Sobre “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927)
do
escritor alemão Hermann Hesse [1877-1962]
(da
trad. de Ivo Barroso)
A
busca de si mesmo enquanto jornada literária
A
Época
A
contracultura foi um movimentou que atingiu um ápice nos anos
1960, com as revoltas da juventude, das massas de estudantes em
grandes cidades e capitais do mundo ocidental. Mas antes deste ápice
existem várias preparações, desde os horrores das crises
econômicas e guerras mundiais, até as hegemonias dos tabus que
frustravam sexualmente as novas gerações.
Mas
o descontentamento com a cultura ocidental vinha desde meados do
século 19, com as descobertas do orientalismo, o mundo dos brâmanes
e budistas, quando os britânicos se dedicaram à colonização da
Índia, quando filósofos se voltaram para leituras de clássicos
orientais, vide G. W. Hegel, A . Schopenhauer, F. Nietzsche, estes
inclinados aos pensamentos de Buda, o Iluminado. Um olhar sobre o
estranho e exótico, na forma de pensar o irracional, o que não era
parte do pensar acadêmico eurocêntrico.
Na
América outras mentes procuraram alternativas, vejamos R. W.
Emerson, H. D. Thoreau, W. Whitman, arautos da vida livre, da
integração com a Natureza e repúdio ao mundo de consumo e
competição. Na Rússia, sob a opressão dos Czares e a intromissão
dos ocidentais, haviam escritores que apoiavam ideias eslavófilas e
libertárias, ora místicas ora utópicas, basta lermos L. Tolstoi,
F. Dostoiévski, M. Bakunin, etc. Como um antídoto ao capitalismo
competitivo do mundo ocidental que ameaça a vida de um país ainda
agrário e feudal.
No
início do século 20 vários autores já digeriam em suas obras os
ideais libertários, mesclados de orientalismo (principalmente
budismo) que eram motivo de estudos dos filósofos de meio século
antes. Assim se explicam as obras de surrealistas e expressionistas,
que ironizam o cientificismo e adotavam temáticas místicas, contra
o pensamento racionalizante (ou razão instrumental)
do mundo ocidental. Era mais uma busca de alternativas, vivências
outras, meio a dominação do capitalismo que mercantilizava a vida
humana sem hesitações.
Entende-se
assim a obra “O Lobo da
Estepe” em pleno período entreguerras, com uma mensagem
que seria lida durante todo o século 20 e teria um período de plena
'sensação' entre os arautos da contracultura cerca de meio século
depois. Lido ao lado de “A Náusea” (J-P.
Sartre), “Viagem ao Fim da
Noite” (L-F. Céline), “O Estrangeiro”
(A. Camus), “O Processo” (F. Kafka), “A
Condição Humana” (A. Maulraux),
“Admirável Mundo Novo” (A.
Huxley), “Pé na Estrada /
On The Road” (J. Kerouac),
“O Livro do Desassossego”
(Bernardo Soares/ Fernando Pessoa), dentre outros títulos que
tematizam a solidão humana no mundo de despersonalização /
desumanização em prol do lucro de uma elite hipócrita e mesquinha.
Apareceram
as figuras dos outsiders, seres sem rumo, que sabiam apenas
negar a ordem burguesa, em desejo de destruí-la, quando não se
autodestruíam. Podiam ser os andarilhos, os hipsters (ou
hippies), os Beats ou beatniks, os dharma
bums, os neomísticos, que perambulavam às margens da
sociedade de consumo. O ser consciente que anda solitário no seio
das cidades populosas, ou nas orlas dos desertos, e observa as
incongruências da vida moderna – cheia de promessas e, portanto,
decepções, insatisfações.
A
Obra
O
prólogo de “O Lobo da
Estepe” é assinado pelo tradutor Ivo Barroso, que
destaca os focos narrativos diversos dentro da obra, que é múltipla
em perspectivas e leituras, sem que necessariamente identifiquemos o
autor com o protagonista ou com o narrador,
“É
curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu
personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que, na
figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe, relata o breve
conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um
burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo
singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os
únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do
próprio personagem, Harry Haller, cujo nome aliterativo já é uma
insinuação de ser ele o alter ego do escritor. […] E a
terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do
Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagandista
ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico
e contém o estudo do comportamento de um 'lobo da estepe', que é o
retrato em corpo e alma inteiros dele mesmo.” (pp. 7-8)
O
tradutor Barroso aponta ainda elementos de surrealismo (antes da
vanguarda, daí ser avant la lettre),
de freudismo, de existencialismo, com um protagonista antibelicista,
ecológico, libertário, ainda que com seus preconceitos, tudo isso
num romance que é um Bildungsroman [romance de formação] ao
contrário. Dentro da cultura alemã (ou melhor, germânica, para
incluirmos a austríaca e a suíça) a presença iconoclasta de Lobo
da Estepe é inconteste, ainda mais se comparadas às outras
obras da época, ora de discurso esquerdista, ora fanaticamente
nacionalista-racista. A obra de Hesse é crítica, meditativa e
pluralista. Visa fazer pensar, não doutrinar.
No
aspecto narrativo, realmente várias vozes se articulam, e somente
uma delas é a do protagonista, que se crê o ‘lobo da estepe’.
Temos o 'editor', na condição de sobrinho da senhoria de Haller,
considera o protagonista um sujeito excêntrico e inclassificável,
com bom comportamento, mas como se estivesse 'atuando' para os
demais. É um homem já vivido em plena solidão, com poucos amigos,
e vida social nula. Vive entre livros e leituras, observando a vida e
tolerando o mundo burguês. Na verdade, tolerando e admirando o mundo
burguês, ou pequeno-burguês, onde foi criado. Um pensador que vem
criticar a sociedade ocidental europeia na qual foi criado.
Tal
dualidade livre-pensador versus mundo burguês, que é
problematizado pelo Harry Lobo da Estepe, está igualmente
dramatizado em “Demian”, livro escrito em 1919, uma década
antes, onde o protagonista-narrador Emil Sinclair se mostra
consciente de suas diferenças quanto a própria família, ao mundo
cômoda do lar, onde passou toda a infância. Revela o editor, em
Lobo da Estepe: “De um modo geral, deu-nos a ideia de
alguém que tivesse chegado de um mundo estranho, talvez de países
de além-mar, e encontrasse aqui tudo perfeitamente agradável, mas
ao mesmo tempo um tanto cômico. Era, não se pode negar, cortês e
até mesmo amável;” (p. 15) e também sobre seu caráter
excêntrico, em
“Quando
se falava com ele e, o que não era habitual, ele se deixava ir além
dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares,
então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, de vez
que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões
espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de
pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente
espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar
nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade.” (pp.
18-19)
E
vejamos esta dialética em “Demian”, onde o narrador
Sinclair recorda-se de sua educação numa família burguesa, ele,
agora um livre-pensador, enquanto filho transviado do mundo burguês,
é fascinado pelo mundo não-burguês, não-familiar:
“Às
vezes, me dava conta de que meu objetivo na vida era o de chegar a
ser como meus pais, tão claro e puro, tão reflexivo e ordenado. Mas
o caminho que conduzia àquela meta era demasiadamente comprido; para
chegar a ele, era necessário passar por muitas aulas, havia que
sofrer e estudar para muitas provas e muitos exames; além disso, o
caminho seguia sempre bordejando aquele outro mundo mais escuro e às
vezes nele penetrava, não sendo de todo impossível que nele alguém
permanecesse e sumisse em suas sombras proibidas. Havia histórias
assim, de filhos transviados, que eu lia com verdadeira paixão.”
(p. 21) e “Eu me considerava muito mais próximo do mundo obscuro,
e o contato com o mal se fazia sentir em mim muitas vezes por uma
dolorosa angústia.” (Demian, p. 22, trad. Ivo Barroso)
A
partir do olhar e dos comentários do editor temos uma apreensão da
singularidade e do sofrimento que caracteriza o protagonista, antes
que este mesmo narre sua história,
“Convenci-me
de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido das
várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma
capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também me
apercebi de que a base de seu pessimismo não era o desprezo do
mundo, mas antes o desprezo de si mesmo, pois, podendo falar sem
indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca
se excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas
setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.” (p. 21)
e
também, sobre o convívio social,
“No
que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo
os esforços mais heróicos e sérios para amá-los, para ser justo
com eles, para não fazê-los sofrer, pois o 'Amarás teu próximo!'
estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo; assim,
toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo
sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo
semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e
horrível isolamento.” (p. 22)
Haller
despreza em si mesmo a figura do burguês, o homem ‘pouco-a-pouco’
(como disse também o autor brasileiro Mário de Andrade, em sua “Ode
ao Burguês”, “É sempre um cauteloso pouco-a-pouco”),
esta figuração do burguês enquanto mediano, medíocre, temeroso de
ações radicais, para o benefício ou para o malefício, está mais
explícita, mais adiante, no folheto “só para os loucos”,
“O
'burguês', como um estado sempre presente da vida humana, não é
outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de
um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares
opostos da conduta humana. (…) O burguês tentará caminhar entre
ambos, no meio-termo. Nunca se entregará nem se abandonará à
embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em
sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega,
mas a conservação de seu eu, (…) em resumo, tenta plantar-se em
meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes
tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela
intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e
sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do
eu.” (pp. 62-63)
Percebemos
uma certa ambiguidade de Haller em relação ao mundo burguês –
admiração e desprezo – que demonstra um duplo movimento de
convívio e de isolamento, “Mas cada vez
mais pude ver que,
na realidade, nosso pequeno
mundo burguês era querido
e admirado lá da
distância de seu espaço
vazio, da sua estranheza
e da sua condição
de lobo, como algo
sólido e seguro, como
algo distante e inatingível
para ele, como o
lar e a paz,
aos quais nenhum caminho
o poderia levar.” (p. 27) e
diante do curioso burguês, o próprio Haller se denomina 'Lobo da
Estepe', o que muito admira o 'editor', “Um lobo
da estepe, perdido em
meio à gente, à
cidade e à vida
do rebanho – nenhum outro
epíteto poderia definir
com mais exatidão aquele
ser, seu tímido
isolamento, sua natureza
selvagem, sua inquietude,
seu doloroso anseio por
um lar, sua falta
absoluta de um lar.”
(p. 28)
O
‘editor’ encontra o manuscrito do próprio Haller – não sabe o
quanto ali é ficcional – e dentro da narrativa está o panfleto
“Tratado do Lobo da
Estepe – Só para
loucos”, pois tem noção do que seja viver sem
aprovação social – o grande temor do burguês é ser visto como
insociável – e sabe sobre filósofos, que ao pensarem demais, se
distanciaram da vida cotidiana. Vivem em conflito com a própria
época, encontram incompreensão e inimizades, assim foi com o
pensador Nietzsche, que filosofava com o martelo,
“Há
momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e
toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam
perdidas para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da mesma
maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria
da época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto
teve de suportar sozinho e incompreendido é o mesmo de que hoje
padecem milhares de seres humanos.” (p. 33)
Em
seguida, a narrativa passa para a 1ª pessoa na segunda parte, quando
as anotações de Harry Haller são editadas pelo sobrinho da
senhoria – assim tudo até agora foi apenas o “Prefácio
do Editor”, onde uma voz fala sobre o
'Lobo da Estepe', que agora terá direito a expressar-se por si
mesmo. Haller deseja uma vida com vivacidade, entusiasmo, euforia,
desregramento, até selvageria, não uma comodidade de moral
burguesa,
“arde
então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela
vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco
de destruir algo (…) pois o que eu odiava mais profundamente e
maldizia mais era aquela satisfação, aquela saúde, aquela
comodidade, esse otimismo bem-cuidado dos cidadãos, essa educação
adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.” (p. 37)
O
‘Lobo da Estepe’ sente-se pouco à vontade no mundo burguês,
local de hierarquia e menosprezo, “o mundo
dos homens e da
chamada cultura ri-se de
nós a cada passo
com seu enganoso e
vulgar esplendor de feira
e nos atormenta com
uma persistência emética”
(p. 36) onde o comodismo entorpece as mentes, “mas o
pior de tudo é
que tal contentamento é
exatamente o que não
posso suportar. Após um
curto instante parece-me
odioso e repugnante.” (pp.
36-37)
O
protagonista odeia o mundo burguês, mas vive meio ao 'ar decente' da
burguesia, que muito lembra o ambiente da infância (aqui o lar é um
símbolo de acolhimento e cuidado, que o adulto perdeu ao perambular
pelo mundo). Ele diz não lamentar o passado, mas é sensível sua
perda, quando compara o hoje com o ontem. Parece sempre que o tempo
de outrora foi melhor, havia música erudita, e não o embalo do
jazz, havia a arte erudita não as vanguardas iconoclastas,
havia um tempo de leitura e meditação e não a correria em busca do
lucro. Sobre tais aspectos parece-nos que há um romantismo
reacionário no 'lobo da estepe', que não adere a qualquer projeto
de luta coletiva (em prol do socialismo, por exemplo).
“Sou,
na verdade, o Lobo
da Estepe, como me
digo tantas vezes –
aquele animal extraviado
que não encontra abrigo
nem ar nem alimento
num mundo que lhe
é estranho e
incompreensível.” (p. 41) mas o 'Lobo da estepe' não é
apenas um selvagem, antes um nostálgico, até um visionário ou
místico, “Quem tinha o
coração repleto de seu
encanto num mundo a
elas estranho? … Quem lia
à noite, sobre o
Reno, a inscrição que
as nuvens formavam na
névoa? O Lobo da
Estepe. E quem buscava
entre os escombros da
vida o seu significado
esvoaçante, quem sofria
com a aparente insensatez,
quem vivia com o
que parecia louco, quem
esperava em segredo no
último e confuso abismo
a revelação de Deus
e sua vinda?” (p. 46)
É
um visionário solitário e amargurado que não suporta o mundo
moderno, “Solidão é independência,
com ela eu sempre
sonhara e a obtivera
afinal após tantos anos.
Era fria, oh! sim!,
mas também era silenciosa
e grande como o
frio espaço silente em
que giram as estrelas.”
(p. 48) É o louco enquanto apreciador da cultura, a autêntica, não
o que chamam modernamente de cultura, assim a contracultura
seria a 'cultura alternativa' contra Cultura (Kultur) oficial,
tradicional, que tornou-se parte da mesmice cotidiana. “O
que chamamos cultura,
o que chamamos espírito,
alma, o que temos
por belo, formoso e
santo, seria simplesmente
um fantasma, já morto
há muito, e considerado
vivo e verdadeiro só
por meia dúzia de
loucos como nós? Quem
sabe se realmente nem
era verdadeiro, nem sequer
teria existido? Não teria
sido mais que uma
quimera tudo aquilo que
nós, os loucos, tanto
defendíamos?” (p. 49)
A
autêntica cultura está no passado? Ou numa superação da atual
cultura? Afinal, tanto anarquismo quanto futurismo manifestavam o
desejo de queimar as bibliotecas, e começar tudo de novo. A cultura
– nossa civilização ocidental – está caduca e hipócrita, não
é realmente a imagem que faz de si mesma, assim em decadência,
“Nosso
mundo cultural era um cemitério, ali estavam Jesus Cristo e
Sócrates, ali estavam Mozart e Haydn, Dante e Goethe; não passavam
de nomes meio apagados numa placa de metal enferrujada, rodeada de
assistentes falsos e hipócritas, que dariam tudo para continuar
acreditando nas placas de metal, em outros tempos sagradas para eles;
que dariam tudo para dizer ao menos umas honestas e sérias palavras
de tristeza e desesperança sobre o mundo desaparecido, mas só
sabiam em vez disso rodear o túmulo, gesticulantes e forçados.”
(p. 88)
Assim
é a visão do sujeito em relação à sociedade, mas qual a visão
do indivíduo sobre si mesmo? No opúsculo “Tratado do
Lobo da Estepe” o
protagonista toma contato com um 'estudo' sobre ele mesmo, onde
percebe a dualidade de alma, meio humana, meio lobo, ou seja,
civilizada e selvagem, no mesmo corpo. Os instintos todos
domesticados, e anestesiados, que propiciam a inserção do ser
humano no meio social, na cultura. Domar o corpo para melhor
desenvolver o espírito – eis o que criou as repressões e
sublimações, apontadas por Sigmund Freud. Contudo, temos um 'tênue
verniz de civilização', pois os instintos podem explodir em
transgressões, crimes, violências, guerras.
“O
Lobo da Estepe tinha,
portanto, duas naturezas,
uma de homem e
outra de lobo; tal
era o seu destino,
e nem por isso
tão singular e raro.”
(p. 52) Eis a dualidade que ele sofre dentro de si, onde o lado
civilizado é ironizado pelo lado selvagem, e o selvagem é
menosprezado pelo civilizado, mas ambas não se separam, é uma
'natureza dual', apenas se manifestam alternadamente, em
comportamento excêntrico, ora amável, ora agressivo, enquanto no
círculo social, alguns gostam do lado humano, outros preferem o lado
selvagem, e o duelo continua, sem um vencedor. Devido a sua alma com
'dupla-face', divina e satânica, Haller poderia ser um artista, como
muitos excêntricos são; mas o protagonista aqui é um pensador
solitário, nostálgico de uma cultura erudita que é gradativamente
eclipsada pela massificação que hoje denominamos cultura
pop.
A
interessante obra do escritor britânico W. Somerset Maugham, “O
Fio da Navalha”, de 1944, é
também um romance sobre alguém excêntrico que busca iluminação
espiritual numa modernidade materialista. Um jovem que serviu na
aviação durante a Primeira Guerra Mundial,
traumatizante como todos sabem (basta ler outras obras sobre o
massacre europeu, tais como “Nada de Novo
no Front”, de Remarque, ou “Viagem
ao Fim da Noite”,
de Céline) e que deixa um vazio na alma do cidadão quando retorna
ao lar, nos Estados Unidos.
O
enredo trata do comportamento e viagens deste jovem protagonista,
conhecido do narrador-autor, que mostra o quanto a excentricidade de
um jovem, Larry Darrell (não tem mais que vinte anos) tão promissor
faz com que ele se afaste de seu círculo social, desista de um
casamento, com uma prendada noiva de classe alta, também ignore
propostas de emprego, a deixar-se dedicado às leituras de psicologia
e espiritualidade, até seguir em viagens, para conhecer, através da
Europa, ou para meditar, até o interior da Índia, onde será
discípulo de um guru. Os outros personagens, ao redor do
protagonista ('um igual a qualquer outro' pois 'ele era tão normal
antes da guerra!'), não entendem porque o rapaz não se entrega a
vida comum ('seguir o caminho que os outros trilham'), ou seja, viver
para o lucro e o progresso da nação norte-americana.
A
vida de perambulações, de país a país, na Europa do pós-Primeira
Guerra, trabalhando em fazendas, dormindo em estábulos,
percorrendo estradas meio aos bosques, é uma vida que fora ansiada
por um Thoreau e seria idealizada por um Kerouac. A busca de
santidade meio ao mundo moderno é insustentável, logo se deve
entregar ao sacrifício de abandono, de desapego e de meditação,
não exatamente em mosteiros, mas meio aos simples e humildes, os
trabalhadores e artistas, nunca meio aos hipócritas da 'alta
sociedade'. Aliás, as elites não tardam a sofrer com as falências
e bancarrotas do caos da crise financeira de 1929, marcada pela
Quebra da Bolsa de Valores de Nova York.
