domingo, 27 de junho de 2010

Os Miseráveis - Parte 2 (Cosette)





Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)
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As Obras Clássicas (ensaio 3)
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O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna

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Livro II

As páginas seguintes continua as 'odisseias' do ex-forçado, agora novamente preso, Jean Valjean, que recebe um novo número (9430). Obviamente que os jornais não poderiam deixar de noticiar o fato inusitado : aquela transmutação do boníssimo prefeito, Sr. Madeleine, na figura andrajosa de um 'forçado'. Um homem tão respeitado, empresário de fortuna, agora revela-se um fugitivo? É assombroso. Os trechos dos artigos de imprensa – o Narrador cede lugar a íntegra das 'reportagens' – mostram um certo despeito por parte dos 'burgueses'. Claro, que as 'interpretações políticas' não faltam, a depender se o jornal é 'liberal', ou 'conservador'.
Quem sofreu com a nova prisão? O povo. Ficaram sem prefeito, sem patrão, as oficinas foram fechadas, os operários foram embora, tudo faliu. Então, onde a Justiça? Por que uma lei tão rigorosa que não aceita a 'nova vida' de um ex-prisioneiro? Não é aceita a 'regeneração'? O pecado cometido deve ser eternamente punido? (Basta ver o 'sistema carcerário brasileiro' para pensarmos nestas questões...)

Abrindo um parêntese, em curta narração, temos um mistério nos bosques de Montfermeil – localidade do albergue dos Thénardier, bem lembramos – onde uma figura pode ter enterrado um cofre sob as árvores. Há quem diga que seja o próprio diabo. Há quem tenha procurado o tesouro em vão.

Continuando, temos informações sobre a guerra da Espanha, em abril de 1823, quando a intervenção francesa derrubou o governo liberal [constitucionalista] espanhol e restaurou o Absolutismo. Eis o cenário da Restauração, ao apoiar o 'antigo regime' contra as políticas liberais (na época, o 'liberalismo' era o subversivo! Ainda não havia um movimento pró-socialismo organizado... ) A França sofria a Restauração e impunha o 'conservadorismo' aos demais países – a interferir do mesmo modo que Napoleão interferiu, apenas com outros propósitos políticos.

Em Toulon, a cidade mediterrânea, aliás, onde iniciou-se a ascendente carreira de Napoleão [ no Cerco de Toulon, em 1793], no famoso porto, navios de guerra se movimentam rumo às áreas de combate. A Marinha sempre causou sensação – basta lembrarmos a grande Batalha de Trafalgar, em outubro de 1805, onde o Almirante inglês Nelson derrotou as forças francesas, que ambicionavam invadir as Ilhas Britânicas. [No século 20, foi a vez dos alemães, sob ordens de Hitler, mas foram repelidos pela defesa aérea, a combativa RAF ] Ou ainda antes, a vitória da Marinha britânica, comandada por Francis Drake, corsário e almirante, contra a Grande Armada Espanhola, na Batalha de Gravelines, em julho de 1588, superando os espanhóis nos mares.

Em um dos navios ocorre um acidente. Um marinheiro está ponto de se precipitar ao mar. Um simples cordame, ao qual se agarra, o mantem em frágil equilíbrio. De repente, um forçado, forte, de idade avançada, mas cheio de agilidade e ânimo decidido, se destaca dos demais condenados às galés e ousa se esforçar para salvar o marinheiro. Obtém sucesso, mas, por sua vez, desequilira-se e cai ao mar. Quem era essa homem tão corajoso?

