terça-feira, 9 de abril de 2013

sobre O LOBO DA ESTEPE - de Hermann Hesse / P1





Sobre “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927)
do escritor alemão Hermann Hesse [1877-1962]
(da trad. de Ivo Barroso)


A busca de si mesmo enquanto jornada literária


A Época

A contracultura foi um movimentou que atingiu um ápice nos anos 1960, com as revoltas da juventude, das massas de estudantes em grandes cidades e capitais do mundo ocidental. Mas antes deste ápice existem várias preparações, desde os horrores das crises econômicas e guerras mundiais, até as hegemonias dos tabus que frustravam sexualmente as novas gerações.

Mas o descontentamento com a cultura ocidental vinha desde meados do século 19, com as descobertas do orientalismo, o mundo dos brâmanes e budistas, quando os britânicos se dedicaram à colonização da Índia, quando filósofos se voltaram para leituras de clássicos orientais, vide G. W. Hegel, A . Schopenhauer, F. Nietzsche, estes inclinados aos pensamentos de Buda, o Iluminado. Um olhar sobre o estranho e exótico, na forma de pensar o irracional, o que não era parte do pensar acadêmico eurocêntrico.

Na América outras mentes procuraram alternativas, vejamos R. W. Emerson, H. D. Thoreau, W. Whitman, arautos da vida livre, da integração com a Natureza e repúdio ao mundo de consumo e competição. Na Rússia, sob a opressão dos Czares e a intromissão dos ocidentais, haviam escritores que apoiavam ideias eslavófilas e libertárias, ora místicas ora utópicas, basta lermos L. Tolstoi, F. Dostoiévski, M. Bakunin, etc. Como um antídoto ao capitalismo competitivo do mundo ocidental que ameaça a vida de um país ainda agrário e feudal.

No início do século 20 vários autores já digeriam em suas obras os ideais libertários, mesclados de orientalismo (principalmente budismo) que eram motivo de estudos dos filósofos de meio século antes. Assim se explicam as obras de surrealistas e expressionistas, que ironizam o cientificismo e adotavam temáticas místicas, contra o pensamento racionalizante (ou razão instrumental) do mundo ocidental. Era mais uma busca de alternativas, vivências outras, meio a dominação do capitalismo que mercantilizava a vida humana sem hesitações.

Entende-se assim a obra “O Lobo da Estepe” em pleno período entreguerras, com uma mensagem que seria lida durante todo o século 20 e teria um período de plena 'sensação' entre os arautos da contracultura cerca de meio século depois. Lido ao lado de “A Náusea” (J-P. Sartre), “Viagem ao Fim da Noite” (L-F. Céline), “O Estrangeiro” (A. Camus), “O Processo” (F. Kafka), “A Condição Humana” (A. Maulraux), “Admirável Mundo Novo” (A. Huxley), “ na Estrada / On The Road” (J. Kerouac), “O Livro do Desassossego” (Bernardo Soares/ Fernando Pessoa), dentre outros títulos que tematizam a solidão humana no mundo de despersonalização / desumanização em prol do lucro de uma elite hipócrita e mesquinha.

Apareceram as figuras dos outsiders, seres sem rumo, que sabiam apenas negar a ordem burguesa, em desejo de destruí-la, quando não se autodestruíam. Podiam ser os andarilhos, os hipsters (ou hippies), os Beats ou beatniks, os dharma bums, os neomísticos, que perambulavam às margens da sociedade de consumo. O ser consciente que anda solitário no seio das cidades populosas, ou nas orlas dos desertos, e observa as incongruências da vida moderna – cheia de promessas e, portanto, decepções, insatisfações.




