sábado, 18 de dezembro de 2010

sobre DRACULA - de Bram Stoker (1:3)






Sobre o clássico do terror Dracula (1897)
do autor irlandês Bram Stoker (1847-1912)


classic horror fiction
ensaio 3

Quando o Terror surge entre a Vida e a Morte


p1

Falemos mais sobre Vampiros. Que fascínio estes seres exercem sobre os pobres mortais? Que fantasias são capazes de despertar? Que maldições tecem as tapeçarias de delírios que movem as produções de livros, filmes, bandas de música? Por que tal criatura se destaca tanto no universo do terror a ponto de ter proeminência sobre outros mortos-vivos e bestas apocalípticas?

Este ensaio aborda a obra Dracula de Bram Stoker, mas tem dois anexos – um antes e outro depois. Primeiramente, um cenário sobre o que entendemos por vampiro. Há outros escritores antes e depois de Stoker que falaram sobre os undead. E assim a cada escrita e reescrita novas peças podem se encaixar no mito, novas lendas podem ser 'criadas', novas alternativas para a origem e para o final destes monstros tão adoráveis.

A terceira parte é um panorama da presença dos vampiros na cultura ocidental. Uma série de links com conteúdo midiático on-line sobre livros, autores, filmes, animações, blogs, sites, bandas musicais que se dedicam a atualizar a temática dos vampiros – seja explicando, contestando, adorando, desejando.


Começaremos com a mitologia sobre Vampiros, a herança do vampiro folclórico. Sobre vampiros eu apresento mais perguntas do que respostas, eis algumas...


Vampiros sugam sangue dos vivos - mas os vampiros saem do túmulo para sugar?

Alguns autores apresentam o vampiro enquanto espectro, um fantasma, que ataca os vivos. Assim, o corpo undead não deixa o túmulo. O fantasma suga uma vítima e o corpo undead no túmulo 'recebe' a energia vital do sangue sugado.

Outros autores mostram o corpo undead a sair do túmulo – tal um zumbi, um morto-vivo, meio preservado, ou rejuvenescido (ainda que com o fedor próprio da morte e da terra úmida) e suga o corpo da vítima

Ou seja, temos duas possibilidades. Um espírito preso a um corpo undead. Este espírito suga a energia vital no sangue de um corpo vivo e teletransporta esta energia para o corpo lá na cova -por isso o corpo lá se conserva. Ou é um corpo undead conservado que sai por aí a sugar corpos vivos.

No primeiro caso, os vampiros podem atacar até nos sonhos, ao provocarem alucinações e pesadelos. No segundo caso são monstros sujos de terra e fétidos de terra úmida que dilaceram pescoços de vítimas indefesas.

Um autor de ficção que se destaca no 'vampiro espectro' que atua sem que o corpo deixe a sepultura é o italo-americano Francis Marion Crawford, 1854-1909), com o conto (gothic tale) “For The Blood is the Life” (publicado em 1911)

“Então ele foi até o monte de terra e parou sobre este onde eu podia ver a Coisa ainda lá, mas não exatamente deitada; ela estava de joelhos agora, movendo os braços ao redor do corpo de Holger e olhando direto na face dele. Uma brisa gélida arrepiou meus cabelos neste momento, enquanto o vento noturno descia sobre as colinas, mas eu sentia como se fosse um respirar de um outro mundo.
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A coisa parecia tentar se levantar sobre os próprios pés com a ajuda do corpo de Holger enquanto ele ficava em pé no mesmo lugar, um tanto inconsciente disso e aparentemente olhando para a torre, a qual é muito pitoresca quando o luar cai sobre ela naquele lado.”
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Then he went on till he reached the mound and stood upon it. I could see the Thing still, but it was no longer lying down; it was on its knees now, winding its white arms round Holger's body and looking up into his face. A cool breeze stirred my hair at that moment, as the night wind began to come down from the hills, but it felt like a breath from another world.
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The Thing seemed to be trying to climb to its feet helping itself up by Holger's body while he stood upright, quite unconscious of it and apparently looking toward the tower, which is very picturesque when the moonlight falls upon it on that side.

Fonte:
http://www.vampireoccultsociety.com/crawford_bloodislife1.html


Outros autores de ficção preferem o vampiro corpo que sai do túmulo – talvez por ser um terror mais material, mais carnal. Assim encontramos os vampiros em obras de Stephen King, Anne Rice e Stephenie Meyer, para citar os mais famosos (e campeões de vendas).

Quanto a destruição do vampiro – tanto num caso quanto no outro – o corpo undead deve ser destruído – exumado e desmembrado, ou golpeado com estaca no coração, ou queimado.

Há também a figura do 'vampiro astral' que pode designar não apenas um vampiro-fantasma. Há um tipo de pessoa, digamos um vampiro corpo vivo que é capaz de sugar energia do 'campo astral' composto de energia vital – ou diretamente pelo toque. São pessoas que ao tocarem o corpo de alguém, 'sugam' energia vital (não exatamente sangue). Pessoas que mesmo sem tocarem sugam energia vital de uma ou mais pessoas. Em festas, em ambientes lotados, o vampiro-astral passeia anonimamente a sugar energias alheias. Em muitos ambientes se percebe uma debilitação do ânimo vital que se perde para o proveito de outrem.


Quem tem tendência a tornar-se vampiro?

Vítimas de vampiros, foram sugadas e vampirizadas; ou então os suicidas, que ansiam pela morte mas antes da 'hora', assim atraem os mortos-vivos; ou então vítimas de atos violentos, cruéis, assassinatos, pois morrem antes da 'hora'; há também os 'hereges', ou os amaldiçoados – aqui o poder das religiões em 'excomungar' pessoas – e a crença de que nem a tera queria aceitar o corpo maldito – lembrar que hereges e suicidades eram enterrados fora dos 'campos santos' onde a terra era consagrada.

Existem também os que agem como se fosse vampiros – matam e sugam sangue – mas aqui é um caso patológico, de doença mental.


O que é lenda, o que é fato?


Explicações para o vampiro folclórico não faltam. Citemos o norte-americano Paul Barber e o espanhol Juan Gómez-Alonso. Barber aborda mais a questão dos sepultamentos e as condições dos cadáveres nos tempos medievais e início da modernidade (séculos 15 a 18). O que os camponeses sabiam sobre decomposição de cadáveres? O que sabiam sobre doenças transmissíveis? Que teorias não teriam inventado para explicar ocorrências um pouco mais 'estranhas'?

Barber analisa os fatos do folclore, enquanto o espanhol Gómez-Alonso, sendo um neurologista, preocupa-se com as questões de saúde. A infecção por raiva (também Hidrofobia) poderia ter sido uma das causas do mito do vampiro. Em artigo publicado no jornal da Academia Americana de Neurologia, Gómez-Alonso, que é profissional do Hospital Geral de Vigo, Espanha, o médico traça uma descrição do estado calamitoso de uma vítima portadora de raiva: espasmos faciais, lábios que se contraem, gengivas expostas – o que 'aumenta' o tamanho dos dentes – impulsos violentos, ereções prolongadas, fotofobia – hipersensibilidade aos estímulos luminosos, isto é, medo da luz e desejo de ficar na escuridão. Ora, estes são 'sintomas' de vampirismo!

Na Hungria do século 18 ocorreu uma epidemia de raiva – que atinge principalmente, como sabemos, lobos, cães e morcegos! - o que se alastrou para os humanos, que chegavam, em crises espasmódicas, a morderem outras pessoas. Também mostraram sinais de sensibilidade diante de focos de luz, e não conseguiam dormir – assim insônia é também sintoma!

E muitos cadáveres eram exumados para previnir a propagação de novos 'vampiros'. E quando os cadáveres eram revelados havia sangue nas bocas! Para o médico espanhol isso mostra que o sangue das vítimas da raiva tem um tempo mais lento para a coagulação sanguínea. Assim o sangue escorre pela boca – e outras mucosas – mesmo após o sepultamento.

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Mais sobre o artigo de Juan Gómez-Alonso
http://www.skeptictank.org/rabvamp.htm
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/178623.stm
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Estas questões de sepultamento, sangramento, condições do cadáver são extensivamente abordadas pela obra de Barber, da qual citaremos os trechos mais elucidativos. Lembro que tanto o autor quanto este crítico distinguem os vampiros folclóricos dos vampiros da ficção.

“Paul Barber em seu livro Vampires, Burial and Death [sem tradução no Brasil, mas seria “Vampiros, Enterros e Morte”] tem descrito que a crença em vampiros é resultado das tentativas de povos de sociedades pré-industriais para explicar o natural, porém para eles era inexplicável, o processo de morte e decomposição.”
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Paul Barber in his book Vampires, Burial and Death has described that belief in vampires resulted from people of
pre-industrial societies attempting to explain the natural, but to them inexplicable, process of death and decomposition.
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As tradições, as lendas sobre vampiros integram o folclore da Europa do leste, com alguns aspectos que se repetem na maioria das narrativas – de várias testemunhas (geralmente coveiros, padres, autoridades civis, parentes) – a saber, cadáveres que demoram a se decompor, conservam o sangue fresco, pois sangram, causam epidemias, tem um fedor medonho, são eliminados definitivamente por estaca no peito – apenas uma das formas de matar 'vampiros' – outras são o desmembramento, a decapitação, a queima do cadáver (cremação).

Os casos citados na obra de Barber são o de Peter Plogojowitz, do século 18, na região da Sérvia, Walachia, que foi parte do Império Austro-Húngaro até a Primeira Guerra Mundial), também o caso do sapateiro de Breslau, o caso de Arnod Paole, um ex-soldado, também na Sérvia, no mesmo século 18. Este último caso chegou a alertar as autoridades. Julgavam que outros estavam se tornando vampiros – então exumaram o corpo suspeito, e estava não-decomposto, e sangrava pela boca. Então foi perfurado com estaca e depois cremado.

O caso dos vampiros gregos foi abordado pro De Tournefort. “No início do século 18, o botânico francês Pitton de Tournefort teve a oportunidade de observar, em primeira mão, a dissecação de um vrykolakas grego na ilha de Mykonos.” (p. 21) Outas grafias são encontradas (vorkalaka, vrikolax) para designar um ser meio morto meio vivo, meio 'assombração', que foi um ser desnaturado quando vivo – há algo em vida, alguma maldição, que leva ao vampirismo? - o 'vampiro' em questão havia sido vítima de homicídio. E este em especial não matava, não sugava sngue, era mais um 'espectro'.


Há mais variações do que um padrão entre as lendas germâncias (sobre Nachzehrer), gregas (vrykolakas), eslavas (revenants), romenas (strigoi) – ainda mais quando a questão é: é possível a eficácia de ritos cristãos para apaziguar a ameaça dos vampiros? A força do vampiro é mesmo demoníaca? O que leva um vampiro a ser vampiro? É transmissível? É uma maldição?

No capítulo “How Revenants come into existence” (p. 29), Barber lista hipóteses, e analisa uma por uma. Primeiro, a predisposição. Depois a predestinação. Em seguida, o que acontece com o vampiro. E por fim o eventos não conclusos, por exemplo, rituais não terminados, missões de vida não concluídas. Também são não-eventos a não ocorrência de extrema-unção, por exemplo. Se o morto não recebe os rituais devidos – a causa seria a ausência, falta da religião) E relaciona com o germânico Nachzehrer, geralmente um suicida.

Um suicida tem mais 'chance' de ser 'vampiro'? Bruxos e bruxas são mais facilmente vampirizados... Crianças deformadas? Devassos e assassinos? Maldição familiar? Sonâmbulos? Catalépticos? Ou vira-se um vampiro ao ser atacado por vampiro? Basta o vampiro sugar o sangue para 'vampirizar' a vítima? Ou deve haver uma espécie de 'troca de sangue'? Para os padres (e outros sacerdotes) uma suspeita de heresia basta. Assim blasfemadores, não frequentes às missas, rebeldes (além de ladrões e judeus) eram mais sujeitos a transformação vampírica.