Não foi mais encontrado. Mergulhadores se cansaram em vão. Quem era? O livro de bordo é consultado. Uma notícia é impressa no Jornal de Toulon, “17 de novembro de 1823. Aqui, um forçado, a cumprir pena a bordo do Orion, depois de prestar socorro a um marujo, acabou caindo no mar e se afogou. Não puderam encontrar o cadáver. Presumiram que tenha se prendido nas estacas da ponte do Arsenal. Este homem era registrado sob o número 9430 e se chamava Jean Valjean.” “«17 novembre 1823.--Hier, un forçat, de corvée à bord de l'Orion, em revenant de porter secours à un matelot, est tombé à la mer et s'est noyé. On n'a pu retrouver son cadavre. On présume qu'il se sera engagé sous le pilotis de la pointe de l'Arsenal. Cet homme était écroué sous le nº 9430 et se nommait Jean Valjean.” III, p. 394)
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Livro III
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O drama continua. À qual personagem volta-se o olhar do Narrador? Ao lermos “Montfermeil” lembramos logo da pequena Cosette, a filha de Fantine, aquela moça arruinada, desventurada que acaba morrendo na miséria e na prostituição. A pequena cidade, situada na região de Paris, é palco para o drama da menina que cresceu sem o carinho da mãe, sem a proteção de um pai. A menina que constantemente é explorada, ameaçada, desrespeitada. A personificação da vida desvalida, aqueles seres 'humilhados e ofendidos' tão amargamente descritos por Dostoiévski.

Em Montfermeil o problema da água se resolve com os lagos do bosque, ou com uma fonte, quase nos limites da vila. Assim entende-se que um empregado dedicado ao serviço de 'buscar água' era ali muito requisitado. E na casa dos Thénadier, quando à noite não havia mais serviço do empregado, quem executava a tarefa – árdua e terrificante – de ir buscar água?

“Esse era o terror dessa pobre criatura, que o leitor talvez não tenha esquecido, a pequena Cosette. Lembram-se que a Cosette era útil aos Thénardier de duas maneiras, eles se faziam pagar pela mãe e se faziam servir pela criança.” (“C'était là la terreur de ce pauvre être que le lecteur n'a peut-être pas oublié, de la petite Cosette. On se souvient que Cosette était utile aux Thénardier de deux manières, ils se faisaient payer par la mère et ils se faisaient servir par l'enfant.” I, p. 396 )

Estamos – na narrativa – às vésperas do Natal de 1823, e numa noite fria, gélida mesmo, a pequena Cosette é obrigada a ir ao poço buscar água para os inescrupulosos Thénardier. Sim, os Thénardier que assombram este Romance. Aquela mulher que exalta as filhas – Eponine e Azelma – enquanto humilha a criança da qual devia cuidar, a desprotegida Cosette. E o aproveitador Sr. Thénardier que se vangloria de ter salvo “um general perigosamente ferido” - sabemos que ele antes roubava a vítima, do que salvava – a ponto de batizar seu albergue de “Hospedaria do Sargento de Waterloo” (“cabaret du sergent de Waterloo”)

Sonhando com o conforto e com bem trajadas bonecas, a menina Cosette avança na noite escura e gélida, reconhecida por uma ou outra vizinha, para as quais a menina é sempre a “Cotovia”, “l'Alouette”, até o poço, onde um vulto de homem desliza na sombra. Presenciaremos algum ato de violência?

Quem é o homem? Vemos que ele anda pelo bosque, a apalpar uma ou outra árvore, a conferir se tal ou qual lugar está com a terra revirada. Será o homem que procura o 'tesouro' enterrado? Será aquele que enterrou o 'tesouro'?

Mas parece que o homem quer apenas conversar – e ajudar. Ao levantar o balde d'água, ele pergunta quem é a mãe da criança - “Não tenho mãe. Os outros têm. Mas eu não.” - e qual o seu nome - “Cosette” - e ele então tem um estremecimento. E nós, os leitores, também. Quem mais poderia cumprir a promessa feita a mãe de Cosette? Quem senão o imprevisível, o homem de sete vidas, Jean Valjean? (O Narrador só dirá no fim do capítulo XI, em suposto 'suspense', mas nós, os espertos leitores, já sabemos)

“A figura magra e doentia de Cosette se desenhava vagamente ao brilho lívido do céu. -Como se chama? Disse o homem. -Cosette.
O homem teve quase um choque elétrico. Ele a observou ainda, pois depois tirou suas mãos dos ombros de Cosette, ergueu o balde, e pôs-se a andar.”

La figure maigre et chétive de Cosette se dessinait vaguement à la lueur
livide du ciel.
--Comment t'appelles-tu? dit l'homme.
--Cosette.
L'homme eut comme une secousse électrique. Il la regarda encore, puis il ôta ses mains de dessus les épaules de Cosette, saisit le seau, et se remit à marcher.
(VII, p. 418)

Obviamente os Thénardier não gostam nada de recém-chegado, ainda mais a ajudar a pobre Cosette. O casal pensa que é apenas um pobre das redondezas, mas logo imaginam se não é um homem com dinheiro, pois o viajante paga até o dobro do preço da hospedagem! Como pode ser um pobre se paga o dobro dos demais? Vá entender estes taverneiros!

Mas o Narrador despreza os Thénardier e convence os leitores a fazerem o mesmo. Perplexos e apiedados contemplamos a miséria de Cosette, feia e esquelética, vestida com trapos. Encolhida de medo e indefesa, ela andavapelos cantos, ou debaixo das mesas.

“Este medo era tão grande que ao chegar, toda molhada como estava, Cosette nem ousou ir se secar junto ao fogo e voltou silenciosamente ao seu trabalho.
A expressão do olhar dessa criança de oito anos era habitualmente tão sombria e por vezes tão trágica que parecia, em certos momentos, que ela estava a ponto de tornar-se uma idiota ou um demônio.”

Cette crainte était telle qu'en arrivant, toute mouillée comme elle était, Cosette n'avait pas osé s'aller sécher au feu et s'était remise silencieusement à son travail.
L'expression du regard de cette enfant de huit ans était habituellement si morne et parfois si tragique qu'il semblait, à de certains moments, qu'elle fût en train de devenir une idiote ou un démon.”
VIII, p. 422)

O viajante – e nós leitores não somos ingênuos – só poderá ser alguém que conhecemos, alguém que volta e meia desaparece e reaparece, quem mais senão Jean Valjean? Pois somente ele poderia cumprir a promessa de resgatar a menina das mãos de rapina daqueles Thénardier! Mas o casal vai fazer de tudo para ainda 'ganhar' com esta exploração. O visitante não poupa esforços em tudo fazer para alegrar a pequena Cosette. Oferece moedas reluzentes ao taverneiro, para que deixem a menina brincar. Compra uma boneca nova, a mais bonita, para a menina. Deixa uma moeda de presente na noite de Natal.

O velho Thénardier logo percebe que o hóspede não é nenhum pobretão. Pensa que ele pode estar interessado na menina Cosette, e assim o taverneiro poderá 'vendê-la' por bom preço! O velhaco finge toda uma estima pela órfã, além de todos os 'gastos' para cuidar da pobrezinha – sem mencionar que fazia a menina 'trabalhar pesado' – e passa a falar em 'valores', 'quantias', como se leiloasse um utensílio da casa!

Enquanto isso, Cosette sente, com sua intuição de criança, que o visitante é alguém que dedica-se a melhorar seu destino de misérias! Ela ganhou uma boneca, ganhou uma moeda de ouro! Quem será este forasteiro? Ele que mesmo negocia com o Sr. Thénardier o valor de mil e quinhentos francos para levar a menina. E a Sra. Thénardier acha pouco! O velhaco segue no encalço de Valjean (sabemos que é Valjean!) e Cosette. Ameaça e diz querer a menina de volta! Na verdade, quer mais dinheiro, óbvio.

O novo tutor de Cosette, em pleno caminho no bosque, abre a carteira e tira a carta de Fantine. Em seguida, o viajante apresenta cifras que demonstram o quanto o cidadão taverneiro é um mesquinho desonesto e mercenário! O porte físico do forasteiro humilha a insignificância fisica e moral do taverneiro. Assim Valjean e Cosette se livram do velhaco e seguem caminho. O Narrador decide revelar que trata-se de Jean Valjean – que caiu no mar e não se afogou , segundo pudemos ler no final do Livro II - com até um 'senso de humor', “O número 9430 reaparece e Cosette ganha-o na loteria” (“Le numéro 9430 reparaît, et Cosette le gagne à la loterie”)

No Livro IV, temos a descrição dos arredores de Paris, próximos aos lugares de prisão ou de execução, onde numa casa modesta, de apenas um andar, chamado aqui “pardieiro Gorbeau”, podem descansar Valjean e Cosette, depoias de 'fugirem' das mãos do casal Thénardier. [Nós, leitores, achamos que finalmente nos livramos dos Thénardier, mas isso pode ser um trágico engano...] O Narrador monta o cenário e insere as personagens, o estilo do Autor está aí. Victor-Hugo quer que saibamos – em 1862 – como era Paris em 1823. Sabemos que o Autor se ausentou de Paris, devido a questões políticas, de 1848 a 1870, e neste momento a metrópole sofreu grandes transformações. Foi a chamada “reforma urbana” feita por Haussmann.

