quarta-feira, 22 de junho de 2011

sobre 'Admirável Mundo Novo' (2/2) - de A. Huxley









sobre “Admirável Mundo Novo” (“Brave New World”, 1932)
romance de Aldous Huxley (UK, 1894-1963)



Quando a literatura expõe o pesadelo distópico






2 : 2


Voltemos ao Sr. Bernard Marx. O que Bernard não encontrava nos rituais comunais – uma espécie de religião, de um culto pagão, ou um comício doutrinário, um 'minuto de ódio' (em '1984' de Orwell) – o que ele não encontrava no trabalho – desprezado pelos colegas e pelas colegas, vigiado pelo Diretor – o que ele não encontra no mundo de diversões, ele tem agora ao lado do Selvagem. Todos querem agradá-lo para poderem visitar o ser exótico que nasceu de mulher, que despreza a tecnologia e recita poemas e peças dramáticas de William Shakespeare.


Sim, Shakespeare é um exótico no mundo tecnológico. Um bardo a declamar poemas não autorizados, não hipnóticos, é um subversivo. Deve ser logo anestesiado, drogado, enjaulado. O Selvagem faz com que o leitor compreenda que nós somos os 'selvagens' do mundo tecnológico de amanhã (isso não sofrermos uma 'Terceira Guerra Mundial' e a humanidade regredir uns mil anos...) , que somos nós, os leitores de poemas e peças teatrais, que somos os espectadores em proto-ensaios de um mundo de cinema interativo. Começaremos com filmes inspirados e adaptados de Shakespeare e depois dispensaremos a própria Obra do Bardo britânico.


John o selvagem, é aquele que cultiva o 'amor romântico' – que ele aprendeu ao ler 'Romeo and Juliet' – que acredita na virtude e na pureza, que prefere o sofrimento do que a comodidade, que prefere a vida frugal do que o consumismo, que prefere ler um livro do que ir ao cinema. O Selvagem é um tipo de cidadão em extinção. Talvez seja uma imagem meio tosca de nós, os Leitores. Somos nós os que apreciamos Shakespeare e preferimos ler “Macbeth” do que ir ao shopping fazer compras.


As cenas em Malpaís – a tal reserva nativa onde hoje é a fronteira entre o México e os Estados Unidos – mostram o 'choque cultural' entre os civilizados e os nativos, como cada um organiza uma 'cosmogonia' que deriva de seus modos de vida – é a partir das condições de vida que as sociedades criam suas explicações e sentidos de existência. Vivo assim, logo que deve ser por isso e por aquilo. Não se questiona o porquê de se viver assim: poderia ser diferente? Não, ao contrário, o ritual, a doutrinação, sempre presentifica o passado, sempre explica a tradição, sempre mantem o mesmo. Comunidades indígenas que vivem assim milênios do mesmo modo, fazendo o que os antepassados sempre fizeram. O 'passado não passa' (vide o que o poeta Octavio Paz fala sobre este tema na obra do filósofo Walter Benjamin).

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Link para texto sobre W. Benjamin
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/98600
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Para o selvagem John – mais culto que a maioria, com exceção, claro, de Mustapha Mond – a relação com o mundo é intermediada pela cosmogonia cristã meio pagã do meio cultural – os rituais da tribo – e a cosmogonia do mundo de William Shakespeare. O bardo traz todos os ecos de um mundo passado que sobrevive pela força da escrita. A poesia nos sonetos e nas peças dramáticas apresentam um testemunho do que viveram os homens e mulheres do mundo anglo-saxão, e nórdico, dos séculos 11 ao 16, além das vicissitudes do mundo romano (vide as peças cujo contexto é o Império Romano).


Então realmente vem soar tragico-cômico as citações constantes de Shakespeare no mundo artificial, duplamente artificial, de Brave New World, 632 da Era Ford. Tudo que seja obra de arte ou poesia é voltado para o entretenimento, nunca para o pensamento autônomo ou auto-conhecimento, ou crítica (e auto-crítica). Não, tudo deve servir ao plano, ao condicionamento que tem início lá no útero artificial.


O romantismo de John o selvagem é um anacronismo no mundo da promiscuidade. O amor de cavalheiro espera que a dama idealizada e adorada seja conquistada pela admiração após um longo período de flerte, conquista, sedução, desilusão amorosa, reconquista, ou seja, tudo que cria o conteúdo, o tema, dos romances românticos. Como pode haver romantismo se a mulher vai para a cama do homem logo após o primeiro jantar, ou após a primeira sessão de cinema? A mulher que se entrega facilmente no primeiro encontro só quer mesmo o ato sexual – no que iguala aos interesses masculinos.


Para o amor romântico a mulher é conquistada, e não espera que ela se entregue ao homem, tão facilmente, caso contrário seria igualada a uma prostituta, ou seja, a mulher sem virtude. A mulher ideal é aquela que rejeita todos os outros homens e é conquistada apenas pelo homem valoroso – o cavalheiro que conquista o coração da dama. A castidade e depois a fidelidade são os valores supremos.


Pois no mundo promíscuo de 600 Era Ford as coisas são bem diferentes. As mulheres tanto quanto os homens têm plena liberdade sexual, podem ir para cama com quem quiserem, e quando quiserem. Sem qualquer afeição um pelo outro, apenas desejo sexual. Uma vez satisfeito o desejo eles se afastam. Não se criam laços afetivos, nem se formam famílias. E é até 'reprovável' que uma mulher se entregue mais de uma vez ao mesmo homem, ao contrário, ela deve diversificar o máximo que puder os tipos e quantidades de parceiros. A boa garota é justamente a mais promíscua, a mais libertina.


E é justamente por uma mulher assim que Bernard – e depois John, o selvagem – se apaixonam. Uma mulher sem qualquer brilho, ou talento, além dos atributos físicos. Parece mais uma Marylin Moore, uma personagem que o autor não esboça com maior profundidade, que fica sempre na superfície, visto que é a representação da beleza medíocre e até vulgar. Lenina Crowne é mais uma anti-heroína do que uma 'mocinha' da história. Ela nada tem que nos pareça memorável ou citável. É o lugar-comum em pessoa.


Com a súbita fama de Bernard é fácil para ter qualquer mulher que ele deseje, não apenas a frívola Lenina. Fama que o antes rejeitado Bernard deve agora ao exótico Selvagem, que não consegue se adaptar ao mundo de artificialidades.


“Os dias passaram. O sucesso foi um novo sopro para Bernard, e no processo o reconciliou completamente (como um bom tóxico pode fazer) com o mundo que, até então, ele achara insatisfatório. Desde que o mundo o reconhecesse enquanto importante, estava bem a ordem das coisas. Mas, reconciliado por seu sucesso, ele ainda se recusava a abandonar o privilégio de criticar esta ordem. Pois o ato de criticar aumentava seus senso de importância, fazia com que se sentisse maior. Além disso, ele acreditava sinceramente que haviam coisas para serem criticadas. (Ao mesmo tempo, ele sinceramente gostava de ter sucesso e ter todas as mulheres que ele desejava.) Diante daqueles que agora, graças ao Selvagem, o cortejavam, Bernard ostentava-se como um crítico pouco ortodoxo. Ele era educadamente ouvido por todos eles. Mas quando ele passava as pessoas inclinavam as cabeças com reprovação. 'Esse moço vai se dar mal', elas diziam, profetizando quanto mais confiavam que eles mesmos se assegurariam pessoalmente em ver que ele acabaria mal, 'Ele não achará outro Selvagem para ajudá-lo numa segunda vez,' elas diziam. Enquanto isso, de qualquer modo, eram educados, assim Bernard se sentia realmente o maioral – gigantesco e ao mesmo tempo sentia-se leve com a exaltação, mais leve do que o ar.”
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“The days passed. Success went fizzly to Bernard's head, and in the process completely reconcilied him (as any good intoxicant should do) to a world which, up till then, he had found very insatisfactory. In so far as it recognized him as important, the order of things was good. But, reconcilied by his success, he yet refused to forgo the privilege of criticizing this order. For the act of criticizing heightened his sense of importance, mad him feel larger. Moreover, he did genuinely believe that there were things to criticize. (At the same time, he genuinely liked being a success and having all the girls he wanted.) Before those who now, for the sake of the Savage, paid their court to him, Bernard would parade a carping unorthodoxy. He was politely listened to. But behind his back people shook their heads. 'That young man will come to a bad end,' they said, prophesying the more confindently in that they themselves would in due course personally see to it that the end was bad, 'He won't find another Savage to help him out a second time,' they said. Meanwhile, however, there were polite, Bernard felt positively gigantic – gigantic and at the same time light with elation, lighter than air.” pp. 126-127, cap. 11

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Quando John, o Selvagem, desiste do convívio com os demais civilizados, quando Bernard programa outra recepção para os convidados conhecerem a exótica criatura, quando o Selvagem se ausenta, todo o prestígio que Bernard conquistara mostra-se inútil, ilusório. Ele nunca tivera realmente amigos. Claro, exceto Helmholtz e o Selvagem. Bernard é socialmente desmoralizado, enquanto John continua mergulhado na leitura de obras de Shakespeare – achando uma citação para cada desgosto amoroso ou absurdo do mundo admirável – aliás “brave new world” é tirado de uma fala de Miranda, em “The Tempest”, peça shakespeariana.

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Sobre The Tempest
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/04/sobre-tempestade-w-shakespeare.html
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“'Eles leem Shakespeare?' perguntava o Selvagem enquanto caminhavam, no caminho para os Laboratórios Bioquímicos, ao passar junto a Biblioteca Escolar.

'Certamente não,' disse a mestra, corando.

'Nossa biblioteca,' disse o Dr. Gaffney, 'que contem apenas livros de referência. Se nossos jovens precisarem de distração, eles podem se divertir no cinema interativo. Não incentivamos os alunos a se dedicarem a qualquer entretenimento solitário.'

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“'Do they read Shakespeare?' asked the Savage as they walked, on their way to the Biochemical Laboratories, past the School Library.

'Certainly not,' said the head Mistress, blushing.

'Our Library,' said Dr Gaffney, 'contains only books of reference. If our young people need distraction, they can get it at the feelies. We don't encourage them to indulge in any solitary amusements.'

p. 131, cap. 11

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Pois bem, o Selvagem lê obras de Shakespeare, enquanto o superdotado intelectual Helmholtz declama poesia com o execrado tema 'solidão', e Bernard sabe que nada mais pode salvá-lo de uma punição vinda dos superiores. Afinal, não se pode criticar um mundo de 'estabilidade'. Em suma, temos aqui um grupo muito 'subversivo' para os padrões da Era Ford. Ao mesmo tempo, a volúvel Lenina está apaixonada pelo exótico Selvagem – que corresponde à paixão, mas é tímido e romântico demais para se declarar – enquanto a mãe biológica do 'bárbaro' está à morte no hospital.


É justamente a morte da mãe que causa o transtorno, a crise final do Selvagem, que chora publicamente diante do leito da falecida, num atitude reprovável !, e enfurecido ele decide jogar fora a droga sintética soma dos grupos trabalhadores, verdadeiros robôs programados, que nada entendem com a palavra 'liberdade' proclamada pelo revolucionário 'bárbaro'. De repente o Selvagem delira achando que pode obrigar os robôs-humanos a serem livres! “Vou ensinar a vocês! Vou libertá-los caso queiram ou não!” (“I'll teach you; I'll make you free whether you want to or not”) Os amigos Bernard e Helmholtz bem que tem diminuir os efeitos de tal rebelião, mas acabam por serem envolvidos e imediatamente levados à presença do todo-poderoso Administrador.


Como já escrevemos antes, o Administrador Mustapha Mond é certamente a personagem mais interessante deste livro “Admirável Mundo Novo”, tanto pela 'erudição' quanto pela 'ironia'. Ele destila um humor sarcástico contra as eras pré-Era Ford, e assegura que nada deve ser mantido se de algum modo ameaça a estabilidade sacrossanta. Arte, Literatura, Poesia, Música, tudo isso é preservado, mas nunca deve ser acessível. As pessoas têm todo tipo de divertimento justamente para não terem que pensar, raciocinar, meditar, e ouvir música, ler livros, cultivar atividades artísticas. Tudo deve apenas divertir, e pronto.


Com uma ironia e superioridade sádica – que encontramos no O'Brien de “1984” e amarga – que encontramos no Capitão Beatty, de “Fahrenheit 451” - Mustapha Mond mostra-se como um professor decepcionado com seus alunos que pouco entenderam da lição : é impossível ir contra a estabilidade da sociedade regulada. Os subversivos raramente conseguem mudar algo: apenas trocam um controle A por outro controle, do modelo B, para que a gerência da ordem – em nome de quem? - possa continuar.


Mustapha Mond é até simpático e condescendente com os 'subversivos' – afinal de contas, eles não oferecem qualquer ameaça ao poder estabelecido. O poder é soberano e se sente total a ponto de reescrever a História. O que é considerado 'antigo' é simplesmente banido em nome da modernidade (pois os modernistas, os surrealistas, os futuristas, não queriam até queimar as bibliotecas? Pois os nazistas acharam interessante.... E na ficção temos o caso emblemático de “Fahrenheit 451”, onde os bombeiros causam incêndios, queimam livros, ao contrário de apagarem as chamas.


Semelhante ao Capitão Beatty, o Administrador também é dado a leituras. Antes de banir os livros, ou queimá-los, ou sepultá-los num museu secreto, ele lê as obras de Shakespeare, lê as peças proscritas pelo sistema. Leituras para aguçar seu sarcasmo e crueldade contra a Arte, essa 'coisa' que ameaça a estabilidade.


“A face do Selvagem se iluminou com um prazer súbito. 'Você já leu isso [as obras de Shakespeare] também? Ele perguntou. 'Pensei que ninguém soubesse sobre aquele livro aqui, na Inglaterra.'

'Quase ninguém. Sou um dos poucos. É proibido, você sabe. Mas como eu faço as leis aqui, eu posso também quebrá-las. Com impunidade, Sr. Marx,' ele acrescentou, voltando-se para Marx, 'O que, temo dizer, o você não pode fazer.

Bernard caiu numa espécie de mais desesperada miséria.

'Mas por que é proibido? Perguntou o Selvagem. Na excitação de encontrar um homem que havia lido Shakespeare, ele tinha esquecido momentaneamente tudo o mais.

O Administrador encolheu os ombros. 'Porque à antigo; eis a principal razão. Nós não temos utilidade para coisas velhas aqui.'

'Mesmo quando elas são belas?'

'Particularmente se elas são belas. Beleza é atrativa, e nós não queremos que as pessoas sejam atraídas por coisas velhas. Queremos que elas gostem das coisas novas.'

[…]

'Por que não?'

'Sim, por que não?' Helmholtz perguntou. Ele também tinha esquecido as desagradáveis realidades da situação. Verde de ansiedade e apreensão, apenas Bernard se lembrava; os outros o ignoravam. 'Por que não?'

'Porque nosso mundo não é o mesmo de Otelo. Você não pode fazer carros sem aço – e você não pode escrever tragédias sem instabilidade social. O mundo é estável agora. Pessoas são felizes; elas conseguem tudo o que querem, e elas nunca querem o que elas não conseguem. Estão bem, estão a salvo, nunca doentes, não têm medo da morte, são felizes ignorantes sobre qualquer paixão ou envelhecimento; não se preocupam com pais e mães, não têm esposas, nem filhos, ou amantes por quem devam sofrer; elas são assim condicionadas para praticamente não deixar de se comportar como elas devem se comportar. E se ainda algo der errado, há o soma. O mesmo que você vai e joga pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Liberdade!' Ele ria. 'Esperando que Deltas saibam o que seja liberdade! E agora a esperar que eles entendam Otelo! Ó meu caro jovem!”


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“The Savage's face lit up with a sudden pleasure. 'Have you read it [Shakespeare's works] too?' he asked. 'I thought nobody knew about that book here, in England.'

'Almost nobody. I'm one of the very few. It's prohibited, you see. But as I make the laws here, I can also break them. With impunity, Mr Marx,' he added, turning to Bernard. 'Which I'm afraid you can't do.'

Bernard sank into a yet more hopeless misery.

'But why is it prohibited?' Asked the Savage. In the excitement of meeting a man who had read Shakespeare he had momentarily forgotten everything else.

The Controller shrugged his shoulders. 'Because it's old; that's the chief reason. We haven't any use for old things here.'

'Even when they're beautiful?'

'Particularly when they're beautiful. Beauty's attractive, and we don't want people to be attracted by old things. We want them to like the new ones.'

[…]

'Why not?'

'Yes, why not?' Helmholtz repeated. He too was forgetting the unpleasant realities of the situation. Green with anxiety and apprehension, only Bernard remembered them; the others ignored him. 'Why not?'

'Because our world not the same as Othello's world. You can't make flivvers without steel – and you can't make tragedies without social instability. The world's stable now. People are happy; they get what they want, and they never want what they can't get. They're well off; they're safe; they're never ill; they're not afraid of death; they're blissfully ignorant of passion and old age; they're plagued with no mothers or fathers; they've got no wives, or children, or loves to feel strongly about; they've so conditioned that they practically can't help behaving as they ought to behave. And if anything should go wrong, there's soma. Which you go and chuck out of the window in the name of liberty, Mr Savage. Liberty!' He laughed. 'Expecting Deltas to know what liberty is! And now expecting them to understand Othello! My good boy!'”


pp. 172-73, cap. 16

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O paternalismo de Mustapha Mond é evidente, diante da exaltação estética do Selvagem e do encanto intelectual de Helmholtz, enquanto o leitor fica a pensar, como um ser condicionado pode saber tanto? Saber mais do que está no próprio condicionamento? Ou o Administrador não foi um 'bebê de proveta'? No texto não fica claro. Mond sabe até demais, e por isso não é tão alienado e feliz quanto os outros. Alguém teria que ser pensativo e cínico num mundo de beleza e felicidade – ainda que artificiais. Este é o preço que ele deve pagar pelo poder? Ser ele um dos únicos com olho numa terra de cegos alegremente dopados?


O próprio Administrador até concede muita atenção e conta muita da própria biografia para os 'subversivos', como se precisasse desabafar, e é assim que os leitores sabem um pouco sobre este 'observador em terra de cegos', que tem tanta consciência para manter os demais em completa ignorância – tal qual o Cientista, o inventor Rotwang no filme “Metropolis” (1927) de Fritz Lang (1890-1976), e também semelhante ao Arquiteto no filme “Matrix” (1999) dos irmãos Wachowki – seres que sabem que vivem na coordenação de seres que vegetam inconscientes, mas contentes de entorpecimento e comodismo.


Tudo deve ser controlado para manter a ignorância. Consciência, Individualidade, Arte, Religião, até a Ciência. Muito avanço científico também causaria instabilidade. Então o jeito é controlar até os experimentos científicos. Se um cientista inventar um carro movido a água, ele deve ser afastado das pesquisas, deve ser exilado, ou eliminado. O progresso no Admirável Mundo Novo não é tão 'progresso' assim: em dado momento ele é engessado pelo planejamento. O Conselho Supremo pode mandar parar a 'roda da História', ao limitar o avanços das pesquisas científicas.


Diz o Administrador, que abandonou a carreira científica por ser demasiadamente talentoso, tal qual o brilhante Helmholtz, “Sinto muito quanto a Ciência. A Felicidade é um mestre severo – particularmente a felicidade dos outros. Um mestre ainda mais severo do que a verdade, quando não se está condicionado a aceitá-la sem questionar. Ele suspirou, ficou silencioso, então continuou num tom mais animado. 'Bem, o dever é o dever. Não se pode consultar as próprias preferências. Interesso-me pela verdade. Gosto da Ciência. Mas a verdade é uma ameaça, a ciência é um perigo público. É perigosa tanto quanto tem sido benéfica. Ela concedeu-nos o mais estável equilíbrio na História. […] Mas não podemos permitir que a Ciência desfaça o próprio bem que fez. Eis porque nós cuidadosamente limitamos os alcances de suas pesquisas – eis porque eu quase fui enviado para uma ilha. [...]”
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“I rather regret the science. Happiness is a hard master – particularly other people's happiness. A much harder master, if one isn't conditioned to accept it unquestioningly, than truth.' He sighed, fell silent again, then continued in a brisker tone. 'Well, duty's duty. One can't consult one's own preferences. I'm interested in truth. I like science. But truth's a menace, science is a public danger. A dangerous as it's been beneficient. It has given us the stablest equilibrium in history. […] But we can't allow science to undo its own good work. That's why we so carefully limit the scope of its researches – that's why I almost got send to an island. [...]” p. 178, cap. 16


O Selvagem acha que muito se perdeu da cultura (isto é, nossa cultura, claro, que o Narrador, através da personagem, vem defender. Os selvagens, afinal de contas, somos nós, os que vivemos antes o apogeu científico da Era Ford) em prol de uma felicidade artificial, controlada, dopada. “Arte, ciência – vocês parecem ter pago um preço muito alto pela sua felicidade,' disse o Selvagem, quando eles estavam sozinhos, 'O que mais?'

'Bem, religião, claro,' replicou o Administrador. 'havia algo chamado Deus – antes da Guerra dos Nove Anos. Ms eu me esquecia: você sabe tudo sobre o Deus, eu suponho.'

'Bem...' O Selvagem hesitava. Ele adoraria dizer algo sobre a solidão, sobre a noite, a sobre o platô pálido sob a lua, sobre o precipício, o mergulho nas trevas densas, sobre a morte. Ele teria gostado de falar; mas as palavras não surgiam. Nem mesmo inspiradas em Shakespeare.”

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“'Art, science – you seem to have paid a fairly high price for your happiness,' said the Savage, when they were alone. 'anything else?'

'Well, religion, of course,' replied the Controller. 'there used to be something called God – before the Nine Year's War. But I was forgetting; you know all about God, I suppose.'

'Well...' The Savage hesitated. He would have liked to say something about solitude, about night, about the mesa lying pale under the moon, about the precipice, the plunge into shadowy darkness, about death. He would have liked to speak; but there were no words. Not even in Shakespeare.”
p. 180

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Deus seria desnecessário num mundo efêmero, prêt-à-porter, pronto para o consumo eu descarte. A Religião é reduzida ao básico: torpor, comunhão e irracionalismo. Eruditas explicações. Parece que Mustapha Mond sabe tudo e tem argumento para tudo. Ele é a onisciência aqui. Por isso o melhor personagem do romance não tem qualquer verossimilhança. Ele é demasiadamente acima dos níveis de compreensão dos 'subversivos' – e até do leitor, que sem uma boa base filosófica não poderia entender a profundidade da discussão. É como se o Autor discutisse consigo mesmo ao dividir em argumentos e contra-argumentos do Selvagem e do Administrador.


O Autor – e nós leitores – estamos no mesmo plano argumentativo (e semântico) do Selvagem, vivemos algo semelhante ao que ele viveu – o abstrato, o espiritual, o erro-e-acerto -, enquanto o mundo futuro é justificado pela voz do Administrador, que é fruto do mundo artificial e usa todo o poder intelectual para justificar o mundo tal como é. Ou seja, ambos os lados usam argumentos, todos se proclamam como racionais – ainda que o Selvagem seja demasiadamente místico, espiritualista, amante do sofrimento e esperançoso da redenção. Mas se um dos lados não argumentasse – usasse a força ou a alucinação – não haveria a interessante cena do debate. (O filósofo Habermas que o diga com a sua 'ação comunicativa'.)


Em nome da estabilidade, do conforto, da felicidade, do entretenimento, do consumo, da 'produção em massa', outros valores como dignidade, conhecimento, livre-arbítrio, livre expressão, livre pesquisa, livre individualidade, heroísmo, solidão, são imediatamente 'cassados', restringidos e eliminados. A civilização opera tal qual uma 'linha de montagem' magistral. Afinal, diz o Administrador, saber para que? Importa que cada um seja condicionado a gostar de uma determinada função e seja treinado para desempenhar somente esta tarefa imediata – sem qualquer angústia quanto a uma outra vida. 'O que eu seria se eu não fosse arquiteto? Seria músico?', tais dúvidas sequer existem. E se um ou outro começar a esboçar uma angústia ou frustração é imediatamente cercado pelos divertimentos, pela promiscuidade e pelas drogas sintéticas.


Após a audiência concedida aos 'subversivos', o Administrador é até cordial com o Selvagem, que terá o direito de ser 'deixado em paz', enquanto os dois amigos – Bernard e Helmholtz vão para um ilha distante, onde poderão conviver com outros Alfas intelectualmente avançados. Mas a paz do Selvagem não haverá de durar muito – o livro ainda reserva uma apoteose final. Não se é impunemente um selvagem, um ser exótico, num mundo padronizado, num mundo artificial de seres artificiais criados em úteros artificiais. A singularidade do Selvagem precisará pagar um preço. Preço este que o leitor logo descobrirá.




Jun/11


Leonardo de Magalhaens

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