sábado, 24 de julho de 2010

Os Miseráveis / Les Misérables - Parte 4 (1/2)




Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor Hugo (1802-1885)

As Obras Clássicas (ensaio 3)


O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna


Parte IV – O Idílio da Rua Plumet e a Epopeia da Rua Saint-Denis
(1/2)

Sabemos que a época da narrativa, nesta Parte, está concentrada no contexto histórico de 1830 a 1832. Considerando que o pai de Marius faleceu em 1827, então completam-se cinco anos que o jovem está fora da influência burguesa do avô conservador. Cinco anos de aprendizagem do jovem Marius.

O segundo protagonista (digamos assim, mantendo Valjean na primeira posição) enfrentou a miséria e a solidão, tentou fazer amigos, conheceu a paixão súbita e fremente, agora novamente é conduzido pelo 'coletivo', os processos históricos que se sobrepõem aos 'desejos individuais'. Ainda mais se considerarmos que, sociologicamente falando, o 'indivíduo' é um 'construto social', é fruto de uma processo histórico.

A França sofre turbulências políticas e sociais desde a Queda da Bastilha em julho de 1789, que inaugurou as idas e vindas da Revolução Francesa, ora radical ora moderada, ora social, ora política, a se transmutar no Império Napoleônico, até 1814, que derrotado, em 1815, em seu governo dos Cem Dias, na épica Batalha de Waterloo, abriu espaço para a Restauração monarquista, a dominar até a insurreição das lideranças liberais, em três dias 'gloriosos' de julho de 1830, quando coroaram um 'rei-cidadão', Louis Philippe I, depois da fuga do rei Charles X. (Ao consultar a enciclopédia histórica saberemos que tal governo, fruto da 'revolução liberal' prosseguiu até 1848, quando eclodiu a 'revolução democrática'.)

As personagens outrora descritas e apresentadas agora são chamadas a compor um amplo cenário onde se evidenciam e se confundem as tonalidades do 'espectro político' francês da referida época. É um grande painel que se apresenta, nas conflagrações entre orleanistas e republicanos, monarquistas e bonapartistas. Afinal, trata-se de um romance histórico, sabemos. Cuja escrita iniciada em 1845, somente foi concluída em 1860, em seguida ao período de exílio do Autor.

Politicamente, a proclamação de uma Carta (constituição) não afastou as características 'absolutistas' do regime monárquico. Assim, tratava de um regime que não agradava nem a monarquistas nem a liberais, muito menos a bonapartistas e republicanos. Um regime de aparências que em nada atendia aos anseios democráticos, e muito menos a vida decente dos cidadãos. Afinal, um romance como Os Miseráveis exibe justamente isso: as feridas de um regime elitista, que oferta a miséria a um povo que tanto se esfoçou em revoltas e revoluções.

Aqui, as personagens serão chamadas a tomar parte, ao engajamento da luta política, da luta física, nas barricadas, a enfrentar os exércitos ditos 'legalistas', sob ordens dos monarquistas. Daí a revolta ser batizada de 'insurreição republicana de junho de 1832' nos livros de História – realmente escrita pelos vencedores. Não apenas os republicanos estavam descontentes, mas apenas os jovens de leituras políticas se mobilizaram, e acabaram liderando e morrendo primeiro, sem apoio popular – aqueles 'humilhados e ofendidos' que eles desejavam 'libertar'.

Não basta um liberalismo nas entranhas da monarquia – como reconhecemos na Inglaterra – aqui o anseio é por uma verdadeira República, um governo popular, não de uma nobreza ambiciosa e/ou indiferente. Aqui as próprias vivências políticas do Autor estão diluídas nas descrições e argumentações do Narrador, a polemizar a queda da Restauração (e seu absolutismo mascarado) em julho de 1830, e o progresso social e político nas novas revoluções, tais como esta de 1832. Somente ter um 'rei-cidadão' não é garantia de um governo dos cidadãos e para os cidadãos.

“A restauração tomba.
Ela tomba justamente. Entretanto, dizem, ela não tinha sido absolutamente hostil a todas as formas de progresso. Das grandes coisas feitas, ela estava por perto.
Sob a restauração a nação tinha se habituado à discussão na calma, que tinha faltado à república, e à grandeza na paz, que tinha faltado ao império.”

(“La restauration tomba.
Elle tomba justement. Cependant, disons-le, elle n'avait pas été absolument hostile à toutes les formes du progrés. De grandes choses s'étaient faites, elle étant à cotê
.” I, p. 857)

ou

“A revolução de Julho [de 1830] é o triunfo do direito a derrubar o fato. Coisa deveras esplendorosa.