A Obra

O prólogo de “O Lobo da Estepe” é assinado pelo tradutor Ivo Barroso, que destaca os focos narrativos diversos dentro da obra, que é múltipla em perspectivas e leituras, sem que necessariamente identifiquemos o autor com o protagonista ou com o narrador,

É curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que, na figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe, relata o breve conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do próprio personagem, Harry Haller, cujo nome aliterativo já é uma insinuação de ser ele o alter ego do escritor. […] E a terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagandista ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico e contém o estudo do comportamento de um 'lobo da estepe', que é o retrato em corpo e alma inteiros dele mesmo.” (pp. 7-8)

O tradutor Barroso aponta ainda elementos de surrealismo (antes da vanguarda, daí ser avant la lettre), de freudismo, de existencialismo, com um protagonista antibelicista, ecológico, libertário, ainda que com seus preconceitos, tudo isso num romance que é um Bildungsroman [romance de formação] ao contrário. Dentro da cultura alemã (ou melhor, germânica, para incluirmos a austríaca e a suíça) a presença iconoclasta de Lobo da Estepe é inconteste, ainda mais se comparadas às outras obras da época, ora de discurso esquerdista, ora fanaticamente nacionalista-racista. A obra de Hesse é crítica, meditativa e pluralista. Visa fazer pensar, não doutrinar.


No aspecto narrativo, realmente várias vozes se articulam, e somente uma delas é a do protagonista, que se crê o ‘lobo da estepe’. Temos o 'editor', na condição de sobrinho da senhoria de Haller, considera o protagonista um sujeito excêntrico e inclassificável, com bom comportamento, mas como se estivesse 'atuando' para os demais. É um homem já vivido em plena solidão, com poucos amigos, e vida social nula. Vive entre livros e leituras, observando a vida e tolerando o mundo burguês. Na verdade, tolerando e admirando o mundo burguês, ou pequeno-burguês, onde foi criado. Um pensador que vem criticar a sociedade ocidental europeia na qual foi criado.

Tal dualidade livre-pensador versus mundo burguês, que é problematizado pelo Harry Lobo da Estepe, está igualmente dramatizado em “Demian”, livro escrito em 1919, uma década antes, onde o protagonista-narrador Emil Sinclair se mostra consciente de suas diferenças quanto a própria família, ao mundo cômoda do lar, onde passou toda a infância. Revela o editor, em Lobo da Estepe: “De um modo geral, deu-nos a ideia de alguém que tivesse chegado de um mundo estranho, talvez de países de além-mar, e encontrasse aqui tudo perfeitamente agradável, mas ao mesmo tempo um tanto cômico. Era, não se pode negar, cortês e até mesmo amável;” (p. 15) e também sobre seu caráter excêntrico, em

Quando se falava com ele e, o que não era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, de vez que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade.” (pp. 18-19)


E vejamos esta dialética em “Demian”, onde o narrador Sinclair recorda-se de sua educação numa família burguesa, ele, agora um livre-pensador, enquanto filho transviado do mundo burguês, é fascinado pelo mundo não-burguês, não-familiar:

Às vezes, me dava conta de que meu objetivo na vida era o de chegar a ser como meus pais, tão claro e puro, tão reflexivo e ordenado. Mas o caminho que conduzia àquela meta era demasiadamente comprido; para chegar a ele, era necessário passar por muitas aulas, havia que sofrer e estudar para muitas provas e muitos exames; além disso, o caminho seguia sempre bordejando aquele outro mundo mais escuro e às vezes nele penetrava, não sendo de todo impossível que nele alguém permanecesse e sumisse em suas sombras proibidas. Havia histórias assim, de filhos transviados, que eu lia com verdadeira paixão.” (p. 21) e “Eu me considerava muito mais próximo do mundo obscuro, e o contato com o mal se fazia sentir em mim muitas vezes por uma dolorosa angústia.” (Demian, p. 22, trad. Ivo Barroso)



A partir do olhar e dos comentários do editor temos uma apreensão da singularidade e do sofrimento que caracteriza o protagonista, antes que este mesmo narre sua história,

Convenci-me de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido das várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era o desprezo do mundo, mas antes o desprezo de si mesmo, pois, podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.” (p. 21)


e também, sobre o convívio social,

No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amá-los, para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o 'Amarás teu próximo!' estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.” (p. 22)