Finalmente, o ex-forçado Jean Valjean consegue sentir um afeto por uma criatura humana. Sofrendo um vida de desventuras, o pobre homem nunca pôde se afeiçoar a alguém, não recebeu afeto. Sua família não passava de uma lembrança vaga. Ao adotar a criança, a menina órfã Cosette, ele viu a oportunidade de 'ter uma família', alguém a quem dedicar atenção e carinho. Ele, o velho de 55 anos, seria uma espécie de pai e avô da menina de oito anos. Pois também Cosette não tivera oportunidade de afeiçoar-se a alguém, ela que crescera rejeitada e humilhada.
“A natureza, com cinquenta anos de intervalo, havia criado uma separação profunda entre Jean Valjean e Cosette; esta separação, o destino a preenchera. O destino unia bruscamente e afiança com seu irresistível poder essas duas existências sem raízes, diferentes devido a idade, mas semelhantes devido ao luto. Uma, realmente, completava a outra. O instinto de Cosette procurava um pai assim como o instinto de Jean Valjean buscava uma criança. Ao se encontrarem foi como se encontrassem a si mesmos. No momento misterioso quando suas mãos de tocaram, ele se uniram. Quando suas duas almas se perceberam, eles reconheceram a necessidade um do outro e se abraçaram estreitamente.”

La nature, cinquante ans d'intervalle, avaient mis une séparation profonde entre Jean Valjean et Cosette; cette séparation, la destinée la combla. La destinée unit brusquement et fiança avec son irrésistible puissance ces deux existences déracinées, différentes par l'âge, semblables par le deuil. L'une en effet complétait l'autre. L'instinct de Cosette cherchait un père comme l'instinct de Jean Valjean cherchait un enfant. Se rencontrer, ce fut se trouver. Au moment mystérieux où leurs deux mains se touchèrent, elles se soudèrent. Quand ces deux âmes s'aperçurent, elles se reconnurent comme étant le besoin l'une de l'autre et s'embrassèrent étroitement.” III, p. 462
Valjean precisava de Cosette para continuar um 'bom' cidadão. Afinal, ele sempre fora vítima da sociedade e passara a desprezar as pessoas. Ele vira o destino miserável de Fantine, a rigidez policialesca de Javert, a nova prisão nas galés, a mesquinharia de Thénardier, e não espera nada de 'bom'.

Fez bem em desconfiar, o nosso Valjean. Pois as comadres cochicham, os vizinhos comentam. Quem será aquele forasteiro? E mesmo com os cuidados de Valjean, em tratar bem a todos, em sair mais à noite, em passar em total anonimato. Mas como poderia? A opinião pública é implacável. No mais, há a figura de um mendigo. Ás vezes, não parece ser o 'mesmo' mendigo. Há quem diga que é alguém 'da polícia'. Certa noite, Valjean julga reconhecer na figura cabisbaixa do mendigo, que levanta o olhar po um instante, alguém de outrora. Mas quem? Quem o observava deste modo?

Ele se pergunta se não será o velho 'cão farejador', sim, o agente Javert!
“Com custo ele ousava confessar a si-mesmo que esta figura que acreditava ter visto era a figura de Javert.
De noite, ao refletir, ele se arrependeu de não haver questionado o homem para o forçar a levantar a cabeça uma segunda vez.”
C'est à peine s'il osait s'avouer à lui-même que cette figure qu'il avait cru voir était la figure de Javert.
La nuit, en y réfléchissant, il regretta de n'avoir pas questionné l'homme pour le forcer à lever la tête une seconde fois
.” V, p. 467)

O protagonista desconfia – e com razão – do comportamento da locatária, além de ouvir passos pesados no corredor. Será mesmo um novo inquilino? Melhor não ficar para saber. Novamente temos Valjean em fuga. Uma fuga que se dá numa Paris brumosa de início de século – não a Paris de 1862, quando Victor-Hugo recomeça a escrever “Les Misérables”, como o Autor mesmo se justifica –com lampiões projetando sombras de árvores nos muros de pedras, com pontes estreitas sobre os ruas – imaginemos uma cidade semelhante, o centro histórico de Praga atualmente – e então como poderá o protagonista ver-se livre mais uma vez?

O Autor se refere a uma planta de Paris desenhada em 1727, ou seja, quase um século antes da época da narrativa! Estes anacronismos permitem um texto cheio de referências, como se um mapa aberto possibilitassem coordenadas, e ao mesmo tudo se confunde, como uma cidade existente apenas na imaginação do Autor. [Não temos aqui qualquer acesso a mapas topográficos e urbanísticos de Paris, logo não sabemos qual o sentido de tal descrição minuciosa] Mas o efeito é este: desorientação, desespero, improvisação de fuga, para onde seguirá o robusto e esperto Valjean?

Há um muro. Poderá escalar semelhante paredão? Não há tempo para pensar, pois se eram quatro perseguidores agora é uma patrulha inteira! Valjean arranca uma corda de um lampião e então amarra Cosette junto a si, enquanto prepara a escalada do muro. Não se sabia o qua havia do outro lado... Mas certamente seria melhor que a prisão. Enquanto ele teme Javert, a menina Cosette aterroriza-se com as ameaças da Sra. Thénardier.

Onde estão? Vozes cantam um hino religioso. Também um distinto tinir de um sininho.
“Ele tombou dos terrores quiméricos aos terrores reais. Ele se dizia que Javert e os soldados não teria talvez ido embora, sem que tivessem antes, sem dúvida, deixado na rua alguém em observação, que, se este homem o descobrisse no jardim, ele denunciaria o ladrão, e o entregaria. Ele apertou docemente a Cosette adormecida em seus braços e a carregou para trás de uma pilha de velhos móveis usados, no canto mais obscuro do galpão. Cosette não se mexia.”
Il retomba des terreurs chimériques aux terreurs réelles. Il se dit que Javert et les mouchards n'étaient peut-être pas partis, que sans doute ils avaient laissé dans la rue des gens en observation, que, si cet homme le découvrait dans ce jardin, il crierait au voleur, et le livrerait. Il prit doucement Cosette endormie dans ses bras et la porta derrière un tas de vieux meubles hors d'usage, dans le coin le plus reculé du hangar. Cosette ne remua pas. VIII, p. 490)

Valjean precisa abrigar a pequena criança desacordada, naquela noite fria, e não tem outra solução senão abordar o guarda-noturno que vagueia ao longo do barracão – aquele mesmo homem com um sininho... E – eis uma romance que sabe entrelaçar e unir personagens! - o home é ninguém menos que o velho Fauchelevent, aquele que Valjean-Madeleine salvara de sob a carroça [livro V da Parte I] Lembramos que o velho foi para Paris, trabalhar no Convento de Petit-Picpus. Agora, o ancião poderá retribuir o favor prestado pelo 'prefeito', identidade que é atribuída novamente ao fugitivo Valjean.

E Javert? Como chegou ao 'rastro' de Valjean? Ao procurar o fugitivo Valjean em Paris, e recapturá-lo, Javert foi nomeado para o distrito de Paris. Quando soube da morte do forçado Vajean, no porto de Toulon, em 1823, logo acreditou. Até ler uma outra notícia sobre o rapto de uma criança em Montfermeil. Uma criança de oito anos chamada Cosette, filha de uma Fantine. Ora, justamente o caso que Javert cuidara em Montreuil-sur-Mer!

Seria o homem raptor o próprio Valjean? Mas, o forçado não estava morto?! Javert investigou, mas os Thénardier já haviam mudado a 'versão' de rapto para 'o avô veio buscar a menina'. Assim, a 'pista' se apagou. Até que um certo pobre que dava esmolas desperta a atenção de alguns moradores. Um pobretão e uma menina de 8 anos, vindos de Montfermeil. Então, Javert resolver 'fingir-se de mendigo' para ver de perto o tal 'pobretão'. E tão grande foi a surpresa de Javert quanto a de Valjean. Mas o inspetor ainda não podia acreditar. Tanto que cuidou do caso sem revelar ao departamento de polícia. Queria a façanha somente para si!

“Javert havia solicitado reforços à chefatura, mas ele não dissera o nome do indivíduo que esperava prender. Era o seu segredo; e ele o guardava por três razões: primeiro, porque a mínima indiscrição poderia criar suspeitas em Jean Valjean; segundo, porque prender um velho forçado fugitivo e dado como morto, um condenado que os relatos da justiça classificavam entre os malfeitores da espécie mais perigosa, era um sucesso magnífico que os veteranos da polícia parisiense certamente não deixaria a um novato como Javert, e que ele acreditava que lhe levariam seu forçado; por fim, porque Javert, sendo um artista, tinha o gosto do imprevisto. Ele odiava o sucesso anunciado que murcham ao serem ditos antes da hora. Preferia elaborar suas obras-primas na sombra e depois revelar todas de uma vez.”

Javert avait réclamé main-forte à la préfecture, mais il n'avait pas dit le nom de l'individu qu'il espérait saisir. C'était son secret; et il l'avait gardé pour trois raisons: d'abord, parce que la moindre indiscrétion pouvait donner l'éveil à Jean Valjean; ensuite, parce que mettre la main sur un vieux forçat évadé et réputé mort, sur un condamné que les notes de justice avaient jadis classé à jamais parmi les malfaiteurs de l'espèce la plus dangereuse, c'était un magnifique succès que les anciens de la police parisienne ne laisseraient certainement pas à un nouveau venu comme Javert, et qu'il craignait qu'on ne lui prît son galérien; enfin, parce que Javert, étant un artiste, avait le goût de l'imprévu. Il haïssait ces succès annoncés qu'on déflore en en parlant longtemps d'avance. Il tenait à élaborer ses chefs-d'oeuvre dans l'ombre et à les dévoiler ensuite brusquement.” X, p. 498)

Inusitado o fato do Narrador comparar o severo inspector a um artista. Mas faz sentido. Depois de quase 500 páginas já estamos interessadíssimos em Valjean, e mais interessados em quem se interessa por Valjean : o 'cão-farejador' Javert. Se no início Javert é apenas um 'inspector' de polícia de província, sob uma descrição pré-naturalista [se considerarmos pleno Naturalismo o estilo de um Zola] ao longo das vicissitudes do Romance sua imagem também se alonga, se distende, perde o tom caricatural anterior – em suma, Javert passa a ser importante.

Somente devido a escrúpulos – e medo da imprensa! - o agente Javert não prendeu logo o 'pobretão' com a menina. De repente, fosse mesmo apenas um avô com sua netinha! Assim somente quando teve certeza de reconhecer Valjean, o policial solicitou os reforços. É justamente quando Javert começa sua 'caçada'- a descrição cênica é mesmo uma 'paródia' da caça a raposa! -, distribuindo os soldados e seguindo a sombra de Valjean, trôpego naquele labirinto de ruelas parisienses! [Lembrar que ainda a cidade-luz não passara pela reforma urbana que tanto a modificou...]

Quando Valjean simplesmente sumiu na noite, o inspector estremeceu. “Quando ele chega ao centro da teia, ele não encontra mais a mosca. Imagine-se seu desespero.” (“Quand il arriva au centre de sa toile, il n'y trouva plus la mouche. On imagine son exaspération.” p. 501) Em seguida, o narrador não hesita em 'entrar na história' em digressões/comentários sobre os 'erros' do antagonista: relembra estrategistas históricos (Alexandre, Ciro, César, Napoleão...), o que devia Javert ter feito, onde pecou por imprudência, pois ao divertir-se com a caçada deixou escapar a presa!

“Javert comete todas essas faltas, e não era menos que um dos espiões mais sábios e mais corretos que teriam existido. Ele era, por definição, o que em caça poderia se chamar 'um cão inteligente'. Mas quem é que era perfeito? Os grandes estrategistas têm seus eclipses.”
Javert commit toutes ces fautes, et n'en était pas moins un des espions les plus savants et les plus corrects qui aient existé. Il était, dans toute la force du terme, ce qu'en vńerie on appelle un chien sage. Mais qui est-ce qui est parfait? Les grands stratégistes ont leurs éclipses.” p. 502)

Livros VI e VII

Após despistar o 'cão farejador', o agente Javert, aqui um antagonista tão necessário a Narrativa – tal como em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” onde é difícil imaginar o enredo sem o agente Fix no encalço do nobre Fogg, ou então, mais atualmente no mundo do HQ, ou comics, a ausência de um Curinga nas atribulações de um Batman... - o protagonista Valjean se instala no convento de Petit-Picpus, onde poderá passar incógnito, a cuidar de sua 'filha adotiva' Cosette.

As digressões do Narrador são esperadas, fazem parte do 'estilo'. Aqui ele narra uma 'possível' história do tal convento, das ordens religiosas de estilo monástico, que nem sabemos se existem, ou existiram, tudo isso para 'criar o cenário', onde pretende movimentar as personagens nas páginas seguintes. Seu assunto aqui é a vida monástica (“vie monacale”).

O importante é que a longa digressão – que compõe os Livros VI e VII – num total de 50 páginas, num estilo enunciativo de 'livro de História' é um exercício de historiador feito pelo Narrador – tanto quanto o Clero (ao situar o Monsenhor Bienvenu) quanto a Waterloo (ao situar o pai de Marius e o velhaco Thénardier, num contexto de derrota nacional). Aqui a 'história' da vida monática, onde as mulheres trocam as alegrias pelas severidades, as diversões pelas solenidade, a futilidade da 'vida mundana' pela obediência, está situada no plano da Restauração – uma vida medieval numa época 'herdeira' das Luzes [Lumières], do Iluminismo [Enlightment], do Esclarecimento [ Aufklärung]

O Liberal saúda a Democracia com sua 'liberdade de crença' contra o niilismo. Mesmos filósofos ditos 'profanos' – pois não ligado à Santa Igreja – tinham suas crenças .
Livro VIII
Assim foi nesse universo religioso solene e disciplinado que 'Valjean caiu do céu', ao fugir do policial Javert, cerca de 50 páginas antes. Lá, com a ajuda do velho Fauchelevent, outrora salvo de ser esmagado sob uma carroça, que o ex-forçado, ex-prefeito, poderá criar a menina Cosette, na 'pureza e na santidade'.

Antes, os dois homens precisam convencer a Madre-superiora, e inventam toda uma história de que o antigo prefeito era irmão de Fauchelevant, assim poderiam 'entrar pela porta da frente' sem despertar suspeitas – o principal para poderem fugir a vigilância obstinada de Javert. Assim é preciso sair num funeral, ser resgatado do túmulo e voltar como parente. (Qualquer semelhante com a 'cena dos coveiros' em “Hamlet” será mero acaso? Qualquer simbolismo com a 'ressurreição dos mortos' será mera coincidência?)

A Narração se caracteriza por uso de longos diálogos, algo de uma dramatização, a explorar a fala provincial, ou as expressões religiosas, meio as dificuldades de adaptação – visto a diferença 'vida mundana' e 'vida monástica'.

Aprovado durante a apresentação, sem dizer uma palavra, Valjean-Madeleine, agora “o outro Fauvent”, como as freiras passam a chamar aquele que apresentado como “o Último Fauchelevant”, ele passará a integrar aquele 'ambiente de beatitude' e verá Cosette crescer – ela será mesmo feia? - e se tornar moça.

“Pois agora Cosette ria.
A figura de Cosette estava até certo ponto mudada. A sombra havia sumido. O riso é o sol; afasta o inverno da face humana.
Cosette, mesmo não bonita, devia ser simpática aos outros. Ela dizia pequenas coisas sensatas com uma doce voz infantil.”

Car maintenant Cosette riait.
La figure de Cosette en était même jusqu'à un certain point changée. Le sombre en avait disparu. Le rire, c'est le soleil; il chasse l'hiver du visage humain.
Cosette, toujours pas jolie, devenait bien charmante d'ailleurs. Elle disait des petites choses raisonnables avec sa douce voix enfantine
.” (IX, p. 597)

O tempo passa, Cosette pode apenas sentir-se livre na clausura, o mundo daquele convento, num canto de Paris. Há agora um momento para se respirar, deixar a vida fluir na tranquilidade. Tudo sem atrair as suspeitas de um policial chamado Javert. Até o próximo volume, a Parte 3 (Marius).


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Continua...


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Leonardo de Magalhaens


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