O direito a derrubar o fato. Desde então o brilho da revolução de 1830, desde então sua indulgência. O direito que triunfa não precisa ser violento.”

(“La révolution de juillet est le triomphe du droit terrassant le fait. Chose pleine de splendeur.

Le droit terrassant le fait. De Lá l'éclat de la révolution de 1830, de Là sa mansuétude aussi. Le droit qui triomphe n'a nul besoin d'être violent
.” I, p. 859)

O Narrador compara os processos 'revolucionários' na França e na Inglaterra, com suas violências e reviravoltas. O quanto a 'teoria' se distancia da prática. A revolução de “1830 pratica esta teoria, já aplicada a Inglaterra em 1688. 1830 é uma revolução parada no meio do caminho. Progresso pela metade; quase direito. Ou a lógica quase a ignora; absolutamente como o sol ignora a vela. Quem para as revoluções no meio do caminho? A Burguesia. (“ 1830 pratiqua cette théorie, déjá appliqué à l'Angleterre par 1688. / 1830 est une révolution arrêtée à mi-cotê. Moitié de progrès; quasi-droit. Or la logique ignore l'à peu près; absolutement comme le soleil ignore la chandelle. / Qui arrête les révolutions à mi-cotê? La bourgeoisie.” II, p. 862)

O Narrador não chega a uma teoria sobre revoluções e contra-revoluções, como ousou Karl Marx em “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, de 1852, onde diz, no capítulo I,

As revoluções burguesas, como as do século XVIII, avançam rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam como gemas fulgurantes; o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas estas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados de seu período de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: Hic Rhodus, hic salta! Aqui está Rodes, salta aqui!


Em Marius já encontramos uma contradição: seu ideal de revolução, que o aproxima dos jovens republicanos (os amigos do ABC) e ao mesmo tempo sua admiração pelo 'grande homem' Napoleão, que aspirava ambições imperiais.

No campo dos revoltosos estão também os socialistas, aqui um título genérico usado pelo Narrador. A problemática aqui é a da produção e da distribuição da riqueza. Cita o exemplo da próspera Inglaterra, que produziu a riqueza, mas não a dividiu. A prosperidade passa pela divisão comum?

“O comunismo e a lei agrária creram resolver o segundo problema [repartir a riqueza]. Eles se enganam. A repartição dela mata a produção. A partilha igual aboli a competição. E, por consequência, o trabalho. É uma repartição feita pelo açougueiro que mata isso que ele reparte. É assim impossível se deter a essas pretendidas soluções. Matar a riqueza, isso não é reparti-la.” ("Le communisme et la loi agraire croient résoudre le deuxième problème. Ils se trompent. Leur répartition tue la production. Le partage égal abolit l'émulation. Et par conséquent le travail. C'est une répartition faite par le boucher, qui tue ce qu'il partage. Il est donc impossible de s'arrêter à ces prétendues solutions. Tuer la richesse, ce n'est pas la répartir." IV, pp. 875/76)

Para o Narrador, sempre preocupado com questões políticas, os dois problemas – produzir e repartir – são um só a ser resolvido ao mesmo tempo , para garantir a prosperidade da nação. Certamente trata-se de um receituário liberal. É o Liberalismo que é defendido.


“Democratizar a propriedade, não a abolir, mas a universalizar, de modo que todo cidadão, sem exceção, seja proprietário, coisa mais fácil do que se acredita, em duas palavras, saber produzir a riqueza e saber reparti-la; e tereis em conjunto a grandeza material e a grandeza moral; e sereis dignos de vos chamar a França.” (“démocratisez la propriété, non en l'abolissant, mais em l'universalisant, de façon que tout citoyen sans exception soit propriétaire, chose plus facile qu'on ne croit, en deux mots sachez produire la richesse et sachez la répartir; et vous aurez tout ensemble la grandeur matérielle et la grandeur morale; et vous serez dignes de vous appeler la France.” pp. 876/77)


Em favor do Narrador, pode-se citar alguns países onde tal política foi bem sucedida. Seria o caso dos Estados Unidos, Canadá, Suiça, países prósperos, mas não igualitários. Ainda há miséria e pobreza, pois há uma elite de mais prósperos que outros. A propriedade não foi exatamente universalizada...

O argumento do Autor é que as revoltas não levam a uma prosperidade, mas a um caos social. Descreve um painel de conspirações, armamentos clandestinos, figuras que financiam os revoltosos, em articulações de grupos revolucionários, incluindo operários, estudantes, desesperados. Afinal, trata-se de uma época de ação e reação, falta dizer, época de 'luta de classes' (como diria K Marx),

“Aqui os termos postos: ação e reação, revolução ou contra-revolução. Pois, em nossa época, não se crê mais na inércia nem na imobilidade. Pelo povo ou contra o povo, eis a questão. Não há outra.” (“...Voici les termes posés: action ou réaction, révolution ou contre-révolution. Car, à notre époque, on ne croit plus à l'inertie ni à l'immobilité. Pour le peuple ou contre le peuple, c'est la question. Il n'y en a pas d'autre.” V, p. 881)

Uma época de polarizações políticas, onde o cidadão está contra ou a favor do poder popular, contra ou a favor da propriedade. Época em que os movimentos socialistas e anarquistas se articulam e se dividem, criando o painel político que presenciamos no século 20.

Enquanto isso, a polícia anda a 'colher' informes e delações, enquanto em espaços públicos manifestações em prol ou contra uma ou outra facção. “Quem nos governa?”, diz um pobre a outro, “É o Sr. Philippe”, “Não, é a burguesia.” (“--Qui nous gouverne? --C'est monsieur Philippe.--Non, c'est la bourgeoisie.” p. 882)

É a consciência manifesta de que 'há alguém movendo os fantoches'. Quem são eles? Onde estão os 'chefes' de cada lado? Reina uma confusão numa época de sociedades secretas (parisienses, mas com ramificações na províncias), partidos políticos, onde uns lutam por igualdade (os trabalhistas, os socialistas), lutam por liberdade (os liberais), lutam pela monarquia, lutam pela república...

Em Paris reina o caos de correntes revolucionárias,meio ao contrabando de armamentos e munições, meio aos lemas e palavras de ordem, “pão para todos, ideia para todos, a edenização do mundo, o progresso...” Segundo o Narrador, nunca imparcial, os direitos são proclamados com fúria, desejam forçar o ser humano rumo ao paraíso, sim, falam em progresso mas agem como selvagens...

Após suas digressões, o Narrador desenvolve a narrativa, dispondo em cena os amigos do ABC, Enjolras e seus tenentes nos fundos do café Musain, além de contatos com outros grupo revolucionários, as atuações individuais nas ações coletivas.

Livro II - Éponine

Mas nem todos os estudantes estão engajados na revolta. O jovem Marius só tem atenção para os próprios ardores da sensibilidade amorosa. Meio ao tumulto, Marius espera reencontrar a pista da 'Srta. Lenoire'. Tendo se mudado da masure Gorbeau, para evitar os 'pobres maldoso' e precisar testemunhar contra o Thénardier (o tal que salvara o oficial, pai do jovem), Marius reaproxima-se de Courfeyrac, um dos amigos do ABC. Marius se endivida para enviar uma 'ajuda periódica' ao Thénardier.

O jovem tem esperanças de rever a bela mademoiselle, aquela cujo apelido é 'Cotovia' (L'Alouette), justamente, como sabemos, o apelido de Cosette. Aqui, o efeito é de contraponto: o sentimentalismo versus as lutas políticas. Para agradar gregos e troianos, ou seja, os intelectuais e as leitoras. Mas se o Narrador consegue até 'convencer' no tema Política, sempre soa sentimentalista e 'floreado' no tema Paixão.

A polícia deve agir. Assim pensa Javert, em investigações para descobrir quem era o estranho refém dos Jondrette (Thénardier) e quem era o jovem pobre 'quase-advogado'. Afinal, a família Jondrette (Thénardier) agora se envolve com bandidos perigosos, enquanto as moças Éponine e Azelma são aliciadas para o 'submundo'. Muito do detalhismo do Narrador é hoje 'datado', precisa-se de uma enciclopédia da época, ou um anexo com notas e referências. (Assim também para ler “Guerra e Paz”, de Tolstoy, e “Ulisses”, de J. Joyce)