Haller despreza em si mesmo a figura do burguês, o homem ‘pouco-a-pouco’ (como disse também o autor brasileiro Mário de Andrade, em sua “Ode ao Burguês”, “É sempre um cauteloso pouco-a-pouco”), esta figuração do burguês enquanto mediano, medíocre, temeroso de ações radicais, para o benefício ou para o malefício, está mais explícita, mais adiante, no folheto “só para os loucos”,

O 'burguês', como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. (…) O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio-termo. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, (…) em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu.” (pp. 62-63)


Percebemos uma certa ambiguidade de Haller em relação ao mundo burguês – admiração e desprezo – que demonstra um duplo movimento de convívio e de isolamento, “Mas cada vez mais pude ver que, na realidade, nosso pequeno mundo burguês era querido e admirado da distância de seu espaço vazio, da sua estranheza e da sua condição de lobo, como algo sólido e seguro, como algo distante e inatingível para ele, como o lar e a paz, aos quais nenhum caminho o poderia levar.” (p. 27) e diante do curioso burguês, o próprio Haller se denomina 'Lobo da Estepe', o que muito admira o 'editor', “Um lobo da estepe, perdido em meio à gente, à cidade e à vida do rebanhonenhum outro epíteto poderia definir com mais exatidão aquele ser, seu tímido isolamento, sua natureza selvagem, sua inquietude, seu doloroso anseio por um lar, sua falta absoluta de um lar.” (p. 28)


O ‘editor’ encontra o manuscrito do próprio Haller – não sabe o quanto ali é ficcional – e dentro da narrativa está o panfleto “Tratado do Lobo da Estepe para loucos”, pois tem noção do que seja viver sem aprovação social – o grande temor do burguês é ser visto como insociável – e sabe sobre filósofos, que ao pensarem demais, se distanciaram da vida cotidiana. Vivem em conflito com a própria época, encontram incompreensão e inimizades, assim foi com o pensador Nietzsche, que filosofava com o martelo,

Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam perdidas para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da mesma maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar sozinho e incompreendido é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres humanos.” (p. 33)

Em seguida, a narrativa passa para a 1ª pessoa na segunda parte, quando as anotações de Harry Haller são editadas pelo sobrinho da senhoria – assim tudo até agora foi apenas o “Prefácio do Editor”, onde uma voz fala sobre o 'Lobo da Estepe', que agora terá direito a expressar-se por si mesmo. Haller deseja uma vida com vivacidade, entusiasmo, euforia, desregramento, até selvageria, não uma comodidade de moral burguesa,

arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo (…) pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem-cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.” (p. 37)

O ‘Lobo da Estepe’ sente-se pouco à vontade no mundo burguês, local de hierarquia e menosprezo, “o mundo dos homens e da chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética” (p. 36) onde o comodismo entorpece as mentes, “mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante.” (pp. 36-37)

O protagonista odeia o mundo burguês, mas vive meio ao 'ar decente' da burguesia, que muito lembra o ambiente da infância (aqui o lar é um símbolo de acolhimento e cuidado, que o adulto perdeu ao perambular pelo mundo). Ele diz não lamentar o passado, mas é sensível sua perda, quando compara o hoje com o ontem. Parece sempre que o tempo de outrora foi melhor, havia música erudita, e não o embalo do jazz, havia a arte erudita não as vanguardas iconoclastas, havia um tempo de leitura e meditação e não a correria em busca do lucro. Sobre tais aspectos parece-nos que há um romantismo reacionário no 'lobo da estepe', que não adere a qualquer projeto de luta coletiva (em prol do socialismo, por exemplo).

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezesaquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.” (p. 41) mas o 'Lobo da estepe' não é apenas um selvagem, antes um nostálgico, até um visionário ou místico, “Quem tinha o coração repleto de seu encanto num mundo a elas estranho?Quem lia à noite, sobre o Reno, a inscrição que as nuvens formavam na névoa? O Lobo da Estepe. E quem buscava entre os escombros da vida o seu significado esvoaçante, quem sofria com a aparente insensatez, quem vivia com o que parecia louco, quem esperava em segredo no último e confuso abismo a revelação de Deus e sua vinda?” (p. 46)

É um visionário solitário e amargurado que não suporta o mundo moderno, “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.” (p. 48) É o louco enquanto apreciador da cultura, a autêntica, não o que chamam modernamente de cultura, assim a contracultura seria a 'cultura alternativa' contra Cultura (Kultur) oficial, tradicional, que tornou-se parte da mesmice cotidiana. “O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, morto muito, e considerado vivo e verdadeiro por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?” (p. 49)

A autêntica cultura está no passado? Ou numa superação da atual cultura? Afinal, tanto anarquismo quanto futurismo manifestavam o desejo de queimar as bibliotecas, e começar tudo de novo. A cultura – nossa civilização ocidental – está caduca e hipócrita, não é realmente a imagem que faz de si mesma, assim em decadência,

Nosso mundo cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e Sócrates, ali estavam Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam de nomes meio apagados numa placa de metal enferrujada, rodeada de assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo para continuar acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para eles; que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras de tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só sabiam em vez disso rodear o túmulo, gesticulantes e forçados.” (p. 88)



Assim é a visão do sujeito em relação à sociedade, mas qual a visão do indivíduo sobre si mesmo? No opúsculo “Tratado do Lobo da Estepe” o protagonista toma contato com um 'estudo' sobre ele mesmo, onde percebe a dualidade de alma, meio humana, meio lobo, ou seja, civilizada e selvagem, no mesmo corpo. Os instintos todos domesticados, e anestesiados, que propiciam a inserção do ser humano no meio social, na cultura. Domar o corpo para melhor desenvolver o espírito – eis o que criou as repressões e sublimações, apontadas por Sigmund Freud. Contudo, temos um 'tênue verniz de civilização', pois os instintos podem explodir em transgressões, crimes, violências, guerras.

O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro.” (p. 52) Eis a dualidade que ele sofre dentro de si, onde o lado civilizado é ironizado pelo lado selvagem, e o selvagem é menosprezado pelo civilizado, mas ambas não se separam, é uma 'natureza dual', apenas se manifestam alternadamente, em comportamento excêntrico, ora amável, ora agressivo, enquanto no círculo social, alguns gostam do lado humano, outros preferem o lado selvagem, e o duelo continua, sem um vencedor. Devido a sua alma com 'dupla-face', divina e satânica, Haller poderia ser um artista, como muitos excêntricos são; mas o protagonista aqui é um pensador solitário, nostálgico de uma cultura erudita que é gradativamente eclipsada pela massificação que hoje denominamos cultura pop.


A interessante obra do escritor britânico W. Somerset Maugham, “O Fio da Navalha”, de 1944, é também um romance sobre alguém excêntrico que busca iluminação espiritual numa modernidade materialista. Um jovem que serviu na aviação durante a Primeira Guerra Mundial, traumatizante como todos sabem (basta ler outras obras sobre o massacre europeu, tais como “Nada de Novo no Front”, de Remarque, ou “Viagem ao Fim da Noite”, de Céline) e que deixa um vazio na alma do cidadão quando retorna ao lar, nos Estados Unidos.

O enredo trata do comportamento e viagens deste jovem protagonista, conhecido do narrador-autor, que mostra o quanto a excentricidade de um jovem, Larry Darrell (não tem mais que vinte anos) tão promissor faz com que ele se afaste de seu círculo social, desista de um casamento, com uma prendada noiva de classe alta, também ignore propostas de emprego, a deixar-se dedicado às leituras de psicologia e espiritualidade, até seguir em viagens, para conhecer, através da Europa, ou para meditar, até o interior da Índia, onde será discípulo de um guru. Os outros personagens, ao redor do protagonista ('um igual a qualquer outro' pois 'ele era tão normal antes da guerra!'), não entendem porque o rapaz não se entrega a vida comum ('seguir o caminho que os outros trilham'), ou seja, viver para o lucro e o progresso da nação norte-americana.