“Na Rússia, suicidas, vítimas de homicídio, afogados, e vítimas de ataque cardíaco estavam em risco, e seus corpos eram geralmente dispostos diferentemente em relação aos outros corpos.” (“In Russia, suicides, murder victims, people who drowned, and even victims of stroke were particularly at risk, and their bodies were usually disposed of differently from those of other people.” p. 34)

e

“Na Grécia, uma anátema de padre foi considerada como suficiente para causar que um corpo se tornasse um vrykolakas, ou uma maldição, e tanto Lawson e os Blums citam tais maldições. Um relato da Romania declara que uma ferida aberta, se não coberta, será a causa de um cadáver tornar-se um revenant [undead]”
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(“In Greece, a priest's anathema was regarded as sufficient to cause a body to become a vrykolakas, or a curse, and both Lawson and the Blums cite such curses. One account from Romania states that an open wound, if not coevered, will cause a corpse to become a revenant;” p. 36)
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Alguns autores – Barber cita Flückinger - tentam 'explicar' os casos de vampiros, especificamente daqueles corpos encontrados no caixão em posição diversa daquela de quando foram enterrados, ou de mãos que se projetam de caixões dilacerados, como exemplos de pessoas que foram enterradas vivas. Por caso de coma ou catalepsia, doenças pouco compreendidas na época (imagine nas eras pré-iluministas quantos não foram enterrados ainda vivos, mas dados como mortos!) Outros autores – aqui citados Leatherdale e David Dolphin - apontam os casos de porfiria (porphyria) que teriam vitimado aos supostos 'vampiros'. Ainda, para alguns autores (Ranft, Meinig, Fritsch) se alguns corpos são 'conservados', algumas circunstâncias são apresentadas por 'retardadoras' do processo de decomposição – por exemplo terra arenosa, baixa temperatura.


No aspecto exterior do 'vampiro', Barber realça, no capítulo “The Appearance of the Vampire”, as diferenças entre os vampiros do folclore e aqueles da ficção,


“Dos vários vampiros do folclore e da ficção, talvez o mais fácil de descrever é aquele das ilustrações, desde que o obetivo do artista é criar, tão rápido e eficiente quanto possível, algo que será recolhecido instantaneamente, por alguém, como um monstro sugador de sangue, de preferência um sujeito alto, soturno a vestir roupas de moda antiga. Eu suspeito que o ilustrador se pertimiria usar duas marcas de vampiro tais como uma capa preta e longos dentes caninos. Com estas marcas o artista transformaria qualquer figura em algo vampiresco.
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O que é curioso sobre isto é que nem a capa nem os caninos são encontrados no folclore de vampiro : aqui novamente, a ficção tem pouco a ver com o folclore.”
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Of the various vampires from folklore and fiction, perhaps the most easily described is that of the cartoons, since there the artist's objetct is to create, as quickly and efficiently as possible, something that will be recognized instantly, by anyone, as a blood-sucking monster rather than, say, a tall, brooding fellow in old-fashioned clothing. I suspect that a cartoonist allowed to use only two vampire-markers would demand a black cloak and long canine teeth. With these the artist could transform any figure into something vampirelike.
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What is curious about this is that neither the cloak nor the canines finds a place in the folklore of the vampire: here again, fiction has little to do with folklore
.” (p. 39)


As roupas de um revenant não estão obviamente conservadas com tons aristocráticos como se vê em filmes – onde sequer terra e galhos são observados sobre as roupas impecavelmente esvoaçantes para melhor efeito de terror sobrenatural. Barber aproveita para abordar mais sobre a figura pálida que os filmes consagraram,

“No folclore, como pode ser visto nas citações, o vampiro é bem diferente daqueles assemelhados em filmes. A cor do vampiro nunca é pálida, como se esperaria de um cadáver: a face é comumente descrita como rosada, ou uma cor saudável, ou escura, e que devia ser atribuída ao hábito de beber sangue.
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“In folklore, as may be seen from the above quotations, the vampire is very different from his counterparts in the movies. His color is never pale, as one would expect of a corpse: his face commonly is described as florid, or of a healthy color, os dark, and this may be attributed to his habit of driking blood.” (p. 41)
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Desconhecendo os passos da decomposição cadavérica, os exumadores encontravam um ser ainda com sangramentos e imaginavam logo que o sangue seria de alguma vítima. Atualmente, sabe-se que muito sangue nos pulmões não se coagula facilmente e pode vazar pelas mucosas – boca, nariz, olhos, assim que a pressão abdominal aumenta, com o inchaço do cadáver.

Barber aborda também a questão se o vampiro deve repousar sempre na terra onde foi enterrado. Veremos no Dracula de Bram Stoker que o Conde ao viajar carrega o caixão com terra do próprio túmulo. A chamada terra nativa (“native earth”), que teria uma explicação.

“A teoria da 'terra nativa' da ficção, por exemplo, parece ter surgido da crença (folclórica) de que o vampiro deve permanecer em sua cova parte do tempo – durante o dia – mas com poucas exceções os vampiros do folclore não viajam. Eles não são itinerantes, iguais ao Dracula, e nada é dito sobre eles serem capazes de se desviar da obrigação de manter-se em suas covas meramente por carregarem consigo um suprimento de terra da decomposição.”
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(“The 'native earth' theory of fiction, for example, seems to have arisen out of the (folkloric) belief that the vampire must remain in his grave part of the time – during the day – but with few exception folkloric vampires do not travel. They are not itinerants, like Dracula, and nothing is said of their being able to circumvent their obligation to remain in their graves merely by taking with them a supply of dirt.” p. 67)
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Outro detalhe: os espelhos. Na Ficção, os vampiros sem reflexo no espelho. No folclore é comum encontrar narrativas onde os espelhos são cobertos durante os velórios, para não refletirem o cadáver. No mais, é comum a superstição de que quebrar espelho causa azar, infortúnio. Mas em algumas crenças do folclore, a presença de espelhos seria capaz de 'prender' a alma do finado quando esta se desprende do cadáver. É esta alma – enquanto espectro – que pode eventualmente assustar os parentes e vizinhos nos sonhos – que se tornam em pesadelos. A ideia de alma enquanto 'duplo' (em relação ao corpo) é de tradição egípcia, e de alguns povos sumérios, e até hoje é crença de espiritualistas.

O vampiro não ter sombra seria uma forma de simbolizar que o ser maldito não tem mais alma – ainda que outras fontes apresentem o drama do vampiro como um caso de alma que fica presa ao corpo, e deste modo atrasando a decomposição cadáverica. Estas explicações religiosas, cristãs, mostram o aspecto que une o vampirismo e o satanismo – o suposto fato de que a força dos vampiros tem origem demoníaca. Mas o aspecto religioso nem sempre é muito relevante na ficção. Na ficção tradicional os vampiros podem se apresentar na forma de sombras espectrais, ou então na forma corpórea. Enquanto corpos não projetam sombra nem aparecem em espelho.

Portanto, o que não faltam são diferenças entre os vampiros das narrativas orais do folclore do leste europeu e os vampiros que se eternizaram nos contos, nas gothic novels, nos HQ, no cinema, nos seriados juvenis. Para Stoker, os vampiros do folclore foram utéis para criar o contexto – assim como pesquisar a história da Transylvania, região disputada por húngaros e romenos – para dar uma 'base' ao ser da ficção. Enquanto outros autores preferiram 'dar asas à imaginação' ao criarem seres que pouco se assemelham aos do folclore e aos de Stoker. Atualmente, os vampiros ficcionais não seguem qualquer 'tradição' – cada autor tem o vampiro que merece.

Vampiros na Ficção

(ênfase aqui: século 20)


Os vampiros de Stephen King estão na mesma tradição dos vampiros de Polidori, Bram Stoker, Le Fanu, etc. Mas Anne Rice – ao fazer os vampiros narrarem suas experiências (o narrador em 1ª pessoa!) - rompe com a tradição ao criar seres poderosos e conscientes tais como Armand, Lestat e Louis. Temos o vampiro-ator, o vampiro-yuppie, o vampiro rock-star!

Enquanto os vampiros tradicionais – the Old ones – são mais hereges, anticristos, deformados e moralmente condenados; os vampiros 'modernos' – the new vampires – são menos hereges, mais hedonistas, individualistas, amorais. Lutam para 'subir na vida' e não hesitam em destruir existências alheias. Qualquer semelhanças com a prática burguesa-capitalista não é mera coincidência!


Enquanto Stephenie Meyer, autora de “Twilight”, simplesmente ignora a 'tradição' e Anne Rice! Meyer não hesita (nem se envergonha) em dizer que não leu “Dracula” e apenas folheou alguns livros de A Rice. Meyer conseguiu a façanha de consagrar os vampiros-teenagers, que são imortais que frequentam escolas e disputam - com lobisomens atléticos! - mocinhas caipiras inocentes!


Se nas Crônicas Vampirescas, os vampiros têm voz – Louis, Lestat – na saga de Meyer, Crepúsculo, a narração em 1ª de alguém envolvido com- / seduzido por vampiros. Bella é uma mocinha comum, proviciana, que se vê envolvida numa trama, num verdadeiro embate entre 'vampiros' e 'lobisomens' – ela está fascinada, quer e não quer ser vampira – ou seja, ela hesita diante da 'sedução', mesmo que o vampiro seja um 'jovem', um teen misterioso e charmoso.


Se S. King valoriza o terror, os vampiros enquanto predadores, inimigos dos humanos, A. Rice prefere apresentar a perspectiva dos vampiros, que ainda conservam algo de humano. Esta perspectiva ainda que diminua o terror, ainda aparesenta os vampiros enquanto predadores.

Mas S. Meyer leva a 'humanização' dos vampiros ao extremo ao mostrar os vampiros apaixonados – um romantismo que lembra os clássicos de Jane Austen e das irmãs Brontë – ao mesmo tempo em que troca o sadismo e o amoralismo por moralismo cristão-mórmon: a importância da sexualidade reprimida (o vampiro despreza o sangue!) na forma de abstinência sexual.


Vejamos algumas semelhanças e diferenças nos principais vampiros da ficção.

Os Vampiros na tradição Stoker são baseados nas miríades de lendas do folclore eslavo e húngaro-romeno sobre mortos-vivos, revenants, strigoi, etc, e tendem mais ao horror que à filosofia. São medonhos e nada elegantes – com exceção para o Vampiro-Rei, o Conde Dracula, capaz de ser charmoso e fascinante.

Na tradição, os vampiros podem ser cadáveres ambulantes, ou espectros que atacam durante o sono. Podem se metamorfosear em lobos, cas negros, morcegos, répteis além de um tipo de névoa. Voam, matrializam-se, desmaterializam-se, andam flutuando, esclam torres, atravessam paredes – ou seja, podem ser corpo ou espectro, a depender das circunstâncias. Não há referências aos poderes mentais, mas podem influenciar o estado atmosférico (provocar tempestades, por exemplo)

Seres que não possuem sombra nem reflexo no espelho. Temem crucifixos, igrejas, hóstias, rosários, água-benta, alho, etc. São seres passíveis de destruição pelo sol, fogo e estaca enterrada no coração. Como criam outros vampiros? Como é o 'ritual de iniciação'? Os vampiros sugam o sangue da vítima e doam o próprio sangue aos poucos, em vários ataques. Se o vampiro apenas sugar, a vítima morre – não se torna outra vampiro.

A autora A. Rice cria todo um universo de vampiros baseados em algo da tradição, mas inventando algumas alternativas possíveis para 'explicar' a cosmogonia dos seres norturnos. Nessa pretensão de 'criar um universos' ela se assemelha ao megalomaníaco J. R. R. Tolkien (1892-1973), autor de The Lord of the Rings, mas sem o talento e genialidade dele. Não que Rice não tenha méritos, mas ela exagera.

Em Entrevista com o Vampiro – um clássico de vampiros modernos - já existem exageros, que só vão piorando de volume a volume nas Crônicas Vampirescas. Criar um universo auto-explicativo, uma literatura auto-referencial não é fácil, é tarefa para poucos. Muita pretensão pode afundar o Titanic literário.


Mas vamos considerar primeiramente onde Rice foi mais interessantemente criativa. Para ela, os mortos-vivos são cadáveres animados por uma demoníaca ânsia de sangue. Despertam ao crepúsculo e adormecem ao alvorecer. São capazes de resguardar uma memória lúcida – tanto que narram as próprias experiências. Não têm poder de metamorfose, não voam – podem levitar, flutuar – podem correr velozmente, escalar superfícies. Não se desmaterializam, não se deformam, não atravessam paredes.

Possuem sombra e reflexo no espelho; possuem o dom da telepatia e da telecinese. Detalhe importante: os vampiros progenitores não sentem os pensamentos de seus iniciados. Não temem forças sobrenaturais, nem crucifixos, nem igrejas, nem hóstias, nem água-benta, nem alho, rosas frescas, etc. Não têm influência sobre o estado atmosférico.

Como é o 'ritual de iniciação'? Nas Vampire Chronicles é chamado de Dark Gift – a dádiva sombria – onde o vampiro progenitor suga por completo o sangue da vítima e em seguida concede a esta o próprio sangue vampiresco em um único e fulminante ataque, ou em vários ataques, noite após noite. O exemplo é a transformação de Louis por Lestat que foi por etapas, a medida que Louis era seduzido por Lestat. (Em Dracula, a vampirização de Lucy é também por etapas, a cada visita do Conde Dracula)

Mas além disso, Rice lembra dos vampiros tradicionais, aqueles do folclore, das lendas, como um dos 'tipos' de vampiros. Ela cuida em integrar no universo que ela cria o universo já que existe! Quem são os vampiros tradicionais? São os ressurgentes, os revenants. Vivem nos cemitérios, ou bosques. Andam em rapos, fedem à terra úmida, o copor em quase-decomposição. São mentalmente limitados – assim jamais poderiam narrar a própria história. São submetidos a líderes – enquanto os vampiros aristocratas são individualistas, misantropos.

Os ressurgentes acreditam nas superstições que se criaram sobre eles mesmos – logo temem os crucifixos, os rituais, a água-benta, o alho, etc. Coisa que são motivo de zombarias para os vampiros esclarecidos (isto é, não supersticiosos, não-hereges). Os ressurgentes são adeptos de cultos de magia e de satanismo – coisa que para os aristocratas é mero charme ou entretenimento. Assim os vampiros tradicionais são os pré-Iluminismo, os irracionalistas que fascinaram os românticos – seres atormentados, melancólicos; enquanto os aristocratas,os 'modernos', são hedonistas.

Esses hedonistas são os vaidosos que se julgam caçadores no Jardim Selvagem da vida. Preferem o luxo dos mortais do que as catacumbas. São ateus e eruditos – odeiam superstições. Apreciam as obras de artes, colecionam 'souvenirs'. Vivem em lugares abandonados, sem semelhantes e sem líderes, pois preferem a solidão. Não se prendem ao solo em que morreram, ou foram vampirizados, pois preferem viajar, conhecer outros lugares e tipos de vítimas em potencial.

Os hedonistas não servem a qualquer divindade ou demônio, não se consideram 'maus', antes são sádicos no sentido de 'antes Eu do que eles', são avessos a qualquer moralidade, fazem o que desejam, guiados apenas pela 'ânsia'. Vampirizam o que os seduz – ou seja, os mortais insignificantes são apenas alimento, e logo descartados. Lestat explica isso a Louis – porque uns são vamprizados e outros não.

Podem ser amorais, mas sentem prazer no ataque. Daí ser caçadores – não valorizam a vida da vítima a menos que a vítima 'mereça'. Senão, a vítima apodrecerá como os outros medíocres. O prazer guia mais que a necessidade. Podem ficar um longo período sem sugarem sangue, enterrados por vontade própria.

Existem também os Anciões, ou Antigos, ou Filhos dos Milênios. São admirados pelos vaidosos e amaldiçoados pelos Ressurgentes. Os Antigos atravessam os séculos, se adaptando a cada época, a acumular conhecimentos. Estudam a evolução (ou involução) da humanidade. São grande ocultistas, quase semi-deuses. São místicos, iniciados, porém não religiosos. Assim suas faculdades mentais são assustadoras, podem se comunicar telepaticamente através de longas distâncias. Não apreciam formar novos vampiros – quando o fazem, é evento que ocorre raramente em séculos.

Os Antigos são dedicados a todo tipo de cultura e artes dos mortais, pois ainda amam a essência humana que ainda possuem. São detentores dos conhecimentos e lendas dos tempos remotos. Podem viajar por todo o planeta, sempre anônimos, irreconhecíveis, até para outros vampiros! E sabem todos os movimentos de seus semelhantes vampiros por todo o planeta. Para suportarem o passar das eras, se submetem a um longo tempo sepultados, para ressurgirem ainda mais ávidos de sangue -e saber. Mas ao passar dos séculos dependem cada vez menos de sangue; gradativamente tornam-se lentos, meditativos, insensíveis, sem expressão facial, sem emoções.

Para os Antigos, os conceitos de Bem e Mal são de todo indiferente. Amam a Imortalidade, o poder de serem visionários. E também a raridade da própria espécie. Pois os Antigos são raros, são sobreviventes, os primeiros a receberem o Dark Gift, geralmente são vampirizados na fase adulta, sendo portanto maduros, vividos, plenamente senhores de si mesmos.

Louis, um novo vampiro, conhece um vampiro Ancião quando se depara com Armand, no Theatre des Vampires, na Ópera de Paris. Eis a cena do diálogo de Louis e Armand, em Interview with the Vampire, the movie, http://www.youtube.com/watch?v=mWUxsUxMZ0E&feature=related) Outros Anciões são a Rainha Akasha, da linhagem do antigo Egito (em “Queen of the Damned”, Rainha dos Condenados) e Marius, um grande mecenas, amigo e protetor dos artistas (além de vampirizar alguns...) E é justamente Marius o vampiro-progenitor de Lestat, que narra a própria biografia em Vampiro Lestat.
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(interessante que na saga Crepúsculo, de S. Meyer, temos o Volturi, o vampire coven, seres milenares que são uma espécie de autoridade entre os vampiros.)
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Uma das melhores cenas de New Moon (Twilight Saga)
com a presença dos Volturi que mais parecem um conselho de cardeais
a Santa Igreja Católica Apostólica Romana
http://www.youtube.com/watch?v=z5S1tFzwzU4&feature=related
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Vampiros podem ler pensamentos?

Há duas respostas. Depende. Depende se vampiros são espíritos, se estão além-do-corpo.

Se vampiros são espíritos – desencarnados, mas ligados à carne – então surge a questão: espíritos podem ler pensamentos? Teólogos dizem que Deus e os anjos podem ler a mente humana – mas os demônios e Satã não podem. Outros dizem que até seres humanos podem ler as mentes de semelhantes – são os humanos paranormais.

Se os vampiros são 'mortos-vivos', são undead, são corpos torturados, mentes confusas, dificilmente poderiam ter semelhante poder sobre os humanos normais.

No entanto, na ficção temos o Conde Dracula que quase lê os pensamentos de Harker. E o sádico Lestat, da série Crônicas Vampíricas de Anne Rice, que lê os pensamentos de humanos – sejam vítimas em potencial ou não.

Nos livros de Meyer, a saga Crepúsculo, também o protagonista Edward Cullen consegue ler os pensamentos de humanos e vampiros. Ainda mais quando há situação de perigo. Alguns vampiros conseguem 'fechar' a mente para outros vampiros, como forma de proteção. A forma de ler a mente pode ser diversa. Ler algumas e não outras, ler sem tocar ou precisar do toque para melhor 'sentir' as vibrações...


Falemos de diferenças. Os vampiros tradicionais não têm a consciência – e a sanidade – dos vampiros de Anne Rice. São talentosos e podem cantar em bandas de rock, podem dirigir carros de último modelo. Têm todas a habilidades mortais potencializadas e superdimensionadas. Parecem mais os mutantes dos X-Men. Vampiros que são conscientes a ponto de tecerem autobiografias. Também estranho quanto o monstro de Frankenstein que narra as próprias vicissitudes ao perplexo Dr. Victor Frankenstein! Mas as diferenças são ainda mais perceptíveis se comparamos os vampiros de Rice e dos de Meyer.

Os vampiros de Rice seguem os tradicionais quando temem a luz do sol. Mas os de Meyer podem sair de dia, brilhar ao sol, andar pela cidade, estudar, ter vida social. E além da vida normal, podem voar, escalar árvores, parar carros em movimento. Quem não quer ser vampiro assim?

Os jovens adoraram – sendo vampiros não vão envelhecer, não vão apodrecer, serão sempre jovens, sempre apaixonados, sempre fortes e sedutores. Quem não quer ser vampiro? Ou seja, o vampiro virou o glamour – e perdeu o terror. Daí um mestre do Terror, o escritor Stephen King, ironizar a obra da Sra. Meyer.

S. King não engole a teen horror fiction de S. Meyer
http://www.guardian.co.uk/books/2009/feb/05/stephenking-fiction


Afinal, vampiros são seres do terror, não do glamour. A sedução está aliada ao modo de matar – o vampiro é sedutor igual uma cascavel é sedutora! Vampiros não são modelos fotográficos, não são astros do cinema – como deseja os produtores da série “Vampire Diaries” onde a glamourização transforma os vampiros em mauricinhos e patricinhas estilizados com toda uma cultura da beleza e do shopping center! Vampiros que vivem o american way of life! Beleza, consumo, sedução. Melhor, impossível.


No mais, o mais interessante é comparar os vampiros de King, Rice e Meyer – raramente parece que estão falando sobre a mesma espécie de criatura! Aliás, Meyer pouco se importa. Os vampiros se comportam como teens – caprichosos e convulsos de hormônios! - com exceção dos Volturi, que são Anciãos, cardeais, pose de Reis Magos.

No universo de Meyer a tradição pouco importa. Aqui, os lobisomens, os Quileutes, não são uma maldição – são garotos atléticos, esportivos, que se transmutam em lobos, quando querem. Enquanto o werewolf, lobisomem da tradição, nem sabe que ele mesmo é um lobisomem – sofre a influência irresistível da lua cheia - seria ridículo um lobisomem dizer que sabe o que faz quando se trasmuta em quase-lobo. O lobisomem sabe do que ocorre por relatos de terceiros.
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Vide Bala de Prata, ou A Hora do Lobisomem, filme baseado em “Silver Bullet” de Stephen King, no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=gItfZA4LPqw
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Agora os lobisomens do mundo de Meyer,
http://www.youtube.com/watch?v=L0qEPqkofVI&feature=related
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Que no filme vira thriller de horror adolescente, claro. Quem já viu Underworld, entendeu. Link: http://www.youtube.com/watch?v=TMYyhBtQ1PU Vampiros versus lobisomens são uma fórmula de sucesso desde os velho e bom RPG. Acrescente efeitos especiais, e artes marciais ao estilo Matrix e pronto: bilheterias milionárias. Coisas de Mídia, nada mais.

Portanto, falemos agora do que importa. O clássico de Bram Stoker. O clássico que todo aquele ou aquela que se propõe a escrever sobre vampirismo deve conhecer – ler e reler. Nunca ignorar como fazem certos autores de best-sellers.
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continua...






nov/dez/10






Leonardo de Magalhaens






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sábado, 11 de dezembro de 2010

sobre Contos de Terror - de Edgar Allan Poe (3:3)









Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror
horror fiction

Quando o terror jaz no inexplicado



p3


The Masque of the Red Death


Aqui a fantasia gótica não poupa o leitor. Tudo é sinistro, angustiante. A praga, a peste, a epidemia lastra-se sobre um reino. A peste chamada “red death” - morte rubra – devasta um país, os domínios do Príncipe Prospero (há uma personagem de Shakesperare com nome igual. Vide “The Tempest”)


A morte rubra devastava o país. Nenhuma pestilência tinha sido antes tão fatal, ou tão horrível. Sangue era seu avatar e seu símbolo – a vermelhidão e o horror do sangue. Sobrevinham dores agudas, e uma súbita vertigem, e então um sangramento pelos poros, até a decomposição.” (“The "Red Death" had long devastated the country. No pestilence had ever been so fatal, or so hideous. Blood was its Avatar and its seal -- the redness and the horror of blood. There were sharp pains, and sudden dizziness, and then profuse bleeding at the pores, with dissolution.”)


Os nobres abandonam a plebe ao terror da peste. Não se importam muito com 'bem-estar coletivo' (aliás, isso é invenção pós-Iluminista) e querem mais é se proteger, perder-se em devassidão – tal uma corte romana, enquanto Nero incendeia Roma – do que lutar contra a propagação da calamidade. O povo que se vire.

Assim os cortesão não hesitam em se abrigar junto ao Príncipe, que promete diversão num magnífico baile.

“Era uma cena voluptuosa, aquela mascarada. Mas primeiramente deixe-me descrever os aposentos onde acontecia. Eram sete – uma suíte imperial. Em muitos palácios, de qualquer modo, tais suítes formam uma longa e contínua perspectiva, enquanto portas dobradiças deslizavam de volta quase até às paredes ao alcance, assim a visão da completa extensão é raramente impedida. Aqui o caso era bem diferente; como se esperaria da paixão que o duque tinha pelo que era bizarro. Os aposentos eram tão irregularmente dispostos que a visão apenas abarcava um pouco de cada vez. Após certa distância havia uma virada brusca e um novo efeito. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma longa e estreita janela gótica vislumbrava o corredor mais próximo o qual seguia as sinuosidades da suíte. Estas janelas eram de vidro tingido cuja cor variava de acordo com a tonalidade predominante das decorações do aposento para o qual se abria.”
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(“It was a voluptuous scene, that masquerade. But first let me tell of the rooms in which it was held. There were seven -- an imperial suite. In many palaces, however, such suites form a long and straight vista, while the folding doors slide back nearly to the walls on either hand, so that the view of the whole extent is scarcely impeded. Here the case was very different; as might have been expected from the duke's love of the bizarre. The apartments were so irregularly disposed that the vision embraced but little more than one at a time. There was a sharp turn at every twenty or thirty yards, and at each turn a novel effect. To the right and left, in the middle of each wall, a tall and narrow Gothic window looked out upon a closed corridor which pursued the windings of the suite. These windows were of stained glass whose color varied in accordance with the prevailing hue of the decorations of the chamber into which it opened.”)
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Cada vitral com uma cor, cada salão decorado com uma cor singular, cada jogo de luz ampliando os efeitos da orgia e da luxúria. A decoração, o luxo, a devassidão tudo parece debochar o sofrimento dos plebeus, dos camponeses, da população abandona ao terror da peste lá fora. Os nobres se divertem enquanto Roma pega fogo. Nada mudou.

“Mas estes outros aposentos eram densamente ocupados, e nestes pulsava febrilmente o coração da vida. E a festa seguia em turbilhão, até que começaram a ressoar as badaladas da meia-noite no relógio.” (“But these other apartments were densely crowded, and in them beat feverishly the heart of life. And the revel went whirlingly on, until at lenght there commenced the sounding of midnight upon the clock.”)

Todo o baile de máscara pretende ocultar o terror – mas o terror se manifestará dentro do palácio. Um vulto não convidado – aliás, um ser indesejado – virá 'divertir' no baile. O ápice é justamente o ressoar das batidas do relógio – a pre-anunciar um evento trágico - “foram doze badaladas a soar no relógio” (“there were twelve strokes to be sounded by the bell of the clock”)

As fantasias grotescas são um sarcasmo ao terror da peste. Aliás, a 'Peste' é encarada como outro mascarado, outro fantasiado, como se a Peste mesma se convidasse!

“Mas o mascarado foi longe demais ao assumir o tipo da Morte Rubra. A gesticulação borrifada de sangue – e sua fronte, com todas as feições estava salpicado de terror escarlate.” (“But the mummer had gone so far as to assume the type of the Red Death. His gesture was dabbled in blood – and his broad brow, with all the features of the face, was besprinkled with the scarlet horror.”)

O sarcasmo da fantasia é sarcasmo diante da indiferença dos nobres com o terror dos plebeus. A Morte, the grand leveller, a grande niveladora, não pode deixar que os nobres se livrem assim tão facilmente do destino comum – afinal de contas, a Morte não distingue classe social.

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para ler Máscara da Morte Rubra
no original
http://www.online-literature.com/poe/36/

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The Masque of the Red Death
na Cultura
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para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=UjrLFW0Y50I&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=LDxjXG84a9w&feature=related
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em español
http://www.youtube.com/watch?v=SICyoXyshQc&feature=related
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video
http://www.youtube.com/watch?v=m1NWXq7Hy90
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animation
http://www.youtube.com/watch?v=iLZ1EYuSNYQ&feature=related

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William Wilson


Novamente um conto em 1ª pessoa, o narrador-personagem é pouco confiável. Mas só temos a versão dele – uma parte dele – afinal ele parece ser duplo – existem duas partes dele mesmo – dois William Wilson. Ele depara-se com um outro garoto que se apresenta como o mesmo nome - e até a mesma face, mesmos gestos. Uma obsessão em ser William Wilson.

Quando o conto é intitulado “William Wilson” o Wilson-narrador quer contar a estória do outro-Wilson, mas é contando a própria estória é que sabemos quem ele é – ou diz ser. O título é, portanto, ambíguo. Qual William Wilson? O original ou o sósia? Quem é sósia de quem?

É um nome fictício, ele esclarece. Não quer envergonhar a família – ele que provem de uma raça de temperamento excitado e imaginativo. Ele igualmente é um inquieto, mas tende ao sadismo, ao exercer poder, ao dominar. Ele mesmo revela ao tendência à perversão – onde os outros homens foram gradativamente, ele afunda de só vez – segue aquele 'impulso de perversidade' que tanto causa infortúnio entre os narradores-personagens de “O Coração Denunciador”, “O Gato Preto”, e o próprio “Impulso de perversidade”.

“Em geral os homens descem pouco a pouco. De minha parte, num instante, todas as virtudes caíram do corpo como se fosse um manto. De uma crueldade comparativamente trivial eu passei, com um passo de gigante, às devassidões de um imperador romano Heliogabalus. Que oportunidade – que acontecimento levou-me à coisas perversas, sejam pacientes comigo enquanto eu relato.
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(“Men usually grow base by degrees. From me, in an instant, all virtue dropped bodily as a mantle. From comparatively trivial wickedness I passed, with the stride of a giant, into more than the enormities of an Elah-Gabalus. What chance -- what one event brought this evil thing to pass, bear with me while I relate.”)

Agora que William Wilson está diante da morte, ele resolve confessar – eis o relato que temos de uma vida de luxúria, jogatina, egoísmo, e tudo assombrado pela figura de um duplo – tal qual no conto “O Elixir do Diabo” de Hoffmann, onde há a figura do sósia, o Doppelgänger. Com o seu relato, Wilson espera a nossa piedade – que reconheçamos que as circunstâncias são mais fortes que a vontade humana – ele não seria assim tão culpado.

“A morte se aproxima; e a sombra que a anuncia lança uma entorpecente influência sobre o meu ânimo. Eu espero, ao passar este vale obscuro, pela simpatia – Eu quase disse piedade – de meus semelhantes. Eu ficaria satisfeito se eles acreditassem que eu tenho sido, em alguma medida, o escravo das circunstâncias além do controle humano. Gostaria que eles procurassem por mim, nos detalhes eu apresento, algum pequeno oásis de fatalidade meio a um deserto de erros.”
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(“Death approaches; and the shadow which foreruns him has thrown a softening influence over my spirit. I long, in passing through the dim valley, for the sympathy -- I had nearly said for the pity -- of my fellow men. I would fain have them believe that I have been, in some measure, the slave of circumstances beyond human control. I would wish them to seek out for me, in the details I am about to give, some little oasis of fatality amid a wilderness of error.”)

Assim, Wilson oscila entre um certo cinismo e uma esperança de piedade alheia. Mas é difícil ter piedade diante do sofrimento de Wilson. Ele era perverso sabendo que era perverso - e tendo prazer – até que encontrou um rival – alguém que estava à altura – e interferia para 'salvá-lo' : outra não era a origem de tanta curiosidade – e mal-estar – diante do outro Wilson. Pois era como a encarnação de uma 'boa consciência' – o Outro Wilson alertava quando Wilson estava sendo um 'mau garoto'.

Na escola, Wilson passa a reconhecer a existência de um 'rival'. Rival que seria um irmão gêmeo – enquanto os outros garotos até acham que o rival seria o 'melhor amigo' de Wilson – afinal, não eram inseparáveis. Essa ironia é não pode deixar de ser uma outra fonte de angústia.

“Ainda que este acontecimento não deixasse um vívido efeito sobre a minha imaginação desordenada, ainda foi evanescente quanto vívido. Por algumas semanas, realmente, ocupei-me em aguda inquirição, ou envolto em nuvem de mórbida especulação. Eu não pretendia disfarçar de minha percepção a identidade do singular indivíduo que assim perversamente interferia nos meus negócios, e atormentava-me com seus insinuantes conselhos. Mas quem e o que era este Wilson? - de onde ele surgira? - e o quais eram seus objetivos?”)
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(“Although this event failed not of a vivid effect upon my disordered imagination, yet was it evanescent as vivid. For some weeks, indeed, I busied myself in earnest inquiry, or was wrapped in a cloud of morbid speculation. I did not pretend to disguise from my perception the identity of the singular individual who thus perseveringly interfered with my affairs, and harassed me with his insinuated counsel. But who and what was this Wilson? -- and whence came he? -- and what were his purposes? “)


O sósia – o Doppelgänger – de Wilson não hesita em alertar o 'mau garoto', o jovem devasso, ao sussurrar ditos morais em seu ouvido, como se uma parte de Wilson se destacasse para ser seu super-Ego sempre alerta – ou uma real projeção do super-Ego – na forma de um outro-Eu, com características moralmente positivas.

Assim como Dorian Grey – no romance de Oscar Wilde – transfere a feiúra do vício para o retrato – que envelhece, enquanto o 'original' fica jovem – aqui William Wilson transfere o 'positivo' para o outro-Wilson, que passa a ser um imperativo categórico ambulante, enquanto Wilson é um perverso sem escrúpulos. Um imperativo a insinuar conselhos – que nunca são considerados, seguidos.


Sobre o 'Imperativo Categórico' em Kant
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Imperativo categórico é um dos principais elementos da
filosofia de Immanuel Kant. Sua ética e moral têm como base esse preceito. Para o filósofo alemão, imperativo categórico é o dever de toda pessoa de agir conforme os princípios que ela quer que todos os seres humanos sigam, que ela quer que seja uma lei da natureza humana.
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Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Imperativo_categórico


O ódio de Wilson é justamente ter um outro-Eu que é sensato, moderado, bom. Virtuoso é o outro-Eu que desafia a perversidade do 'original' – é como se ele tivesse um bom irmão que a qualquer momento fosse delatar as travessuras aos pais distraídos. E então Wilson precisaria prestar contas.

O 'duplo' vem desmascarar o narrador – que usa o nome de William Wilson.

“Eu fugia em vão. [...] E de novo e de novo, em secreta comunhão com meu próprio espírito, eu perguntaria 'quem era ele? - de onde ele surgira? E quais eram os objetivos dele?” (“I fled in vain. [...] And again, and again, in secret communion with my own spirit, would I demand the questions 'who is he? - Whence came he? - and what are his objects?”)

Que inimigo é este tão próximo? Tão empenhado em seguir e desmascarar? Não tem outra coisa para fazer senão 'patrulhar' a vida de Wilson? É esse terror que angustia o narrador – como poderia existir alguém dedicado plenamente a 'reproduzir' os passos de outra? Os gestos, as palavras? O outro Wilson não tinha vida própria? Não tinha carreira? Não tinha ambições?

Mas mal sabia William Wilson que o seu pior inimigo era ele mesmo, pois ao 'acertar as contas' com o rival – ou sósia, ou duplo – ele golpeia o que resta de 'bom senso' nele mesmo – assim como Dorian Gray golpeará a si-mesmo quando apunhalar o retrato deformado! no romance de Wilde, meio século depois.

Eis o terror do encontro com o outro-Eu, “quando eu tropeçava no extremo do terror, ali a minha própria imagem.” (“as I stepped up to it in extremity of terror, mine own image”), pois “assim parecia ser, mas não era [uma imagem num espelho]. Era o meu antagonista – era Wilson, que então estava diante de mim nas agonias de morte.” (“thus it appeared, I say, but was not. It was my antagonist – it was Wilson, who then stood before me in the agonies of his dissolution.”)

Assim o narrador é confrontado com um outro-Eu, um Eu que 'insinuava conselhos', que desmascarava as ambições e perversidades de Wilson – alguém que o conhecia intimamente! Um outro-Eu que era uma imagem invertida num espelho inexplicável – fruto da duplicidade de consciência!

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William Wilson
na Cultura
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videos
http://www.youtube.com/watch?v=2QemjP8cQxA&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=iXDmKJD7tCg
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para ouvir
(auf Deutsch)
http://www.youtube.com/watch?v=X_283O0y-YM&feature=related


A Escrita de Edgar Allan Poe, sendo mais pensada numa totalidade de Forma e Efeito (como ele deixa claro em seu ensaio “A Filosofia da Composição” ), é mais que uma conseqüência das experiências reais vividas pelo ser humano, antes de ser o Artista, ‘fatos sublimados’ que estão além da ‘intenção autoral’. A importância da genialidade estaria justamente na superação dos traumas, no momento de repensá-los e retraduzí-los em Literatura. O ‘carimbo da genialidade’, o ‘estilo autoral’, estaria justamente no Texto, em sua semelhança com outros Textos do mesmo Autor.

Assim chegamos ao fim dessa saga entre alguns contos memoráveis do mestre do terror psicológico Edgar Allan Poe. São os contos de minha predileção - integram o Meu Cânone Ocidental – e são uma amostra da Obra – muito vasta para ser tratada num artigo – sequer numa série de artigos. Dissertações acadêmicas são escritas ano após ano sobre o Autor e jamais serão capazes de explicar os contos – muito menos delimitar as interpretações possíveis. Até porque os narradores – nossa única fonte de relatos – são demasiadamente suspeitos ou, como diria Nietzsche, são 'demasiadamente humanos'.



nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/


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textos de Edgar Allan Poe
online
http://xroads.virginia.edu/~hyper/POE/contents.html
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blogs sobre E A Poe
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Programa Entrelinhas
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http://www.youtube.com/watch?v=SnX8t4BTjlw
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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

sobre os Contos de Terror de E A Poe (2:3)









Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror


Quando o terror jaz no inexplicado


p2

O Gato Preto / The Black Cat


Temos neste conto atormentado um narrador em 1ª pessoa, um narrador que sofreu os acontecimentos, foi o protagonista dos fatos descritos, e tenta agora – preso e condenado – explicar (e justificar) o crime.


“Para a narrativa um tanto excêntrica um tanto caseira sobre a qual agora escrevo, eu não espero qualquer credibilidade. Seria loucura esperar isso, no caso que meus próprios sentidos rejeitam a evidência. Mas louco eu não sou – e não estou sonhando. Mas amanhã morrerei, e hoje quero tirar o peso da minha alma. Meu propósito imediato é expor diante do mundo, de forma franca, sucinta, e sem comentários, uma série de eventos domésticos. Na consequência deles, estes eventos que me aterrorizaram – me torturaram – me destruíram.”

“FOR the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their own evidence. Yet, mad am I not - and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-day I would unburthen my soul. My immediate purpose is to place before the world, plainly, succinctly, and without comment, a series of mere household events. In their consequences, these events have terrified - have tortured - have destroyed me.”

O Narrador está condenado, sabe que pouco poderá alegar em sua defesa, pouco crédito receberá, mas mesmo assim contará o estranho episódio – e os leitores já se inquietam. Que eventos são estes? “eventos que me assustaram – me torturaram – me destruiram”.

Uma atmosfera de horror, 'barroca' nos envolve – mas o narrador busca o recurso do intelecto para contar o drama (interessante o mesmo formato narrativo de “The Turn of the Screw” - meio século depois...) o narrador pretende mais calma, mais intelecto, mais lógica


Interessante: o narrador se descreve do mesmo modo que encontramos depois em “Memórias do Subsolo” (ou “Notas do Subterrâneo”), de 1864, do russo Dostoiévski, onde se pensa: a auto-análise é possível? ("Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem desagradável. Creio que sofro do fígado".)Vejamos o diário de Amiel, Gide, de Kafka, de J P Sartre, a obra de Proust, Nava, etc

sobre o relato existencial – existencialista de Dostoiévski
http://www.eternoretorno.com/2009/03/08/notas-do-subterraneo-de-dostoievski/


O Narrador faz auto-elogios quanto a própria docilidade – principalmente quanto aos animais domésticos – e descreve o tal 'gato preto'. E a superstição de que os gatos pretos são bruxas em disfarce. O nome do gato é sombrio – Pluto (ou seja, Hades, o deus do mundo dos mortos)

Mas o temperamento do narrador se alterou com o tempo, sua intemperança 9que ele confessa com vergonha), “Dia após dia, fiquei mais temperamental, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros” (“I grew, day by day, mere moody, more irritable, more regardless of the feelings of others”)

A irritação do narrador se estendeu à esposa e aos animais de estimação – ainda que ele evitasse maltratar o tal gato preto, Pluto. Mas a doença – sabemos que se trata do alcoolismo – do narrador (e sabemos que também afligia o Autor) se agrava – e até Pluto começa a sofrer, com agressões.


Num momento de fúria - “a fúria de um demônio de repente tomou apossou-se de mim. Não me reconhecia mais.” (“the fury of a demon instantly possessed me. I knew myself no longer”) - o narrador chega a – numa demoníaca malevolência – a arrancar , com um canivete, um dos olhos do gato Pluto – e se envergonha de tal atrocidade.

A tragédia então se precipita – o narrador nutre a culpa – fruto do horror e do remorso. E quanto mais culpa, mais sofre e acaba por se embriagar para esquecer... Vício atraindo remorso, e mais vício... um círculo vicioso infernal.

Há toda uma percepção do 'espírito de perversidade' – também abordado em “The Imp of the Perverse” e “The Tell-Tale Heart” - enquanto “um dos impulsos primitivos do coração humano” (“one of the primitive impulses of the human heart”) - mal íntimo a ser tematizado em “O Médico e o Monstro” (de Stevenson), onde dentro do bondoso e correto Dr. Jekyll há o cruel e egoísta Mr. Hyde.


Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a stupid action, for no other reason than because he knows he should not?”, isto é fazer por que é justamente proibido – o impulso de contrariedade – fazer o errado por saber que é errado (“to do wrong for the wrong's sake only”)! Embebedar-se para consumar um sucídio lento! Tal impulso perverso levou o narrador – com lágrimas nos olhos! - a enforcar o gato preto.

“E então veio, como se para a derrocada final e irrevogável, o espírito de PERVERSIDADE. A filosofia pouco diz sobre este espírito. Tenho menos certeza de que minha alma vive do a de que aquela perversidade é um dos primitivos impulsos do coração humano – uma das indivisíveis faculdades primitivas, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do Homem. Quem não tem, em centenas de vezes, se percebido a cometer uma ação vil ou idiota, sem outra razão que a de saber que não deve fazer? Não temos a perpétua tendência, no fio de nosso melhor juízo, de violar o que seja a Lei, meramente porque nos entendemos que é assim mesmo? Este espírito de perversidade, eu digo, veio para a minha derrocada final.”

“And then came, as if to my final and irrevocable overthrow, the spirit of PERVERSENESS. Of this spirit philosophy takes no account. Yet I am not more sure that my soul lives, than I am that perverseness is one of the primitive impulses of the human heart - one of the indivisible primary faculties, or sentiments, which give direction to the character of Man. Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a silly action, for no other reason than because he knows he should not? Have we not a perpetual inclination, in the teeth of our best judgment, to violate that which is Law , merely because we understand it to be such? This spirit of perverseness, I say, came to my final overthrow.”


Enforca o bichano, simplesmente. Por saber que comete uma barbaridade – tal um desafio! Quer colocar-se além de qualquer perdão! E paga o preço! Pouco tempo depois, na noite seguinte, a casa é destruída por um incêndio – o narrador e a família conseguem escapar por pouco. Restaram ruínas da casa – só uma parede se manteve, nela se nota uma 'estranha' e 'singular' imagem de um grande gato!

Estamos mergulhados na fantasmagoria. Mas o Narrador – em pleno terror – ainda quer explicar racionalmente o evento! Crê, assim, que a lógica pode abafar o sobrenatural. (No mais, só temos a versão dele - a explicação não convence) Aconteceu assim – ou ele interpretou assim?

De qualquer modo, ele encontra outro gato – tão preto quanto o outro, e maior. E, com o novo animal doméstico, ele deseja corrigir o erro de outrora. Tudo vai bem – até que o caprichoso temperamento do Narrador se modifica – se irrita com o que antes o agradava!

“De minha parte, logo percebi um desgosto a surgir dentro de mim. De modo que era o reverso do que disse antes; mas – eu não sei como nem porque era assim – esta preferência [do gato] por mim antes desgostava e aborrecia. Em lento progresso, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se tornaram amargura e ódio.” (“For my own part, I soon found a dislike to it arising within me. This was just the reverse of what I had anticipated; but - I know not how or why it was - its evident fondness for myself rather disgusted and annoyed. By slow degrees, these feelings of disgust and annoyance rose into the bitterness of hatred.”)

Também o novo gato desperta aversão (ou intensifica a irritação do narrador?) de modo a deixar prever outra 'perversidade', “Com minha aversão por este gato, de qualquer modo, a afetividade dele por mim parecia crescer. Ele seguia meu passos com uma teimosia que dificilmente seria possível fazer o leitor compreender.” (“With my aversion to this cat, however, its partiality for myself seemed to increase. It followed my footsteps with a pertinacity which it would be difficult to make the reader comprehend.”) O narrador tenta abafar a aversão – para não repetir as agressões de outrora, com o gato Pluto.

Em sua cela, à espera da condenação, o Narrador explicita todo o medo que a figura felina desperta – é um caso de obsessão, paranoia, sadomasoquismo? A fantasia maníaca do Narrador poderá nos contagiar enquanto leitores? Ele enxerga – ou quer enxergar – no pelo do felino uma mancha em forma de forca!

Então o impulso de perversidade se apodera novamente do Narrador – que resolve eliminar o gato com uma machadada. Para desventura de todos, a esposa tenta intervir – e é ela quem sofre o golpe – que é fatal.

“Sob a pressão de tormentos tais, o resto febril de bondade dentro de mim sucumbiu. Pensamentos malévolos tornaram-se meus únicos íntimos – os pensamentos mais sombrios e malévolos. Aumentou o mau humor de meu temperamento comum a ponto de ter ódio de todas as coisas e todas as pessoas; enquanto, de súbita, frequente e incontrolável explosão de uma fúria a qual eu me abandonei cegamente, da qual a minha pobre esposa, ai de mim! era a vítima mais comum e paciente.”

“Beneath the pressure of torments such as these, the feeble remnant of the good within me succumbed. Evil thoughts became my sole intimates - the darkest and most evil of thoughts. The moodiness of my usual temper increased to hatred of all things and of all mankind; while, from the sudden, frequent, and ungovernable outbursts of a fury to which I now blindly abandoned myself, my uncomplaining wife, alas! was the most usual and the most patient of sufferers.”

Eis o crime – e a ocultação do crime. O cadáver é emparedado – comparar com os criminosos de “The Tell-Tale Heart” e “The Imp of the Perverse”- que se julgam seguros após ocultarem o cadáver (acreditam-se, arrogantes, realizando o crime perfeito – principalmente em “Tell-Tale Heart” e “Imp of the Perverse” -) pois em “Gato Preto” o narrador não planejava matar a esposa, mas o seguindo gato preto.

Em “The Tell-Tale Heart” o narrador quer explicar que não é louco, ao contrário, um pragmático, um criminoso apenas derrotado por si-mesmo! “como, então, eu sou louco? Ouçam! E observem como coerente e calmamente eu vou contar para vocês esta estória toda.” (“How, then, am I mad? Hearken! And observe how healthily – how calmly I can tell you the whole story.”) Ele se garante não louco – por que é capaz de NARRAR a própria estória, o crime cometido por ele.

“Se vocês ainda pensam que eu sou louco, não vão pensar mais assim quando eu descrever as prudentes precauções que eu tomei para ocultar o corpo.” (“If still you think me mad, you will think so no longer when I describe the wise precautions I took for the concealment of body. (...)” O criminoso se julga seguro – o crime foi perfeito! - mas a culpa (o pulsar do coração após a morte da vítima!) acaba por aterrorizar o narrador-criminoso e levá-lo a confessar o crime.


Para ler “The Tell-Tale Heart” (original)
http://www.online-literature.com/poe/44/
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Também o narrador de “O Gato Preto” julga-se acima de qualquer suspeita – o cadáver foi ocultado, não há prova do crime. (Na Idade Média, os monges emparedaram suas vítimas. Referência à fatos históricos ou enredos de romances góticos? Afinal, Poe leu romances góticos – ao contrário do que muitos pensam ele não inventou o conto de terror, ele atualizou, adicionou o psicologismo ao deixar o 'sinistro' nas entrelinhas, na sanidade (ou não) dos narradores – o que 'perturba' a interpretação dos leitores – sem explicitar, sem revelar. Até porque os melhores contos são em 1ª pessoa – o quanto podemos confiar nos narradores?)

Pois o miado sinistro do gato revela a falsa parede – o felino estava emparedado junto com o cadáver. “Um grito de lamento, meio de terror e meio de triunfo” (“a wailing shriek, half of horror and half of triumph”), “neste momento, o grupo [de policiais] ficou paralisado nos degraus da escada, no extremo de pasmo e terror (“for one instant the party on the stairs remained motionless, through extremity of terror and awe.”) pois “eu tinha emparedado o monstro dentro da tumba (“I had walled the monster up within the tomb.”)


Alguns ‘traços biográficos’ que se destacam em referências na Escrita do Autor são o vício do álcool (tal o Narrador do conto “O Gato Preto”!), a precoce perda da mãe natural, a perda da mãe adotiva, a morte das mulheres amadas (a morte da Mulher Amada é um dos símbolos mais fortes), que se materializam na escrita de “Ligeia”, “Berenice”, “Morella”, “Eleonora”, “O Retrato Oval”, ou “O Corvo” (“The Raven”) quando a Escrita serve para o desabafo de abismos interiores. Assim se referencia a crítica baseada nos ‘traços biográficos’, que procura as causas da Escrita, os eventos exteriores ao próprio texto.


A vida de E. A. Poe foi cheia de atribulações, perseguido por um ‘demônio da perversidade’, rejeições, perdas de entes amados, mergulho nos vícios e luxúrias, desvios de conduta, atritos com a família que o adotou, vida militar cheia de advertências (e posterior exclusão), via literária cheia de vicissitudes, vida afetiva cheia de decepções e mortes. Assim o pesar de Roderick diante da doença, e morte aparente, da irmã, ou a decadência familiar (pois a Casa de Usher pode ser a mansão fantasmagórica, mas também referir-se a Família Usher) tudo seria um espelho (ou projeção) do que ocorreu na vida do Autor.

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Fonte: http://www.online-literature.com/poe/24/

cotejado com a edição de “Great Tales & Poems of E A Poe” 1965

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The Black Cat na Cultura

movies
http://www.youtube.com/watch?v=--sKsoah51c&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=eraK3sktNDc&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=xT0RV7CQFuU
http://www.youtube.com/watch?v=LyswpL67tuA&feature=related

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=FiVuIICPBgg&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=lEP32uFWPM8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9xPp3ZkQTrs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=-2doc-cGLs0&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=LOjNaKEqbws&feature=related

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animation
http://www.youtube.com/watch?v=xWiLtgFs728&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=x5iC6tTdw9M&feature=related




The Oval Portrait

O conto “O Retrato Oval” está situado entre dois polos – o século 18, com os romances góticos (“gothic novels”) e o final do século 19, com a publicação de “The Picture of Dorian Gray”. Tanto por citar a obra de Ann Radcliffe, quanto por tematizar o terror que há na obra de Oscar Wilde.

É também uma narração em 1ª pessoa, onde há o narrador-personagem e um valete (criado). O viajante não está bem, precisa de um abrigo. Há um casarão que poderá servir para um descanso durante a noite.

“O chateau no qual o meu valete se aventurou em entrada forçada, que assim permitiu-me, em condição desperadamente doentia, preferível a passar a noite ao ar livre, era um daqueles de mesclada desolação e grandeza que há muito tempo mostram suas carrancas ao longo dos Apeninos, não menos que na ficção da Sra. Radcliffe)

(“The chateau into which my valet had ventured to make forcible entrance, rather than permit me, in my desperately wounded condition, to pass a night in the open air, was one of those piles of commingled gloom and grandeur which have so long frowned among the Apennines, not less in fact than in the fancy of Mrs. Radcliffe.”)

Ao citar a autora de gothic novels – do século 18 – com suas paisagens sobrias do sul da França - o narrador também descreve a própria situação – adentra o casarão para se abrigar e adentra um espaço tal um ateliê de artista (ou tão desarrumado quanto) – lá ele encontra um quadro belíssimo – e uma obra que descreve a criação do quadro.

“Voltando ao número o qual designava o retrato oval, lá eu pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem.” (“turning to the number which designated the oval portrait, I there read the vague and quaint words which follow.”) e transcreve o trecho do livro que descreve as pinturas e a históeia de cada uma.

O retrato acaba por perturbar o já agitado visitante noturno, “que a novidade do que vi não poderia sequer duvidar; pois ao primeiro tremeluzir das velas sobre a tela parecera dissipar o onírico estupor que roubava-me os sentidos, e a dar-me um sobressalto a jogar-me na vida mais desperta.” (“that I new saw aright I could not and would not doubt; for the first flashing of the candles upon that canvas had seemed de dissipate the dreamy stupor which was stealing ever my senses, and to startle me at once into waking life.”)

Diante do narrador o quadro retrata uma jovem belíssima – e de qua modo ela perdeu a vida ao ser sempre requerida como modelo para o artista obsessivo – é como se a vida fosse 'transposta' ao quadro – uma transmigração da 'força vital'. “Este quadro é realmente a própria vida!” e voltou-se de súbito para ver sua (dele) amada. - Ela estava morta!” (“This is indeed Life itself!' turned suddenly to regard his beloved: - She was dead!”)


Em Oval Portrait estão presentes não apenas o clima (atmosfera lúgubre) dos romances góticos, mas também o poder de sugestão (que Poe compartilha com Hoffmann) além do lirismo (a morte da bela mulher) que, sendo sombrio, lembra a beleza noir de um “Flores do Mal” (Baudelaire, leitor e tradutor de Poe). A tematização do quadro/ retrato – uma espécie de duplo (igual aos espelhos que duplicam o mundo – segundo Jorge Luis Borges, “Os espelhos são malditos pois multiplicam o número dos homens”) está na base da maldição de Dorian Gray, no romance de Wilde, quando o retrato torna-se um duplo, ao envelhecer, enquanto Dorian permanece jovem.

O tema da bela mulher que morre jovem está em Oval Portrait, em Berenice, em Ligeia, no tema do longo poema The Raven (fruto da saudade de Lenora), enquanto o tema do duplo estará presente no conto “William Wilson” - onde muito críticos encontram um paralelo com o conto “O elixir do Diabo” de Hoffmann, onde há o Doppelgänger)

Narração em 1ª pessoa, o narrador lamenta a morte da amada, outra mulher marcante. Mulheres marcantes e idealizadas cuja morte é motivo de pranto e melancolia (ver a obra de Freud, “Luto e Melancolia”, onde o estado depressivo após a morte do ente querido se prolonga numa tristeza que não se cicatriza com o luto. Ou seja, a melancolia é resultado de um luto não-completado)
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sobre “Luto e Melancolia” (1915/17)
http://www.institutohypnos.org.br/v4/index.php/2009/10/sigmund-freud-luto-e-melancolia/

http://www.spectrumgothic.com.br/gothic/luto.htm


Outras mulheres memoráveis – cuja perda é pranteada obsessivamente – são a Lenore do poema The Raven / O Corvo, a Annabel Lee, do poema homônimo, e as mulheres patológicas, aquelas que sofrem de catalepsia, tais como os exemplos de Madeleine Usher e Berenice.

Mas voltemos a Ligeia, de bela e personalidade excepcionais. Aliás, para que ama, a mada será sempre excepcional. Ligeia, obsessivamente pranteada, é mesmo inesquecível.

“Eu não posso, juro por minha alma, lembrar-me como, ou precisamente aonde, Eu primeiramente conheci a senhorita Ligeia. Muitos anos já se passaram, e minha memória está febril ao longo de tanto sofrimento.” (“I cannot, for my soul, remember how, when, or even precisely where, Ifirst became acquainted with the lady Ligeia. Long years have sinceelapsed, and my memory is feeble through much suffering.”)

Amada que se destaca em beleza, elegância e erudição – aos olhos do amante, do homem que se perde na melancolia do luto nunca concluído. Amada que sempre será um vulto obsessivo quando outras mulheres surgirem no horizonte afetio, erótico, carnal ou idealizado.

Ligeia, para o narrador, é uma mulher de mente e corpo, que desperta admiração e desejo. Consciente da finitude da beleza - “a beleza deve morrer”, assim gemia o poeta inglês Keats – demonstram os versos niilistas de Ligeia – o Verme Conquistador – onde no fim do drama humano reina apenas a decomposição,


The curtain, a funeral pall,
Comes down with the rush of a storm,
And the angels, all pallid and wan,
Uprising, unveiling, affirm
That the play is the tragedy, "Man,"
And its hero the Conqueror Worm
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(“A cortina, uma mortalha, / Desce com o fremir da tormenta, / E os anjos , todos lívidos e pálidos, / Se levantam, desvelam, afirmam / Que a peça encenada é a tragédia “Homem”, e cujo herói é o Verme Conquistador.” LdeM)

A morte da mulher amada – o tema de “The Raven” e de “Lenore”, “Ela morreu; - e eu, esmagado até o pó do chão com tanta aflição, não poderia mais suportar a solitária desolação de minha morada na obscura e decadente cidade junto ao Reno.” (“She died; -- and I, crushed into the very dust with sorrow, could no longer endure the lonely desolation of my dwelling in the dim and decaying city by the Rhine.”)

O narrador de Ligeia é “dado à fantasia” - casa-se novamente mas é infeliz – não esquece a falecida Ligeia. “Minha memória volta-se (ó, com que remorso!) para Ligeia, a amada, a sublime, a bela, a sepultada.” (“My memory flew back (oh, with intensity of regret!) to Ligeia, the beloved, the august, the beautiful, the entombed.”)

“Pois tais loucuras, mesmo na infância, eu tinha sorvido um gosto, e agora voltavam para mim como se na insanidade da aflição.” (“For such follies, even in childhood, I had imbibed a taste, and now they came back to me as if in the dotage of grief.”)

Não podem faltar as descrições góticas, com todo o exagero ultra-romântico, detalhismo barroco, rococó, arabescos variados. “Mas no acortinado do apartamento jazia, ai de mim! a completa fantasia em tudo.” (“But in the draping of the apartment lay, alas! The chief phantasy of all.”)

A nova esposa adoece e o narrador se surpreende com a presença de um sombra – e vê na doente as feições da falecida – os olhos da segunda esposa, Rowena, são azuis, enquanto os de Ligeia são negros, iguais aos cabelos – “mais escuro que as asas de corvo da meia-noite” (“it was blacker than the raven wings of midnight”) – e os olhos - “plenos, escuros, selvagens olhos de meu amor perdido (“full, black, wild eyes of my lost love.”)

Também é em 1ª pessoa a narração do conto “Berenice”, onde o narrador-personagem descreve a doença própria e a doença de uma prima, a querida Berenice. O início já é arrepiante e deixa antever um mal agouro.

“A Miséria é múltipla. O infortúnio da terra é multiforme. Acima do amplo horizonte tal o arco-íris, suas nuances são tão variadas quando as nuances daquele arco – tão distintas também, tão intimamente combinadas em matizes. Acima do amplo horizonte tal um arco-íris! Como é que de tal beleza deriva um tal tipo de desamor? - de um acordo de paz, um similar de aflição?”
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(“MISERY is manifold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the wide horizon as the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch - as distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon as the rainbow! How is it that from beauty I have derived a type of unloveliness? - from the covenant of peace, a simile of sorrow?”)

Egeu, o narrador, é um erudito, um pensador, que cita suas leituras de clássicos em latim (Santo Agostinho e Tertuliano, por exemplo), enquanto descreve a própria monomania, a mania obsessiva, e lembra-se da amada prima Berenice, também doente, a sofrer de um tipo agudo de catalepsia, onde há uma paralisia corporal, semelhante ao rigor mortis.

Dele a sensibilidade alcança tons mórbidos por tal excesso doentio – ser dotado de um pensamento obsessivo, incontrolável, como uma vítima da própria condição de 'penseroso' – imagem também tematizada por nosso poeta Álvares de Azevedo, principalmente em “Macário”.

A obsessão de Egeu é observar os estágios da doença da prima Berenice, cuja doença tem algo de atrativo, assim como a tristeza realça o 'charme' das heroínas góticas,

“Entre a numerosa série de doenças superinduzidas pelo que de fatal e primário tem afetado uma revolução de modo assim medonho no ser moral e físico de minha prima, deve ser mencionado como o mais aflitivo e obstinado nesta natureza, uma espécie de epilepsia que não frequentemente termina em um transe – transe quase a lembrar uma real dissolução, e da qual ela se recupera, em muitos momentos, de modo espantosamente abrupto.”

(“Among the numerous train of maladies superinduced by that fatal and primary one which effected a revolution of so horrible a kind in the moral and physical being of my cousin, may be mentioned as the most distressing and obstinate in its nature, a species of epilepsy not unfrequently terminating in trance itself - trance very nearly resembling positive dissolution, and from which her manner of recovery was in most instances, startlingly abrupt.”)


Egeu é uma maníaco – ele se confessa assim – sofre de uma monomania, concentra-se sobre algo de forma exagerada, patológica – tal qual aquela hiperestesia do Sr. Roderick Usher – em “The Fall of the House of Usher” - que sobre carrega os sentidos até o ponto da angústia. Egeu tem – ele confessa – uma fixação (até mórbida) pelos dentes de Berenice.

“Não me compreendam mal. A excessiva, extrema e mórbida atenção assim excitada pelos objetos de natureza até frívola, não deve ser confundida no caráter com aquela tendência a ruminar comum nas pessoas, e mais especialmente favorecida nas pessoas de imaginação febril.” (“Yet let me not be misapprehended. The undue, earnest, and morbid attention thus excited by objects in their own nature frivolous, must not be confounded in character with that ruminating propensity common to all mankind, and more especially indulged in by persons of ardent imagination”).
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Quando da suposta morte de Berenice, o primo lamenta em torpor a visão dos dentes na boca da morta. Todos acreditam que desta vez é real a morte de Berenice. (Assim como Madeleine Usher sofre de mortes catalépticas, rigidez de cadáver, mas ainda vive.) A visão dos dentes – brancos – luzentes – terríveis – eis o que angustia o prostrado Egeu.

“Era essa minha própria imaginação excitada – ou a nevoenta influência da atmosfera – ou a incerta penumbra do quarto – ou o cinzento cortinado que descia ao redor de sua figura – que causou nele um contorno assim vacilante e indistinto? Eu não poderia dizer. Ela nada disse; e eu – não poderia sequer formar a sílaba de uma palavra.” (“Was it my own excited imagination - or the misty influence of the atmosphere - or the uncertain twilight of the chamber - or the gray draperies which fell around her figure - that caused in it so vacillating and indistinct an outline? I could not tell. She spoke no word; and I - not for worlds could I have uttered a syllable.”)


A ação do narrador se passa num 'branco' – numa névoa de inconsciência – ele executou uma ação – da qual não guarda consciência - apenas desperta arrepios a intuição de algo terrível ! O que será não podemos prever!

“Então veio a total fúria de minha monomania, e eu lutei em vão contra esta estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior eu não tinha pensamentos exceto para os dentes. Por estes dentes eu ansiava num desejo em frenesi. Todas as outras questões e todos os diferentes interesses foram absorvidos nesta singular contemplação. Eles – eles apenas estavam presentes para a visão mental, e eles, os dentes, numa única singularidade, tornaram-se a essência da vida intelectual.”
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(“Then came the full fury of my monomania, and I struggled in vain against its strange and irresistible influence. In the multiplied objects of the external world I had no thoughts but for the teeth. For these I longed with a phrenzied desire. All other matters and all different interests became absorbed in their single contemplation. They - they alone were present to the mental eye, and they, in their sole individuality, became the essence of my mental life.”)

Então descobre-se uma caixinha sobre a mesa – uma pá suja de terra – um túmulo violado – um cadáver desfigurado - e os dentes de Berenice! Nada há mais a explicar. É o leitor quem deve reconstituir os fatos e perceber-se no centro do terror.

continua...



nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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sábado, 4 de dezembro de 2010

sobre os Contos de Terror de Edgar Allan Poe (1:3)






Sobre os Contos de Terror
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)

literatura de terror


Quando o terror jaz no inexplicado

P1


Os contos aos quais dedicaremos atenção neste ensaio são aqueles clássicos do terror encontrados na coleção “Contos do Grotesco e do Arabesco” ( “Tales of the Grotesque and Arabesque”, nos EUA) e “Histórias Extraordinárias” (“Histories Extraordinaires” na tradução de Charles Baudelaire, na França), de dois volumes, com publicação em 1839, numa época em que o autor Poe passava por dificuldades familiares e financeiras.

Várias leituras já foram feitas sobre as características principais do 'conto de terror', mas nos deteremos aqui para pensar um pouco sobre os 'ingredientes' e as 'condições' do terror. Que pode resultar de vários fatores em várias condições. Pois o Terror pode acontecer em ambientes soturnos – a personagem já está pré-disposta a sentir medo – vide as gothic novels clássicas do século 18. Em pleno século das Luzes, o irracionalismo e as superstições reinam num clima de neo-medievalismo de aventuras e fantasmagorias.

Ou situação sinistra, algo estranho que a personagem percebe tarde demais – vide os contos de Poe e H. P. Lovecraft – onde as fronteiras entre o banal e o terror são delimitadas apesar de notadas quando transpostas. Ou o terror meio ao que parece familiar, o não-domesticado irrompe, é o Unheimliche, dos contos de Hoffmann.

Pode ser que o terror apareça subitamente no cotidiano mais banal – assim em alguns contos de Poe, e atualmente em algumas obras do norte-americano Stephen King – vide “Pet Sementary” (O Cemitério Maldito), onde o terror está oculto sob uma máscara de cotidiano. Pode se insinuar com um assassino inesperado – seja monstro ou um psicopata à solta. Pode ser uma antiga maldição que agora fatidicamente se realiza. Ou seja, pode ser algo natural ou sobrenatural que sem mais nem menos rompe o cotidiano banal – e causa terror, devido ao inesperado, ou perigo de morte violenta.


Há também o terror místico – a presença do sobrenatural dentro de um mundo supostamente natural – vide alguns contos de H. P. Lovecraft e o Dracula de Bram Stoker – como as figuras de fantasmas, almas desencarnadas, vampiros, zumbis (mortos-vivos), lobisomens, monstros, semi-deuses que adentram o mundo humano. Não apenas um 'efeito psicológico' mas também um elemento além-do-natural (ou não pertencente a ordem humana, no caso dos 'super-heróis' ou 'titãs' da mitologia grega, por exemplo.)


fonte das citações:Literature Network
http://www.online-literature.com/poe/

cotejado com a edição “Selected prose and poetry” de 1965


A Narração nos contos de Poe

O modo de narrar, como um ato de mostrar, mas sem explicar, elucidar exatamente, é encontrado nos contos de Poe, tais como “O Gato Preto”, “Coração Denunciador”, “Demônio de Perversidade”, “Berenice”, “Ligeia”, dentre outros. O próprio Narrador cria as suspeitas e não passa qualquer explicação convincente (e definitiva) ao Leitor.


Um escritor obcecado com detalhes, com uma lógica do ilógico, com uma geometria do horror, sendo capaz de conjugar (e compor) contos tão arrepiantes (pelo menos para a época...) com tais ingredientes, no que se passou a chamar de ‘narrativas fantásticas’ (ou ‘extraordinárias’), meio ao universo de narrativas de aventuras e mistério (policial, sobrenatural, místico, etc), onde o importante é o esclarecimento dos enigmas, encontrar o culpado pelos crimes, ou o demiurgo dos fenômenos sobrenaturais.


A presença do Narrador em constante dúvida é bastante para situar o conto “A Queda da Casa de Usher” na lista dos ‘contos fantásticos’ (ao contrário de Todorov, que considera o conto um exemplo de ‘conto estranho’, pois enumera fatos que tentam explicar – a fissura das paredes, o terreno pantanoso, o estado de catalepsia da doente), pois o ‘fantástico’ é o que caracteriza os citados contos, que nada têm de explicativos ou científicos, mas descrições de ‘estados psicológicos’ (ainda mais com a narrativa sendo em 1a pessoa, e não feita por um Narrador onisciente), e visam mais um ‘efeito de suspense’ do que resolver ou esclarecer o mistério.

Efeito que conspira para o ‘fantástico’, o nebuloso, o quase sobrenatural, pois nada é evidenciado. Precisamos acreditar na narrativa de um Narrador transtornado, não temos outra alternativa. A própria casa torna-se um ‘fantasma’ na mente do Narrador, que até escolhe narrativas góticas para ler como passatempo junto ao amigo. É um exemplo de ‘psicologismo’, uma narrativa de ‘horror psicológico’ (que é muito explorado por autores como H. P. Lovecraft e Stephen King, influenciados por E A Poe) com uma narrativa enigmática, labiríntica, imagética, alucinada e alucinatória, em tons melancólicos, ou depressivos, em ressonâncias decadentes, em finitudes entranhadas, em desespero lírico, de romantismo gótico.

É na biografia do autor Edgar Allan Poe, escrita por H. Allen, e comentada (entusiasticamente) por Charles Baudelaire, que podem ser encontradas muitas das fontes para a criação de tal narração em 1ª pessoa, o Narrador que hesita, que fica perplexo, que não explica que deixa se levar por sensações, ser dominado por calafrios, e a tecer considerações que exigem a cumplicidade do Leitor, a compartilhar do horror descrito.


The Fall of the House of Usher

Em “A Queda da Casa de Usher”, o narrador é em 1ª pessoa a descrever o ambiente, numa descrição que reflete no cenário o ânimo depressivo do narrador e do protagonista (Roderick Usher).

A considerar o conto “A Queda da Casa de Usher”, tendo em vista a marca autoral de E A Poe, é notável o Narrador (o amigo de Roderick Usher) que o tempo todo tenta se explicar, crendo-se imerso numa fantasmagoria que nasce de ilusões visuais e psíquicas. “Eu não sei como era”, ou “O que era isso – eu parei para pensar – o que era isso que me deprimia (unnerved) ao contemplar a casa de Usher?”, pois assim parece que tudo nasce (e ecoa) na mente do Narrador.

O início é impactante, é magistral. É mórbido, depressivo, psicológico.

“Durante todo um dia desolado, sombrio e silencioso no outono do ano, quando as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, eu passava sozinho, cavalgando, através da singularmente desolada região; e então encontrei-me, quando as sombras da noite já desciam, à vista da melancólica casa de Usher. Eu não sabia como era – mas, ao primeiro relancear da construção, um senso de insuportável desolação invadiu-me o ânimo.

Eu digo 'insuportável'; pois o sentimento era pouco aliviado por algum meio-aprazível sentimento, posto que poético, como que a mente geralmente recebe as imagens naturais mais severas do desolado e do terrível. Eu olhava a cena diante de mim – sobre a casa em si, sobre a simples paisagem dos arredores – sobre as paredes desoladas – sobre as janelas que pareciam olhos-vazados – sobre os poucos arbustos – e sobre uns poucos troncos de árvores decadentes – com uma completa depressão de alma com a qual não posso comparar a nenhuma sensação terrestre mais propriamente que a ressaca de quem desperta após o consumo do ópio.”

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“DURING the whole of a dull, dark, and soundless day in the autumn of the year, when the clouds hung oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country ; and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the melancholy House of Usher. I know not how it was - but, with the first glimpse of the building, a sense of insufferable gloom pervaded my spirit.

“I say insufferable ; for the feeling was unrelieved by any of that half-pleasurable, because poetic, sentiment, with which the mind usually receives even the sternest natural images of the desolate or terrible. I looked upon the scene before me - upon the mere house, and the simple landscape features of the domain - upon the bleak walls - upon the vacant eye-like windows - upon a few rank sedges - and upon a few white trunks of decayed trees - with an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium -”


O Narrador se indaga sobre o próprio ato de narrar – não tem certeza dos próprios sentimentos – é assim anti-racionalista (o oposto do 'esclarecido' Robinson Crusoé, do clássico de Defoe, no século 18.

“O que era isso – eu parei para pensar – que era que tanto me irritava (ou enervava) ao contemplar a casa de Usher?” (“What was it – I paused to think – what was it that so unnerved me in the contemplation of the House of Usher?”)

Por que temos toda a narrativa? O que sucederá de terrível?

O Narrador – ao lado do amigo depressivo Roderick Usher – é tomado pela atmosfera lúgubre da mansão, à beira de um pântano, a sofrer as rachaduras do tempo, e não sabe como escapar a todas as inspirações melancólicas que a visita ocasiona. Torna-se excitado e desassossegado com a atmosfera ‘sulforosa’ do lugar, além do ambiente doméstico doentio – Roderick sofre pavorosamente com a doença cataléptica da irmã Madeline (que é enterrada ainda viva). O tema da ‘quase-morte’ aparece também nos contos “Enterro Prematuro” e “O Caso do Sr. Waldemar”. Os livros de Roderick já apresentam um universo de hipocondria, fantasia e ocultismo: títulos de quiromancia, mitologia, utopias, magias, eclesiásticos, manuais de inquisidores, etc., que podem até sugerir uma ‘explicação sobrenatural’, tal uma ‘ressurreição dos mortos’.


Aqui os elementos da estranheza, do sinistro (Unheimliche) começam a se manifestar – o que há na casa desolada que a apresenta sempre 'lúgubre'? O aspecto exterior? O recluso interior? O ânimo do Narrador? Afinal, ele está predisposto ao terror...

“Era um mistério de todo insolúvel; nem poderia enfrentar as sombrias fantasias que me povoavam enquanto eu meditava. Era forçado a cair de volta a insatisfatória conclusão que enquanto, além de dúvida, haviam combinações de objetos naturais que têm o poder de nos afetar, ainda a análise deste poder jaz em considerações além do nosso entendimento.”
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It was a mystery all insoluble ; nor could I grapple with the shadowy fancies that crowded upon me as I pondered. I was forced to fall back upon the unsatisfactory conclusion, that while, beyond doubt, there are combinations of very simple natural objects which have the power of thus affecting us, still the analysis of this power lies among considerations beyond our depth.”

O Narrador se esforça por ser racional – analisar as razões do próprio sentimento melancólico diante da morbidez que a antiga mansão desperta. Antes da ação propriamente dita o Narrador de Edgar Allan Poe tece considerações sobre a perspectiva, da possibilidade de narrar – afinal, não há 'onisciência' – e mesmo sabendo o final (pois sobreviveu para narrar!) a voz narrativa não antecipa – semeia pausas e suspensões.


“Eu disse que o único efeito de meu experimento um tanto infantil – de olhar dentro do lago – tinha sido aprofundar a primeira impressão singular. Lá não podia haver dúvida que a consciência do rápido crescimento de minha superstição – pois por que eu não deveria nomeá-la? - servia principalmente para acelerar o crescimento em si-mesmo. Assim, tenho sabido há muito tempo, é a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm como base o terror.”

“I have said that the sole effect of my somewhat childish experiment - that of looking down within the tarn - had been to deepen the first singular impression. There can be no doubt that the consciousness of the rapid increase of my superstition - for why should I not so term it ? - served mainly to accelerate the increase itself. Such, I have long known, is the paradoxical law of all sentiments having terror as a basis.”

O terror que congrega um sentimento íntimo em consonância com um externo opressor – tais aquelas descrições de paisagens nos poemas românticos (e também em alguns trechos de “Frankenstein”, como já vimos.) “Um ar de severa, profunda, e irremediável desolação pairava sobre tudo e invadia tudo.” (“An air of stern, deep, and irredeemable gloom hung over and pervaded all.”)

Pálido, cadavérico, o protagonista recebe o Narrador. Que tormentos arruinaram o nobre Roderick Usher?

“Descobri nas maneiras de meu amigo um incoerência – uma inconsistência; e logo percebi que surgiam de uma série de lutas febris e fúteis para dominar um tremor habitual – uma excessiva agitação nervosa. Para algo desta natureza eu tinha realmente sido preparado, não menos pela carta do que pela lembrança de certo modo juvenil, e por conclusões deduzi da peculiar conformação física e do temperamento dele. As ações dele ora eram exaltadas ora eram melancólicas.”

“In the manner of my friend I was at once struck with an incoherence - an inconsistency ; and I soon found this to arise from a series of feeble and futile struggles to overcome an habitual trepidancy - an excessive nervous agitation. For something of this nature I had indeed been prepared, no less by his letter, than by reminiscences of certain boyish traits, and by conclusions deduced from his peculiar physical conformation and temperament. His action was alternately vivacious and sullen.”

A descrição considera as afetações do psicológico sobre o corporal, como se a doença fosse psicossomática (como se diz atualmente) quando um evento psíquico afta o corpo – p. ex. Ficar melancólico devido a uma forte sugestão (artística, estética, etc) e perder o vigor corporal.

“Ele sofria muito com uma mórbida agudeza dos sentidos”, “He suffered much from a morbid acuteness of the senses.”, tal um alérgico, o mundo externo tortura o hipersensível. O próprio protagonista Usher se percebe condenado, aterrorizado (o que contagia o Narrador, tal como a visita ao Conde Dracula irá sugestionar o narrador Jonathan Harker, no clássico vampírico de Bram Stoker, publicado meio século depois)

“Eu o encontrei escravo de uma espécie estranha de terror. 'Morrerei', dizia, 'Morrerei nesta deplorável loucura. Assim, e não de outro modo, estarei perdido. Temo os eventos do futuro, não neles mesmos, mas os resultados. Estremeço ao pensamento de que mesmo o mais trivial incidente pode causar uma intolerável agitação na alma. Eu tenho, realmente, nem ódio do perigo, exceto de seu absoluto efeito – no terror. Nesta enervante e lastimável condição eu sinto que o momento, que mais cedo ou mais tarde chegará, quando eu deverei abandonar a vida e pensar junto, em alguma luta com o medonho fantasma, o MEDO.”

“To an anomalous species of terror I found him a bounden slave. "I shall perish," said he, "I must perish in this deplorable folly. Thus, thus, and not otherwise, shall I be lost. I dread the events of the future, not in themselves, but in their results. I shudder at the thought of any, even the most trivial, incident, which may operate upon this intolerable agitation of soul. I have, indeed, no abhorrence of danger, except in its absolute effect - in terror. In this unnerved - in this pitiable condition - I feel that the period will sooner or later arrive when I must abandon life and reason together, in some struggle with the grim phantasm, FEAR."

A doença da irmã, a débil Srta. Madeleine Usher, vem agravar o ambiente familiar em elementos mórbidos – temos a mansão e os moradores em decadência. As relações entre ânimo e saúde física são narradas com vocabulário médico, como uma tentativa (aqui, frustrada ) de recorrer às bases científicas. A fantasia precisa de alguma verossimilhança, não trata-se de uma fábula ou lenda – mas de um outro mundo em nosso universos possível. O leitor encontra o 'estranho' dentro de um mundo familiar (há uma tradução, uma genealogia, uma propriedade, uma família) – o 'sinistro' irrompe dentro do 'doméstico',

“Enquanto ele falava, a Srta Madeleine (pois assim ela se chamava) passou lentamente através da parte remota do aposento, e, sem notar minha presença, desapareceu. Eu a observei com um total assombro não sem ser misturado com medo – e ainda percebi ser impossível explicar tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos seguiam seus passos ao se recolher. [...]

A doença da Srta. Madeleine tinha há muito tempo frustrado a destreza dos médicos. Uma instalada apatia, uma gradual perda da personalidade, e frequentes e temporários sintomas de uma caráter parcialmente cataléptico, foram os diagnósticos incomuns.”
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“While he spoke, the lady Madeline (for so was she called) passed slowly through a remote portion of the apartment, and, without having noticed my presence, disappeared. I regarded her with an utter astonishment not unmingled with dread - and yet I found it impossible to account for such feelings. A sensation of stupor oppressed me, as my eyes followed her retreating steps. [...]

The disease of the lady Madeline had long baffled the skill of her physicians. A settled apathy, a gradual wasting away of the person, and frequent although transient affections of a partially cataleptical character, were the unusual diagnosis.”

O Narrador tenta descrever as próprias sensações, no ambiente, “Das pinturas sobre as quais sua elaborada fantasia ruminava, e a qual crescia, toque após toque, na vagueza na qual eu estremecia o mais agitado, pois estremecia sem saber o motivo; - destas pinturas (vívidas como as imagens delas agora diante de mim) em vão eu poderia me esforçar para deduzir mais que uma pequena porção que deveria jazer dentro do limite de palavras meramente escritas.” (“From the paintings over which his elaborate fancy brooded, and which grew, touch by touch, into vaguenesses at which I shuddered the more thrillingly, because I shuddered knowing not why ; - from these paintings (vivid as their images now are before me) I would in vain endeavor to educe more than a small portion which should lie within the compass of merely written words.”)

O anfitrião Roderick Usher é um erudito – tem uma vasta biblioteca, cujo os livros são cuidadosamente listados – alguns reais, outros inventados pelo Autor (essa também será a mania de um Jorge Luis Borges, um século depois...) - títulos sobre ocultismo, alquimia, esoterismo, utopias – não é de admirar que tanto protagonista quanto narrador estejam tão sugestionáveis, prontos para o terror.

Aqui será morte (e o retorno) de Madeleine – e como a fatalidade atua sobre o doentio Roderick Usher,

“E agora, alguns dias de amarga aflição tinha passado, uma observável mudança ocorreu nos traços da desordem mental de meu amigo. Seus modos comuns se perderam. Suas ocupações comuns foram negligenciadas e esquecidas. Ele vagava de um cômodo a outro com passos apressados, desiguais, sem rumo. Sua palidez tinha assumido, se isto é possível, uma nuance lívida – mas a luminosidade de seu olho se perdera totalmente.”

“And now, some days of bitter grief having elapsed, an observable change came over the features of the mental disorder of my friend. His ordinary manner had vanished. His ordinary occupations were neglected or forgotten. He roamed from chamber to chamber with hurried, unequal, and objectless step. The pallor of his countenance had assumed, if possible, a more ghastly hue - but the luminousness of his eye had utterly gone out.”

As leituras fazem parte da narrativa – algo de metalinguagem – com um poema - “The Haunted Palace” - a descrever o passado idílico da casa e também a decadência, depois uma narrativa (“Mad Trist”, de Sir Launcelot Canning) que entra em paralelismo com o ressurgir de Madeleine – até os ruídos descritos no livro acabam por ressoar nos porões da mansão dos Usher,

“para mim parecia que, de alguma parte remota da mansão, chegava aos meus ouvidos, o que deveria ter sido, numa exata similaridade de modo, o eco (mais abafado e surdo, certamente) de um som de algo a se quebrar ou dilacerar tal qual Sir Launcelot tinha particularmente descrito.”

“it appeared to me that, from some very remote portion of the mansion, there came, indistinctly, to my ears, what might have been, in its exact similarity of character, the echo (but a stifled and dull one certainly) of the very cracking and ripping sound which Sir Launcelot had so particularly described.”

e

“Novamente aqui eu fiz uma pausa de repente, e agora com um sentimento de selvagem assombro – pois não poderia haver dúvida de que algo, neste momento, que eu realmente ouvira (apesar de ser impossível dizer de que direção) um som dissonante ou grito incomum, baixo e aparentemente distante, mas estridente, prolongado – a exata contraparte do que minha fantasia tinha já conjurado para o grito desnaturado do dragão tal qual descrito pelo romancista.”

Here again I paused abruptly, and now with a feeling of wild amazement - for there could be no doubt whatever that, in this instance, I did actually hear (although from what direction it proceeded I found it impossible to say) a low and apparently distant, but harsh, protracted, and most unusual screaming or grating sound - the exact counterpart of what my fancy had already conjured up for the dragon's unnatural shriek as described by the romancer.”


O terror no romance lido se materializa na situação vivenciada – para o leitor é apenas um conto lido – a ponto de se confundir as vozes narrativas – a do romance Mad Trist e a do conto House of Usher, e a tirar o resto de sanidade do transtornado Roderick,

“Mas, quando eu coloquei a mão sobre o seu ombro, sobreveio um violento sobressalto em toda a sua pessoa; em seus lábios tremeu um sorriso doentio; e vi que ele falava num murmúrio baixo, precipitado e incoerente, como se inconsciente de minha presença. Inclinando-me junto dele, pude ouvir enfim o significado horrível de suas palavras.”

“But, as I placed my hand upon his shoulder, there came a strong shudder over his whole person ; a sickly smile quivered about his lips ; and I saw that he spoke in a low, hurried, and gibbering murmur, as if unconscious of my presence. Bending closely over him, I at length drank in the hideous import of his words.”

A morta-viva irrompe no momento de loucura – os últimos descendentes da linhagem dos Ushers se matam – e o narrador consegue fugir – e sobreviver. Pode então observar o fim da família e a ruína da mansão – assim a 'casa' de Usher tem duplo sentido: a família e o edifício, o simbólico e o material, a genealogia e a arquitetura.


A temática do corpo enterrado precocemente, como é o caso de Madeline Usher, ou do corpo ocultado, está presente em outras narrativas do Autor. O corpo emparedado, em “O Gato Preto”; o cadáver enfiado na chaminé, em “Crimes da Rue Morgue”; o corpo desmembrado, enterrado sob as tábuas do piso, em “O Coração Denunciador” (The Tell-Tale Heart); todas estas ocorrências (ou semelhanças) evidenciam as marcas ‘fisionômicas’ do estilo autoral presente nos textos. São temáticas fantásticas, inconscientes, mas usadas numa técnica consciente, estética, visando um determinado efeito. A plenitude do texto seria a totalidade da Forma que causa um Efeito estético (segundo o próprio Poe, em “A Filosofia da Composição” (The Philosophy of Composition) , onde a Beleza, mais que uma Forma, é um Efeito)

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Fonte: http://www.online-literature.com/poe/31/


Fall of the House of Usher
movies
http://www.youtube.com/watch?v=wimNsfqbqkw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=lk6xV5sQ8KA
http://www.youtube.com/watch?v=lk6xV5sQ8KA
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theatre
http://www.youtube.com/watch?v=gQrdFdiNd7I&feature=related
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music
http://www.youtube.com/watch?v=h4RIIoZuBhU&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=65tVSUhYxgs&feature=related
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animation
http://www.youtube.com/watch?v=_41ER3SL5f4&feature=related

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continua....


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nov/10


Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/


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