No
final, após meditar com o iluminado guru sobre o Mal e a Finitude, e
alcançar sua própria Iluminação, Larry volta para os Estados
Unidos, adota a profissão de caminhoneiro apenas para poder melhor
percorrer o extenso país, atrás de novas experiências e disposto a
divulgar seus aprendizados zen. Temos assim um preâmbulo de
“On The Road” / “Pé
na Estrada”, de 1954, do autor Beat
Jack Kerouac, onde o peregrino é o andarilho que desafia o senso
comum e a cultura de consumo e desperdício de uma vida num mundo
capitalista que se autodevora.
Tal
qual o jovem Darrell, que retornara do inferno da guerra, Haller bem
que tenta frequentar ambiente de burguesia, debater arte europeia e
demonstrar bom gosto, mas tudo se aparenta uma atitude deveras falsa,
hipócrita, deslocada, alienada num contexto de conflito,
imperialismo, guerra total e outras explorações do homem pelo
homem. Num contraponto ao burguês não temos o proletário – que
pouco aparece nesta obra – mas o bom e velho boêmio, o artista.
Fenômeno bem notado pelo poeta Oswald de Andrade (“o
contrário do burguês não
era o proletário -
era o boêmio! “ )
que se esforçava de forma iconoclasta para superar o tradicional
'bom gosto', o medíocre padrão estético que se mantinha por
inércia e ignorância.
Deixando
o ambiente burguês, os salões da 'boa sociedade', o 'lobo da
estepe' busca abrigo nos antros da boêmia, nos bares, entre um gole
e outro de algum veneno alcoólico para entorpecer suas culpas e
auto-recriminações. Haller defende os mesmos 'ídolos' defendidos
pela burguesia, seja o literato Goethe, seja a civilização, seja a
vida limpa e ordenada, mas julga a classe dominante como atrasada.
No
bar, o Águia Negra, o protagonista encontra uma
estranha senhorita, com vivacidade e ironia para mostrar ao deprimido
pensador como ele se deixa prender numa prisão por ele mesmo
construída. O quanto espera do mundo, o quanto se deixa dilacerar
por opiniões alheias, quando devia rir, ironizar ou humilhar o
oponente. As figuras venerandas, as quais o 'lobo da estepe' leva tão
a sério, não se mostram, afinal, tão 'acima' do lugar-comum, assim
aparecem nos sonhos e delírios as personagens de Goethe e Mozart, os
símbolos da cultura europeia, e por extensão do mundo ocidental.
De
súbito, Haller está deveras interessado pela exótica mocinha, dona
de uma força e magia que ele desconhece e admira, que se sentara
junto a ele certa noite. E sem ela , o protagonista volta aos
pensamentos de suicídio, “o mundo me parecia então novamente
vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltavam a
envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída
daquele inferno silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha
de barbear não fora nada agradável para mim nestes dias, não havia
perdido nada de seu antigo horror. Isto era exatamente o mais
terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia em cortar a
garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem,
como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um
verdadeiro paraíso.” (p. 116)
Como
Haller vê a si mesmo em tamanha autoconsciência ? Qual a imagem do
Ego que o atrai narcisisticamente? É preciso que ele se depare com o
ser que se reflete no espelho,
“Via
a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante de mim como uma mosca
numa teia de aranha, e contemplava como seu destino forçava o
desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a aranha se
dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão.
Poderia dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a
concatenação e os motivos do meu padecimento, da enfermidade de
minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha neurose, pois a
mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia falta, aquilo
por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e
compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso.” (p. 117)
E
a nova amiga de Haller deseja apenas que ele se liberte, se divirta,
aprenda dançar um estilo da moda (trata-se do foxtrote), que
ele não veja o mundo com olhares tão tradicionalistas – tão como
fazem os burgueses que ele despreza. Certamente, o protagonista tem
prazer em obedecer a bela senhorita, pois Hermínia (agora sabemos o
nome) é uma moça sadia, animada, caprichosa, que promete levar
Haller para uma vida mais diversa e divertida. É como se Hermínia
fosse uma projeção da alma do narrador,
“Uma
parte de minha alma bebeu suas palavras e acreditou nelas, mas a
outra acudiu conciliadora e veio assegurar-me que também esta
prudente, sadia e segura Hermínia tinha seus momentos de devaneio e
seus estados nebulosos.” (p. 123) e “Hermínia era como a própria
vida: não se podia antecipá-la, era sempre o momento presente. (…)
Aquela mulher, que tão completamente havia penetrado em mim, que
parecia saber mais a respeito da vida do que todos os sábios,
continuava menina, continuava vivendo cada minuto com tal arte que
havia feito de mim um discípulo incondicional.” (p. 124)
Hermínia
acha que a figura do 'lobo da estepe' não passa de uma ilusão, de
uma ' ilusão poética'. O que a mocinha sabe sobre o protagonista?
“Hermínia lera o artigo
e por ele se
informara que Harry Haller
era um inseto nocivo
e um homem que
renegava sua própria
pátria e que naturalmente
esta não poderia suportar
a existência de homens
semelhantes e permitir a
difusão de tais
pensamentos que inclinavam
a juventude para ideias
sentimentais de humanitarismo
em vez de nela
suscitar um bélico furor
contra o inimigo secular.”
(pp. 128-29) Sabe-se assim que Haller escrevera artigos nos jornais
contra o nacionalismo, os orçamentos para armamentos, o culto do
imperialismo que levou tantos jovens à morte nos campos de batalha.
Ele é um pacifista a irritar as autoridades militaristas e os
burgueses que lucram com as guerras. Aliás, outra guerra se
aproxima!
“Uma
hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar pela
parte de culpa que lhe cabe nessa desordem e na maldade que impera no
mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como
estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com
o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas
sempre me desesperaram : para mim não existe 'pátria', não existe
'ideal' algum. Tudo isso não passa de frases inculcadas por aqueles
que preparam a próxima carnificina.” (p. 130)
Os
amigos de Hermínia também são exóticos e temperamentais, são
caprichosos que mostram o quanto Haller é ainda um burguês
ensimesmado e rancoroso. Eles representam a pluralidade de desejos e
anseios, de personalidades possíveis, de estilos de vida
alternativos. Daí assustar tanto ao lado burguês de Haller, que
tenta salvaguardar uma certa personalidade. Mas é em vão. Quantas
'almas' numa pessoa? Quantas identidades superpostas no 'lobo da
estepe'? Como assumir as identidades em potencial ?
“Assim
como o gramofone viciava a atmosfera de espiritualidade ascética do
meu estúdio, e também os ritmos americanos, estranhos e
perturbadores, destrutivos, penetravam em meu cultivado mundo
musical, assim irrompiam por todas as partes coisas novas, temidas,
libertadoras, em minha vida até agora tão rígida e tão
severamente delimitada. O Tratado do Lobo
da Estepe e Hermínia tinham razão em sua
teoria das mil almas; amiúde surgiam em mil, junto a todas as
antigas, algumas novas almas, com suas pretensões, alvoroçadas, e
agora via claramente, como um quadro posto diante de mim, o processo
de minha personalidade até então. As poucas habilidades e matérias
em que casualmente era forte haviam ocupado toda a minha atenção, e
eu pintara de mim a imagem de uma pessoa que não passava de um
estudioso e refinado especialista em poesia, música e filosofia; e
como tal tinha vivido, deixando o resto de mim mesmo ser um caos de
potencialidades, instintos e impulsos que me pareciam um transtorno e
por isso os encobria com o nome de Lobo da Estepe.
Todavia
essa reversão de minha quimera, essa libertação de minha
personalidade não constituíam , de modo algum, uma aventura
agradável e divertida, mas, ao contrário, era frequentemente amarga
e dolorosa e não raro quase insuportável.” (p. 141)
Haller
imagina-se ser livre, autônomo e inimigo das autoridades, mas é um
burguês que vive no conforto e renda mantida em banco. Era um
pacifista que nada fez – além de falar – para impedir os
conflitos. Temos aqui outro trecho de autodescrição,
“O
Sr. Haller de até então, escritor de talento, conhecedor de Mozart
e de Goethe, autor de observações dignas de ler-se sobre a
metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a humanidade
– o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de
fazer sua autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. “ e “Harry
Haller se atribuíra um prodigioso papel de idealista e desprezador
do mundo, de melancólico solitário e de profeta tonitruante, mas no
íntimo era um burguês, capaz de censurar uma vida como a de
Hermínia; lamentava-se das noites perdidas nos restaurantes e do
dinheiro que neles gastara; tinha remorsos e suspirava não
exatamente por sua emancipação e aperfeiçoamento, mas ao contrário
para voltar aos velhos tempos em que seus problemas espirituais ainda
lhe causavam prazer e lhe traziam fama.” (p. 142)
Boêmios
contra burgueses mais do que idealistas versus
tradicionalistas é o foco das cenas seguintes, onde o pensador
passava a conviver, no ambiente de happy hour,
ao som de jazz, tal qual os expressionistas (do
Entreguerras, antes do Nazismo no poder), com Hermínia e seus
amigos, os músicos, os bailarinos, os que vivem de Arte, tanto
existencial quanto materialmente. O artista vive de Arte, ao vender
migalhas de Arte para os burgueses entediados, que deixam seus
escritórios e ousam noitadas nas zonas boêmias, para esquecer a
vida normatizada e limitada.
Afinal,
para o conformado, aquilo que desvia do ‘normal’ é rotulado como
vício e pecado. No romance anterior de Hesse, Demian deseja mostrar,
ao amigo Sinclair, que o conceito de pecado, de algo não permitido,
é sempre relativo, varia de situação e cultura, e de época para
época, assim não é eterno. A cada um convém um limite diferente,
um permitido e um não-permitido, e que pecado é apenas não se
permitir as próprias potencialidades, reprimir a si mesmo. (Algo que
também encontramos nas falas do Lord Harry em “O Retrato
de Dorian Gray”, de Wilde,
onde não se deve arrepender por praticar pecados, mas evitar
arrepender-se por não haver praticado. )
links
para ensaio sobre Dorian Gray
Um
artista, um músico está mais próximo do desvio, e logo do pecado?
Ainda mais um artista do mundo moderno, que deixa o belo, e se dedica
ao ritmo, ao efêmero? Por que um músico de jazz seria menor
que Mozart? Por que uma encenação de teatro popular seria menor que
uma peça de Goethe? O que serve como avaliação para o erudito e
para o popular? Como um erudito encara a arte pop
? Tais são as questões que podemos levantar aqui. Assim diz o
músico Pablo (o contraponto ao músico clássico Mozart) :
“De
se fazer música, Sr. Haller, de se fazer música tão boa e tão
abundante quanto possível e com toda a intensidade de que alguém é
capaz. Aí é que está a coisa, monsieur. Ainda que eu
tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as
coisas mais admiráveis a respeito delas, isso não teria a menor
utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e toco um
shimmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar
alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue.
Isto e somente isto é o que importa.” (p. 145)
Com
a ardente Maria o protagonista – antes lobo solitário – encontra
uma paixão física marcante, que poderá degelar seu hábito de
ermitão. A relação sexual e afetiva com uma artista, com tão
ênfase, ressalta enfim as diferença entre os mundos burguês e
boêmio. “[os artistas] estavam à vontade nele [o mundo boêmio] e
conheciam todos os seus caminhos. Amavam um champanha ou um prato
especial num grillroom, como nós outros amamos um compositor
ou um poeta, e punham numa dança da moda ou na canção sentimental
e melosa de um cantor de jazz o mesmo entusiasmos, a mesma emoção e
ternura que um de nós devotava a Nietzsche ou a Hamsun” (p. 152)
Aqui as referências ao filósofo-filólogo iconoclasta alemão e o
romancista norueguês (futuro ganhador de Prêmio Nobel,
que depois se envolveria com colaboracionismos) mostram as leituras
do próprio autor Hesse, ao apresentar o panorama cultural da época
– quais os autores eram referência.
continua...
fonte: HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. (trad. Ivo Barroso) RJ: Record, 2010.
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com
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