quarta-feira, 25 de agosto de 2010

sobre a obra do Marquês de Sade







Sobre a obra do Marquês de Sade (1740-1814)
pensador e autor licencioso francês

Quando a Literatura revela o irracional e o perverso

O autor maldito Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814, autor licencioso do século 18) é uma das figuras mais controvertidas de qualquer Cânone. Seria ele um mero pornógrafo ou um autor a frente da própria época? Um louco desvairado ou um precursor da 'liberação sexual' que vivenciamos no século 20?

Suas obras “Justine”, “A filosofia na alcova” e “Os 120 dias de Sodoma” apresentam uma linguagem alegórica e realista, psicológica e debochada, demasiadamente humana e satírica, onde as paixões mais sórdidas e os pensamentos mais cínicos são explicitados, entre uma luxúria e outro, uma sacanagem e outra.

Sacanagem em todos os sentidos. O sexo é mais um dos tantos modos de dominação do Outro. Usar e abusar do Outro enquanto Coisa, enquanto Corpo. A racionalidade não mais é que um 'verniz' sobre o animal cheio de desejos, que se diz Humano e Racional. A insanidade é um bem-comum compartilhado por todos, sejam ricos sejam pobres, sejam nobres sejam plebeus.

O duelo Razão X Loucura, ou Moderação X Luxúria, é o leitmotiv da obra de Sade, a partir de então relacionado a todo tipo de Excessos, Exageros, Alegorias Sexuais, Pornografia, Sadomasoquismo, Surrealismo, em suma, todo o lado 'perverso' que a Racionalidade Instrumental procura dominar/ abafar.

Por este desvelar a 'nossa natureza sombria' (que a Sociedade doma, ao contrário de perverter, como dizia o filósofo Rousseau, defensor do 'bom selvagem') o Marquês de Sade seria merecedor de figurar no Cânone? De ser um precursor do psiquismo (a 'dissecação psíquica') de Freud, então criador da Psicanálise? Até onde podemos 'reabilitar' Sade sem caírmos na 'perversidade'?
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A Sexualidade perversa

Uma das questões levantadas pelos leitores de Marquês de Sade é se a Sexualidade é violência. Ou melhor, se a sexualidade é uma violência consentida. Consentida por uma das partes – a saber, a mulher.

Considerando-seque a fêmea passa a tolerar o desejo do macho e se submeter aos desejos deste. Isso ao escolher um dentre os machos disponíveis e entregando-se a ele, desde que este a proteja da potencial ameaça física dos outros. Ou seja, aceita a violência de um só, evitando assim a violência possível sob o capricho dos outros. A sexualidade feminina, assim, seria co-ordenada de fora- e a partir do desejo masculino- e fruto de um medo ancestral- o de ser violentada.

Uma vez que a carga de violência no ato sexual é permitida pela fêmea, tal fardo é transmutado em prazer, e até ternura, A mulher consente, tolera, com sutil condescendência, os impulsos lúbricos do homem, desde que este a proteja e conceda atenção. A mulher, assim, dispensa um ‘favor sexual’ ao homem, sendo permissiva até um limite de dignidade – que é flexível.

Até porque, para o Marquês, o ato sexual é uma relação de dominação. Sade traz para o plano sexual as relações de poder mestre-escravo, num momento de turbulência política, quando os nobres se percebiam ameaçados pelos burgueses, agora assumindo a dominância política, além da econômica.

Sendo o ato sexual, sutilmente até, um ato de dominação, a característica perversa é salientada. Perversa no sentido de não-convencional, não-aprovada, desviada de um objetivo reprodutivo. Sexo enquanto afirmação, busca de prazer, troca de fluidos. Em gradação até o sexo enquanto humilhação do outro. Pois no sadismo o prazer do Eu é mais importante que o prazer do Outro, e até além, o eu sente prazer justamente com o desprazer (dor) do Outro. O Eu domina e o Outro se submete. Um é o mestre, e o Outro é o escravo. (A mesma dialética estudada pelo filósofo alemão Hegel, em “A Fenomenologia do Espírito”, 1807)
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'Perverso' é então todo desvio de um padrão, podendo ser uma posição excêntrica de coito até uma modalidade de tortura física e psíquica. E Sade sabia que para cada mestre, um potencial torturador, havia vários servos, os potenciais torturados. Ou como se diz, os sádicos e masoquistas que se entendam.
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Alegorias da Dominação

Em suas alegorias, sutilmente desmascarando a hipocrisia, Sade causou polêmica, e a sociedade logo prontificou-se a rotulá-lo, visando sua anulação. Nada de retirar o véu sobre as convenções, diziam. O Marquês que vá se entender com os loucos. Mas todos entendiam que as alcovas de seus escritos estavam as representações de várias alcovas reais.

Assim como Ovídio é considerado o ‘imoral’, acima de depravados como Petrônio e Apuleio, por desafiar os padrões da época (que era realmente perversa e imoral) ao revelar o que se ocultava sob o verniz. Nunca denuncie o que todos desejam ocultar, eis um conselho de amigo. “O Asno de Ouro” seria queimado ao lado de “Dias de Sodoma”, tudo para resguardar a 'etiqueta social' e os 'bons costumes'.

Aquela concepção de jovens ingênuas e, ao mesmo tempo, lúbricas, traz a imagem da mulher-menina, da potencial senhora dentro de cada donzela seduzida. Um temor masculino de que a senhora ali adormecida desperte para dominar o dominador. E as figuras do sedutor se mostram as mesmas, ora um sacerdote (possuindo a pupila, ou uma freira juvenil), ora um nobre (seduzindo uma serva, ou a filha de um vassalo), ora um cavaleiro (possuindo donzelas em suas andanças). Todas as encarnações do desejo patriarcal de dominação, onde o homem manda e a mulher obedece.

A mocinha Justine é essa imagem da mulher dominada, sempre na ignorância, e sempre abusada, vitimada pelos desejos e perversões masculinas. A obra “Justine ou os Infortúnios da Virtude" (Justine ou Les Malheurs de la Virtu)”, publicada em 1791, tem algo daquele estilo panfletário, alegóricos, das obras de Rousseau e Voltaire – numa tradição satírica que remota a Rabelais e Swift. Onde as voltas e revoltas da linguagem – e do estilo - estão à serviço de algum 'pensamento', algum ensino moral. Assim o Cândido tem como título alternativo “O Otimismo”, enquanto apresenta justamente uma série de desgraças (naufrágios, terremotos, traições...).

Que sofrimentos atingem Justine? A própria condição de mulher é o portal para o sofrer – ser um corpo a servir às lascívias masculinas, sendo possuída como 'coisa', não entendida como 'pessoa'. Se o jovem Werther (aquele que também sucumbe de 'sofrimentos', na obra de Goethe, “Sofrimentos do Jovem Werther”, 1774) O leitor ouve a narração da jovem, que não poupa imagens de humilhação e denúncias de crueldades. O desejo masculino sendo movido – e excitado – pelo sofrer da mulher.

A jovem Justine é abusada por aqueles que deveriam zelar por sua educação e bem-estar. Assim muitas crianças abusadas por familiares e parentes que aparentemente são dignos de confiança – e usam justamente esta confiança para humilhar e abusar sexualmente das crianças. Assim os educadores, os padres, os diretores de orfanatos, as autoridades - que aparentemente são inofensivas – mostram que a perversidade está dentro – quando menos se espera a Razão é vencida pelo Desejo desvairado e eis o crime – o fim da Virtude.

Entre cada abuso, a Narradora-vítima descreve os tipos masculinos que abusam de sua juventude, assim como nas obras de Narrador (não-personagem) temos verdadeiras digressões filosóficas sobre a 'natureza humana' que a 'civilização' cristã e repressora não conseguiu destruir – no máximo abafar. Agora os desejos abafados ressurgem ainda mais exagerados e letais. Represado antes, agora pervertido. A sexualidade não é mais um 'encontro' com o Outro – mas a dominação do Outro. (Destaca-se “La Philosophie dans le boudoir” com toda uma estética não-ética, imoral, do Outro enquanto objeto do Desejo – o Outro a ser instrumentalizado para se conquistar o Prazer. E toda uma 'filosofia' para justificar o prazer que resulta da dominação...!)

A própria condição da mulher – imagem-mor da 'passividade' – é percebida pela jovem Justine ao observar o comportamento das demais jovens submetidas igualmente aos abusos. Elas reagem com um 'comportamento de ovelhas' como cúmplices diante do sofrer das outras. A 'miséria ama companhia' diz o ditado, e é verdade aqui. Eu sou abusada, mas não é apenas eu, devem pensar as ninfetas violentadas. E a coletividade das abusadas-vitimadas são conduzidas como ovelhas pelos pastores (sim, o que não faltam são sacerdotes abusadores!) rumo ao sacrilégio da Virtude. (Claro, o Sexo é sempre visto como Pecado...)

As jovens inclusive debatem os papéis sociais – derivados dos 'sexuais' – da mulher enquanto 'sexo frágil', inferior ao homem, e de como é possível serem 'companheiras' e fiéis esposas aos seus maridos. Aliás, o que pode fazer uma esposa para agradar ao marido? (Marido que muitas vezes a moça não escolhia – era tudo negociado pelas famílias, com acordos pré-nupciais, etc) Quais os deveres e direitos das mulheres? E dos maridos? Como 'disciplinar' uma união basicamente 'sexual'? (Visto que assim que o homem se entediasse com a esposa, poderia seduzir outras, as amantes, as concubinas, geralmente humildes, servas, pobres, e mantendo a hipocrisia de sempre.)
A Narradora-vítima re-vivencia o sofrimento ao narrar, e ainda mostra um aspecto de 'torpor' diante do carrasco – o estar dominado precisa ser 'aceito' para o 'jogo sexual'. Diante do sádico o melhor a fazer é ser masoquista. Ela roga por piedade, mas precisa se submeter. Assim, como a vítima que se percebe lubrificada quando do ataque do violador, a jovem descobre que o 'jogo sexual' é o medo do passivo a excitar o desejo de dominação do ativo. Quando mais a jovem grita por piedade – mais o agressor se excita, se animaliza!

Dizemos 'ativo' e 'passivo' para não ficarmos apenas no 'macho' e 'fêmea' quando o assunto é sexualidade. Assim, no caso da sodomia, temos o fato de um macho dominar sexualmente outro macho. O primeiro é dito 'ativo' e o segundo, 'passivo'. E O 'passivo' pode ser, ao mesmo tempo, 'ativo' em relação ao uma mulher. É justamente essa confusão de 'papéis sexuais' que tumultua as orgias sádicas – não há mais fronteiras, 'ninguém é de ninguém', tudo é válido. Atividade e passividade se tornam um grande 'jogo' de ganha-perde. A violência sofrida pelo Eu - quando se é passivo – pode ser repassada ao outro – quando o Eu se torna ativo.

O escândalo advém de se mostrar a realidade, e isso Sade causou mesmo. Apresentou a mulher como um brinquedo perigoso para uma sociedade hedonista que desabaria numa revolução sangrenta. (Qualquer comparação com a Roma de Ovídio e Apuleio é mera coincidência?)

Assim a perversão não é a de Sade (que apenas deu livre vazão as suas fantasias), mas de todo um sistema de dominação que vicejou e ainda não se desfez. Vivemos nutrindo sonhos eróticos e temendo realiza-los. A mulher quer ser independente, mas ainda se submete aos desejos masculinos. O homem ainda se sente inseguro quando a mulher quer realizar as fantasias dela. Os casais ainda jogam o mesmo jogo de dominação que o Marquês apresentou alegoricamente tão escandaloso.

O mesmo Marquês de Sade que não acreditava muito nos slogans da Revolução burguesa - “Liberté, Egalité, Fraternité” - e que desprezava qualquer reforma política – que não desfaria a 'natureza humana' egoísta e perversa. Aliás, 'perverso' nem seria o termo aqui – o que se considera 'pervertido', para o Marquês é a pura essência do ser humano.

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sobre o Marquês de Sade
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sade
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link para obras de Sade (en français)
http://www.sade-ecrivain.com/
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contextualização histórica de Sade
http://www.klepsidra.net/klepsidra8/sade.html
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a peça Marat / Sade do autor alemão Peter Weiss
http://il.youtube.com/watch?v=aur-t-RtOJM&feature=related
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