A vida de perambulações, de país a país, na Europa do pós-Primeira Guerra, trabalhando em fazendas, dormindo em estábulos, percorrendo estradas meio aos bosques, é uma vida que fora ansiada por um Thoreau e seria idealizada por um Kerouac. A busca de santidade meio ao mundo moderno é insustentável, logo se deve entregar ao sacrifício de abandono, de desapego e de meditação, não exatamente em mosteiros, mas meio aos simples e humildes, os trabalhadores e artistas, nunca meio aos hipócritas da 'alta sociedade'. Aliás, as elites não tardam a sofrer com as falências e bancarrotas do caos da crise financeira de 1929, marcada pela Quebra da Bolsa de Valores de Nova York.

No final, após meditar com o iluminado guru sobre o Mal e a Finitude, e alcançar sua própria Iluminação, Larry volta para os Estados Unidos, adota a profissão de caminhoneiro apenas para poder melhor percorrer o extenso país, atrás de novas experiências e disposto a divulgar seus aprendizados zen. Temos assim um preâmbulo de “On The Road” / “ na Estrada”, de 1954, do autor Beat Jack Kerouac, onde o peregrino é o andarilho que desafia o senso comum e a cultura de consumo e desperdício de uma vida num mundo capitalista que se autodevora.

Tal qual o jovem Darrell, que retornara do inferno da guerra, Haller bem que tenta frequentar ambiente de burguesia, debater arte europeia e demonstrar bom gosto, mas tudo se aparenta uma atitude deveras falsa, hipócrita, deslocada, alienada num contexto de conflito, imperialismo, guerra total e outras explorações do homem pelo homem. Num contraponto ao burguês não temos o proletário – que pouco aparece nesta obra – mas o bom e velho boêmio, o artista. Fenômeno bem notado pelo poeta Oswald de Andrade (“o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio!) que se esforçava de forma iconoclasta para superar o tradicional 'bom gosto', o medíocre padrão estético que se mantinha por inércia e ignorância.

Deixando o ambiente burguês, os salões da 'boa sociedade', o 'lobo da estepe' busca abrigo nos antros da boêmia, nos bares, entre um gole e outro de algum veneno alcoólico para entorpecer suas culpas e auto-recriminações. Haller defende os mesmos 'ídolos' defendidos pela burguesia, seja o literato Goethe, seja a civilização, seja a vida limpa e ordenada, mas julga a classe dominante como atrasada.

No bar, o Águia Negra, o protagonista encontra uma estranha senhorita, com vivacidade e ironia para mostrar ao deprimido pensador como ele se deixa prender numa prisão por ele mesmo construída. O quanto espera do mundo, o quanto se deixa dilacerar por opiniões alheias, quando devia rir, ironizar ou humilhar o oponente. As figuras venerandas, as quais o 'lobo da estepe' leva tão a sério, não se mostram, afinal, tão 'acima' do lugar-comum, assim aparecem nos sonhos e delírios as personagens de Goethe e Mozart, os símbolos da cultura europeia, e por extensão do mundo ocidental.

De súbito, Haller está deveras interessado pela exótica mocinha, dona de uma força e magia que ele desconhece e admira, que se sentara junto a ele certa noite. E sem ela , o protagonista volta aos pensamentos de suicídio, “o mundo me parecia então novamente vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltavam a envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída daquele inferno silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada agradável para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror. Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem, como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um verdadeiro paraíso.” (p. 116)

Como Haller vê a si mesmo em tamanha autoconsciência ? Qual a imagem do Ego que o atrai narcisisticamente? É preciso que ele se depare com o ser que se reflete no espelho,

Via a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão. Poderia dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a concatenação e os motivos do meu padecimento, da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso.” (p. 117)

