final do século 19, com a publicação de “The Picture of Dorian Gray”. Tanto por citar a obra de Ann Radcliffe, quanto por tematizar o terror que há na obra de Oscar Wilde.

É também uma narração em 1ª pessoa, onde há o narrador-personagem e um valete (criado). O viajante não está bem, precisa de um abrigo. Há um casarão que poderá servir para um descanso durante a noite.

“O chateau no qual o meu valete se aventurou em entrada forçada, que assim permitiu-me, em condição desperadamente doentia, preferível a passar a noite ao ar livre, era um daqueles de mesclada desolação e grandeza que há muito tempo mostram suas carrancas ao longo dos Apeninos, não menos que na ficção da Sra. Radcliffe)

(“The chateau into which my valet had ventured to make forcible entrance, rather than permit me, in my desperately wounded condition, to pass a night in the open air, was one of those piles of commingled gloom and grandeur which have so long frowned among the Apennines, not less in fact than in the fancy of Mrs. Radcliffe.”)

Ao citar a autora de gothic novels – do século 18 – com suas paisagens sobrias do sul da França - o narrador também descreve a própria situação – adentra o casarão para se abrigar e adentra um espaço tal um ateliê de artista (ou tão desarrumado quanto) – lá ele encontra um quadro belíssimo – e uma obra que descreve a criação do quadro.

“Voltando ao número o qual designava o retrato oval, lá eu pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem.” (“turning to the number which designated the oval portrait, I there read the vague and quaint words which follow.”) e transcreve o trecho do livro que descreve as pinturas e a históeia de cada uma.

O retrato acaba por perturbar o já agitado visitante noturno, “que a novidade do que vi não poderia sequer duvidar; pois ao primeiro tremeluzir das velas sobre a tela parecera dissipar o onírico estupor que roubava-me os sentidos, e a dar-me um sobressalto a jogar-me na vida mais desperta.” (“that I new saw aright I could not and would not doubt; for the first flashing of the candles upon that canvas had seemed de dissipate the dreamy stupor which was stealing ever my senses, and to startle me at once into waking life.”)

Diante do narrador o quadro retrata uma jovem belíssima – e de qua modo ela perdeu a vida ao ser sempre requerida como modelo para o artista obsessivo – é como se a vida fosse 'transposta' ao quadro – uma transmigração da 'força vital'. “Este quadro é realmente a própria vida!” e voltou-se de súbito para ver sua (dele) amada. - Ela estava morta!” (“This is indeed Life itself!' turned suddenly to regard his beloved: - She was dead!”)


Em Oval Portrait estão presentes não apenas o clima (atmosfera lúgubre) dos romances góticos, mas também o poder de sugestão (que Poe compartilha com Hoffmann) além do lirismo (a morte da bela mulher) que, sendo sombrio, lembra a beleza noir de um “Flores do Mal” (Baudelaire, leitor e tradutor de Poe). A tematização do quadro/ retrato – uma espécie de duplo (igual aos espelhos que duplicam o mundo – segundo Jorge Luis Borges, “Os espelhos são malditos pois multiplicam o número dos homens”) está na base da maldição de Dorian Gray, no romance de Wilde, quando o retrato torna-se um duplo, ao envelhecer, enquanto Dorian permanece jovem.

O tema da bela mulher que morre jovem está em Oval Portrait, em Berenice, em Ligeia, no tema do longo poema The Raven (fruto da saudade de Lenora), enquanto o tema do duplo estará presente no conto “William Wilson” - onde muito críticos encontram um paralelo com o conto “O elixir do Diabo” de Hoffmann, onde há o Doppelgänger)

Narração em 1ª pessoa, o narrador lamenta a morte da amada, outra mulher marcante. Mulheres marcantes e idealizadas cuja morte é motivo de pranto e melancolia (ver a obra de Freud, “Luto e Melancolia”, onde o estado depressivo após a morte do ente querido se prolonga numa tristeza que não se cicatriza com o luto. Ou seja, a melancolia é resultado de um luto não-completado)
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sobre “Luto e Melancolia” (1915/17)
http://www.institutohypnos.org.br/v4/index.php/2009/10/sigmund-freud-luto-e-melancolia/

http://www.spectrumgothic.com.br/gothic/luto.htm


Outras mulheres memoráveis – cuja perda é pranteada obsessivamente – são a Lenore do poema The Raven / O Corvo, a Annabel Lee, do poema homônimo, e as mulheres patológicas, aquelas que sofrem de catalepsia, tais como os exemplos de Madeleine Usher e Berenice.

Mas voltemos a Ligeia, de bela e personalidade excepcionais. Aliás, para que ama, a mada será sempre excepcional. Ligeia, obsessivamente pranteada, é mesmo inesquecível.

“Eu não posso, juro por minha alma, lembrar-me como, ou precisamente aonde, Eu primeiramente conheci a senhorita Ligeia. Muitos anos já se passaram, e minha memória está febril ao longo de tanto sofrimento.” (“I cannot, for my soul, remember how, when, or even precisely where, Ifirst became acquainted with the lady Ligeia. Long years have sinceelapsed, and my memory is feeble through much suffering.”)

Amada que se destaca em beleza, elegância e erudição – aos olhos do amante, do homem que se perde na melancolia do luto nunca concluído. Amada que sempre será um vulto obsessivo quando outras mulheres surgirem no horizonte afetio, erótico, carnal ou idealizado.

Ligeia, para o narrador, é uma mulher de mente e corpo, que desperta admiração e desejo. Consciente da finitude da beleza - “a beleza deve morrer”, assim gemia o poeta inglês Keats – demonstram os versos niilistas de Ligeia – o Verme Conquistador – onde no fim do drama humano reina apenas a decomposição,


The curtain, a funeral pall,
Comes down with the rush of a storm,
And the angels, all pallid and wan,
Uprising, unveiling, affirm
That the play is the tragedy, "Man,"
And its hero the Conqueror Worm
.
.
(“A cortina, uma mortalha, / Desce com o fremir da tormenta, / E os anjos , todos lívidos e pálidos, / Se levantam, desvelam, afirmam / Que a peça encenada é a tragédia “Homem”, e cujo herói é o Verme Conquistador.” LdeM)

A morte da mulher amada – o tema de “The Raven” e de “Lenore”, “Ela morreu; - e eu, esmagado até o pó do chão com tanta aflição, não poderia mais suportar a solitária desolação de minha morada na obscura e decadente cidade junto ao Reno.” (“She died; -- and I, crushed into the very dust with sorrow, could no longer endure the lonely desolation of my dwelling in the dim and decaying city by the Rhine.”)

O narrador de Ligeia é “dado à fantasia” - casa-se novamente mas é infeliz – não esquece a falecida Ligeia. “Minha memória volta-se (ó, com que remorso!) para Ligeia, a amada, a sublime, a bela, a sepultada.” (“My memory flew back (oh, with intensity of regret!) to Ligeia, the beloved, the august, the beautiful, the entombed.”)

“Pois tais loucuras, mesmo na infância, eu tinha sorvido um gosto, e agora voltavam para mim como se na insanidade da aflição.” (“For such follies, even in childhood, I had imbibed a taste, and now they came back to me as if in the dotage of grief.”)

Não podem faltar as descrições góticas, com todo o exagero ultra-romântico, detalhismo barroco, rococó, arabescos variados. “Mas no acortinado do apartamento jazia, ai de mim! a completa fantasia em tudo.” (“But in the draping of the apartment lay, alas! The chief phantasy of all.”)

A nova esposa adoece e o narrador se surpreende com a presença de um sombra – e vê na doente as feições da falecida – os olhos da segunda esposa, Rowena, são azuis, enquanto os de Ligeia são negros, iguais aos cabelos – “mais escuro que as asas de corvo da meia-noite” (“it was blacker than the raven wings of midnight”) – e os olhos - “plenos, escuros, selvagens olhos de meu amor perdido (“full, black, wild eyes of my lost love.”)

Também é em 1ª pessoa a narração do conto “Berenice”, onde o narrador-personagem descreve a doença própria e a doença de uma prima, a querida Berenice. O início já é arrepiante e deixa antever um mal agouro.

“A Miséria é múltipla. O infortúnio da terra é multiforme. Acima do amplo horizonte tal o arco-íris, suas nuances são tão variadas quando as nuances daquele arco – tão distintas também, tão intimamente combinadas em matizes. Acima do amplo horizonte tal um arco-íris! Como é que de tal beleza deriva um tal tipo de desamor? - de um acordo de paz, um similar de aflição?”
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(“MISERY is manifold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the wide horizon as the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch - as distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon as the rainbow! How is it that from beauty I have derived a type of unloveliness? - from the covenant of peace, a simile of sorrow?”)

Egeu, o narrador, é um erudito, um pensador, que cita suas leituras de clássicos em latim (Santo Agostinho e Tertuliano, por exemplo), enquanto descreve a própria monomania, a mania obsessiva, e lembra-se da amada prima Berenice, também doente, a sofrer de um tipo agudo de catalepsia, onde há uma paralisia corporal, semelhante ao rigor mortis.

Dele a sensibilidade alcança tons mórbidos por tal excesso doentio – ser dotado de um pensamento obsessivo, incontrolável, como uma vítima da própria condição de 'penseroso' – imagem também tematizada por nosso poeta Álvares de Azevedo, principalmente em “Macário”.

A obsessão de Egeu é observar os estágios da doença da prima Berenice, cuja doença tem algo de atrativo, assim como a tristeza realça o 'charme' das heroínas góticas,

“Entre a numerosa série de doenças superinduzidas pelo que de fatal e primário tem afetado uma revolução de modo assim medonho no ser moral e físico de minha prima, deve ser mencionado como o mais aflitivo e obstinado nesta natureza, uma espécie de epilepsia que não frequentemente termina em um transe – transe quase a lembrar uma real dissolução, e da qual ela se recupera, em muitos momentos, de modo espantosamente abrupto.”

(“Among the numerous train of maladies superinduced by that fatal and primary one which effected a revolution of so horrible a kind in the moral and physical being of my cousin, may be mentioned as the most distressing and obstinate in its nature, a species of epilepsy not unfrequently terminating in trance itself - trance very nearly resembling positive dissolution, and from which her manner of recovery was in most instances, startlingly abrupt.”)


Egeu é uma maníaco – ele se confessa assim – sofre de uma monomania, concentra-se sobre algo de forma exagerada, patológica – tal qual aquela hiperestesia do Sr. Roderick Usher – em “The Fall of the House of Usher” - que sobre carrega os sentidos até o ponto da angústia. Egeu tem – ele confessa – uma fixação (até mórbida) pelos dentes de Berenice.

“Não me compreendam mal. A excessiva, extrema e mórbida atenção assim excitada pelos objetos de natureza até frívola, não deve ser confundida no caráter com aquela tendência a ruminar comum nas pessoas, e mais especialmente favorecida nas pessoas de imaginação febril.” (“Yet let me not be misapprehended. The undue, earnest, and morbid attention thus excited by objects in their own nature frivolous, must not be confounded in character with that ruminating propensity common to all mankind, and more especially indulged in by persons of ardent imagination”).
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Quando da suposta morte de Berenice, o primo lamenta em torpor a visão dos dentes na boca da morta. Todos acreditam que desta vez é real a morte de Berenice. (Assim como Madeleine Usher sofre de mortes catalépticas, rigidez de cadáver, mas ainda vive.) A visão dos dentes – brancos – luzentes – terríveis – eis o que angustia o prostrado Egeu.

“Era essa minha própria imaginação excitada – ou a nevoenta influência da atmosfera – ou a incerta penumbra do quarto – ou o cinzento cortinado que descia ao redor de sua figura – que causou nele um contorno assim vacilante e indistinto? Eu não poderia dizer. Ela nada disse; e eu – não poderia sequer formar a sílaba de uma palavra.” (“Was it my own excited imagination - or the misty influence of the atmosphere - or the uncertain twilight of the chamber - or the gray draperies which fell around her figure - that caused in it so vacillating and indistinct an outline? I could not tell. She spoke no word; and I - not for worlds could I have uttered a syllable.”)


A ação do narrador se passa num 'branco' – numa névoa de inconsciência – ele executou uma ação – da qual não guarda consciência - apenas desperta arrepios a intuição de algo terrível ! O que será não podemos prever!

“Então veio a total fúria de minha monomania, e eu lutei em vão contra esta estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior eu não tinha pensamentos exceto para os dentes. Por estes dentes eu ansiava num desejo em frenesi. Todas as outras questões e todos os diferentes interesses foram absorvidos nesta singular contemplação. Eles – eles apenas estavam presentes para a visão mental, e eles, os dentes, numa única singularidade, tornaram-se a essência da vida intelectual.”
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(“Then came the full fury of my monomania, and I struggled in vain against its strange and irresistible influence. In the multiplied objects of the external world I had no thoughts but for the teeth. For these I longed with a phrenzied desire. All other matters and all different interests became absorbed in their single contemplation. They - they alone were present to the mental eye, and they, in their sole individuality, became the essence of my mental life.”)

Então descobre-se uma caixinha sobre a mesa – uma pá suja de terra – um túmulo violado – um cadáver desfigurado - e os dentes de Berenice! Nada há mais a explicar. É o leitor quem deve reconstituir os fatos e perceber-se no centro do terror.

continua...



nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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sábado, 4 de dezembro de 2010

sobre os Contos de Terror de Edgar Allan Poe (1:3)






Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror


Quando o terror jaz no inexplicado

P1


Os contos aos quais dedicaremos atenção neste ensaio são aqueles clássicos do terror encontrados na coleção “Contos do Grotesco e do Arabesco” ( “Tales of the Grotesque and Arabesque”, nos EUA) e “Histórias Extraordinárias” (“Histories Extraordinaires” na tradução de Charles Baudelaire, na França), de dois volumes, com publicação em 1839, numa época em que o autor Poe passava por dificuldades familiares e financeiras.

Várias leituras já foram feitas sobre as características principais do 'conto de terror', mas nos deteremos aqui para pensar um pouco sobre os 'ingredientes' e as 'condições' do terror. Que pode resultar de vários fatores em várias condições. Pois o Terror pode acontecer em ambientes soturnos – a personagem já está pré-disposta a sentir medo – vide as gothic novels clássicas do século 18. Em pleno século das Luzes, o irracionalismo e as superstições reinam num clima de neo-medievalismo de aventuras e fantasmagorias.

Ou situação sinistra, algo estranho que a personagem percebe tarde demais – vide os contos de Poe e H. P. Lovecraft – onde as fronteiras entre o banal e o terror são delimitadas apesar de notadas quando transpostas. Ou o terror meio ao que parece familiar, o não-domesticado irrompe, é o Unheimliche, dos contos de Hoffmann.

Pode ser que o terror apareça subitamente no cotidiano mais banal – assim em alguns contos de Poe, e atualmente em algumas obras do norte-americano Stephen King – vide “Pet Sementary” (O Cemitério Maldito), onde o terror está oculto sob uma máscara de cotidiano. Pode se insinuar com um assassino inesperado – seja monstro ou um psicopata à solta. Pode ser uma antiga maldição que agora fatidicamente se realiza. Ou seja, pode ser algo natural ou sobrenatural que sem mais nem menos rompe o cotidiano banal – e causa terror, devido ao inesperado, ou perigo de morte violenta.


Há também o terror místico – a presença do sobrenatural dentro de um mundo supostamente natural – vide alguns contos de H. P. Lovecraft e o Dracula de Bram Stoker – como as figuras de fantasmas, almas desencarnadas, vampiros, zumbis (mortos-vivos), lobisomens, monstros, semi-deuses que adentram o mundo humano. Não apenas um 'efeito psicológico' mas também um elemento além-do-natural (ou não pertencente a ordem humana, no caso dos 'super-heróis' ou 'titãs' da mitologia grega, por exemplo.)


fonte das citações:Literature Network
http://www.online-literature.com/poe/

cotejado com a edição “Selected prose and poetry” de 1965


A Narração nos contos de Poe

O modo de narrar, como um ato de mostrar, mas sem explicar, elucidar exatamente, é encontrado nos contos de Poe, tais como “O Gato Preto”, “Coração Denunciador”, “Demônio de Perversidade”, “Berenice”, “Ligeia”, dentre outros. O próprio Narrador cria as suspeitas e não passa qualquer explicação convincente (e definitiva) ao Leitor.


Um escritor obcecado com detalhes, com uma lógica do ilógico, com uma geometria do horror, sendo capaz de conjugar (e compor) contos tão arrepiantes (pelo menos para a época...) com tais ingredientes, no que se passou a chamar de ‘narrativas fantásticas’ (ou ‘extraordinárias’), meio ao universo de narrativas de aventuras e mistério (policial, sobrenatural, místico, etc), onde o importante é o esclarecimento dos enigmas, encontrar o culpado pelos crimes, ou o demiurgo dos fenômenos sobrenaturais.


A presença do Narrador em constante dúvida é bastante para situar o conto “A Queda da Casa de Usher” na lista dos ‘contos fantásticos’ (ao contrário de Todorov, que considera o conto um exemplo de ‘conto estranho’, pois enumera fatos que tentam explicar – a fissura das paredes, o terreno pantanoso, o estado de catalepsia da doente), pois o ‘fantástico’ é o que caracteriza os citados contos, que nada têm de explicativos ou científicos, mas descrições de ‘estados psicológicos’ (ainda mais com a narrativa sendo em 1a pessoa, e não feita por um Narrador onisciente), e visam mais um ‘efeito de suspense’ do que resolver ou esclarecer o mistério.

Efeito que conspira para o ‘fantástico’, o nebuloso, o quase sobrenatural, pois nada é evidenciado. Precisamos acreditar na narrativa de um Narrador transtornado, não temos outra alternativa. A própria casa torna-se um ‘fantasma’ na mente do Narrador, que até escolhe narrativas góticas para ler como passatempo junto ao amigo. É um exemplo de ‘psicologismo’, uma narrativa de ‘horror psicológico’ (que é muito explorado por autores como H. P. Lovecraft e Stephen King, influenciados por E A Poe) com uma narrativa enigmática, labiríntica, imagética, alucinada e alucinatória, em tons melancólicos, ou depressivos, em ressonâncias decadentes, em finitudes entranhadas, em desespero lírico, de romantismo gótico.

É na biografia do autor Edgar Allan Poe, escrita por H. Allen, e comentada (entusiasticamente) por Charles Baudelaire, que podem ser encontradas muitas das fontes para a criação de tal narração em 1ª pessoa, o Narrador que hesita, que fica perplexo, que não explica que deixa se levar por sensações, ser dominado por calafrios, e a tecer considerações que exigem a cumplicidade do Leitor, a compartilhar do horror descrito.


The Fall of the House of Usher

Em “A Queda da Casa de Usher”, o narrador é em 1ª pessoa a descrever o ambiente, numa descrição que reflete no cenário o ânimo depressivo do narrador e do protagonista (Roderick Usher).

A considerar o conto “A Queda da Casa de Usher”, tendo em vista a marca autoral de E A Poe, é notável o Narrador (o amigo de Roderick Usher) que o tempo todo tenta se explicar, crendo-se imerso numa fantasmagoria que nasce de ilusões visuais e psíquicas. “Eu não sei como era”, ou “O que era isso – eu parei para pensar – o que era isso que me deprimia (unnerved) ao contemplar a casa de Usher?”, pois assim parece que tudo nasce (e ecoa) na mente do Narrador.

O início é impactante, é magistral. É mórbido, depressivo, psicológico.

“Durante todo um dia desolado, sombrio e silencioso no outono do ano, quando as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, eu passava sozinho, cavalgando, através da singularmente desolada região; e então encontrei-me, quando as sombras da noite já desciam, à vista da melancólica casa de Usher. Eu não sabia como era – mas, ao primeiro relancear da construção, um senso de insuportável desolação invadiu-me o ânimo.

Eu digo 'insuportável'; pois o sentimento era pouco aliviado por algum meio-aprazível sentimento, posto que poético, como que a mente geralmente recebe as imagens naturais mais severas do desolado e do terrível. Eu olhava a cena diante de mim – sobre a casa em si, sobre a simples paisagem dos arredores – sobre as paredes desoladas – sobre as janelas que pareciam olhos-vazados – sobre os poucos arbustos – e sobre uns poucos troncos de árvores decadentes – com uma completa depressão de alma com a qual não posso comparar a nenhuma sensação terrestre mais propriamente que a ressaca de quem desperta após o consumo do ópio.”

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“DURING the whole of a dull, dark, and soundless day in the autumn of the year, when the clouds hung oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country ; and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the melancholy House of Usher. I know not how it was - but, with the first glimpse of the building, a sense of insufferable gloom pervaded my spirit.

“I say insufferable ; for the feeling was unrelieved by any of that half-pleasurable, because poetic, sentiment, with which the mind usually receives even the sternest natural images of the desolate or terrible. I looked upon the scene before me - upon the mere house, and the simple landscape features of the domain - upon the bleak walls - upon the vacant eye-like windows - upon a few rank sedges - and upon a few white trunks of decayed trees - with an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium -”


O Narrador se indaga sobre o próprio ato de narrar – não tem certeza dos próprios sentimentos – é assim anti-racionalista (o oposto do 'esclarecido' Robinson Crusoé, do clássico de Defoe, no século 18.

“O que era isso – eu parei para pensar – que era que tanto me irritava (ou enervava) ao contemplar a casa de Usher?” (“What was it – I paused to think – what was it that so unnerved me in the contemplation of the House of Usher?”)

Por que temos toda a narrativa? O que sucederá de terrível?

O Narrador – ao lado do amigo depressivo Roderick Usher – é tomado pela atmosfera lúgubre da mansão, à beira de um pântano, a sofrer as rachaduras do tempo, e não sabe como escapar a todas as inspirações melancólicas que a visita ocasiona. Torna-se excitado e desassossegado com a atmosfera ‘sulforosa’ do lugar, além do ambiente doméstico doentio – Roderick sofre pavorosamente com a doença cataléptica da irmã Madeline (que é enterrada ainda viva). O tema da ‘quase-morte’ aparece também nos contos “Enterro Prematuro” e “O Caso do Sr. Waldemar”. Os livros de Roderick já apresentam um universo de hipocondria, fantasia e ocultismo: títulos de quiromancia, mitologia, utopias, magias, eclesiásticos, manuais de inquisidores, etc., que podem até sugerir uma ‘explicação sobrenatural’, tal uma ‘ressurreição dos mortos’.


Aqui os elementos da estranheza, do sinistro (Unheimliche) começam a se manifestar – o que há na casa desolada que a apresenta sempre 'lúgubre'? O aspecto exterior? O recluso interior? O ânimo do Narrador? Afinal, ele está predisposto ao terror...

“Era um mistério de todo insolúvel; nem poderia enfrentar as sombrias fantasias que me povoavam enquanto eu meditava. Era forçado a cair de volta a insatisfatória conclusão que enquanto, além de dúvida, haviam combinações de objetos naturais que têm o poder de nos afetar, ainda a análise deste poder jaz em considerações além do nosso entendimento.”
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It was a mystery all insoluble ; nor could I grapple with the shadowy fancies that crowded upon me as I pondered. I was forced to fall back upon the unsatisfactory conclusion, that while, beyond doubt, there are combinations of very simple natural objects which have the power of thus affecting us, still the analysis of this power lies among considerations beyond our depth.”

O Narrador se esforça por ser racional – analisar as razões do próprio sentimento melancólico diante da morbidez que a antiga mansão desperta. Antes da ação propriamente dita o Narrador de Edgar Allan Poe tece considerações sobre a perspectiva, da possibilidade de narrar – afinal, não há 'onisciência' – e mesmo sabendo o final (pois sobreviveu para narrar!) a voz narrativa não antecipa – semeia pausas e suspensões.


“Eu disse que o único efeito de meu experimento um tanto infantil – de olhar dentro do lago – tinha sido aprofundar a primeira impressão singular. Lá não podia haver dúvida que a consciência do rápido crescimento de minha superstição – pois por que eu não deveria nomeá-la? - servia principalmente para acelerar o crescimento em si-mesmo. Assim, tenho sabido há muito tempo, é a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm como base o terror.”

“I have said that the sole effect of my somewhat childish experiment - that of looking down within the tarn - had been to deepen the first singular impression. There can be no doubt that the consciousness of the rapid increase of my superstition - for why should I not so term it ? - served mainly to accelerate the increase itself. Such, I have long known, is the paradoxical law of all sentiments having terror as a basis.”

O terror que congrega um sentimento íntimo em consonância com um externo opressor – tais aquelas descrições de paisagens nos poemas românticos (e também em alguns trechos de “Frankenstein”, como já vimos.) “Um ar de severa, profunda, e irremediável desolação pairava sobre tudo e invadia tudo.” (“An air of stern, deep, and irredeemable gloom hung over and pervaded all.”)

Pálido, cadavérico, o protagonista recebe o Narrador. Que tormentos arruinaram o nobre Roderick Usher?

“Descobri nas maneiras de meu amigo um incoerência – uma inconsistência; e logo percebi que surgiam de uma série de lutas febris e fúteis para dominar um tremor habitual – uma excessiva agitação nervosa. Para algo desta natureza eu tinha realmente sido preparado, não menos pela carta do que pela lembrança de certo modo juvenil, e por conclusões deduzi da peculiar conformação física e do temperamento dele. As ações dele ora eram exaltadas ora eram melancólicas.”

“In the manner of my friend I was at once struck with an incoherence - an inconsistency ; and I soon found this to arise from a series of feeble and futile struggles to overcome an habitual trepidancy - an excessive nervous agitation. For something of this nature I had indeed been prepared, no less by his letter, than by reminiscences of certain boyish traits, and by conclusions deduced from his peculiar physical conformation and temperament. His action was alternately vivacious and sullen.”

A descrição considera as afetações do psicológico sobre o corporal, como se a doença fosse psicossomática (como se diz atualmente) quando um evento psíquico afta o corpo – p. ex. Ficar melancólico devido a uma forte sugestão (artística, estética, etc) e perder o vigor corporal.

“Ele sofria muito com uma mórbida agudeza dos sentidos”, “He suffered much from a morbid acuteness of the senses.”, tal um alérgico, o mundo externo tortura o hipersensível. O próprio protagonista Usher se percebe condenado, aterrorizado (o que contagia o Narrador, tal como a visita ao Conde Dracula irá sugestionar o narrador Jonathan Harker, no clássico vampírico de Bram Stoker, publicado meio século depois)

“Eu o encontrei escravo de uma espécie estranha de terror. 'Morrerei', dizia, 'Morrerei nesta deplorável loucura. Assim, e não de outro modo, estarei perdido. Temo os eventos do futuro, não neles mesmos, mas os resultados. Estremeço ao pensamento de que mesmo o mais trivial incidente pode causar uma intolerável agitação na alma. Eu tenho, realmente, nem ódio do perigo, exceto de seu absoluto efeito – no terror. Nesta enervante e lastimável condição eu sinto que o momento, que mais cedo ou mais tarde chegará, quando eu deverei abandonar a vida e pensar junto, em alguma luta com o medonho fantasma, o MEDO.”

“To an anomalous species of terror I found him a bounden slave. "I shall perish," said he, "I must perish in this deplorable folly. Thus, thus, and not otherwise, shall I be lost. I dread the events of the future, not in themselves, but in their results. I shudder at the thought of any, even the most trivial, incident, which may operate upon this intolerable agitation of soul. I have, indeed, no abhorrence of danger, except in its absolute effect - in terror. In this unnerved - in this pitiable condition - I feel that the period will sooner or later arrive when I must abandon life and reason together, in some struggle with the grim phantasm, FEAR."

A doença da irmã, a débil Srta. Madeleine Usher, vem agravar o ambiente familiar em elementos mórbidos – temos a mansão e os moradores em decadência. As relações entre ânimo e saúde física são narradas com vocabulário médico, como uma tentativa (aqui, frustrada ) de recorrer às bases científicas. A fantasia precisa de alguma verossimilhança, não trata-se de uma fábula ou lenda – mas de um outro mundo em nosso universos possível. O leitor encontra o 'estranho' dentro de um mundo familiar (há uma tradução, uma genealogia, uma propriedade, uma família) – o 'sinistro' irrompe dentro do 'doméstico',

“Enquanto ele falava, a Srta Madeleine (pois assim ela se chamava) passou lentamente através da parte remota do aposento, e, sem notar minha presença, desapareceu. Eu a observei com um total assombro não sem ser misturado com medo – e ainda percebi ser impossível explicar tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos seguiam seus passos ao se recolher. [...]

A doença da Srta. Madeleine tinha há muito tempo frustrado a destreza dos médicos. Uma instalada apatia, uma gradual perda da personalidade, e frequentes e temporários sintomas de uma caráter parcialmente cataléptico, foram os diagnósticos incomuns.”
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“While he spoke, the lady Madeline (for so was she called) passed slowly through a remote portion of the apartment, and, without having noticed my presence, disappeared. I regarded her with an utter astonishment not unmingled with dread - and yet I found it impossible to account for such feelings. A sensation of stupor oppressed me, as my eyes followed her retreating steps. [...]

The disease of the lady Madeline had long baffled the skill of her physicians. A settled apathy, a gradual wasting away of the person, and frequent although transient affections of a partially cataleptical character, were the unusual diagnosis.”

O Narrador tenta descrever as próprias sensações, no ambiente, “Das pinturas sobre as quais sua elaborada fantasia ruminava, e a qual crescia, toque após toque, na vagueza na qual eu estremecia o mais agitado, pois estremecia sem saber o motivo; - destas pinturas (vívidas como as imagens delas agora diante de mim) em vão eu poderia me esforçar para deduzir mais que uma pequena porção que deveria jazer dentro do limite de palavras meramente escritas.” (“From the paintings over which his elaborate fancy brooded, and which grew, touch by touch, into vaguenesses at which I shuddered the more thrillingly, because I shuddered knowing not why ; - from these paintings (vivid as their images now are before me) I would in vain endeavor to educe more than a small portion which should lie within the compass of merely written words.”)

O anfitrião Roderick Usher é um erudito – tem uma vasta biblioteca, cujo os livros são cuidadosamente listados – alguns reais, outros inventados pelo Autor (essa também será a mania de um Jorge Luis Borges, um século depois...) - títulos sobre ocultismo, alquimia, esoterismo, utopias – não é de admirar que tanto protagonista quanto narrador estejam tão sugestionáveis, prontos para o terror.

Aqui será morte (e o retorno) de Madeleine – e como a fatalidade atua sobre o doentio Roderick Usher,

“E agora, alguns dias de amarga aflição tinha passado, uma observável mudança ocorreu nos traços da desordem mental de meu amigo. Seus modos comuns se perderam. Suas ocupações comuns foram negligenciadas e esquecidas. Ele vagava de um cômodo a outro com passos apressados, desiguais, sem rumo. Sua palidez tinha assumido, se isto é possível, uma nuance lívida – mas a luminosidade de seu olho se perdera totalmente.”

“And now, some days of bitter grief having elapsed, an observable change came over the features of the mental disorder of my friend. His ordinary manner had vanished. His ordinary occupations were neglected or forgotten. He roamed from chamber to chamber with hurried, unequal, and objectless step. The pallor of his countenance had assumed, if possible, a more ghastly hue - but the luminousness of his eye had utterly gone out.”

As leituras fazem parte da narrativa – algo de metalinguagem – com um poema - “The Haunted Palace” - a descrever o passado idílico da casa e também a decadência, depois uma narrativa (“Mad Trist”, de Sir Launcelot Canning) que entra em paralelismo com o ressurgir de Madeleine – até os ruídos descritos no livro acabam por ressoar nos porões da mansão dos Usher,

“para mim parecia que, de alguma parte remota da mansão, chegava aos meus ouvidos, o que deveria ter sido, numa exata similaridade de modo, o eco (mais abafado e surdo, certamente) de um som de algo a se quebrar ou dilacerar tal qual Sir Launcelot tinha particularmente descrito.”

“it appeared to me that, from some very remote portion of the mansion, there came, indistinctly, to my ears, what might have been, in its exact similarity of character, the echo (but a stifled and dull one certainly) of the very cracking and ripping sound which Sir Launcelot had so particularly described.”

e

“Novamente aqui eu fiz uma pausa de repente, e agora com um sentimento de selvagem assombro – pois não poderia haver dúvida de que algo, neste momento, que eu realmente ouvira (apesar de ser impossível dizer de que direção) um som dissonante ou grito incomum, baixo e aparentemente distante, mas estridente, prolongado – a exata contraparte do que minha fantasia tinha já conjurado para o grito desnaturado do dragão tal qual descrito pelo romancista.”

Here again I paused abruptly, and now with a feeling of wild amazement - for there could be no doubt whatever that, in this instance, I did actually hear (although from what direction it proceeded I found it impossible to say) a low and apparently distant, but harsh, protracted, and most unusual screaming or grating sound - the exact counterpart of what my fancy had already conjured up for the dragon's unnatural shriek as described by the romancer.”


O terror no romance lido se materializa na situação vivenciada – para o leitor é apenas um conto lido – a ponto de se confundir as vozes narrativas – a do romance Mad Trist e a do conto House of Usher, e a tirar o resto de sanidade do transtornado Roderick,

“Mas, quando eu coloquei a mão sobre o seu ombro, sobreveio um violento sobressalto em toda a sua pessoa; em seus lábios tremeu um sorriso doentio; e vi que ele falava num murmúrio baixo, precipitado e incoerente, como se inconsciente de minha presença. Inclinando-me junto dele, pude ouvir enfim o significado horrível de suas palavras.”

“But, as I placed my hand upon his shoulder, there came a strong shudder over his whole person ; a sickly smile quivered about his lips ; and I saw that he spoke in a low, hurried, and gibbering murmur, as if unconscious of my presence. Bending closely over him, I at length drank in the hideous import of his words.”

A morta-viva irrompe no momento de loucura – os últimos descendentes da linhagem dos Ushers se matam – e o narrador consegue fugir – e sobreviver. Pode então observar o fim da família e a ruína da mansão – assim a 'casa' de Usher tem duplo sentido: a família e o edifício, o simbólico e o material, a genealogia e a arquitetura.


A temática do corpo enterrado precocemente, como é o caso de Madeline Usher, ou do corpo ocultado, está presente em outras narrativas do Autor. O corpo emparedado, em “O Gato Preto”; o cadáver enfiado na chaminé, em “Crimes da Rue Morgue”; o corpo desmembrado, enterrado sob as tábuas do piso, em “O Coração Denunciador” (The Tell-Tale Heart); todas estas ocorrências (ou semelhanças) evidenciam as marcas ‘fisionômicas’ do estilo autoral presente nos textos. São temáticas fantásticas, inconscientes, mas usadas numa técnica consciente, estética, visando um determinado efeito. A plenitude do texto seria a totalidade da Forma que causa um Efeito estético (segundo o próprio Poe, em “A Filosofia da Composição” (The Philosophy of Composition) , onde a Beleza, mais que uma Forma, é um Efeito)

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Fonte: http://www.online-literature.com/poe/31/


Fall of the House of Usher
movies
http://www.youtube.com/watch?v=wimNsfqbqkw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=lk6xV5sQ8KA
http://www.youtube.com/watch?v=lk6xV5sQ8KA
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theatre
http://www.youtube.com/watch?v=gQrdFdiNd7I&feature=related
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music
http://www.youtube.com/watch?v=h4RIIoZuBhU&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=65tVSUhYxgs&feature=related
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animation
http://www.youtube.com/watch?v=_41ER3SL5f4&feature=related

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continua....


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nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/


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terça-feira, 30 de novembro de 2010

sobre Frankenstein - de Mary Shelley (3:3)




Sobre “Frankenstein” (1818)
de Mary Shelley (1797-1851)

Literatura de terror
(horror fiction)


Frankenstein
Contos de E A Poe
Dracula


O terror do que foge ao controle: a criatura contra o criador



p3




Saberemos como o monstro se 'educou'. Tal uma criança, ele aprende a usar os sentidos. Sofre com a solidão e o desamparo – como qualquer criança! É como se ele fosse o primeiro homem – Adão – jogado no mundo, um mundo ao qual deve se adaptar e, ao mesmo tempo, observar, descobrir, dominar. Desde o início, ele é bom, está fascinado com a natureza, os astros, os gorjeios dos pássaros, e a consciência de si – a deformidade – surge lentamente. Ele é um exemplo básico daquela teoria da 'tábula rasa' de Locke – pois deve aprender tudo – e também uma prova do nosso narcisismo – quando ele se percebe feio, começa o drama.

O monstro aprende a partir das experiências – precisa tocar as brasas da fogueira para saber que o fogo queima – eis o empirismo de Locke. De experiência em experiência ele cria 'conceitos' mentais – as ideias. Ou seja, nada há de um 'inatismo', um 'relembrar' segundo a doutrina platônica. O monstro está na natureza tal um homem pré-histórico, da idade da pedra, aprendendo a usar o fogo, a assar os alimentos, a guiar-se pela posição dos astros (o sol e a lua, principalmente) – ou seja, não sendo educado na civilização do século 18, o monstro repete os primeiros passos dos primeiros homens, antes da civilização.

Aliás, os primeiros contatos com os 'civilizados' são nada agradáveis – a deformidade do monstro sempre traz horror e rejeição. Agredido, a criatura passa a temer os humanos! A agressão – a maldade? - do monstro vem da agressão que ele sofreu primeiro. Ele é a vítima – rejeitado devido a aparênica! Às ocultas, o monstro passa a observar os humanos, nas aldeias, nos campos, nos casebres – o convívio das famílias.


Em alguns momentos, o monstro parece mesmo um anjo caído, um Lúcifer, no Paraíso Perdido, a observar o primeiro casal, no Jardim do Éden. Mas, na realidade, os humanos não são felizes. O sofrimento vem da carência, da pobreza (material ou intelectual). A vida no campo, nas aldeias mostra a divisão entre abundância urbana e penúria rural. O monstro até evita roubar os aldeões – para não prejudicar as pessoas! O monstro revela-se comovido com o sofrimento alheio!

E assim ele consegue aprender sobre os humanos. Descobre as palavras – que sons articulados significam coisas! - que transmitem emoções, conceitos, ideias, ofensas. A criatura passa a se afeiçoar aos humanos que observa – e até ajudá-los. Mas hesita em se revelar aos humanos. Pois começa a perceber a própria aparência que é mostruosa, “Ai de mim! Eu ainda não sabia inteiramente os fatais efeitos desta deformidade miserável.” (“Alas! I did not yet entirely know the fatal effects of this miserable deformity.” c. XII)

Ao reclamar de sua aparência, a criatura diante do Criador, lembra o Homem a se comparar aos Anjos, a querer dizer, 'por que não me fizeste tão belo quanto eles?' Não é outra a fonte de decepções do monstro (ainda não malévolo). A criatura aprende a entender o idioma, a entender a leitura dos livros – que um dos camponeses lê em voz alta. Ou seja, o monstro vai se instruindo, um belo autodidata! Percebe que o ser humano é capaz de ser nobre – mas também perverso e cruel.


A criatura passa a questionar a própria criação, o propósito do Criador – no caso, o Dr. Frankenstein – em fazê-lo tão disforme. “E o que eu era? Sobre a minha criação e sobre o meu criador eu nada sabia, mas sabia que não tinha dinheiro, nem amigos, nem propriedade. Eu era, além disso, dotado de uma figura horrivelmente deformada e abominável; eu não era da mesma natureza que o homem.” (“And what was I? Of my creation and creator I was absolutely ignorant, but I knew that I possessed no money, no friends, no kind of property. I was, besides, endued with a figure hideously deformed and loathsome; I was not even of the same nature as man.” c. XIII)

A criatura percebe ser um não-humano, um excluído, uma aberração! Um monstro do qual todos fogem e todos repudiam. Mas a criatura não é um animal selvagem – tem percepções e sentimentos humanos (aliás, tem a faculdade da linguagem...) O monstro percebe-se sem parentes, sem infância, sem carinho – como pôde ser possível a sua existência? O monstro é complexado pela falta de beleza – que impossibilita o 'narcisisimo'. Ele deseja e odeia a Beleza.

No capítulo XIV temo uma história dentro de uma narrativa dentro de uma história. É quando o monstro narra para Victor o drama da família De Lacey, exilada da França. (A estrutura narrativa deste romance de Mary Shelley é mesmo um jogo de encaixes – uma narrativa dentro de outra narrativa) Enquanto isso, são citadas as obras lidas pelo monstro (o que explicaria a fala até coerente ), obras encontradas numa mala perdida, lá a cobrir-se de bolor as páginas de Paradise Lost (Milton), Vidas (de Plutarco) e Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe), livros que passam a compor a cosmovisão (Weltanschauung) da criatura. Quer se explicar assim a 'erudição' do monstro que tece considerações sobre a 'moralidade humana' como se fosse um filósofo iluminista! (No mais o que pensamos ser o 'estilo' do monstro é o 'estilo' de Victor – e até que o 'estilo' de Victor não passe do 'estilo' do Capitão Walton, que escreve as cartas, diário de bordo...)

A criatura – horrenda e abandonada – passa a odiar o Criador (o Dr. Frankenstein a quem narra agora suas vicissitudes...) Se a criatura é uma espécie de Adão, onde está a Eva? Aqui, é evidente, o monstro parece mais um 'herói romântico' (até byroniano) do que um ser de filme de terror (como as tantas versões o retrataram...) O terror é a condição, a solidão – a crueldade é fruto amargo desta desesperança!

Igual a um Manfred, tal um Caim, a fala da criatura no capítulo XV, ao velho cego De Lacey, resume o drama do 'monstro de Frankenstein', “Eu sou uma criatura infeliz e abandonada; eu olho ao redor e não vejo parente ou amigo sobre a terra. [...] Estou cheio de medo, pois se eu fracassar, serei para sempre um pária no mundo.” (“I am an unfortunate and deserted creature; I look around and I have no relation or friend upon earth. [...] I am full of fears, for it I fail there, I am an outcast in the world forever.” c. XV)

Realmente, a horrenda criatura – com toda uma vida interior de 'poeta romântico' é um 'herói byroniano' por excelência. Rejeitado pelos humanos comuns, isolado, sozinho, rasteja nas margens, caminha na noite, jura vingança, nutre o ódio, é um maldito. Quer, então, uma noiva, para assim poder viver longe dos humanos – e evitar a maldade. O Adão monstruoso pede ao criador a esperada Eva monstruosa.

A cruel criatura é, na verdade, uma vítima de preconceitos – hoje, diríamo 'bullying' – e paga com crueldade a rejeição que recebeu. Assim são as crianças de ruas, os excluídos, que assaltam e matam os 'bons cidadãos'. A criatura era até bondosa, de sentimentos nobres – mas todos veem apenas a aparência disforme, o monstro. Então o monstro da aparência passa a contaminar a criatura do sentimento – e logo haverŕa um monstro 'por fora e por dentro'. Não hesitará em matar – e destruirá a felicidade da família Frankenstein.


“Pela primeira vez os sentimentos de vingança e ódio encheram meu peito, e não me esforcei para contê-los, mas deixei que brotassem numa torrente, inclinei-me para o prejuízo e para a morte.” (“For the first time the feelings of revenge and hatred filled my bosom, and I did not strive to control them, but allowing myself to be borne away by the stream, I bent my mind towards injury and death.” c. XVI)

É quando o monstro passa a procurar o criador - o Dr. Frankenstein – para se vingar. Então o monstro chega a Geneva (Genebra) e não demora a encontrar a propriedade dos Frankenstein – por puro acaso, como pode-se imaginar – e encontra o menino, o pequeno William, o irmão de Victor, e que será a primeira vítima. Agora o monstro tornou-se em definitivo aquele protagonista de um conto de terror.

O monstro é guiado pelo 'demônio interior' – tema muito frequente na obra de Edgar Allan Poe - “o pensamento virou loucura; esta atiçou o demônio dentro de mim” (“the thought was madness; it stirred the fiend within me -” c. XVI) Para cessar a vingança, o monstro tem uma exigência: quer que o Dr. Crie uma noiva para ele – será a noiva do monstro de Frankenstein! O monstro passa a perseguir Victor, pois exige a tal 'companheira'. Victor passa a sentir o peso da maldição tal um Manfred byroniano, a clamar por descanso na morte e nas trevas!

A relação criador – criatura é turbulenta. A criatura desafia o criador quando chama a si mesma de 'mestre', sendo Victor o 'escravo' - “És o meu criador, mas eu sou teu mestre: obedeça!” (“You are my creator, but I am your master: obey!”) Uma verdadeira temática 'senhor e escravo' que tanto fascinou filósofos tais comos Hegel e Nietzsche. O monstro jura vingança – se Victor não criar a 'companheira'. Na verdade, Victor quase dá vida ao novo ser – mas teme que uma raça de monstros se alastre pela terra. A vingança do monstro é anunciada - “Estarei contigo em tua noite de núpcias” (“I will be with you on your wedding-night”) - até porque o monstro sabe que Victor vai se casar com a querida Elizabeth.

O fato é que Victor sobrevive a toda a tragédia – para poder narrar ao capitão. Pois tal um herói byroniano, Victor Frankenstein é incapaz de alcançar a paz, o conforto, a consciência tranquila, “não há em todo o mundo qualquer conforto que eu possa receber” (“on the whole earth there is no comfort which I am capable of receiving” c. XXI) Victor, na verdade, até lamenta ter sobrevivi para narrar a tragédia.

Frankenstein, o Doutor, ajudou o capitão Walton a corrigir as notas sobre a tragédia – ou seja, o livro que acabamos de ler – as consequências das ambições científicas de um jovem genial, que pecou por excesso! Quantos não fizeram o mesmo e pagaram caro?! A Hybris (arrogância) merece uma Nemesis (vingança) implacável .

Victor passa a perseguir o monstro vingativo que destruiu toda a família Frankenstein – o monstro que fugiu ao controle. E a criatura arrasta o criador até as imensidões gélidas do norte – onde ocorrerá o encontro com a tripulação do capitão Walton – e nós leitores saberemos da drama todo.

Aprenderemos que quanto maior a audácia, o apogeu da experiência, maior a queda – a obra de Mary Shelley tem assim um final moralista, uma moral : não ouse, não desafie o Criador!



Frankenstein e Science Fiction

Em Frankenstein temos a criatura que foge ao controle do criador, nos contos de robôs – principalmente de Isaac Asimov – temos as máquinas criadas pelos humanos. Máquinas que podem fugir ao controle. Ou andróides – robôs humanóides – que se passam por humanos e cometem crimes (vejam o clássico “Blade Runner”, 1982, de Ridley Scott, baseado no livro de Philip Dick, “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, 1968). O ser humano cria os robôs – e os robôs se rebelam, querem o poder, fazem a 'revolução' – ver o filme “Exterminador do Futuro” (Terminator, 1984, de James Cameron ) onde ciborgues (robôs metálicos com forma e pele humanas) são caçadores de humanos resistentes.

Ou, num estilo mais psicológico, ou drama, o robô-menino de Inteligência Artificial (A. I. – Artificial Inteligence, 2001) de Kubrick e Spielberg, baseado na obra de Brian Aldiss, “Supertoys Last All Summer Long”, de 1969, onde o robô 'acredita' ser mesmo um menino e quando descobre ser uma máquina, tal um Pinóquio (ver a obra Pinocchio, 1883, do italiano Carlo Collodi) vai em busca da Fada Azul, para que ela o transforme em criança de carne e osso.

Isaac Asimov considera “Frankenstein” um precursor da Science-Fiction – junto com a obra de Jules Verne, “A Viagem à Lua” (1865 ) - mas Asimov não comenta outro livro de Mary Shelley, “The Last Man” (1826 ) sobre uma epidemia no século XXI.


Frankenstein e o cinema

Existem várias adaptações da obra de Mary Shelley para o cinema, ao longo do século 20, mas nenhum 'resgata' plenamente o livro, dão mais ênfase aos momentos de terror, não consideravam o fundo psicológico – mais explicitado nas cartas – e por tanto podemos dizer que são apenas 'inspirados' no romance Frankenstein.

A primeira é de 1910, uma filmagem primordial feita por Thomas Edison, depois, em 1931, outra versão mais de terror, que destacou Boris Karloff como protagonista. Seguiram-se outros filmes menos expressivos e até mais para o tom cômico.

Em 1994 foi a vez da versão de Kenneth Branagh, “Mary Shelley's Frankenstein” que procurou ser mais 'fiel' que os demais, contudo ainda não segue plenamente o enredo do romance.


Frankenstein e HQ

Um link para a revista em quadrinhos de Bernie Wrightsons. Imagens góticas para um ícone da literatura gótica de terror.

http://www.johncoulthart.com/feuilleton/2008/09/14/bernie-wrightsons-frankenstein/




set & nov/10
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