quarta-feira, 7 de julho de 2010

Os Miseráveis - Parte 3 - Marius (1/2)




Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)

As Obras Clássicas (ensaio 3)

O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna

Parte III - Marius

A Parte Terceira da epopeia moderna Os Miseráveis trata do duelo entre avô e neto. O primeiro é um velho conservador realista (monarquista) que educou o segundo, o neto, na tradição do ancien régime, até que o jovem venho a conhcer a história de seu pai, e tornar-se um neo-revolucionário (nas campanhas pós-Restauração, 1830, 1832, 1848)

O Livro I abre com considerações/ digressões sobre a metrópole pariense, a capital francesa, com suas figuras burguesas, os novos nobres, ou os aristocratas de volta do exílio [na época de Napoleão], que circulam nas fronteiras sempre ampliadas da grande cidade a fagocitar a área rural.

Destaca-se também a figura do 'gamin', ou do gaiato, do vadio, ou mais literário 'flâneur', aquele sujeito desocupado, ou artista, que circula pelas ruas, a colher imagens e odores, impressões e inspirações. O 'gamin' perambula por ruas, passagens, vielas, tropeça nos novos calçamentos, ainda anteriores aqueles que receberam as passadas de um futuro Baudelaire.
“O vadio ama a cidade, ele ama também a solidão, sendo prudente. Amante da cidade [Urbis amator], como Fuscus; amante do campo [ruris amator], como Flaccus” (nota 1)

Vaguear meditativo, diz-se 'flanar', é um bom emprego do tempo para o filósofo; particularmente nessa espécie de campo um pouco bastardo, deveras feio, mas bizarro e composto de duas naturezas, que cerca certas grande cidades, notadamente Paris. Observar os subúrbios é observar o anfíbio.”

("Le gamin aime la ville, il aime aussi la solitude, ayant du sage en lui. Urbis amator, comme Fuscus; ruris amator, comme Flaccus.
Errer songeant, c'est-à-dire flâner, est un bon emploi du temps pour le philosophe; particulièrement dans cette espèce de campagne un peu bâtarde, assez laide, mais bizarre et composée de deux natures, qui entoure certaines grandes villes, notamment Paris.Observer la banlieue, c'est observer l'amphibie
. V, p. 609)

Discontando a 'erudição' clássica romana dos Autor, a imagem é esta mesma: a contraposição campo e cidade. O século 19 se destaca na Europa por este constraste. Stendhal e Balzac elaboraram enredos clássicos com estas diferenças citadinas e campestres. Na literatura portuguesa, temos o clássico de Eça de Queirós, “A Cidade e as Serras” (1901), onde o Zé Fernandes enaltece o campo contra a desumanização da cidade, elogiada por Jacinto de Tormes.
Também as 'fronteiras' entre campo e cidade. O que chamamos 'subúrbio', 'limite da zona rural', onde ocorrem as 'courbações' das grandes cidades em suas regiões metropolitanas. O inchamento das cidades é ironizado na Parte 2 de “O Vermelho e o Negro”, como já comentamos.

Mas voltemos à figura do 'gamin' (futuramente o 'flâneur'). O enciclopédico Narrador não hesita em explicar as origens da terminologia. “Essa palavra 'gamin', foi impressa pela primeira vez e chegou a linguagem popular na forma literária em 1834. Foi num opúsculo intitulado 'Claude Gueux' que essa palavra fez sua aparição. O escândalo foi grande. A palavra sobreviveu.” (Ce mot, gamin, fut imprimé pour la première fois et arriva de la langue populaire dans la langue littéraire en 1834. C'est dans un opuscule intitulé Claude Gueux que ce mot fit son apparition. Le scandale fut vif. Le mot a passé. VII, p. 613)

Claro que podemos notar toda uma admiração pela 'cidade luz' aqui. Mas há um simbolismo: Paris, um microcosmo de um macrocosmo, a cidade grande. Seja London/Londres, seja Berlim, seja a nova San Petersburg, ou a oriental Xangai, ou a norte-americana New York, evidenciam o novo modo de vida, em espaços limitados onde se amontoam seres humanos em busca de oportunidades e riquezas.

“Em suma, para resumir, o vadio é um ser que se distrai, porque é infeliz” (“Somme toute, et pour tout résumer d'un mot, le gamin est un être qui s'amuse, parce qu'il est malheureux.” IX, p. 616)
No mais, dialeticamente, “o vadio expressa Paris, e Paris expressa o mundo” (“Le gamin exprime Paris, et Paris exprime le monde” X, p. 617)
Ou ainda: “Paris é sinônimo de Cosmos” (“Paris est synonyme de Cosmos”, X, p. 620)

Sendo um autor francês, faz sentido a proposição. Paris representa o mundo. Assim entendemos outros microcosmos-macrocosmos. Para Dickens, London é uma amostra do universo, assim como é San Petersburg para Dostoiévski, Rio de Janeiro para Machado de Assis, e Dublin para J. Joyce. No umbigo autoral espelha-se os umbigos de cada leitor. Ainda mais se tratando de um francês. (Os franceses amavam tanto o Autor deles que ocuparam as ruas nos funerais rumo ao Panthéon.)

Meio a exaltação de Paris, o Narrador analisa as espécimes do tipo 'Baudelaire', os flâneurs andarilhos, nobres ou decaídos, burgueses ou camponeses forasteiros, que atravessam a cidade povoada de luzes e promessas. Promessas não cumpridas.

Principalmente para uma família de pobres, os Jondrette, composta de pai, mãe e e duas mocinhas. Seres andrajosos que vivem de explorar a caridade alheia. Onde moram? Por capricho autoral, na mesma 'masure' (pardieiro) Gorbeau – exatíssimo lugar onde Valjean morou no Livro IV da Parte II. Além destes, há o pequeno Gavroche, criança desgarrada, peralta, a vasculhar as ruas, sim, um verdadeiro 'menino de rua' – imagem de um Oliver Twist (de C. Dickens) ou dos 'capitães da areia' (da obra de Jorge Amado). Mas ainda não é o momento de Gavroche reinar.

Livros II e III

Mudando o plano narrativo, temos agora umas 20 páginas de uma digressão sobre os burgueses reacionários, os monarquistas revanchistas. Tudo para apresentar a figura do avô realista, fão do ancien régime, o Monsieur Gillenormand, figura que representa o Antigo.

Em contraponto, a representar a Juventude, temos o neto Marius. Criado na cultura da Restauração, não sabe o que foi exatamente a Revolução de 1789-1799 e o Império Napoleônico (1800-1815). E quando descobrir uma revolução 'pessoal' vai ocorrer.

Quem é o pai de Marius? Temos a descrição do soldado Georges Pontmercy, revolucionário, atuante ns guerras napoleônicas, para a maior glória da França. Sabemos que na Batalha de Waterloo, já oficial, ele comandou um esquadrão da cavalaria, os 'couraceiros'. Foi enobrecido no campo de batalha.

Mas com a Restauração monárquica, Pontmercy perdeu o posto militar e o título de 'Barão'. Pontmercy teve um filho com a mademoiselle Gillenormand (Madame Pontmercy) que é justamente a mãe de Marius, que em 1831/32 vive na comodidade ao lado do avô materrno Sr. Gillenormand, que não teve muita consideração pelo genro. Afinal de contas, para um conservador, um revolucionário só pode ser um 'bandido'. Por isso, o ex-Barão não podia ver o filho Marius.

Claro que esse nome 'Pontmercy' já surgiu antes. O oficial salvo por Thénardier quando roubava o que havia nos bolsos do 'cadáver' meio aos restos da hecatombe bélica. Segundo deslumbramos nas cenais finais da narração épica da Batalha de Waterloo, no Livro I da Parte II.

É aqui evidente uma 'peça de encaixe' nessa narrativa. O mesmo Thénardier que 'cuidou' (isto é, explorou) Cosette, a filha de Fantine éo mesmo que 'salvou' (isto é, saqueou) Pontmercy, o pai de Marius. E tendo Valjean conhecido o drama de Fantine e resgatado Cosette do mercenário Thénardier só falta agora alguma ligação entre os protagonistas e este 'recém-chegado' Marius. Vejamos.

Como já foi escrito, as personagens avô e neto são 'paradigmas' do velho e do novo, do conservador da Restauração e o revolucionário das novas rebeliões (1830, 1832, 1848). Estes papéis são perfeitamente definidos nas 'digressões' sobre os salões parisienses onde se reunem os burgueses monarquistas em constraste com os burgueses liberais, sejam constitucionalistas ou republicanos, em contraponto, por sua vez, com os nobres da Restauração. Ou pelo menos os que sobreviveram ao Terror jacobino.

Nas noitadas do le faubourg Sant-Germain se retrata a dupla face da História francesa do século 19: o monarquismo (dos 'realistas', royaliste) a representar o ancien régime, a França histórica, aquele admirada até pelos Romanov russos; e a revolução (dos 'jacobinos', dos 'republicanos'), que enfrenta o antigo, e é visto como desvio, uma falta, até um contrassenso.

Claro que pode-se apontar incoerências. Seria Napoleão revolucionário? Afinal, ele não derrotou uma nobreza histórica (os Bourbons) apenas para criar outra, a do Império? Uma nobreza para sufocar a outra? Não há espaço para o 'governo popular'? Eis a chamada 'solução bonapartista': um governo forte para tutelar os anseios populares. (No século 20 podemos exemplificar com o populismo, os fascismos, as 'repúblicas populares' mas de regime fechado, autocrático)

Mas em nada disso meditava o aluno Marius, ao receber uma educação 'clássica', formalista, do jeito que desejava o seu avô conservador. A adolescência do neto segue nos 'padrões' até um dia, em 1827, quando o avô recebe uma carta enviada pelo pai do rapaz. O avô avisa ao neto Marius, então com 17 anos, que o moço deve viajar para Vernon, pois assim deseja o pai, adoentado.

Temos uma imagem de Marius: perplexo ao saber que o pai deseja vê-lo, tendo o moço passado toda a sua vida a estimar o avô como o 'verdadeiro' pai. Marius realmente segue em viagem, mas chega muito tarde, 'trop tard', pois o coronel monsieur Pontmercy acaba de morrer com febre cerebral ('fièvre cérébrale') Assim, o jovem Marius vê o pai pela primeira – e última – vez. O moço se emociona, mas não pode dizer a si mesmo que 'amava' o pai – sequer o conhecera. E não qualquer herança para Marius, exceto uma carta breve, onde o pai revela que “o Imperador me fez barão sobre o campo de Waterloo”. Além disso, a carta menciona o 'sargento' Thénardier que teria salvado o coronel-barão em Waterloo. O que foi 'salvo' nunca percebeu que o tal Thénardier cuidou tão-somente em roubá-lo! Eis aqui a ligação com os livros anteriores. O contexto da Batalha de Waterloo e a pilhagem do patife Thénardier.

Tudo realmente começa a mudar no capítulo V (com o irônico título “a utilidade de ir à missa para tornar-se revolucionário”, Utilité d'aller a la messe pour devenir révolutionnaire), quando Marius descobre que ele e o pai ficaram separados por 'opiniões políticas'. No banco da igreja, um velho pede licença para ocupar um assento, e explica ao moço que via sempre ali um pai a observar o filho – do qual não pudia se aproximar – e de repente (o Narrador adora isso: estas relações e coincidências!) o tal 'pai amoroso' é o pai de Marius.

Assim, Marius decide descobrir que pai é este que ele não conheceu. O que há na tal 'Revolução' que levou seu pai a se sacrificar nos campos de batalha. O moço, refinado na educação clássica, decide studar a Revolução, as publicações e relatos, além do “Mémorial de Sainte-Hélène” - a mesma obra que tanto influenciou (ou 'desmiolou') o orgulhoso Julien Sorel em “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir) de Stendhal. Toda esta pesquisa é para saber quem foi o pai – reconstituir a época e por que o homem juntou-se às tropas napoleônicas. Afinal, seria a Revolução algo realmente 'demoníaco'?

O avô, ao perceber certa mudança no comportamento do rapaz, pensa que o desassossego do neto é devido a alguma 'paixonice' – mas nem desconfia que o objeto de semelhante paixão não é uma 'belle fille', mas o próprio pai do moço! “Era mesmo uma paixão. Marius estava a ponto de adorar seu pai.” (“C'était une passion em effet. Marius était em train d'adorer son père.” VI, p. 659)

Marius sofre então um processo semelhante aquele da 'conversão religiosa', pois desfaz-se de sua 'educação clássica', diga-se, monarquista, e passa a admirar os revolucionários e as façanhas de Napoleão, o Imperador destronado. Uma conversa que segue fases, ora de perplexidade, ora admiração, ora assombro ou até remorso. Neste processo o moço acaba por reabilitar a figura paterna – e reabilita o imperador Napoleão! Afinal de contas, sendo criado na época da Restauração, Marius somente conheceu uma imagem 'desfigurada' do general tão amado e odiado. Veja-se que a Restauração execrava Napoleão ainda mais que a Robespierre. (Aqui lembramos as cenas do salão da nobreza na Parte II de “Le Rouge et le Noir”)

Em suas 'pesquisas', Marius descobre a dimensão heróica da vida, da História. “Ele lia os boletins da Grande Armada (Exército), essas estrofes homéricas escritas sobre o campo de batalha” (“Il lisait les bulletins de la grande armée, ces strophes homériques écrites sur le champ de bataille;” p. 662) Esta percepção do evento histórico 'Revolução' subitamente coloca neto contra avô. Temos então as personagens enquanto 'coletividades': o revolucionário contra o realista (monarquista), no capítulo VIII (Mármore contra granito)

Livro IV

Aqui o leitor conhecerá os amigos do ABC (L'Abaissé, os rebaixados), que declaram “L'Abaissé, c'était le peuple”, isto é, os rebaixados e humilhados são o próprio povo. Estes 'amigos' são revolucionários no sentido de pretenderem 'despertar' o povo para os processos de mudanças. Mas entrre eles, os amigos são um tanto quanto 'peculiares', diferentes entre si. Estes jovens do ABC representam a 'coletividade' dos novos revolucionários – que se rebelam em 1832 e 1848 – contra as monarquias. Estão nas ondas e refluxos das revoluções. O que os pais começaram, os filhos terminam.

Ainda que meio aos revolucionários (como veremos) existam osmais diversos 'tipos'. Há aquele revolucionários e bonapartista ao mesmo tempo, ou o burguês liberal que é monarquista (constitucionalista, entenda-se) enquanto outros são liberais republicanos. Realmente há uma confusão ideológica e partidária (e no século 20 não será diferente!)

Os amigos do ABC são um tanto quanto 'pouco numerosos', são estudantes que desejam 'conscientizar o povo' (nada diferente das vanguardas do século 20, portanto!) ao fazerem alianças com os trabalhadores. Alguns se destacam, nas longas descrições do Narrador (que pretende explicar tudo, como sempre)

Temos o líder Enjolras, um jovem de 22 anos que parece ter 17, a andar charmoso, mas também capaz de ser terrível, no papel de 'soldado da democracia'. Temos o Combeferre, a viver entre a revolução e a filosofia, entre o iluminismo e a civilização. Enquanto Enjolras se referencia em Robespierre, Combeferre se influencia por Condorcet (filósofo francês do século 18, que divulgou muitas das ideias de Voltaire, além de publicar as próprias ideias sobre a constituição para um governo republicano com sufrágio universal, voto para todos). Assim, Enjoras seria mais ação, enquanto Combeferre seria mais pensamento.

Temos Jean Prouvaire, um letrado, quase orientalista, que sabia italiano, latim, grego e hebraico, para ler os poetas Dante, Juvenal, Ésquilo e Isaías. Mas é um erudito 'flâneur', que gosta de perambular e assim meditar. Igual a Enjolras, Prouvaire era de família rica e filho único. Já Feuilly era órfão e trabalhador eventual, que deseja estudar, mesmo que autodidata, para expressar seu patriotismo de fracês e também defender as nacionalidades contra os imperialistas (assim ele condena a 'partilha da Polônia', onde os poloneses são oprimidos pelos prussianos e pelos russos, e igualmente é contra a ocupação austríaca do norte da Itália, dentre outros conflitos da época)

Com o seu desejo de 'Grécia volte a ser Grécia' e 'Itália volte a ser Itália', a persongem até se assmelha ao mito byrônico, sim, ao Lord Byron (assunto de ensaio vindouro) que indignado com a Grécia sob o domínio turco, de fato acabou por lutar ao lado dos gregos e morrer jovem, tal qual outros 'românticos'. Mas morrer por uma 'causa' não parece ser bem o perfil de Courfeyrac, em plena vitalidade (que o Narrador compara a de Tholomyès, o pai não-assumido de Cosette). Este Courfeyrac com sua vitalidade e juventude será um dos 'centros' do grupo, ao reunir os demais jovens.

Outro que aprecia a vida de andança é o Bahorel, um 'homem de caprichos', que mede a grande cidade passo a passo, “Vadiar é humano, flanar é parisiense”(“Errer est humain, flâner est parisien” I, p. 684) Nessas andanças, Bahorel atua como 'ligação' entre os grupo ABC e outros. Temos ainda o Lègle ou Lesgle, ou ainda Bossuet, de 25 anos, pobre, mas bem-humorado, quer ser advogado, enquanto Joly, tem 23 anos e estuda medicina (e é um 'doente imaginário', como explicita o bem-humorado Narrador).

Todos estes jovens, estes amigos do ABC, tem a mesma 'religião': o Progresso. Eram todos filhos diretos da Revolução Francesa. Não importava muito a classe ou a opção política dos pais, os moços eram revolucionários, progressistas. “Afiliados e iniciados, eles esboçaram secretamente o ideal” (“Affiliés et initiés, ils ébauchaient souterrainement l'idéal”, p. 686) Mesmo Grantaire, o cético, o homem que 'se guardava bem de crer em qualquer coisa', a destilar ironia diante dos discursos, tinha um lugar no grupo, ao respeitar e admirar as convicções do líder Enjolras, o idealista.