E a nova amiga de Haller deseja apenas que ele se liberte, se divirta, aprenda dançar um estilo da moda (trata-se do foxtrote), que ele não veja o mundo com olhares tão tradicionalistas – tão como fazem os burgueses que ele despreza. Certamente, o protagonista tem prazer em obedecer a bela senhorita, pois Hermínia (agora sabemos o nome) é uma moça sadia, animada, caprichosa, que promete levar Haller para uma vida mais diversa e divertida. É como se Hermínia fosse uma projeção da alma do narrador,

Uma parte de minha alma bebeu suas palavras e acreditou nelas, mas a outra acudiu conciliadora e veio assegurar-me que também esta prudente, sadia e segura Hermínia tinha seus momentos de devaneio e seus estados nebulosos.” (p. 123) e “Hermínia era como a própria vida: não se podia antecipá-la, era sempre o momento presente. (…) Aquela mulher, que tão completamente havia penetrado em mim, que parecia saber mais a respeito da vida do que todos os sábios, continuava menina, continuava vivendo cada minuto com tal arte que havia feito de mim um discípulo incondicional.” (p. 124)

Hermínia acha que a figura do 'lobo da estepe' não passa de uma ilusão, de uma ' ilusão poética'. O que a mocinha sabe sobre o protagonista? “Hermínia lera o artigo e por ele se informara que Harry Haller era um inseto nocivo e um homem que renegava sua própria pátria e que naturalmente esta não poderia suportar a existência de homens semelhantes e permitir a difusão de tais pensamentos que inclinavam a juventude para ideias sentimentais de humanitarismo em vez de nela suscitar um bélico furor contra o inimigo secular.” (pp. 128-29) Sabe-se assim que Haller escrevera artigos nos jornais contra o nacionalismo, os orçamentos para armamentos, o culto do imperialismo que levou tantos jovens à morte nos campos de batalha. Ele é um pacifista a irritar as autoridades militaristas e os burgueses que lucram com as guerras. Aliás, outra guerra se aproxima!

Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar pela parte de culpa que lhe cabe nessa desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram : para mim não existe 'pátria', não existe 'ideal' algum. Tudo isso não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina.” (p. 130)

Os amigos de Hermínia também são exóticos e temperamentais, são caprichosos que mostram o quanto Haller é ainda um burguês ensimesmado e rancoroso. Eles representam a pluralidade de desejos e anseios, de personalidades possíveis, de estilos de vida alternativos. Daí assustar tanto ao lado burguês de Haller, que tenta salvaguardar uma certa personalidade. Mas é em vão. Quantas 'almas' numa pessoa? Quantas identidades superpostas no 'lobo da estepe'? Como assumir as identidades em potencial ?

Assim como o gramofone viciava a atmosfera de espiritualidade ascética do meu estúdio, e também os ritmos americanos, estranhos e perturbadores, destrutivos, penetravam em meu cultivado mundo musical, assim irrompiam por todas as partes coisas novas, temidas, libertadoras, em minha vida até agora tão rígida e tão severamente delimitada. O Tratado do Lobo da Estepe e Hermínia tinham razão em sua teoria das mil almas; amiúde surgiam em mil, junto a todas as antigas, algumas novas almas, com suas pretensões, alvoroçadas, e agora via claramente, como um quadro posto diante de mim, o processo de minha personalidade até então. As poucas habilidades e matérias em que casualmente era forte haviam ocupado toda a minha atenção, e eu pintara de mim a imagem de uma pessoa que não passava de um estudioso e refinado especialista em poesia, música e filosofia; e como tal tinha vivido, deixando o resto de mim mesmo ser um caos de potencialidades, instintos e impulsos que me pareciam um transtorno e por isso os encobria com o nome de Lobo da Estepe.