Éponine recebe um certo status de coadjuvante aqui. Ela ajuda o velho Sr. Mabeuf, aquele que vive para os livros raros, a enfrentar a falência da Libraire Royol. A pobre mocinha quer saber onde mora o Sr. Marius, nada mais. Em seguida, ela passa a rondar o campo da Cotovia [Champ de L'Alouette] até reencontrar o jovem estudante. E assim são os encontros e desencontros deste imenso Romance. Enquanto Marius sonha e suspira pela bela 'Srta Lenoire', ele não percebe junto a ele alguém que somente pensa nele: a pobre Éponine. E para agradar ao jovem, a mocinha revela o endereço da Srta. E assim a miserável ajuda a rival... Assim, novamente alguém da família Thénardier (aqui a filha) faz a 'ponte' entre Marius e a bela Srta (que sabemos ser Cosette)

E onde está Cosette? No livro seguinte (III), temos a descrição da casa da rue Plumet, onde Valjean (ou Último Fauchelevent) se abrigou com a moça Cosette, após deixar a rua do Oeste, até onde Marius conseguiu segui-lo. Isso porque 'pai e filha' tem casas em diferentes endereços... Nas descrições, o Narrador mescla poesia e prosa, numa imagética que visa recriar o cenário das personagens – uma característica que encontramos na obra de Emily Brontë, e na de Virginia Woolf.

É de se perguntar porque Valjean deixou o convento de Petit-Picpus. Mas o Narrador esclarece não haver nenhuma aventura desta vez. O fato é que Cosette se faz moça, e ele não queria mantê-la 'enclausurada'. Após cinco anos (justamente o tempo entre a morte do 'barão' Pontmercy e a revolta de 1932, o tempo em que Marius deixou a casa do avô ) Valjean resolve deixar o convento.

Enquanto proprietário e cidadão, o Sr. Fauchelevent (Valjean) é soldado da Guarda Nacional, uma milícia de cidadãos formada na época da Revolução de 1789, contra os exércitos monarquistas. Sabemos também, num âmbito extra-texto, que o Autor também pertencia a Guarda Nacional, uma guarda burguesa para proteger a propriedade burguesa.

Mas o agora 'burguês' Valjean, mesmo rico, despreza o conforto, e prefere a vida modesta; o conforto que fique para a moça Cosette. O idoso Valjean é aquele que procura ser pai e mãe para a órfã, enquanto ele silencia sobre o passado da mocinha, não lembrando a mãe Fantine. É todo um silêncio a sepultar um passado de misérias.

E chega o dia no qual a mocinha Cosette vai se perceber bonita. Então a flor se torna uma conquistadora (“a rosa se apercebe que é uma máquina de guerra'”) pois há de aprender a 'coqueterie' e o amor. A beleza recente de Cosette pode atrair 'pretendentes' – que podem disputar o monopólio do amor que a moça dedica ao pai. Pois bem, foi nessa época que Marius percebeu a beleza de Cosette, a 'Srta. Lenoire', no Jardim do Luxemburgo.

O Narrador insiste nas analogias entre 'conquista' amorosa', 'sedução', e 'conquista bélica', 'guerra'. Tudo o que acompanhamos pela perspectiva de Marius, na Parte III, agora percebemos pelo ponto de vista de Cosette. O que é a sedução para a moça e a conquista para o jovem? Um jogo de ataque e recuo, sinais ambíguos, olhares reveladores. Ela aprende a ser 'senhorita', futura ' senhora', e ele aprende a ser 'pretendente', futuro 'noivo' e 'marido'.

É um interessante mecanismo, onde um projeta ideais no outro, o desconhecido, e tece idealizações do 'ser amado' e espera correspondência. Se ama mutuamente – e não se declaram. “Era um tipo de adoração a distância, uma contemplação muda, a deificação de um desconhecido.” (“C'était une sorte d'adoration à distance, une contemplation muette, la déification d'un inconnu.” p. 942)

Os sonhos de adolescência – analisados por um Narrador que tem um ponto de vista de adulto, e até senil. É um visível descompasso. Um senhor de idade a rememorar seu passado, sua própria juventude – e a usar uma 3ª pessoa. (A literatura de jovens – para jovens, ou ainda, juvenil – só virá à lume no início do século 20, com autores que voltam a ser jovens na escrita, ou, depois, jovens que passam a escrever, de jovem para jovem...)

É quando Valjean percebe ter um concorrente aos sentimentos de Cosette. A recente vaidade da mocinha não é de todo 'gratuita' – alguma admiração ela procura atrair. Valjean percebe-se ciumento.

Valjean percebe, também, o vulto do jovem; é informado pelo porteiro sobre indagações de um jovem, lá na rua do Oeste; em seguida, fixa o olhar no moço, de modo a intimidá-lo – segundo notamos na Parte III.