Ao deixar a casa do avô – e assim o conforto da vida burguesa – Marius conhece Bossuet (que se apresenta como 'L'Aigle', a águia) que o convida para ir ao hotel de Courfeyrac. Há espaço para mais um estudante. Diante deles, Marius se considera um 'democrata-bonapartista', quando Courfeyrac o apresenta aos amigos do ABC, na sala aos fundos do café Musain.

Assim, o antes solitário Marius, dado a monólogos e meditações, agora vê-se diante dos jovens que discutem 'opiniões políticas'. E são justamente estas 'discussões políticas' que despertam o jovem criado em 'educação clássica'. Precisa saber argumentar junto aos jovens reunidos naquela sala dos fundos de um café de boulevard, onde a conversação é um jogo, às vezes passional, entre o silêncio e o tumulto.

Nem todos, no entanto, sentem tanto 'utilidade' no discurso. O cético Grantaire não hesita em citações do Eclesiastes (“tout est vanité”, tudo é vaidade) ou ditos do tipo, “A vida é uma invenção monstruosa de não sei quem” (“La vie est une invention hideuse de je ne sais qui”, V, p. 695) e vem tecer considerações sobre si-mesmo, “É uma pena que eu seja um ignorante, pois eu vos citaria um monte de coisas; mas eu nada sei.” (“C'est domange que je sois un ignorant, car je vous citerais une foule de choses; mais je ne sais rien.” idem)

Grantaire, o iconoclasta, descontrói as ideias de 'virtude', 'grandes homens', 'grandes ideias', 'História', 'glória', 'vitória', pois “tudo a história não é mais que uma longa velha repetição” (“toute l'histoire n'est qu'un long rabâchage”, p. 696) e “eu faço pouco cado da vitória. Nada é tão estúpido quanto vencer; a verdadeira glória é convencer.” (“Je fais peu de cas de la victoire. Rien n'est stupide comme vaincre; la vraie gloire est convaicre.” idem) E continua a desconstruir a 'grandeza das nações', 'o gênero humano', 'povos civilizados', pois ao lado do luxo, sim, lado a lado, convive a miséria.

Aqui o Narrador em tessituras de diálogos tensos e prolixos, que depois serão encontrados no francês Zola, e nos russos Tolstoy e Dostoievski. Tanto em “Germinal”, quanto “Guerra e Paz”, e “Os Possessos” e “Os Irmãos Karamázovi”, há toda uma conjectura que 'usa' as personagens para se manifestar. As pessoas em debate são apenas veiculados para a transmissão dos 'discursos' – as falas ideológicas. Temos os anarquistas, os socialistas, os niilistas, os conservadores, os bonapartistas, etc, todos integrados numa 'voz coletiva' de partidários e poderosos, militantes e fanáticos.

Courfeyrac é antimonarquista sem hesitações. “Um rei é um parasita. Não se tem um rei gratuitamente. Escutem isto: excesso de reis [ou: reis são um excesso]” (“un roi est uns parasite. On n'a pas de roi gratis. Ecoutez ceci: Cherté des rois.” V, p. 700) É contra o absolutismo, e contra o constitucionalismo, uma vez que uma constituição é uma máscara, “une charte est un masque”) Tais discussões – mesmo um tanto confusas – agitam e iluminam o novo senso crítico de Marius.

Napoleão gera discussões. A grande França deve algo ao pequeno Corso? A menção das 'glórias napoleônicas', ou ofensas ao ex-imperador, bastam para despertar um eufórico Marius, acesso em entusiasmo. A História precisa dos 'grandes homens'? Ou dos 'grandes povos'? (Desfilam aqui as 'figuras históricas' de Cesar, Annibal, Maomé, Charlemagne, Cromwell, Newton...) No debate se defrontam um bonapartista (Marius) e um populista (Enjolras).

Na retórica, Marius exalta as 'batalhas gloriosas' (Marengo, Arcole, Austerlitz, Iena, Wagram...), o poder do Império, o Grande Exército, o gênio militar, a vitória. E finaliza, “O que pode ser maior, mais sublime?”, ao que Combeferre responde, “Ser livre”. Pois 'liberdade' é um valor iluminista.

Sim, eis porque os amigos do ABC não louvam o império, mas amam a República. Aquele 'domínio público' prometido pelo ideal de 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Enquanto em Marius há uma divisão íntima: como ser revolucionário e bonapartista? Assim Marius se afasta do avô monarquista e dos amigos republicanos... O jovem que abandona o conforto familiar, agora só tem por companhia a pobreza.

continua...
por Leonardo de Magalhaens
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