Todavia essa reversão de minha quimera, essa libertação de minha personalidade não constituíam , de modo algum, uma aventura agradável e divertida, mas, ao contrário, era frequentemente amarga e dolorosa e não raro quase insuportável.” (p. 141)

Haller imagina-se ser livre, autônomo e inimigo das autoridades, mas é um burguês que vive no conforto e renda mantida em banco. Era um pacifista que nada fez – além de falar – para impedir os conflitos. Temos aqui outro trecho de autodescrição,

O Sr. Haller de até então, escritor de talento, conhecedor de Mozart e de Goethe, autor de observações dignas de ler-se sobre a metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a humanidade – o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de fazer sua autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. “ e “Harry Haller se atribuíra um prodigioso papel de idealista e desprezador do mundo, de melancólico solitário e de profeta tonitruante, mas no íntimo era um burguês, capaz de censurar uma vida como a de Hermínia; lamentava-se das noites perdidas nos restaurantes e do dinheiro que neles gastara; tinha remorsos e suspirava não exatamente por sua emancipação e aperfeiçoamento, mas ao contrário para voltar aos velhos tempos em que seus problemas espirituais ainda lhe causavam prazer e lhe traziam fama.” (p. 142)

Boêmios contra burgueses mais do que idealistas versus tradicionalistas é o foco das cenas seguintes, onde o pensador passava a conviver, no ambiente de happy hour, ao som de jazz, tal qual os expressionistas (do Entreguerras, antes do Nazismo no poder), com Hermínia e seus amigos, os músicos, os bailarinos, os que vivem de Arte, tanto existencial quanto materialmente. O artista vive de Arte, ao vender migalhas de Arte para os burgueses entediados, que deixam seus escritórios e ousam noitadas nas zonas boêmias, para esquecer a vida normatizada e limitada.

Afinal, para o conformado, aquilo que desvia do ‘normal’ é rotulado como vício e pecado. No romance anterior de Hesse, Demian deseja mostrar, ao amigo Sinclair, que o conceito de pecado, de algo não permitido, é sempre relativo, varia de situação e cultura, e de época para época, assim não é eterno. A cada um convém um limite diferente, um permitido e um não-permitido, e que pecado é apenas não se permitir as próprias potencialidades, reprimir a si mesmo. (Algo que também encontramos nas falas do Lord Harry em “O Retrato de Dorian Gray”, de Wilde, onde não se deve arrepender por praticar pecados, mas evitar arrepender-se por não haver praticado. )


links para ensaio sobre Dorian Gray




Um artista, um músico está mais próximo do desvio, e logo do pecado? Ainda mais um artista do mundo moderno, que deixa o belo, e se dedica ao ritmo, ao efêmero? Por que um músico de jazz seria menor que Mozart? Por que uma encenação de teatro popular seria menor que uma peça de Goethe? O que serve como avaliação para o erudito e para o popular? Como um erudito encara a arte pop ? Tais são as questões que podemos levantar aqui. Assim diz o músico Pablo (o contraponto ao músico clássico Mozart) :

De se fazer música, Sr. Haller, de se fazer música tão boa e tão abundante quanto possível e com toda a intensidade de que alguém é capaz. Aí é que está a coisa, monsieur. Ainda que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as coisas mais admiráveis a respeito delas, isso não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e toco um shimmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue. Isto e somente isto é o que importa.” (p. 145)

Com a ardente Maria o protagonista – antes lobo solitário – encontra uma paixão física marcante, que poderá degelar seu hábito de ermitão. A relação sexual e afetiva com uma artista, com tão ênfase, ressalta enfim as diferença entre os mundos burguês e boêmio. “[os artistas] estavam à vontade nele [o mundo boêmio] e conheciam todos os seus caminhos. Amavam um champanha ou um prato especial num grillroom, como nós outros amamos um compositor ou um poeta, e punham numa dança da moda ou na canção sentimental e melosa de um cantor de jazz o mesmo entusiasmos, a mesma emoção e ternura que um de nós devotava a Nietzsche ou a Hamsun” (p. 152) Aqui as referências ao filósofo-filólogo iconoclasta alemão e o romancista norueguês (futuro ganhador de Prêmio Nobel, que depois se envolveria com colaboracionismos) mostram as leituras do próprio autor Hesse, ao apresentar o panorama cultural da época – quais os autores eram referência.


continua...


fonte: HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. (trad. Ivo Barroso) RJ: Record, 2010.








Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com

http://leoleituraescrita.blogspot.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário