sábado, 18 de setembro de 2010

sobre a poética de Lord Byron (2/2)








Sobre as obras de Lord Byron (1788-1824)
poeta romântico inglês

Alegorias dramáticas do Herói Romântico

2/2
O lado menos sombrio – ou o mais idealista ou satírico - do poeta romântico
Com o amadurecimento do Poeta – de byroniano a anti-byroniano – enquanto arquiteto e demolidor da imagem romântica do herói, destaca-se as obras onde evidenciam-se a pregação da Liberdade (como é o caso de Chillon) ou a visão satírica das aventuras de um romantizado Don Juan, aquele mesmo das tantas narrativas ibéricas (vide o Don Juan, de Molière e o Don Juan Tenório, de José Zorrilla)

Da mesma época de “Manfred” temos o belo poema “O Prisioneiro de Chillon” (1816), a tratar da ânsia de liberdade e da necessária luta contra as tiranias. O poema abre com um belíssimo soneto, que traduzo,

Eternal Spirit of the chainless Mind!
Brightest in dungeons, Liberty! thou art,
For there thy habitation is the heart -
The heart which love of thee alone can bind;
And when thy sons to fetters are consign'd -
To fetters, and the damp vault's dayless gloom,
Their country conquers with their martyrdom,
And Freedom's fame finds wings on every wind.
Chillon! thy prison is a holy place,
And thy sad floor an altar - for 'twas trod,
Until his very steps have left a trace
Worn, as if thy cold pavement were a sod,
By Bonnivard! - May none those marks efface!
For they appeal from tyranny to God.
.
(“Eterno espírito da desacorrentada mente! / Brilhante na prisão, Liberdade! Tu és, / Pois lá tua habitação é o coração - / O coração cujo amor de ti só pode unir; / E quando teus filhos aos grilhões entregues – Aos grilhões, e à úmida cela em trevas, / A pátria deles conquista com o martírio deles, / E a fama da Liberdade usa asas no vento. / Chillon! Tua prisão é um lugar sagrado, / E teu triste chão um altar; pois pisado, / Até cada passo ter deixado uma marca / Gasta, como se teu frio piso fosse grama, /Por Bonnivard! - Ninguém deve apagar estas marcas / Pois elas clamam da tirania até Deus.” Trad. LdeM)

Esclarecemos: o protagonista é inspirado em François de Bonnivard, um patriota suiço, de Genebra, lutou, no século 16, contra o domínio da Casa de Sabóia, dinastia norte-italiana. O prisioneiro descreve a prisão, lugar sombrio, onde vive seu destino de penitência, junto aos seus irmãos, companheiros de luta. Antro que traz reminiscências da 'caverna de Platão', a alegoria do pensador grego,

They chain'd us each to a column stone,
And we were three-yet, each alone;
We could not move a single pace,
We could not see each other's face,
.
(“Eles nos acorrentaram cada um a uma coluna de pedra, / E éramos três – mas cada um sozinho; / Não podíamos dar um simples passo, / Não podíamos ver a face um do outro,” III, LdeM)

O prisioneiro descreve o desfiladeiro ao redor da fortaleza, onde lá embaixo golpeiam as ondas vorazes, mas o prisioneiro não teme as rochas, antes o prisioneiro sorri ao contemplar a morte nas ravinas,

And then the very rock hath rock'd,
And I have felt it shake, unshock'd,
Because I could have smiled to see
The death that would have set me free
.
(“E então a própria rocha teria tremido, / E eu tenho sentido tremer, não chocado, / Pois teria eu sorriso ao ver / A morte que teria me libertado”, VI, LdeM)

O prisioneiro – inspirado em François de Bonnivard – está preso junto a dois irmãos, aos quais não pode ajudar, enquanto vê impotente a morte deles. Certos críticos apontam aqui uma influência de “Inferno” de Dante, na cena em que o Conde Ugolino sofre acorrentado junto aos filhos.

Como forma de evasão, o prisioneiro se entrega à descrição lírica da Natureza, ao ouvir o canto de um pássaro, com algo de romântico e arcadista, que encontramos, por exemplo, nos poemas de Wordsworth (Lyrical Ballads; Michael, Uma Pastoral) e Keats (Ode ao Rouxinol)

A lovely bird, with azure wings,
And song that said a thousand things,
And seemed to say them all for me!
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(“Um amável pássaro de asas azuis, / E canção que dizia mil coisas, / E parecia dizê-la todas para mim!”, X, LdeM)

Sweet bird! I could not wish for thine!
Or if it were, in wingèd guise,
A visitant from Paradise;
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(“Suave pássaro! Eu poderia não desejar-te! / Ou se assim fosse, em disfarce alado, / Um visitante do Paraíso;” X, LdeM)

O protagonista chora a morte dos irmãos, presos no mesmo infortúnio. Ainda em seus devaneios, o prisioneiro é libertado, sem saber o motivo – se clemência ou destino. Após tanto tempo de prisão, o prisioneiro havia se acostumado à masmorra, ao escuro e ao frio, esquecera o que é a Liberdade – estava tão alienado da esperança, tanto quanto aqueles acorrentados na caverna da alegoria de Platão,

My very chains and I grew friends,
So much a long communion tends
To make us what we are:-even I
Regain'd my freedom with a sigh.
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(“Ficamos amigos, eu e minhas correntes, / Assim a longa companhia tende / A fazer-nos o que somos: -assim / Eu recuperei minha liberdade com um suspiro.” XIV, LdeM)
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Don Juan, herói byroniano em questão

Este é um extenso poema – incompleto – em 16 Cantos, sendo escrito de setembro de 1818 a maço de 1824, e alguns críticos consideram como uma amostra do amadurecimento do Poeta que assume um tom irônico diante do herói romântico. Herói que a própria obra de Byron ajudara a difundir por toda a Europa letrada, e daí até as colônias europeias.

Em Don Juan evidencia-se (tal qual nos primeiros Cantos de Childe Harold) a destilação (e fermentação) das tantas leituras e vivências – nesta ordem – do Poeta, em suas viagens pela Europa continental. Principalmente o Mediterrâneo, onde se destacam a Itália – ainda não unificada – e a Grécia – dominada pelos otomanos.

Vários autores recebem referência – positiva e negativamente – tais como Homero, Safo, Aristóteles, Juvenal, Horácio, Virgilio, Longinus, Santo Agostinho, Calderón, Shakespeare, Bacon, Congreve, Walter Scott, J. Milton, Dryde, Pope, Wordsworth, Coleridge, Southey, Sotheby, Moore, dentre outros. Vê-se bem o 'cânone' do Bardo romântico. E o Eu-lírico não perde uma oportunidade de citar um autor clássico ou da época – 'mania' que veio a contaminar o 'influenciado' Álvares de Azevedo.

O Eu-lírico narrador apresenta o herói, o protagonista, um hidalgo hispânico, que descende de uma nobre linhagem. A nobreza de nascimento significa nobreza de caráter? Veremos. A Obra e o Leitor é situado na própria narrativa. Situa a voz que narra, situa o poema enquanto 'épico', a estrutura – dividido em doze cantos (enquanto a narrativa se interrompe no 17º) – com muitas aventuras e peripécias. Tudo o que promete um 'romance picaresco' (na melhor tradição que contextualiza um “Don Quixote”)

Mas o Poeta despreza a Prosa tanto quanto despreza os 'clássicos' – desejar “substituir todos os que vieram antes”. Ou seja, o Autor não espera a autoridade de terceiros, de 'grande clássicos'. Cada poeta inventa suas próprias regras ('que ninguém sabe'). Aqui o romântico se liberta dos clássicos – mesmo a conservar a métrica, a rima, o verso, a estrofe. (Mesmo os pós-românticos, o simbolista Baudelaire, e o surrealista Rimbaud, preservam o uso do soneto e das demais formas clássicas.)

My poem 's epic, and is meant to be
Divided in twelve books; each book containing,
With love, and war, a heavy gale at sea,
A list of ships, and captains, and kings reigning,
New characters; the episodes are three:
A panoramic view of hell 's in training,
After the style of Virgil and of Homer,
So that my name of Epic 's no misnomer. (CC)
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(“Meu poema é épico, e pretende ser / Dividido em doze; cada livro contendo, / Com amor, e guerra, um temporal no mar. / Uma lista de navios, capitães, reins reinantes / Novas personagens; os episódios são três: / Uma panorâmica visão do inferno em processo, / Após o estilo de Virgílio e de Homero, / Assim que meu nome de Épico não é equivocada.” CC, LdeM)

O fazer poético, o mundo literário, as influências, os editores, os críticos, as publicações, tudo é comentado nos versos que se afastam da narrativa propriamente dita – o récit – e se perde em digressões. Ainda mais Byron, um desafeto a estes resenhistas e críticos, estes que criticam e não sabem fazer. Como é famosa a sátira de 1809 contra os 'críticos escoceses' ('English Bards and Scoth Reviewers')

No Canto I temos a descrição do ambiente e personagem, e o início das aventuras, mas a viagem pelo Mediterrâneo é relatada no Canto II, quando ocorre o episódio do temporal, levando a um naufrágio, e – devido a falta de alimentos – ao terrível canibalismo, na jangada à deriva. (Episódio que muito impressionou Álvares de Azevedo, segundo veremos.)

Depois o trágico e macabro episódio, sabemos que Don Juan foi atirado a uma praia, onde será encontrado por uma jovem grega. Ele ainda não sabe, mas está numa das Ilhas Cíclades, ao sul da península grega, e aquela espécie de Nausíaca (a mocinha que recebeu Ulisses na “Odisseia”) mostrar-se-á solícita e amável, a ponto de se apaixonar pelo jovem descenturado.

É assim que conhecemos a bela personagem Haidée, aquela mocinha apaixonada que será o refúgio de ternura para o herói sedutor (e seduzido!). Haidée é mais uma idealização de amor feminino do que uma realidade – ou melhor, é mais um contraponto as mulheres de antes e depois, na vida do herói. Haidée consegue unir desejo e ternura – enquanto as demais, no máximo, despertam desejo.

Assim esse 'Ulisses' moderno é salvo por sua 'Nausíaca' – e é o leitor (ou leitora) que espera o affair desse Don Juan. Mas haverá um sério impedimento – o pai da mocinha, como veremos. De início, a afeição resolve tudo. Como se comunicam? Ele não sabe grego, ela não sabe espanhol... Então, romanticamente, será o amor o nobre mensageiro...! Assim são várias stanzas dedicadas ao restabelecimento - e enamoramento – de Don Juan.

O eu-lírico – o Autor, o Poeta Byron – interrompe vez ou outra a narrativa para comentar ou ironizar. Quando Juan e Haidée tentam se comunicar, o Autor comenta os métodos de aprender idiomas com as jovens, principalmente belas jovens, e de que não foi assim que ele 'aprendeu' o inglês, “Tanto inglês eu não pretendo falar, / Ao aprender tal idioma com seus pregadores.” Em suma, o autor não perde uma oportunidade para ironizar os hábitos dos ingleses. No mesmo tom de um Swift (século 18) ou de um Oscar Wilde (século 19/20) .

Mas continuemos no idílio amoroso de Juan e Haidée. É assim amar e ser amado. Terá Juan esquecido os amores de outrora? Pois os sentimentos mudam; sabemos que o amor é inconstante (ainda que o Autor se revolte contra essa 'inconstância', nada pode fazer...), visto que o coração muda com o dia e a noite, e as nuvens, as estações. O Poeta odeia o amor efêmero e busca um 'amor constante'. (O mesmo ideal de Petrarca e Camões, como podem ver...)

O Eu-lírico não perde oportunidade de julgar o protagonista, a trama, a narrativa ('récit'), a desvelar as possíveis simbologias, onde certamente Haidée é uma espécie de Beatrice, aquele símbolo do amor singelo (ainda mais na primeira paixão de uma virgem) Este paralelismo (ou paródia, no sentido de 'narrativa paralela') se situa em relação a Dante e também Milton (se Eva pode ser a heroína da história), pois tratam-se de personagens femininas trágicas, pois as “tragédias findam-se em morte”, segundo sabe o Poeta.

O idílio de Juan e Haidée será interrompida e destruída pela chegada de um antagonista, o próprio pai da jovem grega. É justamente a intervenção do pirata Lambro que possibilita o ápice dramático. O pirata vem a cruzar os mares para afundar o amor dos jovens. Aqui há todo um conhecimento geográfico do Autor. Cenários no mar Mediterrâneo, o mar Egeu, o norte da África. Cenário das tantas sagas gregas, a Odisseia de Ulisses em sua volta para Ítaca...

O pirata Lambro é aquele tipo digno de sagas de piratas. Um homem astuto e paciente, acostumado ao comando, de temperamento forte. Acostumado às explorações marítimas, saque de outros povos. O personagem é moldurado pela descrição de belezas e riquezas da cultura grega e otomana. (Lembrar que a Grécia, na época, estava sob domínio otomano, e a Monarquia grega começaria em 1833 – durando até 1973, ora contando com apoio alemão ou britânico. Byron morreu justamente nas lutas de independência da Grécia, em 1823-24)

Em homenagem à Grécia há um poema dentro do poema, com 16 estrofes, entre as stanzas LXXXVI e LXXXVII, numa espécie de hino à cultura helênica – no mesmo sentimento que encontramos no Canto II de Childe Harold. Esta é uma parte de muitas referências, farta erudição. Em relação às chansons, baladas, Dante, Goethe, Homero, Shakespeare, Coleridge, Wordsworth, mais digressão, mais referências, a Ariosto, Horacio, Southey, mais Wordsworth, mais Homero, e Pope, Dryden, Boccaccio, ah, tantas leituras! É até pedante esta insistência autoral em ficar citando suas miríades de leituras – apesar de toda a fineza da ironia. (Está aqui a 'mania' do nosso romântico Álvares de Azevedo – em listar miríades de leituras e autores!)

Mas estou digressando”, se desculpa o Autor, sempre perdido entre leituras e vivências, out of time, fora do tempo, em vários tempos, em vários lugares, reais e imaginários – este 'esfumaçamento da realidade' também encontramos em poemas de Álvares de Azevedo, instáveis em épocas e lugares.

Isto porque o Autor – apossando-se do Narrador/Eu-lírico – permite-se divagar sobre o leitor ideal, imaginado, para o qual o escrito 'aparecerá exótico', aquele esperado “leitor gentil” a espera de algum conto exótico (aqui para rimar com “Quixotic”, quixotesco), “Ao leitor gentil do nosso clima sóbrio / Este modo de escrita aparecerá exótico” (“To the kind reader of our sober clime / This way of writing will appear exotic,” Canto IV, VI) O 'clima sóbrio' é uma referência a Grã-Bretanha, e seus habitantes, que 'torcem o nariz' para as digressões iconoclastas do Bardo – coisa que Sterne e Swift sempre provocaram, ou Rabelais e Voltaire, na França.

De digressão em digressão, atrasa-se o triste desenlace do idílio amoroso entre a jovem Haidée e o aventureiro Juan. Por que deve morrer um amor tão jovem, tão sincero? Até o Autor se comove... Algo aqui de “Romeo and Juliet” - e de Tristan & Isolda, com algumas referências a um tal rouxinol ('nightingale') – símbolo romântico por excelência, vide a peça de Shakespeare e a ode de Keats (Ode to a Nightingale).

Mas a presença do pirata Lambro – a interdição ao 'amor livre' – a autoridade paterna – a força de repressão – vem macular as estrofes onde a moça Haidée sente alegria e aflição, esperança e medo, enquanto Juan imagina-se diante de uma ameaça – mas é desprezado pelo prepotente patriarca. Eis o momento dramático (para arrepiar as leitoras!) quando Juan enfrenta o pirata e seus capangas. Ali o pai que Haidée obedece em submissão – e roga para que Juan também seja submisso! A moça se coloca entre o pai e o amante – quase dizemos que ela se oferece em sacrifício... A filha enfrenta o pai em nome da paixão. Mais romântico, impossível...!

Mas Juan é ferido ao enfrentar os piratas e em seguido vai preso para um navio, que deve seguir para o Oriente. O Narrador se comove com as 'vicissitudes' que narra – um jovem rico e belo, Don Juan, a sofrer assim por causa de um aamor sincero. (As leitoras, certamente, se comovem...) Haidée sofre de amor, enquanto Juan é embarcado para ser vendido como escravo. O herói sofre nas feridas o que a jovem sofre no peito. É quando Haidée morre de amor em ultraromântica poética narração. A Beleza morre em nome do Amor, pois “Mais cedo ou mais tarde o Amor é o seu próprio vingador” (LXXIII) E ferido e algemado, D Juan está no navio que navega para a Turquia, onde será um pobre escravo entre outros tantos prisioneiros.

Quem são os demais prisioneiros? Vítimas de piratas, de corsários, de turcos armados até os dentes. Há uma trupe de artistas italianos – que inserem comédia na tragédia: ironias com o universo italiano [absorvido nas leituras/ vivências, pois os Cantos III e IV foram escritos em 1820, quando Byron morava na Itália]. Em suas digressões, o Autor precisa encerrar o Canto IV, e debate-se como narrar para agradar leitores e editores, como manter um 'estilo' – tal um Ariosto ou um Fielding – como sobreviver para a posteridade. Tudo isso NO poema!

No plano narrativo, temos o mercado de escravos – uma 'salada' de nacionalidades. Uma digressão sobre a escravidão, a desumanização do Outro, o uso (compra e venda) de pessoas, um mercado mantido pela “Sagrada Porta” (ou seja, o Império Otomano). Pachás negociam escravos para algum grão-vizir ou para o Grande Sultão. Mas o canto já finda, por demais longo. No próximo, o leitor saberá para onde vai o herói Don Juan.

O Canto V abre com digressões autorais sobre 'poetas passionais' ('amatory poets'), certamente os sentimentais, que se envolvem nos relatos, enquanto discute a 'impessoalidade' de Platão, Ovídio, Petrarca, mestres de 'estilo'. Enquanto isso descreve a fronteira entre Europa e Ásia, ali no Mar Egeu. O Bósforo, o Ponto Euxino, e a bela Constantinopla. Seus recursos estilísticos são a mescla de conhecimento geográfico britânico da época mais mitologia grega (um estilo meio Defoe mais Homero...)

No meio dos escravos, o protagonista se destaca – tinha uma 'aparência de inglês' ('English look') ao permanecer altivo, com sangue-frio. (Aliás, este Don Juan é um hispânico demasiadamente anglo-saxão...!) Um outro escravo busca fazer amizade com jovem tão distinto meio a multidão de miseráveis. Juan não tem aparência de 'cão servil'. Aqui toda uma visão eurocêntrica dos povos orientais – onde se confundem turcos, russos, caucasianos, armênios, etc – no que são marcados pelo 'exótico' – povos curiosos para a ávida curiosidade dos leitores europocêntricos.

É este o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente que foi muito explorado nos chamados 'contos orientais' – Lara, Giaour, Sardanapalus – onde as personagens exóticas, de turbante e sabres desfilam a sequestrarem mocinhas indefesas. E eis ali o cristão Juan meio aos servos turcos, como se fosse mercadoria de troca! Ah, a bela decadência do nosso bom mocinho europeu!

O Poeta não poupa ironias ao 'desmitificar' as 'fantásticas viagens' aos países estrangeiros, que 'qualquer idiota' publica e 'exige aplausos'. Aliás, o que não faltava na Inglaterra e França eram os livros sobre viagens, relatos de viagens, paródias de relatos de viagens, como os clássicos “Robinson Crusoé”, de Defoe, e “Viagens de Gulliver” de Swift, ou “Cândido” de Voltaire (mais inspirado nas 'digressões' dos ensaios de Montaigne...)
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À narrativa se mesclam considerações sobre o narrar, sobre outros narradores, sobre as circunstâncias em que se processam o ato de compor e escrever, sobre a época da escrita, sobre as leituras antigas e recentes – tudo forma um mosaico que enreda o leitor – no espaço de poucas stanzas, o Autor faz referências à mitologia grega, narrativas bíblicas, clássicos latinos, costumes ingleses, anedotas italianas, considerações filosóficas cheias de ironia.

É difícil acompanhar as voltas e reviravoltas, as vicissitudes deste herói picaresco Don Juan de Byron – que os críticos consideram diferente daquele Don Juan tradicional do folclore ibérico, típico das comédias de um Tirso de Molina – pois se o hispânico é mulherengo, debochado, e até perverso, em Byron, o Juan é seduzido, é sincero (e por isso irônico) e sempre a lutar pelo que considera justo.
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Sendo Don Juan a obra final de Byron, deixada pois incompleta, não podemos deixar de comparar com a primeira – Childe Harold – e observar as mutações, avanços e retrocessos da arte poética do Autor. Há claras diferenças. Se Harold é melancólico, é um tanto Hamlet (assim como Manfred é um anti-Fausto), Juan é um sujeito vitalista, instintivo, aventureiro, irônico.

Contudo, se traçamos um plano comparativo, a personagem mais plena – mais shakesperiana, digamos –, da obra Duan Juan, é a jovem grega Haidée – bela , singela, bucólica. Mais uma ninfa salvadora do que uma adolescente. É a presença de um sentimentalismo deveras 'lírico' num poema que se destaca pelo 'satírico'.

Na verdade, todo o meu interesse – enquanto leitor – se esgota após a morte de Haidée. Há um exagero digressivo (julgado 'estilístico) quando o essencial já foi dito. [Assim como é difícil ler os exageros cultistas de um Padre Vieira ou as figurações fáusticas-barrocas de Faust II.] Ler a sátira pela sátira não faz, hoje, mais sentido. Para ler Don Juan – e entender quem são os 'ironizados' – precisaremos de notas de rodapé.

Se comparamos Autor e Protagonistas, podemos dizer que Juan é o Byron errante, exilado – não o jovem nobre entediado, aquele Harold, cheio de sonhos. Pois os sonhos foram destruídos em contato com a realidade – esta mesmo descrita no poema final – onde encontramos naufrágios, canibalismo, piratas, escravidão, exploradores, cossacos, mercenários, e não aquela natureza maravilhosa, aqueles amores eternos, aqueles heróis nobres, aqueles patriotas que morrem pela dignidade.
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Influências da Poética de Lord Byron
nas artes plásticas e na música

A poética arrebatada de Lord Byron influenciou não apenas outros poetas, mas também pintores, escultores e músicos. Um pintor que se notabilizou por espírito romântico é William Turner (1775-1851), na Inglaterra, que se inspirou em Byron. O pintor Eugène Delacroix inspirou no Prisioneiro de Chillon para fazer um expressivo quadro. Também o artista William Daniell (1769-1837) retratou Bonnivard aprisionado.
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Entre os músicos, temos Paganini, Liszt, Strauss, Wagner, com destaque para o compositor L H Berlioz (1803-1869), que musicou não apenas Byron (obra 'Harold na Itália', 1834), mas também Goethe (a obra 'Danação de Faust', 1848)
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jul/ago / 10

por Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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Notas


(1)“Seja como for, o romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamente. Com efeito, o Romantismo é antecedido pelo Século das Luzes, que abandonou uma visão de História que se mantivera pelo menos formalmente, apesar da contestação maquiavélica do Renascimento, desde a instauração do Cristianismo. [...]


Mas o Romantismo pôs de lado não só o enfoque teológico judio-cristão, como também a concepção clássica da história, porque no século XVIII, embora já se fale de uma história natural das instituições, e pensamento dominante é aquele que considera a História como produto das 'vidas ilustres', do sábio, filósofo, herói, rei, gênio, cuja razão e ação (rei-filósofo, déspota esclarecido), ainda que às vezes toldadas pelas paixões e pagando por estas falhas trágicas o preço heróico, iluminam e melhoram o homem, produzindo o aperfeiçoamento ou progresso nas suas instituições. [...] p.14


“assim, porque tudo se faz 'história' no romantismo, a História se faz então 'realidade', integrando historiograficamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua personalidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas, de seus mores e práticas típicas, de seus modos de produção e existência material e espiritual, cada vez mais nas linhas de um tempo cada vez menos mítico ou idealizado. [...] p. 18


artigo de Guinsburg, “Romantismo, Historicismo e História” em “O Romantismo”, GUINSBURG, J (org.) SP: Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed.


(2)“O amor romântico oscila entre extremos de abnegação e sacrifício, quando exaltado, e de libertinagem e deboche suicida (“Rolla”, de Musset), quando decepcionado. Mas sempre em íntima relação com o estado de fruição estética, incorporando a antecipada melancolia que o envenena diante da transitoriedade da beleza “Beauty that must die” - que Keats exprimiu na sua “Ode on Melancholy”, o amor é, como dirá Max Scheler, mais a consciência reflexiva do amor do que o próprio amor. Fantasma do desejo insatisfeito e indefinido, o amor será,a ssim compreendido, um autêntico paradigma da sensibilidade romântica, de que foi a motivação psicológica fundamental e o tema prioritário.


O pathos da rebeldia, implícito ao individualismo egocêntrico, desse desejo insatisfeito e indefinido, sublinhou-se no satanismo, transformando a sede de conhecimento e de poder na causa de um conflito dramático de proporções teológicas, pelo qual o homem não é o único agente responsável. Como potência espiritual externa de atuação ambígua, maléfica e benéfica, de que o homem se aproxima, com quem pactua por vontade própria, e contra quem se debate, Lúcifer, anjo caído e acólito de Deus, instiga a sede do poder e do conhecimento, a fim de tornar a consciência, tal como no Manfred de Byron, presa da morte e da consciência de culpa. Adversário e aliado, antagonista necessário que transfigura a árvore do Bem e do Mal na árvore da vida, ao encorajar o homem a, infringindo as interdições de Deus-Pai, defrontar-se com o seu destino e com a morte, Satã, fonte do vigor do espírito e da imaginação para William Blake, “aquele que fala aos homens nos desejos do coração e nos sonhos da alma” (Vigny), é o símbolo maior da sequiosidade ambivalente da alma romântica, de sua introversão, de seu desdobramento interno, do conflito entre as suas aspirações ideais e a sua impotência real: símbolo de tudo isso que o Primeiro Fausto de Goethe, já num plano que ladeia e supera o Romantismo, captou sintetizou como trágico embate do destino humano.


A ascensão e a descensão, a subida e a queda vertiginosas, verdadeiros padrões retporicos, que tipificam, na lírica e no romance, a conduta espiritual dos românticos, acompanharam a 'turbulência fáustica' em que se forjou 'o escudo de sublimação ou do ideal do eu' [RÓHEIM, Géza]” (p. 73)

Artigo “A Visão Romântica” de Benedito Nunes, em “O Romantismo”, GUINSBURG, J (org.) SP: Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed.

O Autor lembram também os heróis de Victor Hugo, o 'Childe Harold', de [Lord] Byron, o herói romântico e seu 'titanismo'.
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sábado, 11 de setembro de 2010

sobre a Obra poética de Lord Byron (1/2)







Sobre as obras de Lord Byron (1788-1824)
poeta romântico inglês

Alegorias dramáticas do Herói Romântico

1/2

No contexto do Iluminismo e da ascensão burguesa ao poder, um movimento artístico – não apenas literário – se destacou na Europa – principalmente Alemanha, França e Inglaterra – antes de influenciar as colônias americanas. Trata-se do movimento romântico.

Advindo do chamado 'século das Luzes', o sentimento romântico contrapõem-se à 'contenção lírica' do Classicismo com a idealização do poeta original a expressar de forma original um sentimento pessoal. É o início do hodierno culto ao Indivíduo, que passa a expressar sua consciência íntima e estética na obra que recebe enfim uma assinatura (e não apenas tenta se 'adequar' a uma tradição e/ou convenção poética). (1)

Não se pretende aqui analisar o Romantismo. É um assunto cuja vastidão impressiona. Livros e livros já foram escritos e enchem estantes, prateleiras, HDs e 4shares. Então, como se trata do MEU Cânone Ocidental, abordarei a obra de dois poetas que acompanharam a minha juventude – Lord Byron e Álvares de Azevedo.

E, num segundo plano, teceremos comparações com outros literatos – Milton, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley, Goethe, Schiller, Victor Hugo, dentre outros. (Antes destes temos os pré-românticos, que seriam Thomas Parnell, Thomas Gray, Edward Young, dentre outros do século 18, os chamados “Graveyard poets”, poetas que tematizam os cemitérios, local também de interesse dos 'ultra-românticos')
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É um assunto vasto, repetimos, e o foco em dois poetas se justifica pela minha preferência dentre tantos. Não leio apenas os dois poetas resenhados, mas eles se situam no 'centro canônico' do meu paideuma (como diria o poeta Ezra Pound).

Segundo Ezra Pound, Paideuma é "a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos". Ou seja, a seleção de um Cânone a nortear e justificar a Leitura.

Na época do Romance burguês, de Walter Scott, Dickens e Victor Hugo, temos o poeta romântico Lord Byron a tecer narrativas em versos, seus longos 'poemas narrativos', que arrebatam os leitores pela forma, pelo lirismo e pelas aventuras de um emblemático 'herói byroniano'. Algo de auto-biografia, digno de 'celebridades' e algo de idealização de cenários e dramas.

Os 'poemas narrativos' são o destaque na Bibliografia do bardo romântico (e também na Obra de seu influenciado Álvares de Azevedo, poeta brasileiro), com os extensos “Childe Harold's Pilgrimage” e “Don Juan” - um no início da carreira, outro ao final, deixado incompleto, devido a morte precoce do Poeta – , bem como 'contos em versos, geralmente com temáticas orientais - “The Giaour”, “The Bride of Abydos”, “The Corsair” e “Lara”, além de 'dramas' em versos – com destaque para “Sardanapalus”, “Manfred” e “Cain” - que englobam um ciclo de exaltação e melancolia, aventura e desventura.

Lord Byron tem algo de clássico assim como Baudelaire (ou o brasileiro Gregório de Matos, do século 17), mas tratou o 'classicismo' com retoques peculiares, devido a sua própria biografia – aqui o Autor apodera-se do Estilo tradicional para a criação da própria Obra. As vidas de Byron e Baudelaire (e Gregório de Matos) se aproxima pela ânsia sensualista, a 'vida de pecados', o gosto pelo luxo e pela luxúria.

O herói byroniano é aquele de um poeta solitário, inimigo da tirania (e assim 'amigo da liberdade'), um jovem belo e igualmente misterioso, com um passado não revelado. Assim é a análise de BARBOSA, O C. de Carvalho, em “Byron no Brasil: traduções”, SP: Ática, 1974, “As obras de Byron que melhor desenvolvem o mito byroniano são Childe Harold's Pilgrimage, um longo poema lírico-descritivo, e os contos metrificados: The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair, Lara, The Siege of Corinth, Parisina, Mazeppa. Essas são as mais representativas: mas inúmeras outras se ligam a elas pelo espírito e intenção: Manfred, os dramas históricos, os dramas bíblicos, e a sua obra lírica em geral.

Childe Harold, e os chamados 'tales', que narram histórias de amor, vingança e morte em ambientes exóticos – The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair e Lara – foram em seu tempo verdadeiros 'best-sellers', e, como escritor de 'best-sellers', Byron escrevia para seu público. Desde que alcançara a popularidade literária com a publicação dos dois primeiros cantos de Childe Harold's Pilgrimage, sabia que seria lido, e ia então ao encontro do gosto de seus leitores, oferecendo-lhes exatamente o que queriam. Através desses poemas, Byron foi compondo e desenvolvendo a imagem do herói byroniano, caracterização máxima de herói romântico, um ser demoníaco e fatal, de aspecto sombrio e misterioso, sob cujas feições belas e pálidas se escondem paixões violentas, sentimentos terríveis e indefinidos. De linhagem nobre, ele é orgulhoso, arrogante, rebelde, indomável, e seu passado encerra alguma ação maligna ou crime misterioso. É, portanto, um homem solitário, torturado pelo remorso. Sente que nada tem em comum com seus semelhantes – é diferente, superior. Esses, por sua vez, temem-no, e o evitam.” (p. 17-18)
Segundo a Autora algumas das características das obras se evidenciam, tais como, retórica e lirismo, digressão e narrativa, descrição e ação, mas com imagens óbvias e rimas forçadas, até uma sintaxe 'torcida' do inglês.

A Autora estuda os tradutores brasileiros do Lord inglês, ao comparar as várias traduções. Segundo ela, os tradutores queriam ser mais retóricos e mórbidos que o Byron original – ou então traduziam o inglês com uma leitura influenciada de Álvares de Azevedo. Ou seja, muitos tradutores deram um 'toque alvaresiano' aos poemas traduzidos, com 'exageros funéreos', sendo mais sombrios que o riginal, mais para o irônico.

Os tradutores mais conhecidos são o próprio Álvares de Azevedo, Castro Alves (que traduziu “Darkness” e “A Cup formed from a Skull”), Fagundes Varela (traduziu trechos de “Childe Harold”)

Esta diferença entre o Byron original e o Byron traduzido leva a uma análise da diferença entre os aspectos estéticos e temáticos do próprio Byron – que pode ser byroniano e anti-byroniano, quando ironiza a si-mesmo.

O outro Byron, o não-byroniano, é ao mesmo tempo, sob um aspecto negativo, o autor das sátiras à maniera de Pope em dísticos heróicos que tentam, inutilmente, evocar o estilo elegante e compacto do modelo; [...]

É um Byron inteligente, perspicaz, engraçado, irreverente. É o anti-Byron, e o Don Juan é essencialmente o anti-Childe, o anti-Conrad, o anti-Lara. É a negação do byronismo pelo próprio Byron, o Cervantes de seu próprio mito.” (p. 18/19)

Diferença que Álvares de Azevedo comenta em seu “Lira dos Vinte Anos”, quando faz a 'transição' de Ariel para Caliban (segundo veremos no próximo ensaio), pois percebe-se igualmente 'ambíguo', o jovem lírico e o poeta satírico, o tímido e o desiludido, o amoroso e o trágico. Assim apresenta-se enquanto 'voz poética' dividida – numa 'síndrome' de Médico e Monstro.

Um dos aspectos não-datados de Byron são justamente os olhares metalinguísticos sobre si-mesmo, sobre o 'fazer Poesia'. É um aspecto autoral que se avoluma ao longo da Obra. Os dois primeiros Cantos de “Childe Harold” ainda seguem um romantismo classicista (se podemos dizer assim...), mas os Cantos III e IV – escritos mais tardiamente – são bem diversos dos primeiros. Mostram um 'amadurecimento' da própria Consciência Autoral debruçada sobre a Obra.

Uma Poesia que fala de Poesia e Poetas. Uma Poesia influenciada pela Poesia, aquela resultante de um excesso de leituras digeridas (e não-digeridas). Uma leitura do mundo antes de vivenciá-lo (se Byron pode viver a vida adulta e em vários países, Álvares de Azevedo, em comparação, aqui no Brasil, morreu jovem e sem sair de sua terra, daí as experiências de Byron integrarem à obra poética, ao contrário de Álvares, mais vivida no 'plano imaginário', do possível...)

O máximo da sátira (e auto-sátira) é visível na obra “Beppo”, escrita na Itália, na mesma época que “Don Juan”. Em “Beppo”, podemos encontrar um Autor metalinguístico, visível nas digressões do eu lírico que funciona como Narrador (este é um 'poema narrativo'), dado a meditações e ironias sobre o 'fazer poesia' e o papel do Poeta.

O Eu lírico declara seu amor pela Itália – uma Itália idealizada em contraponto a Inglaterra hipócrita – enquanto critica o tradicionalismo britânico. O Poeta adora uma sublime arte italiana – assim também as belas italianas – mais pelas diferenças com relação às estéticas inglesas.

“I love the language, that soft bastard latin,
Which melts like kisses from a female mouth”
(XLIV)
.
“England! With all thy faults I love thee still !
I said at Calais, and have not forgot it;”
(XLVII)
.
“This is the case in England, at least was
During the dynasty of Dandies, now [...]”
(LX)
.
(“Eu adoro o idioma, este suave latim bastardo, / Que derrete igual ao beijo de uma mulher”, XLIV; “Inglaterra! Com todas as tuas faltas, ainda te amo! / Disse isso em Calais, e não esqueci;”, XLVII; “Era o caso da Inglaterra, ao menos era / assim durante a dinastia dos Dândis, agora [...]”, LX)

Enquanto auto-exilado o Poeta adota sentimentalmente a nova Pátria. (Encontramos algo semelhante no Narrador de “The Marble Faun” - O Fauno de Mármore – do norte-americano Nathaniel Hawthorne, segundo veremos )

O eu-lírico, enquanto Narrador, perde-se em digressões, perde o 'fio da meada', a deixar a estória 'fora de prumo',

To turn, - and to return; -the Devil take it!
This story slips for ever through my fingers,
Because, just as the stanza likes to make it;”
(LXIII)
.
(“Ir e voltar! O diabo o leve! / Este relato vaza entre os meus dedos, / Pois, é assim mesmo que a estrofe faz;” LXIII)

Esta característica de digressão e meditação esta presente deste os primeiros Cantos de “Childe Harold”, mas se acentuando nos Cantos finais, escritos na maturidade poética. Assim, alguns críticos apresentam uma leitura em 'duas partes' – o primeiro Childe (Cantos I e II), escrito em 1812, e o segundo Childe (Cantos III e IV), escritos em 1816 e 1817/18.
.
No primeiro Childe temos o jovem nobre (“Childe” refere-se justamente ao nobre ainda sem título, não é ainda “Lord”) que, igual a todo aristocrata inglês, vai dar um passeio pelo 'Continente' – ou seja, a Europa – para 'educar-se', conhecer o mundo além das Ilhas Britânicas. Em suas perambulações, como todo bom nobre inglês, o protagonista entra em contato com a vida, uma vida que não reserva visões românticas – pois o idílio é mais idealizado do que vivido.

Assim, o jovem Harold passa pela península ibérica, Portugal e Espanha, na época do domínio napoleônico. Apresenta a cultura hispânica com suas resistências e seu lado lúdico-trágico, como as lutas de touros (que, um século depois, serão temas de obras de outro anglo-saxão, o norte-americano Hemingway).

Em seguida, o jovem inglês adentra as ruínas gregas em Atenas, onde deslumbra o que sobrou da glória da cultura clássica. Não hesita em denunciar um nobre inglês que atuou junto ao governo turco – então a potência hegemônica na região – para conseguir acesso aos monumentos helênicos. O de triste fama, Lord Elgin, o pior saqueador, insensível espoliador das relíquias gregas, aqueles monumentos que os godos e os turcos e o Tempo tinham poupado e tinham que ser um inglês a surrupiar tudo! Ó pobre England! (Realmente, isso sabemos bem, a Britannia navegou pelos sete mares a saquear relíquias e tesouros para armazenar em seu pomposo British Museum...)

Estes versos, onde o jovem nobre encontra-se diante do ideal e o vivido, estão intimamente unidos às vivências do Autor, quando de suas viagens pelos Continente, em visitas a Portugal, Espanha, Itália, Albânia, Grécia, Turquia. Enquanto os Cantos III e IV foram escritos no auto-exílio, quando o poeta abandonou definitivamente sua vida na Inglaterra. No Canto III temos mais auto-referência, onde o Narrador (o eu lírico) fala enquanto Autor, e não mantem o foco em Childe Harold (isto é, o Autor passa a ocupar o foco antes dado ao Protagonista).

O Autor aborda o passado nebuloso – antes parte do 'mistério' que envolvia o jovem nobre - “desde os meus jovens dias de paixão – alegria ou dor,” ("Since my young days of passion – joy, or pain," IV), onde o Autor não se confunde com a 'voz' de Harold. Quem é o Autor? Nada além de um criador de personagens, ou um artista da linguagem. Enquanto o protagonista, Harold, é ainda aquele que sofre por idealizar – e depois prcisar encarar a 'realidade', 'a vida em si mesma'. Desse modo, Harold continua deslocado, auto-exilado ('self-exiled') e solitário. “O auto-exilado Harold perambula ainda”, segue adiante, cada vez mais longe de casa, rumo a aventuras só existentes em sua própria mente. (“Self-exiled Harold wanders forth again, / With nought of hope left, but with less of gloom;”(XVI)

A narrativa não é menos sobre a viagem 'dentro de si mesmo' do que a viagem no Mediterrâneo, nos Alpes, nos mares revoltos, nos campo s de batalha. Por que não aceitamos o mundo tal como é? Por que existem tais 'descontentes', tais 'flutuantes'?

O poeta diante do campo de batalha lembra o belo e o horrível. “Thou fatal Waterloo!”. Temos a beleza no desfile das tropas e, em seguida, o horror dos cadáveres desmembrados no conflito. (Imagens que encontramos em “Cartuxa de Parma” de Stendhal e “Os Miseráveis” de Victor Hugo, onde a glória militar é um 'verniz' sobre a crueldade da guerra)

Não sabemos se o poeta foi realmente até Waterloo. Byron viajou para o continente europeu em abril de 1816, quase um ano após a terrível batalha, onde Napoleão assistiu a derrota de suas tropas. Certamente terrível este embate entre as tropas francesas, inglesas e prussianas! Mas Byron sequer poderia imaginar o horror da Guerra Civil norte-americana, ou as Grandes Guerras Mundiais do século 20!

Para fugir desses cataclismas humanos, o poeta busca consolo numa idealização da Natureza, da vida bucólica – certamente influenciado por classicistas e arcadistas – presentes nos versos de Worsdworth e Keats, onde sempre a Natureza é um tesouro de mistérios e o homem pastoral é bom. É aquele 'bom selvagem' de Rousseau em plena forma. (O mesmo encontraremos na segunda metade de “O Fauno de Mármore”, The Marble Faun, de N. Hawthorne, cujo cenário é a vida campestre no norte da Itália.)

Está idealização da Natureza também surge no final de “O Prisioneiro de Chillon” (veremos a seguir), em comparação com os poemas bucólicos (as 'baladas líricas') de Wordsworth e as odes de Keats,

Are not the mountains, waves, and skies a part
Of me and of my soul, as I of them?
.
(“Não são as montanhas, ondas, e céus, uma parte / De mim e de minha alma, como eu delas?” LXXV)
.
Esta presença da Natureza é tão sensível no romantismo quanto no Arcadismo. Mas com uma diferença: o poeta romântico não é tão 'impessoal', pois a forma de ver o 'natural' passa a ser coberto pelo 'sentimental'. Mas também encontramos a Natureza hostil, força incontrolável que ameaça o eu-lírico (assim o exemplo em “Manfred”, segundo veremos),

The sky is changed!--and such a change! O night,
And storm, and darkness, ye are wondrous strong,
Yet lovely in your strength, as is the light
Of a dark eye in woman! Far along,
From peak to peak, the rattling crags among,
Leaps the live thunder
! [...]
.
(“O céu transmuta-se! - e que mudança! Ó noite, / E tormenta, e trevas, são força assombrosa, / Já amável em tua força, igual a luz / De um olho escuro de mulher! Longe ao longo, / De pico a pico meio a rochedos trêmulos, / Retumba o trovão vivaz! [...] XCII)
.
Sky, mountains, river, winds, lake, lightnings! ye,
With night, and clouds, and thunder, and a soul
To make these felt and feeling, well may be
Things that have made me watchful; the far roll
Of your departing voices, is the knoll
Of what in me is sleepless,--if I rest.
.
(“Céu, montes, rios, ventos, lagos, raios! Vós, / Com a noite, e nuvens, e trovão, e alma / A fazer este sentir e sentimento, devem ser / Coisas que fazem-me atento; o ressoar / De tuas vozes em fuga, é o auge / Do que em mim é insone, - se eu repouso. [...] XCVI)
.
Esta posição do homem diante da Natureza á mais uma fuga da 'civilização' , da 'cultura', que é rejeitada pelo poeta misantropo, que prefere viver entre faunos e ninfas na inocência silvestre. O homem na Natureza foi tema de vários pintores românticos, entre eles o inglês Turner e o alemão Gaspar Friedrich.
O poeta misantropo? Sim, em muitos aspectos o ser em desacordo com a vida social hipócrita e mesquinha,

I have not loved the world, nor the world me;
I have not flattered its rank breath, nor bowed
To its idolatries a patient knee, -
Nor coined my cheek to smiles, nor cried aloud
In worship of an echo; [...]
.
(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim; / Não tenho bajulado posição, nem reverenciado / Suas idolatrias ao ajoelhar paciente, / Nem distribuído sorrisos, nem louvado no culto d'um eco;” [...] CXIII )
.
I have not loved the world, nor the world me, -
But let us part fair foes;

.
(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim, / Mas deixe-nos afastar os inimigos;” [...] CXIV )
.
O Canto IV de “Childe Harold” foi escrito e publicado em 1817/18, quando o Poeta vivia em Veneza, no norte da Itália (ainda não era uma 'nação', mais a se assemelhar a uma 'colcha de retalhos'...), a lembrar seu passado que o exilara da Inglaterra, a pátria distante, amada e rejeitada.

O próprio Poeta lembra o 'intervalo de oito anos' entre os primeiros Cantos e o derradeiro, na conclusão das peregrinações do jovem Harold. Assim muito do narrado é vivenciado – ou uma idealização de fatos vividos – mais que os Cantos I e II, onde 'destila' as influências de leituras – que são comparadas com o 'mundo real'.

Assim há todo um 'olhar de turista' – pois os cenários incluem Espanha, Grécia, Itália, Albânia, Turquia, com destaque para as cidades de Atenas, Veneza, Roma, Constantinopla/Istambul – a derramar-se em descrições, ora exaltadas, ora irônicas, sobre outras culturas, povos, civilizações – a sentir todo o peso da História.

A thousand years their cloudy wings expand
Around me, and a dying glory smiles
O'er the far times [...]
.
(“Mil anos abrem suas nubladas asas / Ao meu redor, e uma Glória agônica sorri / Sobre os tempos remotos, [...] I)
.
Os versos se nutrem da 'cor local', em aclamações diante de Veneza (“a ti, bela Veneza!”), em referências às peças de Shakespeare - que se passam nas terras italianas (a Veneza de Shylock, “O Mercador de Veneza”, ou Othelo; ou a Verona de “Romeu e Julieta” e “Os Cavaleiros de Verona”; ou a Pádua de “A Megera Domada”), em amostras de 'adoção' de uma nova pátria – que fascinava o jovem nobre tanto quanto o Bardo em suas peças.

The commonwealth of kings, the men of Rome!
And even since, and now, fair Italy!
Thou art the garden of the world, the home
Of all Art yields, and Nature can decree;
.
(“A comunidade dos reis, os homens de Roma! / E desde então, e agora, bela Itália, / Tu és o jardim do mundo, o lar / De todo criar Arte, e ordenar Natureza;” XXVI)
.
Esta adoração pela Itália idealizada, sublimada desde os 'tempos de glória', os clássicos latino – Horácio, Ovídio, Virgílio, Cícero, Sêneca -, terra dos humanistas renascentistas – Boccaccio, Dante, Petrarca, Ariosto, Da Vinci, Michelangelo, Rafael - está evidenciada também em obras de Goethe (“Elegias Romanas”), Shelley, Keats , Stendhal (“Cartuxa de Parma”), Victor Hugo, Hawthorne (“Marble Faun”), Hemingway (“Adeus às Armas”),

Italia! O Italia! thou who hast
The fatal gift of beauty, which became
A funeral dower of present woes and past,
On thy sweet brow is sorrow ploughed by shame,
And annals graved in characters of flame
.
.
(“Itália! Ó Itália! Tu tens / A fatal dádiva de beelza, que tornas / Um funéreo dote de aflições atuais e passadas, / Sobre teu cenho é mágoa lavrada por vergonha, / E arquivos gravados em caracteres de chama.” XLII)
.
Nem pretendemos comentar os 'deslizes' históricos do Autor – é tudo aceito pela 'licença poética' – Roma é símbolo tanto da Grandeza quanto da Decadência.

Yet, Italy! through every other land
Thy wrongs should ring, and shall, from side to side;
Mother of Arts! as once of Arms; thy hand
Was then our Guardian, and is still our guide;
.
(“Ainda, Itália! Por toda outra terra / Teus erros ressoariam, de um lado a outro; / Mãe das Artes, outrora das armas; tua mão / Era então nossa guardiã, e és ainda nossa guia; XLVII)
.
O Rome! my country! city of the soul!
The orphans of the heart must turn to thee,
Lone mother of dead empires!
.
(“Ó Roma, meu país! Cidade da alma! / Os órfãos do coração devem voltar-se a ti, / Mãe solitária de impérios mortos, [...]” LXXVIII )

Esta jornada na Cidade Eterna revisita as lendas da fundação de Roma, onde os dois gêmeos – Remo e Rômulo – foram amamentados pela loba. Este cenário histórico – onde aparcem vultos exumados de César, Cleópatra, dentre outros - é um imenso palco onde o Eu-lírico fala de si-mesmo ao falar de 'mundos' que estão fora.

O Eu-lírico é um ser feito de contemplação – diante da Roma manchada de sangue, respingado sobre colunas, colunatas, arcos do triunfo, arenas, onde morriam os escravos,os gladiadores, os mártires cristãos – numa perspectiva onde a História é um processo de vitórias e derrotas, alternadas e em série, e repetidos,

There is the moral of all human tales:
'Tis but the same rehearsal of the past,
First Freedom, and then Glory--when that fails,
Wealth, vice, corruption--barbarism at last.
And History, with all her volumes vast,
Hath but ONE page,
.
(“Eis a moral de todos os relatos humanos; / É nada além do mesmo ensaio do passado, / Primeiro Liberdade e então Glória – quando aquela falha, / Riqueza, vício, corrupção, - enfim, barbárie./ E a História, com seus volumes vastos, / Tem nada além de UMA página, [...]” CVIII)
.
São as obras humanas que se esforçam para resistir ao Tempo – que sobra na peneiragem dos tempos torna-se, então, 'obra clássica'. O Tempo é tanto cicatrizador ('healer') quanto vingador ('avenger'), é efêmero e eterniza os ecos do passado – ruínas, montes de pedras de uma Glória perdida.

É nesse sentimento de finitude que o Romantismo encontra o Barroco – assim como Shakespeare encontra Calderón na temática da efemeridade (“a vida é sonho”) - para ressaltarem o 'carpe diem' – o gozar o dia, antes que a vida acabe.

O que faz compreender a meditação romântica sobre a fragilidade do Existir. Mas numa metafísica de base religiosa, mais do que filosófica (o que somente o Existencialismo faria após Schopenhauer, Nietzsche, Sartre), o que leva o homem a indagar sobre a vida enquanto penitência, o castigo advindo do pecado, a perdição ou a redenção.

Esta temática está nos dramas 'filosóficos' de Byron – Manfred e Cain – que dialogam com a tradição de Dante, Shakespeare e Goethe – a Literatura a desejar abarcar o mundo – onde o Poeta destila os ensinamentos puritanos da cultura inglesa da época, em contraponto com a própria vida de luxúria. Esta contradição leva ao auto-martírio. (2)

No drama “Manfred” temos o anti-fausto, pois ao contrário de Fausto (que deseja saber tudo), Manfred deseja esquecer seu passado de sofrer. Esta presença da consciência (e opressão da consciência) é sinalizada na epígrafe, tirada da peça shakespeariana “Hamlet”, “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, / Que aquelas sonhadas em sua filosofia.” (“There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy.” )

Temos um cenário na Europa Central, nos altos Alpes (aliás, o Autor estava na Suiça, em 1816), onde o frio adentra o coração do protagonista. Para Manfred, 'saber é sofrer' e a punição é conhecer a verdade, degustar da Árvore do Conhecimento (Tree of Knowledge), pois a filosofia e a Ciência tornam-se tortura.

Igual a Fausto, aqui Manfred é um mago a invocar Espíritos, que são Agentes da Narureza, 'forças elementares', o ar, os montanhas, as águas, forças da terra, os ventos, as estrelas. Aos Espíritos, Manfred suplica por esquecimento (forgetfulness, oblivion), e estes respondem com um 'poema dentro do poema', um Encantamento (Incantation), em sete estrofes de dez versos, com força expressiva e riqueza lírica, as vozes espectrais condenam o mago,

Though thy slumber may be deep,
Yet thy spirit shall not sleep;
.
(“Apesar de teu sono ser profundo, / Ainda assim teu espírito não deve dormir;”)

É impossível aos Espíritos fazerem com que o Esquecer desça sobre Manfred, condenado a carregar seu passdo, “ Compelimos-te / Ti mesmo a ser teu próprio inferno!” (“I call upon thee! and compel / Thyself to be thy proper Hell!”)

Por que? Devido a rebeldia de Manfred, que faz com que ele seja da irmandade de Cain ('brotherhood of Cain') – outro protagonista importante para o Poeta. Então Manfred vai tentar se matar, vai pular do alto da escarpa na montanha – mas é salvo por um caçador,

Manfred:
Adeus, ó céus abertos!
Não olhem reprovadores sobre mim -
Não vos destinais a mim- Terra!
receba estes átomos!
.
Caçador:
Espere, louco! - apesar de cansado
de tua vida,
Não manche nossos vales puros com o
teu sangue culpado.
Venha comigo – não vou te soltar.
.
[Manfred]
-Farewell, ye opening heavens!
Look not upon me thus reproachfully--
Ye were not meant for me-- Earth! take these atoms!
[Chamois Hunter]
Hold, madman!-- though aweary of thy life,
Stain not our pure vales with thy guilty blood!
Away with me-- I will not quit my hold.

Mas – com ou sem sem caçador para salvá-lo – Manfred não pode morrer. É tal um vampiro a carregar a culpa de seu passado, pois não vai esquecê-lo. Sabemos do drama quando Manfred descreve sua aflição ao corajoso caçador. Os remorsos de Manfred fazem com que o fardo do tempo seja redobrado. As lembranças pesam – algo de muito cruel e trágico é o que este homem presenciou ou praticou!

Contudo, Manfred somente revelará seus infortúnios que sobrecarregam o seu passado quando, ao prosseguir suas andanças, ele encontrará (ou invocará) a Bruxa dos Alpes. Diante da Aparição ele o abre o coração – ao pedir não poderes, mas o mesmo, e sabe que em vão, o alívio da tortura da lembrança.

A confissão de Manfred lembra a daquele poema “Alone” de Edgar Allan Poe (escrito trinta anos depois) com a personagem sempre mergulhada em solidão.

[... ] From my youth upwards
My spirit walk'd not with the souls of men,
Nor look'd upon the earth with human eyes;
The thirst of their ambition was not mine;
The aim of their existence was not mine;
My joys, my griefs, my passions, and my powers,
Made me a stranger; [...]
.
(“Desde a minha juventude / Meu espírito não seguiu com os demais, / Nem olhou sobre a terra com olhos humanos; / A sede de ambição deles não era a minha, / O propósito das existências deles não era o meu; / Minhas alegrias, aflições,paixões, potências / Fizaram-me um estranho;” LdeM)
O jovem Manfred preferia a Natureza, as altas montanhas, os rios. Ou seja, a vida bucólica. Depois, a vida de estudos, a busca do conhecimento (aqui a clara semelhança com Fausto). Até que aparece a mulher amada – bela, suave, igualmente a buscar conhecimentos – mas o amor não traz benefícios, ao contrário, o amor acaba por destruir a amada. Sem humildade para aceitar as próprias falhas, o amor dele abafa o amor dela. E a solidão agora nem é a solidão – mas íntima companhia com a Fúrias – todo o saber é inútil diante do remorso, do desespero.

A Bruxa resolve ajudar o Mago, mas ela exige a mais rigorosa obediência. O Rebelde não é submisso, sua decisão é Non serviam (não servir). As cenas III e IV são povoadas de espíritos e entidades na antecâmara do Gênio do Mal Arimã. Os espíritos reverenciam o Gênio do Mal, quando Manfred se aproxima, mas não se ajoelha. Manfred deseja a invocação do Espectro da Amada – chamada Astarte [nome de deidade semita]. O cenário é de fantasmagoria e alegoria, onde o efeito vale mais que o bom senso. (Partes do Faust I e II, de Goethe, têm igualmente exageros de fantasmagoria)

No entanto, o espectro de Astarte conserva-se em silêncio, enquanto Manfred se entrega a uma crise de masoquismo, torturando-se. Mas a fantasmagórica Amada, esvanecendo-se, diz que no dia seguinte finda-se a vida terrestre do atormentado, “Manfred! Amanhã finda tuas aflições terrestres. Adeus!” E ele não sabe se foi perdoado...

No Ato III, Manfred encara o fim iminente, a tragédia anunciada. Há uma 'calma inexplicável' – onde toda filosofia é inútil. Mas aparece uma visita: um Abade. O religioso preocupa-se com a 'salvação da alma' do angustiado nobre. Boatos correm sobre as feitiçarias do mago. Manfred não se submete aos 'consolos' religiosos. Por mais que o Abade insista.

Há uma cena patética ao estilo do final do Faust II – ainda nem publicado, o que ocorreu após a morte de Goethe em 1832 – onde as forças do Bem e as forças do Mal disputam a alma do 'filho da terra'. É onde a 'força alegórica' do Barroco invade a exaltação romântica. E Manfred morre finalmente – acompanhado pelo desolado abade.
Estas temáticas barrocas – isto é, religiosas, - estão presentes ainda mais radicalmente em “Cain”, onde o mito bíblico (de origem semita) é relido com uma audácia de herege. Trata-se de um poema dramático, em três Atos, datado de 1821, e dedicado a Sir Walter Scott.

Voltamos ao cenário do Gênese, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso (jardim do Éden). Agora o primeiro casal constituiu família. Seus filhos Caim, Abel, Ada, Zila oferecem igualmente sacrifício ao Criador. Todos fazem suas preces bajuladoras – exceto Caim. “Por que eu deveria falar?” Caim nada tem a pedir, e nada a agradecer.

Adão: Mas não vives?
Caim: Não devo morrer?

Caim pensa que se os pais comeram do fruto da Árvore do conhecimento (do bem e do Mal) deviam ter comido também o da Árvore da Vida. Para Adão, isto é blasfêmia!

Adão: Ó meu filho, / Não blasfeme: estas são as palavras da serpente.

Mas para Caim, a serpente disse apenas a verdade, pois “conhecimento é bom, e vida é boa; como podem ser maus?”

Eva reconhece as próprias palavras na fala do filho Caim. Ela se arrependeu – mas teme que o filho repita o pecado. Caim aqui é um livre-pensador. Duvida, ironiza, polemiza. Não segue a 'moral de rebanho'. Caim prefere a solidão – nem sua irmã Ada é companhia desejável. (Aqui uma névoa de incesto: com que os filhos de Adão e Eva se casam? Com as irmãs...) Abel aqui é o mais 'carola' de todos – o mais beato.

Caim não aceita que o pecado dos pais seja transmitido aos filhos.

What had I done in this?—I was unborn: I sought not to be born; nor love the state To which that birth has brought me. Why did he Yield to the Serpent and the woman? or Yielding—why suffer?
(“Que tenho a ver com isso? Nem nascera: / Nem pedi p'ra nascer; nem amo a condição / A qual o nascer me trouxe. Por que ele [Adão] / Se rendeu à serpente e a mulher? Ou / Rendendo-se, por que sofrer?” (Ato I, Cena I)

Vamos abordar aqui o mito hebraico do Jardim do Éden em relação com a mitologia grega (Caim é uma espécie de Prometeu a desafiar os Deuses)

Enquanto Caim pensa, outra personagem adentra (e atenta). É o anjo decaído, o próprio Lúcifer – que aqui parece mais Iago tentando o pobre Othelo. E – numa certa leitura – Lúcifer não é Satanás. Expliquemos.

Para os Luciferianos, o anjo Lúcifer é tal qual um Prometeu, que vem trazer Luz e Liberdade aos Homens – não é, portanto, inimigo dos Homens, tal qual o Satanás da Bíblia – e de John Milton, em “Paraíso Perdido” (Paradise Lost, 1667 ). Lúcifer, então, era o 'bom', enquanto Deus era o Tirano, o caprichoso Criador que condena a Humanidade e afoga as criaturas, e bombardeia as cidades (vide Sodoma e Gomorra...)

Para o Satanista, o anjo mau, Satanás, não é mais Lúcifer. Satanás odeia Deus, e as criatuas de Deus, os Homens, inclusive. Assim, adorar Satanás é adorar o Mal pelo próprio mal. Um Satanista é um adorador do próprio inimigo? Assim, de certa forma, o Satanismo é ainda baseado no Cristianismo. Enquanto o Luciferianismo é mais complexo, filosófico. Tem raízes cabalísticas e gnósticas. Assim como Prometeu desafiou Zeus, ao dar o fogo aos Homens – Lúcifer desafia Javé, ao tentar a Mulher para cobiçar a Consciência (do Bem e do Mal).

Pois bem, aqui Lúcifer pode conhecer os pensamentos (em outra tradição, o anjo decaído não pode ler os pensamentos, por isso muitos cristãos preferem não orar em voz alta, resguardando-se em oração silenciosa...) Para Lúcifer, os pensamentos são provenientes da 'parte imortal' – assim, os argumentos do Anjo, agora Demônio, são para atrair a confiança do Humano, que logo aceita ter algo de 'imortal' – não apenas 'tentar', mas 'revelar'. (Interessante este aspecto no 'Satã' Settembrini, o pedagogo que 'tenta' Hans Castorp, em “A Montanha Mágica”, 1924, de Thomas Mann)

Lúcifer não fala em 'morte', mas que Caim 'deve viver'. Viver além, em espírito. Não exatamente feliz, mas eterno. Quem é Lúcifer? Ele mesmo diz, “Alguém que desejou ser o que te fez, e / Que não teria te feito o que tu és.” (“One who aspired to be what made thee, and /Would not have made thee what thou art.”)

Mas o Demônio resigna-se com a vitória do Criador, “Ele venceu; deixe-O reinar!” (“He conquer'd; let him reign!”) Aqui a Rebeldia – e a Liberdade – é coisa do diabo! Nada mais cristão, claro! Afinal, o Cristianismo prega a obediência e a resignação. Assim, ser livre (igual ao Sr. Settembrini, na obra de T. Mann) é ofensa à fé. (E não admira que muitos Iluministas tenham sido 'Luciferianos' quando da luta liberal contra a Monarquia Absolutista e contra o Clero, entre os séculos 18 e 19)

O Demônio é assim porque foi um 'espírito' que ousou encarar o Criador. Diz Lúcifer, “Almas que ousaram usar a imortalidade – / Almas que ousaram olhar o tirano Onipotente / em Sua face eterna, e dizer-lhe que / O Seu Mal não é bom;” (“Souls who dare use their immortality— / Souls who dare look the Omnipotent tyrant in / His everlasting face, and tell him that / His evil is not good!”)

Como pode surgir o Mal no domínio do Bem? Como um Ser perfeito pode permitir a imperfeição? Deus é um Criador todo-poderoso e infeliz, “Deixe-o sentar-se em seu vasto e solitário trono, / criando mundos, a fazer a eternidade / menos pesada à Sua imensa existência / e imparticipada solidão; / Deixe-o povoar orbe após orbe: ele está sozinho. / Indefinido, indissolúvel tirano;”
(“But let him / Sit on his vast and solitary throne— / Creating worlds, to make eternity / Less burthensome to his immense existence / And unparticipated solitude; / Let him crowd orb on orb: he is alone / Indefinite, Indissoluble Tyrant;”)

Assim, Anjos (ou Demônios) e Humanos se assemelham na parte espiritual : Anjos só Espíritos, enquanto Humanos são Espíritos dentro de Corpos feitos de barro, e que voltarão ao barro.

Antes Caim não encontrara alguém que conversasse francamente com ele – alguém que simpatizasse com suas dúvidas e angústias. Lúcifer prefere conversar do que 'tentar' – como ele fez no papel de serpente, ao aproximar-se de Eva, no Paraíso, “eu não tento alguém, / Exceto com a verdade: não era a árvore , a árvore / Do Conhecimento? E não era a árvore da Vida / Ainda frutífera?” (“I tempt none, / Save with the truth: was not the Tree, the Tree / Of Knowledge? and was not the Tree of Life / Still fruitful?”)

Claro que há muita Teologia neste drama em versos. Muito fatalismo, calvinismo, livre-arbítrio, condenação eterna. E não há assunto mais entediante do que Metafísica – e nada mais metafísico que a Teologia. (como se fosse possível às Criaturas 'estudar' o Criador, ou o imperfeito 'teorizar' sobre o Perfeito! É muita imaginação ou muita pretensão!)

Em resumo: por que Caim mata o irmão Abel? No diálogo com Lúcifer, aquelas ideias mais recônditas -e heréticas! - de Caim são reveladas. “Pensamentos inexpressados / povoam a arder em meu peito” (“Thoughts unspeakable crowd in my breast to burning;”) Parece ser a consciência de que Deus é tanto Criador quanto Destruidor

Lúcifer: O Criador – chame-o
Com o nome que desejares: ele cria, porém
para destruir.

A imortalidade é um atrativo para Caim – que teme a Morte. É um atrativo para as 'ovelhas' dos religiosos. A 'vida eterna' enquanto um 'consolo'. (Para outros, é justamente o contrário: a Morte é o consolo. Nada de Céu, ou Inferno, ou Deus, ou Julgamento; mas tão-somente a Noite eterna, o Nada.) Já o tal Lúcifer nada sabe sobre a morte, “Como eu não conheço a morte, /Não posso responder.” (“As I know not death, / I cannot answer.”) Para Caim, temer a morte é “temer o que eu não conheço” (“fear I know not what!”)

Tendo atraído Caim, agora Lúcifer quer ser adorado (“Deves inclinar-te e adorar-me – teu Senhor”) Mas se Caim não reverenciou o Deus Todo-Poderoso, por que deveria se ajoelhar perante um anjo Decaído? Mas Lúcifer admira este Humano que não reverencia a outros. Afinal , é um fiel da máxima 'non serviam'. Um Rebelde não adora nem Deus nem diabo. “És meu adorador: não adorando-O / és meu do mesmo jeito.” (“Thou art my worshipper: not worshipping / Him makes thee mine the same.”)

Ou seja, se o sujeito não acende uma vela para Deus, está torcendo para o diabo. Tudo o que o padre esbraveja na igreja, “Quem não está junto de Deus, está nas garras do diabo!” Caim precisa escolher entre seguir Lúcifer ou se reunir aos irmãos para o próximo sacrifício. Lúcifer trata logo de separar Caim e sua amada irmã Ada, sempre desconfiada diante do Anjo de Luz, que insiste que a serpente traiu a mulher, Eva, com a Verdade: o fruto traz conhecimento, consciência. E a consciência traz o sofrer.

O Autor seguramente 'toma liberdades' com o texto bíblico, ao introduzir esta paixão entre irmão e irmã – traços biográficos?, é de se perguntar. Mas trata-se de uma alegoria, e o mito religioso sofre uma 'apropriação' autoral – e os Românticos não primavam pelos Cânones, mas pela originalidade, pela re-criação do que era considerado clássico.

O tal Lúcifer não hesita em apontar que o que agora não é pecado – o amor entre irmãos – em breve será – trata-se do 'tabu do incesto', no sentido de desviar o impulso sexual para fora da família e/ou da clã. Ada não entende um pecado que não seja 'pecado em si mesmo'. Como pode algo hoje ser 'certo' e amanhã ser 'errado'. Pecado é pecado, e virtude é virtude. (É que a Humanidade ainda não tinha inventado a História, e a História não era objeto do Historicismo...)

Semelhantes alegoria percebemos no romance “O Fauno de Mármore” do autor norte-americano Hawthorne, onde o mito da Queda do Homem é encenado, onde o pecado pode unir os cúmplices numa paixão, onde a virtude não aceita a 'coexistência pacífica' com o Pecado. (Esta obra de Hawthorne será assunto de ensaio próximo)

Ao identificar a Onipotência com a tirania, e a adoração com a bajulação, Lúcifer acaba por embaralhar os valores – algo de iconoclasta aqui! - o que ofende a humana Ada, sempre virtuosa (“Onipotência deve ser completa bondade”, “Omnipotence / Must be all goodness”) e que o tal Anjo de Luz não é exatamente 'abençoado'. Ao que o tal responde, “Se ser abençoado / consiste em ser escravo – não”, onde o argumento é basicamente: ser abençoado é 'ser cooptado' pela Tirania.

A perda dos laços de identificação com a família, e os laços amorosos com a irmã-esposa Ada, enfim, a revelação da completa solidão – ter consciência, saber é não criar laço afetivo. Saber é não amar. Quem tudo sabe há-de amar os ignorantes? (E lembramos o insulto do Cristo crucificado: “Perdoai-vos, pois não sabem o que fazem” (!)) Caim não escolhe o amor – e segue o Anjo Decaído. (Para Ada, a solidão é até pecado. Não se pode ser feliz ao viver sozinho. Ada é o tipo 'boa mãe de família'...)

No Ato II, uma viagem astral – outros mundo, outras alegorias. Eis aqui um Byron metafísico. Vários mundos, vários pecados, várias redenções, várias condenações... O desejo do Poeta é transformar o mito hebraico numa verdadeira tragédia grega – e quase conseguiu. Vide o final do Ato III.

O final é aquele que todos conhecemos. O Anjo Decaído não veio melhorar o drama, e sim acelerar o desenlace. O Rebelde Caim torna-se o primeiro homicida – ao golpear violentamente o irmão Abel, junto aos altares de sacrifício. (Caim: Teu Deus adora sangue!) E o sacrificado será o próprio Abel. Consequência que Caim nem mesmo previra – ele se encontra responsável diante da primeira morte, e morte violenta.

[Recentemente, em 2009, o escritor português José Saramago publicou um romance - “Caim” - com essa temática – tão herética quanto aquela do anterior, de 1991, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”]
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continua...
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por Leonardo de Magalhaens
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

outros ensaios de MEU CÂNONE OCIDENTAL




Meu Cânone Ocidental

Links para outros ensaios anteriores



Sobre “O Médico e o Monstro”, de Stevenson
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html
boa leitura!!

Leonardo de Magalhaens




quarta-feira, 25 de agosto de 2010

sobre a obra do Marquês de Sade







Sobre a obra do Marquês de Sade (1740-1814)
pensador e autor licencioso francês

Quando a Literatura revela o irracional e o perverso

O autor maldito Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814, autor licencioso do século 18) é uma das figuras mais controvertidas de qualquer Cânone. Seria ele um mero pornógrafo ou um autor a frente da própria época? Um louco desvairado ou um precursor da 'liberação sexual' que vivenciamos no século 20?

Suas obras “Justine”, “A filosofia na alcova” e “Os 120 dias de Sodoma” apresentam uma linguagem alegórica e realista, psicológica e debochada, demasiadamente humana e satírica, onde as paixões mais sórdidas e os pensamentos mais cínicos são explicitados, entre uma luxúria e outro, uma sacanagem e outra.

Sacanagem em todos os sentidos. O sexo é mais um dos tantos modos de dominação do Outro. Usar e abusar do Outro enquanto Coisa, enquanto Corpo. A racionalidade não mais é que um 'verniz' sobre o animal cheio de desejos, que se diz Humano e Racional. A insanidade é um bem-comum compartilhado por todos, sejam ricos sejam pobres, sejam nobres sejam plebeus.

O duelo Razão X Loucura, ou Moderação X Luxúria, é o leitmotiv da obra de Sade, a partir de então relacionado a todo tipo de Excessos, Exageros, Alegorias Sexuais, Pornografia, Sadomasoquismo, Surrealismo, em suma, todo o lado 'perverso' que a Racionalidade Instrumental procura dominar/ abafar.

Por este desvelar a 'nossa natureza sombria' (que a Sociedade doma, ao contrário de perverter, como dizia o filósofo Rousseau, defensor do 'bom selvagem') o Marquês de Sade seria merecedor de figurar no Cânone? De ser um precursor do psiquismo (a 'dissecação psíquica') de Freud, então criador da Psicanálise? Até onde podemos 'reabilitar' Sade sem caírmos na 'perversidade'?
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A Sexualidade perversa

Uma das questões levantadas pelos leitores de Marquês de Sade é se a Sexualidade é violência. Ou melhor, se a sexualidade é uma violência consentida. Consentida por uma das partes – a saber, a mulher.

Considerando-seque a fêmea passa a tolerar o desejo do macho e se submeter aos desejos deste. Isso ao escolher um dentre os machos disponíveis e entregando-se a ele, desde que este a proteja da potencial ameaça física dos outros. Ou seja, aceita a violência de um só, evitando assim a violência possível sob o capricho dos outros. A sexualidade feminina, assim, seria co-ordenada de fora- e a partir do desejo masculino- e fruto de um medo ancestral- o de ser violentada.

Uma vez que a carga de violência no ato sexual é permitida pela fêmea, tal fardo é transmutado em prazer, e até ternura, A mulher consente, tolera, com sutil condescendência, os impulsos lúbricos do homem, desde que este a proteja e conceda atenção. A mulher, assim, dispensa um ‘favor sexual’ ao homem, sendo permissiva até um limite de dignidade – que é flexível.

Até porque, para o Marquês, o ato sexual é uma relação de dominação. Sade traz para o plano sexual as relações de poder mestre-escravo, num momento de turbulência política, quando os nobres se percebiam ameaçados pelos burgueses, agora assumindo a dominância política, além da econômica.

Sendo o ato sexual, sutilmente até, um ato de dominação, a característica perversa é salientada. Perversa no sentido de não-convencional, não-aprovada, desviada de um objetivo reprodutivo. Sexo enquanto afirmação, busca de prazer, troca de fluidos. Em gradação até o sexo enquanto humilhação do outro. Pois no sadismo o prazer do Eu é mais importante que o prazer do Outro, e até além, o eu sente prazer justamente com o desprazer (dor) do Outro. O Eu domina e o Outro se submete. Um é o mestre, e o Outro é o escravo. (A mesma dialética estudada pelo filósofo alemão Hegel, em “A Fenomenologia do Espírito”, 1807)
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'Perverso' é então todo desvio de um padrão, podendo ser uma posição excêntrica de coito até uma modalidade de tortura física e psíquica. E Sade sabia que para cada mestre, um potencial torturador, havia vários servos, os potenciais torturados. Ou como se diz, os sádicos e masoquistas que se entendam.
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Alegorias da Dominação

Em suas alegorias, sutilmente desmascarando a hipocrisia, Sade causou polêmica, e a sociedade logo prontificou-se a rotulá-lo, visando sua anulação. Nada de retirar o véu sobre as convenções, diziam. O Marquês que vá se entender com os loucos. Mas todos entendiam que as alcovas de seus escritos estavam as representações de várias alcovas reais.

Assim como Ovídio é considerado o ‘imoral’, acima de depravados como Petrônio e Apuleio, por desafiar os padrões da época (que era realmente perversa e imoral) ao revelar o que se ocultava sob o verniz. Nunca denuncie o que todos desejam ocultar, eis um conselho de amigo. “O Asno de Ouro” seria queimado ao lado de “Dias de Sodoma”, tudo para resguardar a 'etiqueta social' e os 'bons costumes'.

Aquela concepção de jovens ingênuas e, ao mesmo tempo, lúbricas, traz a imagem da mulher-menina, da potencial senhora dentro de cada donzela seduzida. Um temor masculino de que a senhora ali adormecida desperte para dominar o dominador. E as figuras do sedutor se mostram as mesmas, ora um sacerdote (possuindo a pupila, ou uma freira juvenil), ora um nobre (seduzindo uma serva, ou a filha de um vassalo), ora um cavaleiro (possuindo donzelas em suas andanças). Todas as encarnações do desejo patriarcal de dominação, onde o homem manda e a mulher obedece.

A mocinha Justine é essa imagem da mulher dominada, sempre na ignorância, e sempre abusada, vitimada pelos desejos e perversões masculinas. A obra “Justine ou os Infortúnios da Virtude" (Justine ou Les Malheurs de la Virtu)”, publicada em 1791, tem algo daquele estilo panfletário, alegóricos, das obras de Rousseau e Voltaire – numa tradição satírica que remota a Rabelais e Swift. Onde as voltas e revoltas da linguagem – e do estilo - estão à serviço de algum 'pensamento', algum ensino moral. Assim o Cândido tem como título alternativo “O Otimismo”, enquanto apresenta justamente uma série de desgraças (naufrágios, terremotos, traições...).

Que sofrimentos atingem Justine? A própria condição de mulher é o portal para o sofrer – ser um corpo a servir às lascívias masculinas, sendo possuída como 'coisa', não entendida como 'pessoa'. Se o jovem Werther (aquele que também sucumbe de 'sofrimentos', na obra de Goethe, “Sofrimentos do Jovem Werther”, 1774) O leitor ouve a narração da jovem, que não poupa imagens de humilhação e denúncias de crueldades. O desejo masculino sendo movido – e excitado – pelo sofrer da mulher.

A jovem Justine é abusada por aqueles que deveriam zelar por sua educação e bem-estar. Assim muitas crianças abusadas por familiares e parentes que aparentemente são dignos de confiança – e usam justamente esta confiança para humilhar e abusar sexualmente das crianças. Assim os educadores, os padres, os diretores de orfanatos, as autoridades - que aparentemente são inofensivas – mostram que a perversidade está dentro – quando menos se espera a Razão é vencida pelo Desejo desvairado e eis o crime – o fim da Virtude.

Entre cada abuso, a Narradora-vítima descreve os tipos masculinos que abusam de sua juventude, assim como nas obras de Narrador (não-personagem) temos verdadeiras digressões filosóficas sobre a 'natureza humana' que a 'civilização' cristã e repressora não conseguiu destruir – no máximo abafar. Agora os desejos abafados ressurgem ainda mais exagerados e letais. Represado antes, agora pervertido. A sexualidade não é mais um 'encontro' com o Outro – mas a dominação do Outro. (Destaca-se “La Philosophie dans le boudoir” com toda uma estética não-ética, imoral, do Outro enquanto objeto do Desejo – o Outro a ser instrumentalizado para se conquistar o Prazer. E toda uma 'filosofia' para justificar o prazer que resulta da dominação...!)

A própria condição da mulher – imagem-mor da 'passividade' – é percebida pela jovem Justine ao observar o comportamento das demais jovens submetidas igualmente aos abusos. Elas reagem com um 'comportamento de ovelhas' como cúmplices diante do sofrer das outras. A 'miséria ama companhia' diz o ditado, e é verdade aqui. Eu sou abusada, mas não é apenas eu, devem pensar as ninfetas violentadas. E a coletividade das abusadas-vitimadas são conduzidas como ovelhas pelos pastores (sim, o que não faltam são sacerdotes abusadores!) rumo ao sacrilégio da Virtude. (Claro, o Sexo é sempre visto como Pecado...)

As jovens inclusive debatem os papéis sociais – derivados dos 'sexuais' – da mulher enquanto 'sexo frágil', inferior ao homem, e de como é possível serem 'companheiras' e fiéis esposas aos seus maridos. Aliás, o que pode fazer uma esposa para agradar ao marido? (Marido que muitas vezes a moça não escolhia – era tudo negociado pelas famílias, com acordos pré-nupciais, etc) Quais os deveres e direitos das mulheres? E dos maridos? Como 'disciplinar' uma união basicamente 'sexual'? (Visto que assim que o homem se entediasse com a esposa, poderia seduzir outras, as amantes, as concubinas, geralmente humildes, servas, pobres, e mantendo a hipocrisia de sempre.)
A Narradora-vítima re-vivencia o sofrimento ao narrar, e ainda mostra um aspecto de 'torpor' diante do carrasco – o estar dominado precisa ser 'aceito' para o 'jogo sexual'. Diante do sádico o melhor a fazer é ser masoquista. Ela roga por piedade, mas precisa se submeter. Assim, como a vítima que se percebe lubrificada quando do ataque do violador, a jovem descobre que o 'jogo sexual' é o medo do passivo a excitar o desejo de dominação do ativo. Quando mais a jovem grita por piedade – mais o agressor se excita, se animaliza!

Dizemos 'ativo' e 'passivo' para não ficarmos apenas no 'macho' e 'fêmea' quando o assunto é sexualidade. Assim, no caso da sodomia, temos o fato de um macho dominar sexualmente outro macho. O primeiro é dito 'ativo' e o segundo, 'passivo'. E O 'passivo' pode ser, ao mesmo tempo, 'ativo' em relação ao uma mulher. É justamente essa confusão de 'papéis sexuais' que tumultua as orgias sádicas – não há mais fronteiras, 'ninguém é de ninguém', tudo é válido. Atividade e passividade se tornam um grande 'jogo' de ganha-perde. A violência sofrida pelo Eu - quando se é passivo – pode ser repassada ao outro – quando o Eu se torna ativo.

O escândalo advém de se mostrar a realidade, e isso Sade causou mesmo. Apresentou a mulher como um brinquedo perigoso para uma sociedade hedonista que desabaria numa revolução sangrenta. (Qualquer comparação com a Roma de Ovídio e Apuleio é mera coincidência?)

Assim a perversão não é a de Sade (que apenas deu livre vazão as suas fantasias), mas de todo um sistema de dominação que vicejou e ainda não se desfez. Vivemos nutrindo sonhos eróticos e temendo realiza-los. A mulher quer ser independente, mas ainda se submete aos desejos masculinos. O homem ainda se sente inseguro quando a mulher quer realizar as fantasias dela. Os casais ainda jogam o mesmo jogo de dominação que o Marquês apresentou alegoricamente tão escandaloso.

O mesmo Marquês de Sade que não acreditava muito nos slogans da Revolução burguesa - “Liberté, Egalité, Fraternité” - e que desprezava qualquer reforma política – que não desfaria a 'natureza humana' egoísta e perversa. Aliás, 'perverso' nem seria o termo aqui – o que se considera 'pervertido', para o Marquês é a pura essência do ser humano.

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sobre o Marquês de Sade
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sade
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link para obras de Sade (en français)
http://www.sade-ecrivain.com/
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contextualização histórica de Sade
http://www.klepsidra.net/klepsidra8/sade.html
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a peça Marat / Sade do autor alemão Peter Weiss
http://il.youtube.com/watch?v=aur-t-RtOJM&feature=related
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sábado, 14 de agosto de 2010

sobre ' Germinal ' de Émile Zola




Sobre o romance GERMINAL (1885)
do escritor francês Émile Zola (1840-1902)


Germinal: a Arte politizada enquanto Arte crítica


A Arte é o olhar crítico - não só arte engajada, mas um mostrador dos descontentamentos do povo. Ser um artista engajado é um prejuízo para a arte? Sim, subordinar a expressão artística a uma dada ideologia, jogo político. Não o dizer sobre a ideologia e a política. Mas a arte é antes de tudo EXPRESSAR algo de alguma FORMA, em som, palavra, música, objeto, formato, gestos,

Dizem que o Comunismo sufocou Maiakóvski. O Estalinismo certamente. Pois não houve sequer socialismo na URSS, como vai haver 'comunismo'? O socialismo nem o comunismo ou o anarquismo são sistemas perfeitos. São sistemas idealmente igualitários. Melhores que o capitalismo. (O socialismo teoricamente viável, e o comunismo e o anarquismo demasiado utópicos, onde tanto Marx quanto Bakhunin são sonhadores)

Mesmo num mundo socialista a arte deve ser autônoma e crítica. 'Arte pela arte' não existe: existe arte feita por alguém para um público. Um público que será crítico e parâmetro. Um público que poderá ser despertado ou hostilizado. A simples escolha de uma temática já é política. Pode-se falar sobre borboletas, mas se falarmos de a extinção de borboletas por causa do desmatamento, surgem as perguntas: quem está derrubando as árvores? Quem vende e quem compra os troncos? Quem tem o direito de explora um meio ambiente?

Pois bem, um tema que poucos escritores abordavam com profundidade, em pleno século 19, com as raras exceções de Victor Hugo, Dickens, Dostoiévski, é a condição da classe trabalhadora. Os romances descreviam ambientes burgueses, festas de debutantes, heróis aristocratas, generais em cavalos brancos, e nada a dizer sobre a vida das copeiras, dos mordomos, dos escudeiros. E falar da classe proletária, era falar de exploração, lei da oferta e da procura, lei do salário, o conflito entre o trabalho e o capital, descrever a miséria. Ou seja, abrir mão do 'glamour', dos salões sociais, criar uma escrita um tanto quanto crítica e indigesta, como fazia Dostoiévski com seus "Crime e Castigo" e "Os Possessos", e depois Górki e Émile Zola.

Quando Émile Zola entendeu a pretensão de Balzac com suas obras em recortes verticais na sociedade francesa, com personagens de todas as classes sociais e regiões, e sentiu a complexidade das descrições de Stendhal, contudo mais 'enxutas' que as longas inserções e líricas passagens românticas de Victor-Hugo (nos clássicos "Les Miserables"/Os Miseráveis, e "Notre Dame du Paris"), ele elaborou uma nova linha de escrita, um estilo profundo, mas sem rebuscamentos, explicando mais sem ser didático, deixando as personagens interpretarem os conceitos, sem precisarem ficar expondo tudo em longos diálogos.



(O estilo de Zola : no século 20 temos um Truman Capote. Cru e curto. Frases laminares. Sem frescuras. Será que Capote era leitor de Zola?)

A fala popular foi utilizada, mostrando o cotidiano das classes menos educadas, que eram invisíveis aos burgueses de Paris, que viviam num mundo de luxo e gastança, indiferentes às vidas dos mineiros que extraiam o carvão e o gás que aqueciam e iluminavam as belas mansons dos boulevards!

Germinal faz parte da série de vinte romances Les Rougon-Macquart (escrita de 1871 a 1893), com o subtítulo "História natural e social de uma família no Segundo Império", no período até a derrota francesa para os prussianos-germânicos em 1870, onde as condições do meio e a fisiologia determinam as ações humanas, seus conflitos familiares e sociais.

Da série de romances destacam-se três, "L'Assomoir" (1877) onde são retratados os pais de Étienne Lantier, o protagonista de "Germinal", além da brutalidade de seu irmão Jacques, descrita em "A Besta Humana/La Bête humaine" (1890), onde as condições internas naturais se somam as condições externas do ambiente físico e social para determinarem as ações das personagens. ( "O homem é o que ele come", escreveu Feuerbach, num radical materialismo.)
Pouco espaço para abstrações e viagens existenciais (ou existencialistas) : as personagens estão em ação, pouco pensam. Reagem aos instintos, lutam pela sobrevivência. Não há lacunas para a metafísica dos intelectuais de torres de marfim. O retrato é cru e áspero. Deglutimos sem vinho o pão duro e escuro da existência.

Em Germinal há o povo faminto das minas e os burgueses indiferentes nas mansões. Assim um povo da superfície e um povo do subterrâneo. O povo de cima que explora o povo de baixo.(o que lembra algumas 'distopias', tais como "A Máquina do Tempo/The Time Machine", 1895, romance de H. G. Wells, onde há um povo evoluído, os Eloi, e um povo bárbaro, os Morlocks, e também o filme "Demolition Man", 1993, do diretor Marco Brambilla, com Stallone, Snipes e Sandra Bullock, onde no futuro a cidade de Los Angeles (San Angeles, em 2032) tem um povo de educados cidadãos numa maquilagem fascista, mantendo a distância, nos subsolos, uma turma de marginais, punks, desabrigados, todos os excluídos do submundo. Em ambas as distopias (e também em "Brave New World", um pouco diferente) existe a beleza porque existe a pobreza mantida oculta - alguém precisa fazer o trabalho sujo: os miseráveis sem opção. Ou trabalham, ou morrem de fome.

(Na utopia de Marx e Engels, é diferente. Não há uma divisão de trabalho. Exceção talvez para os médicos, um serviço altamente especializado. Todos os outros trabalhos podem ser coletivizados em rodízio. Um dia o cidadão é professor, no outro dia é policial, e noutro é gari. Sem problemas. Ele não será nem professor, nem policial, nem gari. Será um cidadão que executa em rodízio as funções de ensinar, vigiar e limpar. Não terá uma personalidade ligada a uma função. Será um ser humano capaz de executar várias funções para o bem coletivo.)


Para retratar (e não ficar explicando), Zola ressalta características nas personagens, que passam agir por seus condicionamentos, ou guiados por idealismos. Assim o velho mineiro Boa Morte (Bonnemort) é o resignado, o cético, acha que a exploração nunca acaba, "do jeito que sempre foi, sempre será". Enquanto o taverneiro (ex-operário) é um reformista, fazendo pressão para que os patrões concordem em melhorar as condições do povo, sem acreditar que o povo possa chegar ao poder. Mas o maquinista russo Suvarin é o anarquista, seguidor de Bukharin, profeta da luta contra os poderosos, "destruir tudo para mudar tudo", enquanto o retórico Pluchart é o representante da Internacional Socialista, tentando organizar a revolução (mas a Internacional se destrói internamente com as querelas entre socialistas e anarquistas.)


Meio a todos esses obcecados surge um Étienne Lantier, em busca de trabalho, sem pão e sem abrigo. Trabalha por necessidade e logo percebe a exploração descarada que suga a saúde e a dignidade dos mineiros. Passa a ser um revolucionário, que tenta entender Marx, e também Proudhon, Lassalle, de forma a conquistar a liderança dos explorados, no sentido de enfrentar os patrões. Estes são mostrados em suas mansões, em suas vidas frívolas, em infidelidades e caprichos, em caridades pseudo-religiosas, em concorrências, enquanto o povo não tem outra opção senão ser explorado.

Zola escreve fazendo um 'recorte na sociedade', de cima para baixo, de baixo para cima, as ações que determinam outras ações, a 'luta de classes' sem abstrações! Ricos, classe média, pobres, todos interligados num jogo onde poucos ganham, e muitos perdem. O mesmo que Balzac ousou, o mesmo que Flaubert provocou, causando incômodos em muitos 'fidalgos'. Aqui no Brasil tal Literatura também causou polêmica. São exemplos Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo (a fase "O Tempo e o Vento"), Cyro dos Anjos (com o famoso "Montanha"), onde os entrelaçamentos entre exploração e política, pobreza e hipocrisia, ficam claramente expostos. Chagas à mostra.

Os patrões igualmente são representantes dos 'estilos patronais'. Deneulin (da mina Jean-Bart) é o patrão 'paternal', que coloca a culpa sobre a concorrência, enquanto Hennebeau (da mina Voreaux, junto a Montsou) é o 'técnico', que diz nada decidir, também 'recebe ordens'. Enquanto Deneulin tenta 'emocionar' os empregados com a sombria ameaça de 'falência', outros patrões empregam a tática da 'cooptação': atrair o líder grevista, transformar o revoltado num 'pelego', na figura premonitória do 'sindicalista', como é caso do mineiro Chaval, miserável igual aos outros, mas devido a uma rivalidade com Étienne (pois ambos amam a mesma mocinha, a Catherine), não hesita em manobrar os mineiros segundo os desejos dos patrões.

Mas o ápice do romance é quando a greve se espalha na região mineradora. Os operários inflamados pela revolta se voltam contra os que insistem em trabalhar (os 'traidores') e percorrem as minas em atos de vandalismo, quando a violência da revolução escapa ao controle dos próprios revolucionários - subitamente Étienne percebe esta verdade. Pressionado pelo moderado Rasseneuer e pelo exaltado Suvarin, o líder Étienne precisa lutar contra as divisões dentro do próprio movimento operário. Principalmente contra os operários que seguem cegamente as ordens dos patrões (o exemplo é Quandieu, da mina Mirou), que fragilizam a luta em prol da coletividade.

A greve dura mais de 2 meses. As provisões dos mineiros se esgotam, o dinheiro no caixa coletivo acaba, a fome e a miséria se mostram vergonhosamente, os operários afundam no rancor. Enquanto Étienne luta para manter o movimento, luta consigo mesmo para garantir a liderança - acha que o povo não está preparado, que o povo é violento, é atrasado. Em conversas com Rasseneuer e Suvarin, o jovem Étienne vai percebendo que a edificação do socialismo só é possível com a educação dos empregados, no sentido de eles mesmo assumirem a produção, serem os patrões de si mesmos, os administradores do coletivo.

Étienne medita, ainda acreditando que "a resistência era possível, que o capital iria destruir a si próprio diante do heróico suicídio do trabalho", enquanto se esconde devido a forte repressão das forças militares, vendo nos soldados "os homens do povo lutando contra o povo", e em como atrair os soldados para a luta proletária, "Como seria fácil a revolução triunfar se o exército passasse para o lado do povo! Bastava que o operário e o camponês, nas casernas, se lembrassem da sua origem." Uma união de soldados, operários e camponeses que foi vitoriosa na Revolução Russa - com a força dos Sovietes - até ser sufocada pela contra-revolução burocrática estalinista.

Aí sim certamente, a Revolução devorou Maiakóvski, inevitavelmente. Escrever para as massas seria 'escrever igual às massas' ou procurar aumentar o nível cognitivo-simbólico do povo? Maiakóvski era difícil para o povo? Zola queria ser compreendido pelo povo? A Literatura enquanto espelho - o naturalismo enquanto 'retrato da crua realidade' - sempre sofreu com a incompreensão do próprio povo (enquanto os burgueses, os consumidores de livros, passam de um estilo a outro), uma vez que - como provam as novelas 'globais' das oito horas - o povo prefere a 'água com açúcar' da mesmice.

Sem educação dos cidadãos para a responsabilidade e para autonomia não haverá sequer o 'eleitor' das ditas democracias liberais, mas um mero 'aplicador de impressões digitais em cédulas eleitorais', um autômato guiado pela programação televisiva e pela propaganda oficial.

O interessante em Germinal é que Zola deixa um final onde ainda viceja, mesmo a brotar no rancor, uma pálida esperança: o povo está consciente da luta.


Jan/09



Por Leonardo de Magalhaens
Escritor, tradutor

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