sábado, 9 de julho de 2011

sobre a distopia '1984' - de George Orwell (1/2)









sobre “1984” (“1984”, 1949)
romance de George Orwell (Eric Blair, 1903-50)


A denúncia da distopia totalitária

1:2


Os terrestres estão acostumados a destruir coisas grandes e belas”, diz o renegado Spender (nas “Crônicas Marcianas” de Bradbury), e podemos parafrasear com um “Os terrestres estão acostumados a deturpar ideias grandes e belas”. As utopias sempre soam maravilhosas nas ideias, mas quando são colocadas em práticas sempre criam monstruosidades, sociedades-frankenstein, sistemas totalitários erguidos em nome da justiça ou da liberdade.


Desde o século 19 – e na primeira metade do século 20 - várias utopias foram experimentadas no sentido de trazer mais liberdade, fraternidade e igualdade. Líderes se apresentaram para guiar as massas populares rumo ao paraíso terrestre, rumo ao Império de Mil anos, rumo à hegemonia mundial. Mas todos fracassaram e os capitalistas e financistas continuam no poder, com democracia formal e governo corrupto, que serve aos privilegiados.


A Comuna de Paris – de março a maio de 1871 – foi uma das primeiras experiências coletivas de um comunismo. Antes os socialistas utópicos implantavam falanstérios, cooperativas, fazendas coletivas, mas eram porjetos pontuais, movidos por alguns senhores paternalistas bem-intencionados, mas sem alcance social. Sem mudar as estruturas de exploração não se pode mudar a sociedade. O experimento do comunismo de guerra na Europa durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e na Rússia durante a Guerra Civil (1918-21) foi inspiração para os sistemas centralizados e controlados do Fascismo, do Nazismo (ou Hitlerismo) e do Bolchevismo (ou Leninismo - depois radicalizado no reacionário Estalinismo).


Depois do fascismo, do nazismo, do estalinismo, tendo em comum o centralismo partidário, vários autores digeriram suas desilusões com a criação de distopias totalitárias. O que seria perfeito numa Utopia, com controle e administração coletiva, tornara-se pesadelo numa Distopia, com centralismo e terror policial. Dentre estes autores se destacam o russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), autor de “Nós” ( Мы/Mii), de 1921, o inglês Aldous Huxley (autor de “Admirável Mundo Novo”), o também inglês George Orwell (autor de “Animal Farm” e “1984”), e o norte-americano Ray Bradbury (com o incendiário “Fahrenheit 451”)


Como se trata aqui de Meu Cânone, das minhas leituras, considerarei os títulos lidos, o que exclui o livro “Nós” do autor russo, sendo que desconheço tanto obra quanto autor. Sabemos apenas que a obra de Zamyatin inspirou de certa forma o romance 1984, mas não sabemos o quanto. Também o romance “O Zero e o Infinito” (“Darkness at Noon”, ou “Sonnenfinsternis”, 1941) do jornalista judeu anglo-húngaro Artur Koestler (1905-83) serviu como base para alguns contextos de 1984, como as discussões políticas, a questão do 'renegado' que se torna 'inimigo do povo' para os burocratas, as lutas pelo poder dentro do partido centralizador, a formação de nova casta de poder (ver o conceito de “Nova Classe” na obra homônima do socialista iugoslavo Milovan Dilas (1911-95) a denunciar os dirigentes burocratas do Capitalismo de Estado, ou 'Socialismo Real')


Muitas destas questões (centralismo X autogestão, Partido X povo, hierarquia X poder coletivo) estão presentes nos argumentos e contra-argumentos de 1984. É claramente perceptível que a crítica do Autor se dirige contra as deturpações do ideal socialista, e não contra o Socialismo. As preocupações de Orwell mostram que o pouco havia de soviet (conselho de poder coletivo) nas chamadas 'repúblicas soviéticas', pois quem controlava era o Partido centralizador (dito 'comunista').


Ressaltamos que Orwell é anti-estalinista, não anti-socialista, nem liberal, pois para ele o estalinismo não é socialismo, nem um socialismo deformado (como dizia Trotski) mas uma forma de capitalismo totalitário estatal com militarismo e controle do pensamento. Socialismo para Orwell é do tipo autogestão, com poder compartilhado, mais próximo do Anarquismo do que do centralismo bolchevista.


O poder centralizador é justamente 'personificado' por um grande Líder (que assim se proclama) que tem em mãos todos os dispositivos (militar, econômicos, políticos, midiáticos) para fazer valer seus interesses – e tudo em nome do povo, da 'sociedade do futuro'. Este líder é visto como um grande pai ou um camarada, ou iluminado messias, que sempre sabe quais as decisões mais acertadas. As massas populares nada podem opinar, jamais são consultadas, e apenas obedecem aos ditames que vem de cima-para-baixo.


Onipresente, a personificação da Autoridade instila a culpa até no subconsciente dos subordinados. Pois até pensar contra o regime é um crime. Pensamentos subversivos são passíveis de morte. E não há como fugir, pois 'O Grande Irmão observa você' (Big Brother is watching you). Há um novo sistema totalitário em constante guerra, assim a unir a população contra inimigos externos. E proclama o próprio regime como INGSOC, isto é, SOC.ING, 'socialismo inglês'.