Assim, Valjean muda-se para a rua Plumet, e interrompe os passeios no Jardim do Luxemburgo. (Seria apenas ciúmes de Cosette? Ou desconfia de agentes da polícia?)

É então que Valjean percebe o silêncio e a tristeza de Cosette. Resolvem passear no jardim – Marius não está por perto. A moça continua triste. Terá ele desistido de esperar? E a moça a guardar silêncio de tudo.

Cena expressionista: uma 'procissão' de forçado, algemados, conduzidos por 'esbirros', policiais-carcereiros, rumo às galés. Valjeam observa este lúgubre desfile – sugestões de imagens dantescas e apocalípticas. Para afastar a mocinha de pensamento mórbidos, o ancião rompe sua vida modesta ao levar Cosette aos divertimentos parisienses: passeios, teatros, festas – tudo para distrair a silenciosa e triste mocinha.

Livros IV e V

O Narrador continua a narrativa sobre a mesma época já apresentada na Parte III – 1830-32 – mas aqui o ponto de vista é de Valjean e Cosette. Narra aquela fatídica visita aos 'Jondrette', onde o Sr. Fauchelevent, grande benfeitor, é ferido numa cilada. Valjean consegue fugir (para grande lamento de Javert..) e se restabelece com os cuidados da sua 'enfermeira', a sua Cosette.

As cenas da cidade, fatos nas ruas e ruelas de Paris. Um jovem ladrão que recebe um sermão. Quem é o 'bonhomme' vítima de assalto? A falar de prisão, miséria e velhice com um bandido! Quem será o 'bonhomme' (homem de bem)? O leitor, sem dúvida, já adivinhou!

Cosette pensa em Marius; e Marius pensa em Cosette: só o Narrador sabe disso (e nós, os leitores): eis “Romeo and Juliet” versão século 19. São assim as cenas no jardim da casa da rua Babilônia. Noites de lua cheia, alucinações, uma sombra de homem com cartola. Algo de expressionismo e contos de terror, mas com toda a 'ambientação romântica'. Que visitante noturno ousa invadir o jardim desta casa burguesa? A moça encontra um envelope com 'poemas em prosa' sobre o 'sofrer de amor'. Carta que sabemos de quem pode ser... (o estilo lembra os poema de Lamartine e os versos do próprio Autor Victor-Hugo, mas também algo de Rimbaud, vejamos, “Encontrei na rua um jovem pobre que amava. Era velho o seu chapéu, seu casaco era usado; tinha furos nos cotovelos; a água invadia seus sapatos e os astros atravessavam a sua alma” (“J'ai rencontré dans la rue un jeune homme très pauvre qui aimait. Son chapeau était vieux, son habit était usé; il avait les coudes troués; l'eau passait à travers ses souliers et les astres à travers son âme.” IV, p. 132)

A carta – ou coletânea de poèmes en prose – sem assinatura, sem data, sem endereço, atordoa a moça, inexperiente em paixões. Ela bem que imagina quem seja o autor. (A expectativa que se cria depende basicamente do Narrador. Falta a densidade dramática de um “Romeo and Juliet”, então sobra narração...) Mas ao final do Livro o autor da carta se materializa. É mesmo o jovem Marius. O intrépido jovem apaixonado que invade o território da moça virtuosa. Se não 'conhecêssemos' Marius, poderíamos temer pela 'virtude' da mocinha – a ser outra vítima, a repetir a tragédia da mãe (afinal, vimos como Fantine foi seduzida por Tholomyès...)

Se há mesmo a tal 'angústia de influência' (segundo o scholar Harold Bloom), quem influenciou tais páginas românticas de Vistor Hugo? Shakespeare (com seu “Romeo and Juliet”) ou Lord Byron (com seu “Don Juan”)? Ou seria os poemas idílicos de Lamartine e as cenas de paixão velada em “Le Rouge et le Noir”, de Stendhal?

“Eles não sentiam nem a noite fresca, nem a pedra fria, nem a terra úmida, nem a grama molhada, eles se olhavam e nutriam o coração de pensamentos. Tinham unidos as mãos, sem saber.” (“Ils ne sentaient ni la nuit fraîche, ni la pierre froide, ni la tere humide, ni l'herbe mouillé, ils se regardaient et ils avaient le coeur plein de pensées. Ils s'étaient pris les mains, sans savoir.” VI, p. 989)

.

continua...


.

por Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com/


.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário