quinta-feira, 16 de junho de 2011

sobre 'Admirável Mundo Novo' - de A. Huxley (1/2)









sobre “Admirável Mundo Novo” (“Brave New World”, 1932)
romance de Aldous Huxley (UK, 1894-1963)



Quando a literatura expõe a pesadelo distópico


1:2


Vimos na Introdução as preocupações do pensador e ficcionista Aldous Huxley com o mundo tecnológico que continua a incentivar o militarismo, o controle social e o genocídio. Nada adianta ter a melhor tecnologia em século e a mente de bárbaros da Idade da Pedra. Ao contrário, teremos apenas uma Barbárie movida a energia nuclear, uma máquina de guerra ainda mais eficiente, isto é, assassina e genocida.


O avanço científico não significa avanço psicológico, nem avanço social, ainda mais se os inventos técnicos forem apropriados por uma minoria no poder – ou em conluio com o poder – em nome de uma eficiência bélica – vide a relação Ciência e Indústria armamentista - e não democratizados para o uso da população. Alguns detêm os poderes técnicos e intelectuais enquanto os outros sobrevivem nas penumbras da ignorância e da superstição.


Surge a dicotomia entre tecnologia e tradicionalismo, onde os adeptos do primeiro se julgam no direito de 'educar' sistematicamente os segundos, que então reagem com um excesso de conservadorismo suicida. Ambos os lados se deformam e são superados por 'marés revolucionárias' que ocorrem em dado momento, até serem substituídas por outros regimes reacionários. E assim por diante.


Encontramos estes contrapontos em Admirável Mundo Novo onde é evidente o antagonismo entre o mundo civilizado, técnico, controlado, estável e artificial e o mundo selvagem, indígena, espontâneo, instável. O artificial versus o natural (ou mais próximo do natural, digamos, pois toda cultura humana é artificial em relação a vida natural).


O que se proclama civilizado que continuar progredindo cientificamente com tecnologias e aparatos, enquanto os tradicionalistas se apegam ao prazer e ao sofrimento mais visceral, e vivem em ambientes nada 'assépticos', nada artificias, desprezando todo avanço tecnológico, ou agricultura mecanizada, ainda a acreditarem em deidades naturais e rituais de fertilidade. São sociedades 'estáveis' ao seu modo.


Estabilidade que é a obsessão do mundo controlado, planejado. Nada pode mudar. Nada pode sair dos planos. Por isso as massas populares são condicionadas por propaganda e policiamento constante. Os governantes querem suas políticas seguidas em cada detalhe e não aceitam discussão ou divergências. Os tradicionalistas usam seus líderes e pajés, enquanto os cientificistas usam seus técnicos, seus especialistas. Ambos se perdem, fechados em seus 'ghettos', e dispensam o diálogo.


Pensemos: o que causa instabilidade? O que causa medo aos dominantes? O progresso? Então, passam a controlar a 'marcha' da ciência, da técnica, da sustentabilidade. As revoltas populares? Então a polícia secreta investiga os subversivos e elimina, sob torturas, os líderes populares nos porões. A obra de Arte causa instabilidade? Então, deve ser queimada. Assim pensam os mandatários em “Fahrenheit 451” e no filme “Equilibrium”. Mas a estabilidade deve ser mantida ainda que o preço seja uma felicidade alienada, artificial, mantida por diversão constante e drogas sintéticas.



No mundo de tecnologia e controle em “Admirável Mundo Novo” os cidadãos são treinados (ou melhor: condicionados) para determinadas funções desde o momento da fecundação. São apenas células reprodutoras submetidas a várias divisões celulares – meioses e mitoses – a produzir gêmeos idênticos, num método de manipulação genética chamado “Processo de Bokanovsky”.

“Um zigoto, um embrião, um adulto – é normal. Mas um zigoto que sofreu o processo de Bokanovsky irá germinar, proliferar, se dividir. De oito a noventa e seis brotos, e cada broto até ser um embrião perfeitamente formado, e cada embrião será um adulto plenamente formado. Fazendo noventa e seis seres humanos crescerem onde antes apenas crescia um. Eis o progresso.”
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(One egg, one embryo, one adult – normality. But a bokanovskified egg will bud, will proliferate, will divide. From eight to ninety-six buds, and every bud will grow into a perfectly formed embryo, and every embryo into a full-sized adult. Making ninety-six human beings grow where only one grow before. Progress. p. 17, cap. 1)


Há toda uma 'linha-de-produção' de seres humanos, controlados desde a inseminação, passando pelo estado embrionário, quando recebem vacinas e substâncias sintéticas em verdadeiros 'úteros artificiais', em centros especiais de reprodução assistida.


Assim a população é controlada, cada cidadão é destinado a uma profissional, uns para o pensamento, e muitos para a labuta. E todos felizes em servirem à sociedade. Feliz em ser intelectual, e feliz em ser faxineiro. Uma felicidade artificialmente mantida e reproduzida. Desde que tudo mantenha-se sobre controle. Eis o progresso para o empolgado Diretor.


“O Processo de Bokanovsky é um dos maiores instrumentos da estabilidade social!' […] Homens e mulheres padronizados; em grupos uniformes. Toda a equipe de uma pequena fábrica sendo o produto de um único zigoto submetido ao processo de Bokanovksy.

'Noventa e seis gêmeos idênticos trabalhando em noventa e seis máquinas idênticas!' A voz quase tremia com entusiasmo. 'Vocês realmente sabem quem são. Pela primeira vez na História.' Ele citava o lema planetário. 'Comunidade, Identidade, Estabilidade.' Grandes palavras. 'Se pudéssemos submeter ao processo de Bokanovsky de modo contínuo então todo o problema estaria resolvido.'”
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Bokanovsky's Process is one of the major instruments of social stability!' […] Standard men and women; in uniform batches. The whole of a small factory staffed with the products of a single bokanovskified egg.

'Ninety-six identical twins working ninety-six identical machines!' The voice was almost tremulous with enthusiasm. 'You really know where you are. For the first time in history.' He quoted the planetary motto. ' Community, Identity, Stability.' Grand words. 'If we could bokanovskify indefinitely the whole problem would be solved
.' p. 18, cap. 1


O Narrador, quando se cansa da própria ironia, entrega a função explicativa, doutoral, ao Diretor em retórica palestra durante uma aula aos jovens estudantes no centro de reprodução assistida. Tudo o que soaria absurdo e mesmo risível na Narração, é explicado de modo professoral pelo Diretor, pelo Administrador e outros experts, os especialistas em Reprodução que pouco compreendem da totalidade sociológica na qual vivem. Vive-se, depois se tenta racionalizar, justificar. Aqui tudo em nome da Estabilidade.

“'E eis', o Diretor desenvolveu isso de modo sentencioso, 'eis o segredo da felicidade e da virtude – gostar do que você é obrigado a fazer. Todo o objetivo do condicionamento é este: fazer as pessoas gostarem de seus inescapáveis destinos sociais.” (“'And that', put in the Director sententiously, 'that is the secret of happiness and virtue – liking what you've got to do. All conditioning aims at that: making people like their unescapable social destiny.' p. 24)


Assim o intelectual é condicionado a amar a Ciência e a Erudição, do mesmo modo que o faxineiro é condicionado a amar a labuta de limpeza, de remoção de detritos, de serviços 'degradantes' aos intelectuais. Cada pessoas é destinada a uma função social desde o útero artificial – até porque nem sequer mães e pais existem como família. Tudo é inseminação artificial, reprodução em proveta. Ao contrário das esperanças de Gramsci (e do próprio Huxley) no sentido de que a Educação fosse cada vez mais generalizada e geral, sem especialistas em demasia, ao contrário sendo o ensino técnico aliado ao intelectual, de modo a não criar experts e técnicos, nem uma classe intelectual e uma classe operária.


No mundo admirável da distopia as crianças são condicionadas ao modo pavloviano, em sofisticados aprendizados behavioristas, in utero ou em classe, sendo que os destinados ao trabalho com o calor sofrem níveis altos de temperatura até se adaptarem, e os que devem ser trabalhadores braçais devem odiar os livros e os estudos, e assim por diante. A pessoa é criada, condicionada, programada para gostar de ser intelectual, engenheiro, faxineiro, etc, durante toda a vida – e feliz em ser o que é (ou seja, não há escolha). O progresso, a estabilidade aqui significa : fim do livre-arbítrio. A relação indivíduo-função social é dada desde a concepção. Uns nascem para pensar, outros para carregarem pedra.


As 'castas' superiores' devem amar os livros – serão os intelectuais – do mesmo modo que as 'castas inferiores' devem detestar os livros – serão os trabalhadores braçais que se vangloriam de sua ignorância, 'Ler? Estudar? Coisa de gente grã-fina, de gente molenga!'. Cada um vai aceitar desde a infância um locus social previamente demarcado. É o apogeu do pensamento parcial – um especialista que vive um seu próprio 'mundinho', alienado quanto ao resto.

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Sobre o condicionamento em Pavlov
mais info em
http://www.cerebromente.org.br/n09/mente/pavlov.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Reflexo_condicionado
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ivan_Pavlov
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Os desejos - tanto quanto os slogans - são instilados via recursos mnemônicos, como se fossem aprendizados de línguas estrangeiras em períodos de pré-sono, como se fossem revelações da verdade absoluta durante os sonhos. Tudo o que cada pessoa julga como o mais íntimo pensamento individual ou gosto pessoal já foi programado por repetições contínuas de frases feitas, conhecimentos que não passam de ladainhas hipnóticas.


O que o cidadão julga ser o que ele quer é ilusão – já se espera que ele queira isso ou aqui – ele quer o que as Elites desejem que ele queira. As Elites, o Estado, o Partido, quem quer que seja o mandatário do momento. Toda escolha já é previamente escolhida, o jogo é inteiramente jogado com cartas marcadas. A Estabilidade é o planejamento e o controle em escala total – da concepção até a incineração.


As castas são bem demarcadas e nenhuma 'ascensão social' é possível. Alfas serão sempre Alfas porque foram condicionados e educados para serem Alfas. E assim os demais – Betas, Gamas, Deltas, Ípsilons – cada um será durante toda a vida mantido no mesmo locus social. Um Alfa sempre pensará como um alfa, um Beta verá o mundo da perspectiva de um Beta, um Gama sentirá tudo como um Gama deve sentir, e assim por diante. Não há qualquer crítica sobre o 'sistema de castas', uns mandam e outros obedecem. E se algum desconforto aparecer – seja físico ou emocional – há uma droga sensacional : sintética e sem contra-indicações: o soma.


A droga sintética soma aliada ao entretenimento constante e alienado cria uma realidade de entorpecimento e conformismo onde a ausência de um dos itens causa verdadeiro pânico. Todos querem drogas, todos querem se divertir. Ora, 'pão e circo' é o que as Elites jamais negam aos dominados: há melhor modo de dominar do que 'divertindo' o dominado? Nem se precisa de coerção, força policial, etc. Basta dar diversão, dar adrenalina, filmes violentos, novelas sentimentalóides, reality shows com direito a 'eliminação' ao vivo.


É preciso aumentar o consumo? É preciso incentivar as viagens turísticas? É preciso divertir aqueles com tendências solitárias? É preciso condicionar as novas gerações? É preciso isolar os desadaptados? Tudo é providenciado em nome da Estabilidade. As engrenagens se movem e a Máquina segue adiante, com slogans, campanhas publicitárias hipnóticas, filmes com sensações, helicópteros disponíveis para os casais sobrevoarem o mar durante a lua cheia. Tudo está ao alcance na mão – menos o pensamento crítico.


Aliás, para quê o pensamento crítico num mundo de plena felicidade? Ninguém questiona a felicidade, aceita-a. Ninguém quer saber se a felicidade mascara uma dominação, uma vida alienada e drogada. Eis a ironia do mundo admirável – tudo é tão perfeito que não se precisa pensar, meditar, raciocinar. Somente um mundo injusto exige uma forma de crítica. O mundo da 'utopia' é inatacável? Ao atingirmos uma certa 'perfeição' então seremos a-críticos?


Pensamos tudo isso diante da figura do Administrador. Ele é o personagem mais interessante: Mustapha Mond, o erudito governante que sabe do mundo antigo e do mundo civilizado. Ele que tece ironias sobre as condições pré-históricas (onde nos incluímos, vivendo cinco séculos antes do apogeu da Era de Ford). Mustapha Mond é o diretor, o todo-poderoso, por que é um dos únicos com olhos numa terra de cegos?


Para estabelecer um contraponto entre a fala do Administrador e as ações dos demais cidadãos, a Narração utiliza o recurso de múltiplas perspectivas, com o narrador em vários lugares ao mesmo tempo – a simultaneidade – a registrar as várias camadas de perspectividade, como se fosse uma técnica cubista, com cena dentro de cena, repletas de referências ao nosso tempo – a produção do automóvel modelo T, pelo engenheiro Henry Ford (EUA, 1863-1947), em linha-de-montagem-em-série, é um marco para a civilização e o calendário 'fordista', estamos no início da fictícia Era Ford.

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Sobre o Ford modelo T
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ford_Model_T
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Temos, simultaneamente, uma cena figurativa, com tom descritivo, situacional, com as personagens atuando, enquanto a voz do Administrador ecoa, em eruditas explanações sobre o mundo civilizado em superação ao mundo pré-fordista, de produção ineficiente e instável (referência aos ciclos de expansão e retração do capitalismo, evidente com a crise mundial de 1929, depois da qual muitos economistas passaram a apoiar o planejamento, a economia planificada). A cena figurativa 'ilustra' a cena retórica, discursiva, dissertativa, quando somente vozes se apresentam tal qual uma cena teatral.


As figuras dos Alfa, dos Betas, dos Gamas, dos Delta e dos Ípsilons se movimentam como fantoches enquanto o Administrador expressa sua sabedoria e confiança, a justificar o mundo tecnocrata e obcecado por estabilidade. Em sua 'erudição', Ford se confunde com Freud, enquanto a família e a monogamia são execradas, o consumo e o controle de natalidade são elogiados. Qualquer coisa chamada 'democracia' ou qualquer outro fenômeno denominado 'liberalismo' não passam de palavras ou peças de um museu. Coisa do passado. Assim como a Arte, a Literatura, a História.


“Vocês todos se lembram,' disse o Administrador, com sua voz forte e profunda, 'Vocês todos se lembram, eu suponho, aquele dito belo e inspirado de Nosso Ford: A história é uma farsa, A história', ele repetia lentamente, 'é uma farsa'.

Ele agitou a mão; e era como se, com um espanador invisível, ele estivesse espanado um pouco de poeira, e a poeira era Harappa, era Ur da Caldeia; algumas teias-de-aranha, e estas eram Tebas e Babilônia, e Cnossos e Micenas. Uma espanadela, e outra – e onde estava Ulisses, onde estava Jó, onde estavam Júpiter e Gautama e Jesus? Espanadela – e aquelas nódoas de sujeira antiga chamada Atenas e Roma, Jerusalém, e o Império do Meio – tudo já era. Espanadela – e se esvaziava o lugar onde ficava a Itália. Espanadela – já eram as catedrais; espanadela e mais outra, já eram o Rei Lear e Os Pensamentos de Pascal. Espanadela, a Paixão; espanadela, Réquiem; outra, já era a Sinfonia; e ainda outra espanadela...”
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“'You all remember,' said the Controller, in his strong deep voice, 'you all remember, I suppose, that beautiful and inspired saying of Our Ford's: History is bunk, History', he repeated slowly, 'is bunk'.

He waved his hand; and it was as though, with an invisible feather whisk, he had brushed away a little dust, and the dust was Harappa, was Ur of the Chaldees; some spider-webs, and they were Thebes and Babylon and Cnossos and Mycenae. Whisk, whisk – and where was Odysseus, where was Job, where were Jupiter and Gotama and Jesus? Whisk – and those specks of antique dirt called Athens and Rome, Jerusalem, and the Middle Kingdom – all were gone. Whisk – the place where Italy had been was empty. Whisk, the cathedrals; whisk. Whisk, King Lear and the Thoughts of Pascal. Whisk, Passion; whisk, Requiem; whisk, Symphony; whisk...”
p. 38, cap. 3


Podemos estabelecer uma perspectiva de leitura a partir de certas personagens que sabem, que conservam certo saber numa sociedade de alienados. Assim podemos seguir o foco de Mustapha Mond em Admirável Mundo Novo, e o de O'Brien em 1984, e o Capitão Beatty em Fahrenheit 451. Estes antagonistas são mais interessantes que os protagonistas – os quase-heróis – pois os reacionários são aqueles que sabem, que têm olhos para ver onde todo mundo está mergulhado na cegueira.


Mas como eles vivem, seguem com suas vidas, sabendo? Eles não morrem de sofrimento? Afinal, a alienação, que é condição básica da 'felicidade' ou 'entorpecimento' dos outros, não teme feito sobre eles. Tanto Mustapha quanto O'Brien adquirem um caráter cínico e até sádico, enquanto Beatty é um ironista amargo (que por fim se deixa queimar diante da vingança do protagonista).


Os governantes, as Elites, sempre sabem mais? O se enganam nas mesmas ilusões que inventam para os dominados? Até onde o Administrador acredita no que diz? Afinal, ele também foi condicionado! Ele pode saber comparativamente um pouco mais – contudo seu saber é viciado, é programado. Ele somente saberá justificar o mundo que é – nunca defenderá o mundo que foi. Foi superado? A distopia é superação ou regressão? Se considerarmos a tecnologia e a eficiência, então eis um avanço. Mas consideremos o livre-arbítrio, o livre pensamento, a Arte, em suma, a criatividade, tudo isso perdido, então estamos num retrocesso.


Em comparação a Mustapha Mond temos duas outras personagens, dois Alfas, que se destacam um pelo complexo de inferioridade e o outro pelo complexo de superioridade. Um a sentir-se não plenamente adaptado o mundo dos Alfas, sente-se rejeitado por seu físico, seu olhar inquieto sobre o mundo. Nem ele sabe por que não se 'encaixa' no ritmo – será álcool em demasia que injetaram em seu sangue no útero artificial? Este é o Bernard Marx.


O desassossegado e reflexivo Bernard Marx lembra muito o desadaptado John Flory do romance “Burmese Days” (1934) de George Orwell. É o jovem que não sabe como se comportar numa sociedade de classes. Como tratar com os inferiores, como bajular os superiores? Como ser superior e dar ordens aos inferiores? Afinal de contas, numa sociedades de classes, ou mesmo de castas, ou um sistema fascista, tudo se move como um conjunto de engrenagens numa hierarquia, onde um manda e outro obedece.


Bernard seria um indivíduo B numa série A – B – C, onde B suporta receber ordens de A apenas porque pode dar ordens a C. O problema seria ser um indivíduo do tipo C, um subordinado, um soldado raso, um pária, por exemplo. Quem tem autoridade nem precisa mandar, exagerar o poder. Basta se posicionar quanto a um tema, e outros o seguirão. Demonstra poder justamente quem precisa se afirmar diante dos outros (o famoso 'eu mando aqui' do patrão inseguro).

O outro personagem é um talentoso Alfa que sempre ousa um pouco mais, é demasiadamente criativo, inteligente até demais para os padrões que são esperados para os intelectuais Alfa. É um homem igualmente sedutor diante dos desejos volúveis das mulheres – sempre promíscuas, sempre disponíveis. Por seus excessos – tanto físicos quanto intelectuais – este Helmholtz Watson passa a ter uma certa 'noção de si mesmo', fenômeno não programado. O que nele é uma auto-afirmação do Ego, em Bernard Marx é uma necessidade de ser aceito pelos Egos alheios.

Entre Bernard e Helmholtz surge uma amizade meio simbiótica: um ouve os elogios, os desconfortos, as lamúrias, e o outro ouve as frases geniais, os pensamentos ousados que não são de 'bom-tom' na sociedade estabilizada – qualquer novidade, qualquer mudança pode 'desestabilizar'. A distopia é o reino do conservadorismo – até a Ciência deve ser controlada, confinada. Um gênio tal como Helmholtz é olhado com desconfiança pelos Administradores.

“'Capaz.' era o veredicto de seus superiores. 'Talvez' (e eles sacudiriam a cabeça, e abaixariam suas vozes) 'um pouco capaz demais'.

Sim, um pouco capaz demais. Eles estavam certos. Um excesso mental produzira em Helmholtz Watson efeitos muito similares àqueles que, em Bernardo Marx, eram resultado de um defeito físico. Ossos e músculos frágeis tinham isolado Bernard de seus colegas, e o senso deste isolamento, sendo, de acordo com os padrões correntes, um excesso mental, tornou-se, por sua vez, uma causa de maior separação. Pois o que fizera Helmholz assim tão desconfortavelmente consciente de ser ele-mesmo e tão sozinho fora a sua excessiva habilidade. O que os dois homens compartilhavam era o conhecimento de que eles eram indivíduos. Mas quando o fisicamente defeituoso Bernard sofrera a vida toda com a consciência de ser separado, esta apenas recentemente, com o crescente despertar de seu excesso mental, Helmholtz Watson ficara consciente de sua diferença diante das pessoas que viviam ao seu redor.”
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“'Able.' was the verdict of his superiors. 'Perhaps' (and they would shake their heads, would significantly lower their voices) 'a little too able.'

Yes, a little too able; they were right. A mental excess had produced in Helmholtz Watson effects very similar to those which, in Bernard Marx, were the result of a physical defect. Too little bone and brawn had isolated Bernard from his fellow men, and the sense of this apartness, being, by all the current standards, a mental excess, became in its turn a cause of wider separation. That which had made Helmholtz so uncomfortably aware of being himself and all alone was too much ability. What the two men shared was the knowledge that they were individuals. But whereas the physically defective Bernard had suffered all his life from the consciousness of being separate, it was only quite recently that, grown aware of his mental excess, Helmholtz Watson had also become aware of his difference from the people who surrounded him.”
p. 62, cap. 4


Bernard quer ser livre, ainda que saiba bem o seja 'liberdade'. Ele quer se livrar de uma 'escravização' causada pelo 'condicionamento', e ser assim, digamos, espontâneo, não determinado. Enquanto Helmholtz quer criar algo sensacional – seria Arte? - algo que seja inusitado, não determinado. Bernard quer ser aceito pelos colegas e pelas colegas, quer ser ouvido a admirado, enquanto Helmholtz já tem tudo isso, é idolatrado pelas colegas e admirados pelos colegas, mas quer algo mais – o quê? Quer criar Arte? Quer ser um artista? É um indivíduo insatisfeito com seus sucessos e quer sempre mais. Não apenas ser o melhor do quarteirão, mas do bairro, e depois da cidade, e depois do país, e então ser o melhor do mundo.


Digamos que tanto Helmholtz Watson quanto Bernard Marx são indivíduos porque são flutuantes. O que seria 'flutuante'? Um indivíduo que se destaca consciente de si-mesmo em relação ao demais padronizados. O primeiro personagem se destaca da multidão por ser acima da média com um Q.I. superior, enquanto o segundo se destaca porque tem um físico inferior aos de mesma classe. A diferença cria uma flutuação – 'eu que não sou igual ao/s outro/s – ora por superioridade ora por inferioridade, em relação ao padrão comum.


Os diferentes – posto que personalidades conscientes - são vistos então como excêntricos. E os excêntricos, em reação, passam a pensar e criticar o mundo dos padronizados – dos normalpatas. O flutuante passa a pensar: por que sou superior? Por que sou inferior? Enquanto os normais seguem seu caminho de mediocridade sem qualquer pensamento crítico. É mais fácil e cômodo ser mediano, medíocre, igual na multidão.


Certo. Porém a história aqui não sofreria qualquer, digamos, inflexão, qualquer superação se não fosse a entrada de outra personagem, John, ou o Selvagem, que é o filho indesejado, posto que não esperado (numa sociedade de 'bebês de proveta'), de uma mulher civilizada que se perdera numa reserva nativa (ou indígena) quando em visita com um civilizado (justamente o Diretor, o superior de Bernard). O Selvagem faz uma entrada, digamos, triunfal, tal um deus ex-machina de teatro clássico. Ele entra e a história ganha um fôlego.


Voltamos a enfatizar o contraponto: civilização versus tradição. Os cidadãos do mundo civilizado descobrem que há outro modo de vida, e encaram esta situação como um museu de culturas passadas, como um objeto de turismo. Com o mesmo encanto com o qual vamos ao zoológico ver os macacos. O civilizado se sente superior – e se justifica – porque se sente acima dos povos tradicionais. 'O índio, o selvagem, o bárbaro – é o outro.'


Quando Bernard descobre que pode 'tirar vantagem' – destruir a imagem e a carreira do Diretor que o persegue – da presença do Selvagem no mundo civilizado, ele, o bom mocinho até então, torna-se um subversivo, a questionar – agora com nova popularidade meio aos colegas, uma fama advinda da presença do exótico Selvagem. Pois a excentricidade do Selvagem acaba apenas por reforçar a superioridade auto-aclamada dos civilizados – 'Vejam! Somos civilizados! Não somos iguais a esse bárbaro! Este nascido de ventre de mulher! Somos bons bebês de proveta!'


A exceção de alguma regra apenas reforça a regra. Os normais se apegam ainda mais a sua normalidade, ao seu padrão de conduta, quando encontram um diferente, um exótico. Este será exposto em vitrine, em show, em museu de freaks. O show de monstruosidades apenas apresenta a sublimidade da beleza, assim como a exibição de inteligência mostra as vantagens conformistas da ignorância.






continua...







por

Leonardo de Magalhaens







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