Socialismo aqui figurado como um regime mais próximo do 'socialismo real' da URSS, pois temos vários paralelos. O Grande Irmão é o Camarada Stálin, há um renegado (seria Trotski), há uma Polícia do Pensamento (Thought Police) tipo uma NKGB (a Polícia Secreta da URSS), há uma economia planificada, com planos centralizados – assim como existiam na URSS e no III Reich – por exemplo, um Three-Year Plan , Plano Trienal. Também os nome dos Ministérios são reduzidos a siglas, tal qual a conhecida 'nomenclatura soviética' (lembrar que Nomenklatura significa mais restritamente os próprios burocratas, a Elite administrativa).


Mas o Autor não se limitou a 'parodiar' o socialismo real (ou estalinismo) e o hitlerismo, mas criou outros controles. Por exemplo, o totalitarismo é tão profundo que atua até sobre a própria linguagem. O sistema se dedica a criar uma língua eficiente, a chamada Nova-Língua (Newspeak) no continente ao qual então pertenceria a Inglaterra socialista', chamado Oceania. (Percebemos que há toda uma geopolítica no romance, as alianças políticas e militares não são exatamente as que conhecemos, mas ao mesmo tempo fazem um sentido dentro do contesto ficcional. E no mais, os inimigos podem mudar...)


A nova linguagem confunde os conceitos que temos atualmente, advindos do Liberalismo (uma das ideologias divulgadas durante o Século das Luzes), pois uma vez destruído o regime liberal nada mais resta do que palavras que podem ser manipuladas e atreladas a novos campos semânticos. Assim é que “Guerra é paz – liberdade é escravidão – ignorância é força” (War is peace – freedom is slavery – ignorance is strength) e é preciso viver sob tais contradições. Não aceitar a lavagem cerebral da propaganda é crime-pensar, thoughtcrime. Assim os totalitarismos dominam. Um exemplo? Quando os nazistas perdiam a guerra em 1944-45, o povo ainda sofria com a propaganda constante de 'Vitória Final'. Quando as bombas atingiram o próprio solo da pátria, o povo percebeu que não haveriam mais vitórias, apenas a derrota total.


Pois bem, como resistir ao pensamento massificado, fruto de intensa propaganda? Em 1984, o protagonista Winston Smith escreve um diário, onde dá vazão à sua crítica contra o governo, única forma de desabafar, mas mesmo assim ele comete um crime – o pensar-duplo, doublethink. É a partir da mente de Winston que o Narrador nos conduz dentro do universo ficcional. Estamos na Inglaterra em 4 de abril de 1984, quando o protagonista vive entre comícios, trabalho estressante, repressões instintivas.


Aprendemos o que são os “minutos de ódio” (“Two Minutes Hate”), aprendemos que há uma reescrita da História – a guerra é contra quem?, conhecemos uma personalidade marcante, O'Brien , membro do Inner Party, o círculo interno do Partido, conhecemos uma bela jovem que em público reprime a sexualidade exuberante que exerce entre quatro paredes, sendo ela uma filiada a 'Liga Anti Sexo', que dedica-se a implantar a 'repressão sexual'.


Diferente de Brave New World , Admirável Mundo Novo , onde há um incentivo a promiscuidade sexual, em 1984 toda libido deve ser destinada ao esforço partidário, a organização de comícios, ações bélicas, tal como acontecia no hitlerismo e no estalinismo. Sem na distopia de Huxley temos até condições mais próximas ao consumismo e a propaganda erotizada no capitalismo ocidental, dito liberal, na distopia de Orwell só há lugar para a repressão política e individual. Sexo é uma das experiências que mais empolga os humanos, logo deve ser controlado, antes que possa fugir ao controle dos ditadores.


Para reforçar o poder é necessário inimigos. Os externos, são os nacionalistas de outros países, e os internos são os ex-partidários que querem uma 'revolução constante'. Temos em 1984 a figura do Inimigo, do Renegado, ao Apóstata, em Goldstein, o membro do Partido que se tornou-se (é assim declarado pela propaganda oficial) Inimigo do Povo, o bode expiatório, o mesmo papel do porco Bola de Neve em Animal Farm (Revolução dos Bichos), o mesmo papel de Trotski no governo de Stalin.


Assim o Big Brother, o Grande Irmão, é uma paródia do próprio Stalin, em seu megalomaníaco 'culto a personalidade', enquanto Goldstein é a imagem do líder de uma irmandade (aqui os trotskistas?) que se diz a verdadeira herdeira da Revolução, em contraponto ao centralismo usurpador (que seria uma onda reacionária camuflada de revolução...). Realmente é difícil saber quem está mais perto da verdade, até porque a verdade pode ser fabricada. (Goebbels, o propagandista nazista, dizia que uma mentira muito repetida acaba por tornar-se uma verdade...).


A militarização e o ódio está presente quando o estalinismo pretende uma estabilidade social por meio do controle centralizado e do terror. Não apenas o subversivo é 'caçado', mas o cidadão comum que não se adapta. No Terror generalizado qualquer um é suspeito – as prisões na Sibéria precisam gerar produção na forma de 'trabalhos forçados', em campos de concentração – chamados Gulags – que nada diferem dos assemelhados nazistas (estes seriam mais hediondos pois construíram verdadeiras indústrias da morte, os campos de extermínio).


No Terror institucionalizado, quando a vítima se sente culpada, até pensar é crime, é crime-pensar, thoughtcrime. Para melhor exercer controle sobre os membros, o Partido incentiva a delação. A espionagem é comum – é normal e até incentivado que os filhos denunciem os próprios pais – fato comum nos Totalitarismos ( seja fascismo, nazismo, ou estalinismo), pois precocemente as crianças são agregadas em exércitos mirins – temos assim o Komsomol, a juventude leninista, a Hitlerjugend, a juventude hitlerista, por exemplo. E desde cedo as crianças são submetidas as exibições de imagens de batalhas, de prisioneiros de guerra, de cidades em chamas. Elas aprendem a revanche, a vingança, a desforra, a humilhação dos inimigos (externos e internos!).


Não se admira então que os inimigos do governo são 'vaporizados' – no estalinismo, vão para os Gulags ; no nazismo, para os KZ, Konzentration Lager, ou somem 'na noite e na neblina' (“Nebel und Nacht”) sem deixar vestígios – corpo e identidade são cuidadosamente 'deletados'. (Nada diferente do que aconteceu com os revolucionários na Espanha, no chile, na Argentina, no Paraguai, no Uruguai e no Brasil. São 'desaparecidos políticos' que as famílias procuram até hoje... )

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A ordem nazista para o sequestro
e eliminação de inimigos políticos
http://es.wikipedia.org/wiki/Decreto_Nacht_und_Nebel
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É difícil saber o que foi pior: o hitlerismo (nazi-fascismo) ou o estalinismo. Temos muitas coisas em comum – cada regime copiava o que havia de pior no outro! Pois o que desejavam os novos líderes? Nada mais do que manter os dominados passivos. Nada mais do que deseja o Administrador em Brave New World, quando não hesita em elogiar o excesso de entretenimento e livre distribuição de drogas sintéticas.


A violência que tais regimes geraram interna e externamente é impressionante! Basta ver a crueldade e a barbárie da Frente oriental na Segunda Guerra Mundial (ou a Grande Guerra Patriótica, para os russos) onde tanto alemães quanto russos – cidadãos modestos em seus respectivos países - mostraram medonho desrespeito por civis, violentaram mulheres e crianças, queimaram aldeias e até cidades, completamente.


“Winston arrotou novamente. O gin estava perdendo efeito, deixando uma ressaca. A tv-tela – talvez a celebrar a vitória, talvez a abafar a lembrança do chocolate perdido – irrompeu num hino, “Oceânia, isto é para ti”. Era suposto que você devia prestar atenção. De qualquer modo, nesta posição de agora ele estava invisível.

'Oceânia, isto é para ti' deu lugar a uma música mais leve. Winston caminhou até a janela, de costas para a tv-tela. O dia ainda estava frio e límpido. Em algum lugar bem distante um foguete explodia com um estrondo abafado e reverberante. Cerca de vinte a trinta deles caiam por semana em Londres atualmente.

Abaixo na rua o vento fazia oscilar pra lá e pra cá um pedaço rasgado de um poster, e a palavra SOC.ING [INGSOC] completamente aparecia e desaparecia. Soc.Ing. Os princípios sagrados do socialismo-inglês. Nova-Língua, duplo-pensar, a mutabilidade do passado. Ele sentia como se estivesse caminhando nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde ele mesmo era um monstro. Ele estava sozinho. O passado estava morto, o futuro era inimaginável. Que certeza ele teria de que uma simples criatura humana agora estaria ao seu lado? E que modo de saber se o domínio do Partido não duraria PARA SEMPRE? Como uma resposta, os três slogans na face branca do Ministério da Verdade lhe ocorreram: GUERRA É PAZ – LIBERDADE É ESCRAVIDÃO – IGNORÂNCIA É FORÇA

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Winston belched again. The gin was wearing off, leaving a deflated feeling. The telescreen--perhaps to celebrate the victory, perhaps to drown the memory of the lost chocolate--crashed into 'Oceania, 'tis for thee'. You were supposed to stand to attention. However, in his present position he was invisible.

'Oceania, 'tis for thee' gave way to lighter music. Winston walked over to the window, keeping his back to the telescreen. The day was still cold and clear. Somewhere far away a rocket bomb exploded with a dull, reverberating roar. About twenty or thirty of them a week were falling on London at present.

Down in the street the wind flapped the torn poster to and fro, and the word INGSOC fitfully appeared and vanished. Ingsoc. The sacred principles of Ingsoc. Newspeak, doublethink, the mutability of the past. He felt as though he were wandering in the forests of the sea bottom, lost in a monstrous world where he himself was the monster. He was alone. The past was dead, the future was unimaginable. What certainty had he that a single human creature now living was on his side? And what way of knowing that the dominion of the Party would not endure FOR EVER? Like an answer, the three slogans on the white face of the Ministry of Truth came back to him:

WAR IS PEACE - FREEDOM IS SLAVERY - IGNORANCE IS STRENGTH

pp. 25-26, P.I



Por todos os lados – ainda mais dentro da consciência de cada cidadão – estavam os olhos imensos e profundos do Grande Irmão, Big Brother,


“Lá, também, em letras pequenas e claras, os mesmos slogans estavam inscritos, e na outra face da moeda a efígie do Grande Irmão. Mesmo na moeda os olhos te perseguiam. Em moedas, em estampas, nas capas dos livros, nas flâmulas, nos pôsters, e nas embalagens de cigarros – em todo lugar. Sempre os olhos te observando e a voz te envolvendo. Seja dormindo ou acordado, trabalhando ou comendo, para dentro e para fora das portas, no banheiro e na cama – sem escapatória. Nada era seu exceto os poucos centímetros cúbicos dentro de seu cérebro.”
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There, too, in tiny clear lettering, the same slogans were inscribed, and on the other face of the coin the head of Big Brother. Even from the coin the eyes pursued you. On coins, on stamps, on the covers of books, on banners, on posters, and on the wrappings of a cigarette packet--everywhere. Always the eyes watching you and the voice enveloping you. Asleep or awake, working or eating, indoors or out of doors, in the bath or in bed--no escape. Nothing was your own except the few cubic centimetres inside your skull. p. 26, P.I


O amado e temido (um maquiavélico Príncipe?) Grande Irmão hoje vulgarizado na TV na forma de reality show! Uma casa cheia de gente vazia, com sexo livre e difamações, para dar audiência. Alienação ao alcance do controle-remoto. Diante do poder do Grande Irmão não há perdão. Pensar de forma não padronizada já é crime. Thoughtcrime, crime-pensar não é crime, é a morte.


Partido Interior? Partido Exterior? Sistema de Castas? Enquanto em Brave New World temos os Alfas, os Betas, os Gamas, os Deltas e os Ípsilons, em '1984' temos essa distinção de Inner Party e Outer Party ambos sobre a população que deve apenas obedecer as diretivas. Temos hierarquias tanto no fascismo e nazismo quanto no estalinismo – sempre alguém (um grupo de dirigentes) que dá ordens e outros que devem obedecer (os subordinados).


Uma disciplina militar mantida em sociedade e na vida particular (aliás, pode-se falar em vida particular numa regime totalitário?). Exercício físico obrigatório, ginástica regulada, militarização (com o excesso das Brigadas Populares, quando cada cidadão passa a ter adestramento militar) pois desde criança, o cidadão é doutrinado para servir às forças armadas e denunciar os inimigos do regime (mesmo os próprios familiares).


Enquanto no 'Admirável Mundo Novo' o obrigatório é o lazer, a diversão, o cinema-interativo, o sexo livre, tudo de modo a 'anestesiar' o cidadão condicionado igual a uma cobaia de laboratório, em '1984' todas as energias devem se voltar para a prática política, organização partidárias de comícios.


Enquanto na distopia de Huxley os cenários são artificiais, tecnológicos, interativos, na distopia de Orwell as cenas mostram um mundo decadente, em ruínas de batalhas, em tons sombrios, coercivos, claustrofóbicos.


Ambas as distopias estavam no futuro próximo em relação aos autores. Um futuro 'alternado' ou 'paralelo' onde a História sofreria um desvio, uma deformação, com a civilização apagada e reescrita em novos moldes, até novas línguas. Nada de um futuro glorioso, mas a realização dos pesadelos anti-iluministas. De fato, uma História sempre reescrita – em que tempo estamos realmente: 1984? Em 1984 (“se era mesmo 1984”) o país em guerra contínua somente muda de inimigos. A guerra passa a ser necessária para manter o regime opressor, garantir a produção e venda de armamentos.


“Desde aquela época, guerra havia sido literalmente contínua, apesar de estritamente dizendo não havia sido sempre a mesma guerra. Por muitos meses durante sua infância [de Winston] tinha havido confusas lutas de rua na própria Londres, algo do que ele se lembrava vividamente. Mas traçar a história de todo o período, dizer quem estava lutando com quem em dado momento, haveria de ser de todo impossível, desde que não havia registro escrito, e nada dito, mesmo alguma menção a algum outro alinhamento que o existente. Neste momento, por exemplo, em 1984 (se era mesmo 1984), Oceânia estava em guerra com a Eurásia e em aliança com a Estásia. Em nenhuma declaração pública ou particular era sequer admitido que as três potências tinham estado agrupadas em diferentes alianças em algum momento. Realmente, como Winston bem sabia, apenas quatro anos antes Oceânia estiver em guerra com a Estásia e em aliança com a Eurásia. Mas era meramente um fragmento de conhecimento furtivo que ele possuía pois sua memória não estava satisfatoriamente sob controle. Oficialmente a troca de parcerias nunca tinha acontecido. Oceânia estava em guerra com a Eurásia: assim a Oceânia sempre estivera em guerra com a Eurásia. O inimgio do momento sempre representava o mal absoluto, e disso seguia que todo acordo com ele, no passado ou no futuro, era impossível.”

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Since about that time, war had been literally continuous, though strictly speaking it had not always been the same war. For several months during his childhood there had been confused street fighting in London itself, some of which he remembered vividly. But to trace out the history of the whole period, to say who was fighting whom at any given moment, would have been utterly impossible, since no written record, and no spoken word, ever made mention of any other alignment than the existing one. At this moment, for example, in 1984 (if it was 1984), Oceania was at war with Eurasia and in alliance with Eastasia. In no public or private utterance was it ever admitted that the three powers had at any time been grouped along different lines. Actually, as Winston well knew, it was only four years since Oceania had been at war with Eastasia and in alliance with Eurasia. But that was merely a piece of furtive knowledge which he happened to possess because his memory was not satisfactorily under control. Officially the change of partners had never happened. Oceania was at war with Eurasia: therefore Oceania had always been at war with Eurasia. The enemy of the moment always represented absolute evil, and it followed that any past or future agreement with him was impossible. pp. 31-32, P.I


Quem é o inimigo? Na Segunda Guerra Mundial temos a quase união dos ingleses e alemães contra os russos, mas aconteceu a união dos russos com os alemães – que possibilitou estes se voltarem contra os ingleses – e os franceses, e depois – quando Hitler ordenou a invasão da URSS em 1941 – os russos (com apoio inglês e norte-americano) ficaram contra os alemães. Uma radical troca de inimigos em menos de três anos! E Stalin dizia que os soviéticos jamais tinham feito aliança com os fascistas - na mesma época em que fazia aliança com os capitalistas ocidentais!


O inimigo de ontem é amigo hoje... o amigo de hoje pode ser o inimigo de amanhã... Como o Partido consegue explicar tal fenômeno para os cidadãos? Como explicar a guerra constante? Simples: o Partido passa a controlar a escrita da História. É slogan do Partido : “Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.


“O Partido dizia que a Oceania nunca havia estado em aliança com a Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia havia estado em aliança com a Eurásia a menos de quatro anos atrás. Mas onde estaria este conhecimento? Apenas em sua própria consciência, que em todo caso poderia ser logo aniquilada. E se todos os outros aceitavam a mentira que era imposta pelo Partido – se todos os registros contavam a mesma fábula – então a mentira integrava a História e tornava-se verdade. 'Quem controla o passado,' dizia o slogan do Partido, 'controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.' E ainda o passado, apesar de sua natureza inalterável, nunca havia sido alterado. De qualquer forma o que era verdadeiro agora era verdadeiro para todo o sempre. Era bem simples. Tudo o que era preciso era uma infinda série de vitórias sobre sua própria memória. 'Controle da realidade', eles assim denominavam: em Nova-Língua, 'pensar-duplo'.

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The Party said that Oceania had never been in alliance with Eurasia. He, Winston Smith, knew that Oceania had been in alliance with Eurasia as short a time as four years ago. But where did that knowledge exist? Only in his own consciousness, which in any case must soon be annihilated. And if all others accepted the lie which the Party imposed – if all records told the same tale – then the lie passed into history and became truth. 'Who controls the past,' ran the Party slogan, 'controls the future: who controls the present controls the past.' And yet the past, though of its nature alterable, never had been altered. Whatever was true now was true from everlasting to everlasting. It was quite simple. All that was needed was an unending series of victories over your own memory. 'Reality control', they called it: in Newspeak, 'doublethink'. p.32, P.I


O pensar diferente do oficial já é 'doublethink', pensamento-duplo. Mesmo entender a palavra 'doublethink' envolve o uso do duplipensar (“Even to understand the word 'doublethink' involved the use of doublethink.” p. 33)


No Ingsoc – English Socialism – o trabalho de Winston Smith é alterar notícias, é 'mudar' o passado. Eis o motivo para que o protagonista saiba tanto sobre a alteração do passado – afinal, ele é um dos agentes da deturpação. No plano da realidade, lembramos que na URSS a História era reescrita, fotos eram modificadas, pessoas tão eliminadas fisicamente quanto da memória coletiva. Em '1984' os dissidentes são 'vaporizados', tornam-se 'unpersons', ou seja, não-pessoas. As não-pessoas são eliminadas e esquecidas – fisica e historicamente.


Quando o Governo escreve a História ele quer que haja sempre sucesso, vitória, superávit, controle das pessoas e do ambiente, em suma, tudo o que o povo espera – e que os governantes apenas prometem. Kurz: O Partido cria a verdade - a verdade que interessa ao próprio Partido.


“Winston não sabia porque Withers se disgraçara. Talvez fosse por corrupção ou incompetência. Talvez o Grande Irmão estivesse simplesmente se livrando dos subordinados muito populares. Talvez Withers ou alguém próximo a ele tivesse sido suspeito de tendências heréticas. Ou talvez – o que era mais verossímil – a coisa acontecera simplesmente porque expurgos e vaporizações eram uma parte necessária do maquinismo do governo. O único indício estava nas palavras 'ref. não-pessoa', que indicava que Withers já estava morto. Você não poderia invariavelmente assumir que fosse este o caso quando a pessoa era presa. Às vezes eram libertadas e permitidas a ficarem em liberdade por um ano ou dois anos antes de serem executadas. Ocasionalmente muitas pessoas que poderia crer que haviam sido executadas faziam uma espectral reaparição em algum julgamento público onde ele implicaria centenas de outros por seu testemunho antes de desaparecer, desta vez para sempre. Withers, de qualquer forma, já era uma não-pessoa. Ele não existia: nunca existira. Winston decidiu que não seria suficiente simplificar ao reverso a tendência de discurso do Grande Irmão. Era melhor fazê-lo combinar com algo totalmente sem relação com o assunto original.”

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Winston did not know why Withers had been disgraced. Perhaps it was for corruption or incompetence. Perhaps Big Brother was merely getting rid of a too-popular subordinate. Perhaps Withers or someone close to him had been suspected of heretical tendencies. Or perhaps --what was likeliest of all-- the thing had simply happened because purges and vaporizations were a necessary part of the mechanics of government. The only real clue lay in the words 'refs unpersons', which indicated that Withers was already dead. You could not invariably assume this to be the case when people were arrested. Sometimes they were released and allowed to remain at liberty for as much as a year or two years before being executed. Very occasionally some person whom you had believed dead long since would make a ghostly reappearance at some public trial where he would implicate hundreds of others by his testimony before vanishing, this time for ever. Withers, however, was already an UNPERSON. He did not exist: he had never existed. Winston decided that it would not be enough simply to reverse the tendency of Big Brother's speech. It was better to make it deal with something totally unconnected with its original subject. pp. 40-41, P.I



Neste mundo em guerra constante onde as frentes de batalha são alteradas, os dados – de feridos e mortos – são alterados, a propaganda – de auto-elogio e difamação do oponente – é, de fato, onipresente. A linguagem então é logo ajustada para permitir apagar camadas de significação, reduzindo a capacidade de reflexão, e de discernimento entre o que é fato e o que é versão.


Temos ao longo do romance vários exemplos da Nova-Língua, a Newspeak, com a simplificação da linguagem, numa fala telegráfica, quase monossilábica (e o inglês já é uma língua farta em monossílabos), repleta de siglas, abreviaturas de órgãos administrativos, burôs sobre burôs numa hierarquia burocrática que parece mais um labirinto kafkaniano.


Pensemos mais sobre a questão 'linguagem e visão de mundo'. Enquanto a linguagem culta, dos bacharéis e dos doutores, se torna mais complexa, embolada, floreada, cheia de vocábulos de museu, com etimologias greco-latinas, orações adjetivas explicativas, períodos compostos por subordinação, etc, a linguagem dos jovens, dos usuários de internet, dos manos de tribos urbanas, se torna mais reduzida, simplificada, cheia de reducionismos, frases feitas monossilábicas, com preconceitos passados de geração a geração. Aliás, as novas gerações de classe média pouco entendem da fala de classe baixa, e esta nada compreende da fala culta.


A linguagem de uma classe superior é incompreensível para os dominados, que precisam recorrer a extratos serviçais dos dominantes ou entre as classes (por exemplo, advogados e defensores públicos que são das classes altas ou advém das classes baixas, por meritocracia ou cooptação). Uma linguagem que é opaca aos dominados, assim como o paciente pouco entende os códigos de um médico, ou um réu compreende a fala de um juiz de direito.


Syme é um especialista em Newspeak, estuda o método para simplificar ainda mais o já simplificado. Vejamos um trecho do diálogo entre Winston e o linguista Syme,


“'Como está ficando o dicionário?' disse Winston, em voz alta para superar o barulho.

'Devagar', disse Syme. 'Estou nos adjetivos. É sensacional!.'

Ele se empolgara imediatamente à menção da Nova-Língua. Ele afastou a caneca, pegou o pedaço de pão com uma mão e o queijo com a outra, e inclinou-se sobre a mesa para ser capaz de falar sem gritar.

'A Décima Primeira Edição é a edição definitiva,' ele disse, 'Estamos colocando a linguagem em sua forma final – a forma que terá quando ninguém falará de outro modo. Quando tivermos completado o trabalho, pessoas iguais a você deverão aprender tudo de novo. Você pensa, ouso dizer, que nosso principal trabalho é inventar novas palavras. Mas nada disso! Estamos destruindo palavras – listas delas, centenas delas, a cada dia. Estamos aparando a linguagem até o osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma simples palavra que se tornará obsoleta antes do ano 2050.' ”

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'How is the Dictionary getting on?' said Winston, raising his voice to overcome the noise.

'Slowly,' said Syme. 'I'm on the adjectives. It's fascinating.'

He had brightened up immediately at the mention of Newspeak. He pushed his pannikin aside, took up his hunk of bread in one delicate hand and his cheese in the other, and leaned across the table so as to be able to speak without shouting.

'The Eleventh Edition is the definitive edition,' he said. 'We're getting the language into its final shape – the shape it's going to have when nobody speaks anything else. When we've finished with it, people like you will have to learn it all over again. You think, I dare say, that our chief job is inventing new words. But not a bit of it! We're destroying words--scores of them, hundreds of them, every day. We're cutting the language down to the bone. The Eleventh Edition won't contain a single word that will become obsolete before the year 2050.'
p. 45, P.I



Afinal, o simplificar a linguagem é simplificar o pensamento. As categorias de pensamento – tanto análise quanto síntese – precisam lidar com camadas de significação e distinção, ou multiplicidades de sinônimos e antônimos, para aproximar ou diferenciar as reflexões sobre os fenômenos. (Pois, desde Kant, sabemos que não temos acesso às coisas tais como elas são, ou Nômenos) A partir da linguagem conseguimos meditar sobre o mundo e como este se apresenta à nossa consciência. O filósofo da linguagem Wittgenstein: “os limites da minha linguagem marcam os limites do meu mundo”.


“Syme mordeu outro fragmento do pão preto, mastigou brevemente e continuou:

'Não percebe que o objetivo completo da Nova-Língua é estreitar o alcance do pensamento? No fim nos faremos o crime-pensar literalmente impossível, pois não haverá palavras para expressá-lo. Cada conceito que for necessário será expressado por exatamente uma palavra, com seu sentido rigidamente definido e todos os outros sentidos subsidiários serão agados e esquecidos.'”

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Syme bit off another fragment of the dark-colored bread, chewed it bruefly, and went on:

'Don't you see that the whole aim of Newspeak is to narrow the range of thought? In the end we shall make thoughtcrime literally impossible, because there will be no words to express it. Every concept that can ever be needed wil be expressed by exactly one word, with its meaning rigidly defined and all its subsidiary meanings, rubbed out and forgotten.'
p. 46, P.I


e mais,


“Mesmo a literatura do Partido mudará. Mesmo os slogans mudarão. Como você terá um slogan assim 'Liberdade é escravidão' quando o conceito de liberdade for abolido? Toda a forma de pensar que será diferente. De fato, não haverá pensamento, como entendemos agora. Ortodoxia significa não pensar – não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.'

Qualquer dia destes, pensava Winston, com súbita e profunda convicção, Syme será vaporizado. Ele é muito inteligente. Pode ver claramente e fala francamente. O Partido não gosta de gente assim. Um dia ele vai desaparecer. Está na cara.”

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[…] Even the literature of the Party will change. Even the slogans will change. How could you have a slogan like "freedom is slavery" when the concept of freedom has been abolished? The whole climate of thought will be different. In fact there will be no thought, as we understand it now. Orthodoxy means not thinking--not needing to think. Orthodoxy is unconsciousness.'

One of these days, thought Winston with sudden deep conviction, Syme will be vaporized. He is too intelligent. He sees too clearly and speaks too plainly. The Party does not like such people. One day he will disappear. It is written in his face.
p. 47, P.I


O (anti)lexicólogo Syme tem razão, ele até sabe demais - Winston prevê que o colega em breve será 'vaporizado'. A linguagem é simplificada para reduzir a capacidade de pensamento. Por isso os dominados não têm uma linguagem que consiga desvelar a dominação. Por isso os advogados dominam, ao usarem um vocabulário que somente eles compreendam, assim como os sacerdotes usam um conhecimento litúrgico que não é acessível aos leigos, e assim por diante.


Mas Orwell não é linguista, ou filósofo da linguagem, ele é um socialista que acredita mais no individualismo do que no coletivismo, ou um coletivismo que preserve o indivíduo, assim pretende, através da ficção, abrir os olhos dos cidadãos livres – no capitalismo liberal onde até a subversão vira mercadoria – que a dominação não se faz apenas pela repressão, mas pela narrativa deformada, pela linguagem contraditória, pelos mecanismos da lavagem cerebral – tudo sutilmente.


Começamos a 'individualizar' o protagonista Winston quando ele se percebe um contestador (pratica o crime-pensar) e se sente sexualmente atraído por uma moça da Liga Anti-Sexo (outra barreira às suas satisfações eróticas). A miséria da vida do intelectual-proletário Winston nos atrai – enquanto leitores – quando ele, devido ao pensamento crítico e a repressão sexual, tem consciente de si mesmo em contraponto a alienação e ao terror ao redor.


Winston é obviamente o mocinho, atrai simpatias com seu sofrimento e contestação, mas não tem consciência, nem sabe o que realmente ocorre. Somente quando o camarada O'Brien entrar em cena teremos uma personagem com consciência suficiente para apresentar um panorama do que realmente ocorre (se é que isso é possível num sistema de propaganda e controle social).


Ao mesmo tempo em que Winston encontra uma mulher que lhe dá atenção – nem que seja inicialmente só sexual – ele descobre uma 'luz no fim do túnel' – alguém que sabe o que ele não sabe, com uma resposta possível para a questão 'será que o Partido vai governar para sempre?', será que não haverá um modo de fazer política anti-partidária? Não haveria um grupo de resistentes – a Irmandade existe mesmo?


As duplas relações de Winston – com Júlia, a moça nada puritana da Liga Anti-Sexo e o possível subversivo O'Brien com informações sigilosas – são um ponto de virada no romance '1984', pois o protagonista não está mais sozinho, ele tem interlocutores e saberemos em que nível eles são confiáveis – quem vai trair quem? Antes da sensual Júlia e do sisudo O'Brien, em dados momentos, Winston até se sentia como um lunático, acreditando em coisas e eventos nos quais ninguém mais acreditava.


A prática livre do sexo é crime contra o Partido, a prática da literatura é crime contra o Partido, pensar livremente é crime contra o Partido – então a única liberdade possível – limitada e risível – é fora do Partido, é no mundo dos 'proles', em nome de quem o Partido fizera a 'revolução'; os proles que sobrevivem nas margens da oligarquia partidária. Winston consegue um quarto nos subúrbios, adere ao mercado-negro de bens de consumo – mercado sempre atuante em tempos de guerra.


Na Parte II do livro, Winston luta por sua individualidade – ou vida pessoal – que é crime no totalitarismo, onde o coletivo esmaga o subjetivo, o Estado usa e abusa do cidadão. Ter uma vida pessoal é, por exemplo, poder marcar encontros íntimos com uma mulher numa quarto de subúrbio. Winston não pode esperar muito: liberdade para ele é poder afirmar que 2 mais 2 são 4 - e não ser preso. (“Freedom is the freedom to say that two plus two make four. If that is granted, all else follows." p. 69)


Enquanto Winston luta por liberdade de pensamento, Júlia luta por liberdade sexual. Ela não acredita que o sexo seja para a reprodução, para dar ao Partido filhos robustos para as guerras infindáveis. Ao contrário, o sexo é uma forma de libertação, de encontro com o próprio corpo em conto com o corpo do outro. De nada adianta uma revolução que cuide de política e economia e esqueça – ou pior, reprima – a questão da sexualidade.


A contracultura – com seu discurso de 'sexo livre' – se colocava contra a hipocrisia da sociedade capitalista e contra a diretriz repressora do sistema dito socialista. Os beatniks, os hippies, os anarquistas, os punks, todos estes queriam a libertação do sexo, não apenas da mais-valia. E a 'revolução sexual' aconteceu, com todos os costumes (uso de anticoncepcional, uso de mini-saia, mulher no mercado de trabalho, etc), mas a 'revolução social' não, pois continua aí o antagonismo de classe e a exploração da mais-valia.


“Ela tivera seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos, com um membro do Partido de sessenta anos, que depois cometera suicídio para evitar a prisão. 'E foi um bom lance também,' Julia disse, 'de outro modo eles teriam o meu nome caso ele confessasse.' Desde então houveram vários outros. A vida que ela via até parecia simples. Você queria se divertir; eles, aqui significava o Partido, queriam que você não tivesse diversão; então você quebra as regras o melhor que pode. Ela parecia pensar que é natural que 'eles' gostariam de roubar seus prazeres o quanto você quereria evitar de ser preso. Ela odiava o Partido, e dizia isso em palavras as mais cruéis, mas ela não fazia qualquer crítica geral. Exceto no que tocava à sua própria vida ela não tinha interesse nas doutrinas do Partido.


Ele notou que ela nunca usava palavras da Nova-Língua, exceto aquelas que passaram ao uso diário. Ela nunca ouvira falar sobre a Irmandade, e recusava acreditar em sua existência. Qualquer tipo de revolta organizada contra o Partido, estava destinada a ser um fracasso, coisa estúpida. Era mais esperteza quebrar as regras e ficar viva com tudo o mais. Ele gostaria de saber vagamente como muitos outros como ela haviam na geração mais jovem que cresceram no mundo da Revolução, sabendo nada mais, aceitando o Partido como algo inalterável, igual ao céu, sem rebelar-se contra sua autoridade mas simplesmente se evadindo, como um coelho despista um cão.”

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She had had her first love-affair when she was sixteen, with a Party member of sixty who later committed suicide to avoid arrest. 'And a good job too,' said Julia, 'otherwise they'd have had my name out of him when he confessed.' Since then there had been various others. Life as she saw it was quite simple. You wanted a good time; 'they', meaning the Party, wanted to stop you having it; you broke the rules as best you could. She seemed to think it just as natural that 'they' should want to rob you of your pleasures as that you should want to avoid being caught. She hated the Party, and said so in the crudest words, but she made no general criticism of it. Except where it touched upon her own life she had no interest in Party doctrine. He noticed that she never used Newspeak words except the ones that had passed into everyday use. She had never heard of the Brotherhood, and refused to believe in its existence. Any kind of organized revolt against the Party, which was bound to be a failure, struck her as stupid. The clever thing was to break the rules and stay alive all the same. He wondered vaguely how many others like her there might be in the younger generation people who had grown up in the world of the Revolution, knowing nothing else, accepting the Party as something unalterable, like the sky, not rebelling against its authority but simply evading it, as a rabbit dodges a dog. p. 109, P.II


Assim, Winston se envolve no crime sensual da jovem libertina. Pouco depois Syme desaparece, tal como Winston previra. Afinal, o lexicólogo sabia demais, era um 'homem que sabia demais', e o Partido não se pode dar ao luxo de manter tais pessoas circulando por aí – daí os expurgos ocasionais, para eliminar os possíveis 'infiéis', que revelaria os top secret aos não-iniciados fora-do-Partido. Ninguém, no departamento de Winston, se preocupa. Afinal novos comícios – em breve a 'Semana do Ódio' (Hate Week) – precisam ser coordenados, novas passeatas, novos desfiles de fanfarras e novas fileiras de prisioneiros para serem cuspidos.


Winston precisa fingir que nada mudou na própria vida – nada de perguntar sobre Syme, ou faltar aos eventos do Partido, ou trocar olhares com Júlia em público. Mas seja por desconfiança ou para testar a 'fidelidade' de Winston, um membro do Partido, o tal O'Brien, entra em contato com o protagonista. Será uma ponte com os que 'pensam diferente'? Ou ele, O'Brien, não passa de um delator? (Como a narrativa segue os passos - e a mente – do protagonista, o leitor sabe tanto quanto o protagonista. O Narrador não adianta nenhum lance, então o leitor precisa se enquadrar na perspectiva do protagonista e seguir para a 'próxima fase.)


Ao entrar em contato com O'Brien – ou aceitar o contato – Winston não sabe se chamou a atenção de um figurão do Partido Interno ou um membro da Irmandade. É como andar numa corda esticada sobre um abismo. Mas de todo modo O'Brien sabe muito do que Winston apenas desconfia – assim o protagonista é atraído para as redes do contato – para a libertação ou para a prisão – ainda não sabemos.









continua...









jun/11






Leonardo de Magalhaens


















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