Sobre Fome
(Sult,1890)
romance do autor norueguês Knut Hamsun
(1859-1952)
[tradução: Carlos Drummond de Andrade, 1981]
(citações tiradas da edição Círculo do Livro)
Quando
a literatura autêntica brota da miséria
A primeira referência
ao romance do norueguês Knut Hamsun encontramos em “O Encontro Marcado” (1956), romance de geração do mineiro Fernando
Sabino (1923-2004) onde, no capítulo A Geração Espontânea, dois jovens listam
as suas leituras, e Fome é
considerado o “mais autêntico, mais
humano”, dentre as obras do autor. Tendo lido o romance de Sabino em 1995,
somente encontramos uma edição do livro de Hamsun três anos depois, traduzido
pelo poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Desde então fizemos
duas releituras da obra.
O impacto de Fome é realmente visceral. Narrado por
um jovem de talento que, de tão honrado, vive em miséria material e carência
afetiva. Seu talento é sua forma de afirmação no mundo que o ignora, que o
despreza pela ausência de posses e status.
É um texto que almeja autenticidade, vivencial e confessional. O homem tem fome
e declara ter fome, e sabe que ‘não só de pão vive o homem’. Mas se temos fome,
como teremos disposição para o talento? E sem o talento ele já teria se matado
ou virado um bandido. É o mesmo caso de outros jovens de talento, o Raskólnikov
(de Dostoiévski) ou o Bandini (de John Fante), que sobrevivem num mundo cruel.
Tanto o narrador de Fome quanto o Raskólnikov, de Crime e Castigo, e Bandini, de Pergunte ao Pó (Ask the Dust, 1933) são jovens escritores pobres, provincianos que
vieram para a cidade grande em busca de oportunidade e reconhecimento. O
narrador de Fome tenta sobreviver em
Cristiania (atualmente Oslo), enquanto Bandini sobrevive em Los Angeles, quatro
décadas depois. Ambos os narradores-protagonistas são jovens flâneurs – pois detestam o quarto pobre,
em miserável solidão onde sobrevivem e se sentem atraídos pelos tentáculos
tumultuosos da vida urbana: tudo o que não possuem e é possuído pelos outros –
bens, serviços e luxos. (Assim acontece com o amargurado ‘homem do subsolo’ e
com o angustiado Raskólnikov).
O narrador quer
trabalhar e ser digno, e não viver de favor, em dívidas, dependente da
compaixão alheia. Ele acredita no próprio talento, crê-se genial. Ele se
declara um ficcionista, adora inventar mentiras, criar enredos mirabolantes.
Esta narrativa de um declarado ficcionista, assim explícito, nos faz lembrar outras
obras – que também discutiremos aqui. Tanto em Fome quanto em Angústia
(1936, de Graciliano Ramos) e A Náusea
(1938, de Sartre) temos os protagonistas-narradores obcecados por descrições de
detalhes – como forma de evadirem-se de suas situações angustiosas.
Há uma voz sem nome,
pessoal, mas anônima. Qual o nome do protagonista? Ele inventa nomes para si
mesmo, e mantem-se anônimo, ao longo da narrativa, e nem sabe por que mente
assim, ora Wendel Jarlsberg, ou André Tangen. Ou ainda Valdemar Atterdag. Não
se identifica – estará despojado da própria identidade? Afinal, o protagonista
se sente despojado, roupa a roupa, peça após peça de sua dignidade, até sua
honra e identidade se perder, daí termos um narrador sem-nome, sem posição
social, sem presença – passa a ser um cidadão invisível, desprezado, os
transeuntes sequer levantam o olho para encará-lo – e pior: ele tem plena
consciência de tudo!
O protagonista sofre,
mendiga, mas, ao contrário de Raskólnikov, não comete crime, ainda que não
hesite em se castigar. Encontramos cenas de autocompaixão e automutilação em Fome (o narrador se morde) – e em Pergunte ao Pó (onde Bandini se corta
com as unhas). Ele vive a alternar fome com nervosismo – ora consegue escrever,
publicar um artigo e ter um dinheiro no bolso durante uma semana, depois volta
à miséria, ainda mais baixa. Há quem deva alguns níqueis ao narrador e ele faz
questão de nunca cobrar – e tem consciência de que jamais será reembolsado. Ao
mesmo tempo ele se sente culpado quando comete desonestidade – por exemplo,
quando aceita em troco uma quantia a mais, ou quando, nem tendo pago, recebe um
troco.
Tanto Bandini, do
romance de Fante, quanto o narrador de Fome são jovens imaginosos, fantasiosos,
que usam da ficção espontânea para sobreviverem às mais miseráveis situações,
abrigam-se assim da indignidade na rede da imaginação, podem se ver a escrever
tudo o que vivenciam. “Eu já não dominava
a situação: um após outra, mentiras brotavam-me da cabeça.” (p 23)
Outro ponto que
merece destaque: a relação homem – mulher. Percebemos que os narradores, em
vida de penúria, se sentem inferiores a mulher que desejam – não só financeiramente,
mas também em ousadia amorosa. As mulheres parecem mais atrevidas e misteriosas
– e constrangem os jovens, que imaginam deveriam ter a iniciativa.
Mas vejamos alguns
trechos que merecem especial atenção, e algum comentário. Ele é o jovem que perambula
pela cidade costeira de Cristiânia, destino de muitos e abrigo de poucos (atualmente
Oslo, a capital norueguesa, moderna e cosmopolita). “Naquele
tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade
singular, que deixa marca nas pessoas...” (p. 7) ele segue de insucesso em
insucesso, “As inúmeras recusas e meias
promessas, o ‘não’ seco e repetido, esperanças alternadamente acariciadas e
desfeitas, novas tentativas que sempre davam em nada – tudo isso me aniquilara
o ânimo. [...] Sempre esse ou aquele obstáculo.” (p. 8) até a penúria “A regularidade, o movimento uniforme com que
ia, constantemente, deslizando ladeira abaixo! Acabei ficando tão
extraordinariamente desprovido de tudo, que não me restava sequer um pente, um
livro para ler, quando a vida se tornava demasiado triste.” (p.8)
Em estado de miséria
e em busca de oportunidades, o narrador vagueia pelas ruas, observando o que é
rotineiro para os demais, “Comecei a
observar as pessoas com quem cruzava ou que ultrapassava; ia vendo os cartazes
nos muros, recolhendo a impressão do olhar que alguém me lançava de um bonde em
movimento; penetravam-me as coisas mais insignificantes, todas as miúdas
contingências que cruzavam no caminho e desapareciam.” (p.9) e “Continuei a rodar por aí, flanando sem me
preocupar com coisa alguma: parei a um canto, sem necessidade, mudei de
direção, tomei uma rua lateral onde não tinha nada que fazer. Vagabundo na
manhã alegre, passeando aqui e ali minha despreocupação, entre os outros felizes
mortais, deixava as coisas correrem. O céu era claro, sem nuvens; e nenhuma
sombra em minh’alma.” (p.10)
Ao mesmo tempo a
necessidade de escrever : para narrar, afirmar-se e sobreviver. “E ao imaginar esse artigo, senti-me de
repente invadido pela necessidade imperiosa de dedicar-me imediatamente a ele
[o artigo], para expandir a plenitude das ideias.” (p.10) Ao se considerar
um escritor, um artista, o narrador não gosta de ser julgado como pobre, por
sua aparência miserável. Julga-se um gênio, não um mendigo. Quer mostrar boa
aparência – sabe que as pessoas julgam a aparência, não a genialidade. Ele tem
dignidade, acima de tudo. Quando ele imagina um artigo para o jornal, ele
sempre julga ser uma obra-prima, e, corajoso, se entrega a escrita, seja num banco
de parque, ou capela de cemitério. Mas, muitas vezes, o jovem não tem papel nem
lápis, ou um toco de vela, para propiciar sua escrita. (E quantos outros têm
acesso ao papel, à caneta e ao computador, e nada escrevem!)
O narrador tem
elevada consciência de si mesmo e de sua condição de miséria. Ele joga com os
cidadãos assim como a cidade joga com ele – mas ele sempre perde. Ele aborda
pessoas nas ruas, assedia mocinhas, segue mendigos, discute com vagabundos, frequenta
mercado e estação ferroviária, em suma, se mistura ao tumulto da cidade grande.
“Já eu, em contraste, caminhava ao lado
dessas pessoas, eu, moço em flor, e nem me lembrava mais como era o rosto da
felicidade! Embalava-me com esse pensamento, sentindo-me vítima de uma
injustiça cruel. Por que esses últimos meses me haviam mal-tratado tão
rudemente? Já não reconhecia mais o meu natural prazenteiro; por toda parte era
presa dos mais singulares tormentos.”
(pp. 17-18)
Por que a maldição da
fome sobre o protagonista? “Que doença
era a minha? Teria sido eu apontado pelo indicador da mão de Deus? Mas por que
precisamente eu? Por que não, por exemplo, um homem que estivesse na América do
Sul? Quanto mais refletia nisso, mais me parecia inconcebível que a Graça
Divina me tivesse escolhido justamente como cobaia, para realizar seus
caprichos.” (p. 18) O narrador pensa que a divindade conspira para a sua miséria,
a perda do emprego, a vadiação nas ruas, a trilha da indignidade ... Sente-me
pessoalmente perseguido, ferido pelo dedo divino, em constante desassossego. “Seria firme intenção de Deus destruir-me
completamente?” (p. 18)
Ao querer escrever,
muitas vezes, tal intuito é fracassado: a realidade do mundo, da cidade, o
golpeia mais forte: “Escrever, porém, era
impossível. Depois de algumas linhas, não me acudia a menor ideia; [...] Tudo
me influenciava e me distraía, tudo o que via despertava uma impressão nova.”
(p. 20) É impressionante a capacidade de
observação e descrição do narrador, rodeado de coisas, pessoas, eventos, vivências.
Em suas palavras as impressões do mundo se misturam com sentimentos,
“Talos de erva,
desbotados, eriçam-se contra o sol; folhas ressecadas rolam por terra com o
chiado de uma procissão de bichos da seda. É a sazão outonal, em meio ao
carnaval da efêmera duração. Inflama-se o rubor das rosas, a tez de sangue vivo
das flores adquire maravilhosa cintilação de tísica.
Eu me sentia como o
inseto agonizante, que o aniquilamento arrebata a esse universo prestes a
adormecer. Presa de estranho terror, levantei-me e dei alguns passos rápidos na
alameda. – Não! – gritei, apertando os punhos. – É preciso acabar com isso! –
Tornei a sentar-me, retomei o lápis, resolvido a escrever o artigo.” (p. 26)
Mas os melhores
artigos nascem não do esforço, mas da inspiração brutal que atual além da
inanição indigna, como uma compensação febril, num desabafo não reprimido,
“Escrevo como um
possesso, encho páginas e páginas, sem parar. As ideias desabam sobre mim tão
depressa, continuam a afluir com tamanha abundância, que perco um monte de
aspectos acessórios: não consigo fixa-los bastante rapidamente, embora trabalhe
com todas as forças. A inspiração insiste em empurrar-me para adiante, estou
inteiramente dominado pelo assunto, e escrevo cada palavra como se obedecesse a
um ditado.” (p. 28)
Em busca da dignidade
perdida o narrador se mostra orgulhoso, até arrogante, mas como uma forma de
auto-defesa diante do mundo cruel. Ou seria a falta de comida a origem de sua
inspiração devido a inquietação? Se ele fosse rico e bem nutrido teria as
mesmas volições de escrita? “Visões e
sonhos! Refleti que, se comesse agora, a cabeça voltaria a perturbar-se, a
mesma febre se apoderaria de mim, e eu teria de lutar contra um mundo de
fantasias loucas. Não tolerava alimento, não fora feito para isso; era uma
idiossincrasia, uma coisa singular.” (p. 35)
O mais importante para o protagonista de Fome é manter a dignidade e conservar a
honestidade. Ele não é um aproveitador, ou crápula, por mais que seja marginal.
Ele não visa prejudicar ou explorar, ele somente deseja ser reconhecido pelo
povo – ou pelos editores de jornal – como um jovem de talento. “A consciência de minha honestidade subiu-me
à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um
farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre
destroços flutuantes.” (p. 38)
Mas a miséria é
medonha ao destruir corpo e mente, físico e moral, levando a ações mesquinhas e
irracionais. Ele é um bom moço, mas começa a ser corrompido pela cidade,
“Agora, sentia tanta
fome que os intestinos se enroscavam na barriga como serpentes, e em nenhuma
parte estava escrito que arranjaria um pouco de comida antes do anoitecer. À medida que as horas passavam, eu me via
cada vez mais carcomido física e moralmente, e deixava-me levar à prática de
ações cada vez menos honestas. [...]
Manchas de putrefação começavam a surgir em meu ser, mofos enegrecidos
que se estendiam cada vez mais.” (p. 40)
Contudo, o narrador
consegue ver um artigo publicado e sobrevive mais algumas semanas com um mínimo
dinheiro no bolso.
Na Parte 2, depois de conseguir um dinheiro
e sobreviver mais algumas semanas, o protagonista pensa em como prosseguir na ‘carreira’
de escritor, “No momento, não tinha
qualquer pensamento triste; esquecera a miséria, pacificava-me a vista do
porto, plácido e belo na semi-escuridão. Conforme o hábito, quis
proporcionar-me um prazer, relendo o que acabara de escrever e que a meu
cérebro enfermo se afigurava a melhor coisa que já fizera na vida.” (p.49)
Em tal estado de
atordoamento que o narrador tece considerações em tom psicologista, observando
a si mesmo, “Estendi as pernas no banco,
virei-me para trás; assim, podia sentir, em sua plenitude, o bem-estar do
desprendimento. Não pairava uma nuvem em minh’alma, nenhuma sensação de
mal-estar; e por mais longe que fosse o pensamento, não me atormentava uma
aspiração, um desejo insatisfeito. De olhos abertos, estendido, ausente de mim
mesmo, num estado singular, sentia-me deliciosamente longe.” (p. 51)
Ambiências psicologistas
que lembram trechos de Virginia Woolf e Clarice Lispector, que escreveriam
tempos depois. Esta forma de olhar para si mesmo, e não apenas para o mundo ou
a sociedade, afasta esta obra de Knut Hamsun de um Realismo (ou Naturalismo)
em voga no fim do século 19. É precoce dizermos que já havia um Realismo psicológico, mas é claro o
fenômeno de transição.
“A fome, cruel,
dava-me vontade de sumir, de morrer; tornei-me sentimental e caí em pranto.
Minha miséria nunca teria fim. Bruscamente, detive-me em plena rua, bati com o
pé na calçada, e praguejei em voz alta.” (p. 52) Também “E a fome a roer-me por
dentro; eu engolia saliva, na esperança de saciar-me, e parecia que dava
resultado. Já durante semanas, antes desse jejum completo, alimentara-me muito
pouco, e as forças tinham diminuído consideravelmente nos últimos tempos.” (p.
53)
O narrador se percebe
enquanto ficcionista, mentiroso compulsivo, dono de uma verdade apenas
psicológica, “Meus pensamentos flutuavam,
dispersos; acudiam-me impulsos extravagantes, em dose maior que a conveniente.
Inventei num segundo esse nome tão diferente do meu, e lancei-o sem
premeditação. Mentira sem necessidade.” (p. 55)
É capaz de narrar
estados alterados fisiologicamente causados pela inanição. Quando, por exemplo,
ele se diz desabrigado e é recolhido a uma cela deveras escura no posto de
guarda, onde tem quase uma epifania da condição
humana – a incapacidade da linguagem em representar e transmitir o que
sentimos, em suma, os limites da comunicação, quando, em delírio, imagina criar
uma palavra nova,
“Despi-me. Não tinha
sono, impossível dormir. Fiquei estendido um momento, olhando a escuridão,
aquela treva sem fundo, espessa, maciça, que eu não podia conceber. O espírito
era incapaz de captá-la. Estava escuro além de toda escureza, e a escuridão
oprimia-me. [...] A escuridão tomara posse de meu pensamento, não me deixava um
instante de repouso. Eu próprio não me estaria dissolvendo em trevas, não fazia
um todo com elas?” (p. 56)
“Chegara à completa
loucura da fome, sentia-me oco, sem sofrimento, já não detinha as rédeas da
imaginação. Refletia calado, metido em mim. Mediante saltos extraordinários de
raciocínio, procurei aprofundar o sentido da nova palavra.” (p. 57)
“Abri os olhos. Para
que fechá-los, se não podia dormir? As mesmas trevas reinavam em torno, a mesma
insondável e negra eternidade, contra a qual o espirito se revoltava, incapaz
de assimilá-la. A que poderia compará-la? Fiz os mais desesperados esforços
para achar uma palavra bastante negra a meu gosto, que designasse aquela
escuridão; palavra tão pavorosamente negra que enegrecesse a boca, ao ser
pronunciada.” (p. 58)
“Era um delírio feito
de fraqueza e de esgotamento, porém não perdera a consciência. De repente, uma
ideia varou-me o cérebro, a ideia de que enlouquecera.” (p. 59)
Em sua fome, o
narrador sobrevive em momentos de delírio, quase loucura, “O espírito, desenfreado, fugiu de novo por estradas aventurosas. Eu
continuava percebendo a incoerência de minhas palavras; não dizia uma só sem entendê-la
e compreendê-la. Falei comigo: ‘Você já começa a divagar!’ Entretanto, não
podia deixar de fazê-lo. Era como se estivesse deitado, sem dormir, conversando
em imaginação. A cabeça estava leve, sem dor, inteiramente despreocupada; a
alma, sem nuvens. Deixei-me ir à deriva, se a menor resistência.” (p. 62) e
“Que é que não inventam as sensações,
quando a gente tem fome? Sinto-me absorvido por essa música, dissolvido,
tornado música; e fluo, sinto-me distintamente fluir, pairando alto sobre
montanhas, dançando em zonas luminosas.” (p. 66)
O protagonista não
apenas sofre com a miséria, mas pune a si mesmo como se fosse culpado. Torna-se
um carrasco de si mesmo, como diz certo poema de Charles Baudelaire,
“Parei afinal,
prestes a chorar de raiva pela impossibilidade de correr mais; o corpo todo
tremia. Deixei-me cair num patamar. – Alto! – exclamei. E para me torturar bem,
levantei-me e obriguei-me a continuar de pé, zombando de mim mesmo,
compreendendo-me com o meu próprio esgotamento. Afinal, depois de bastante
tempo, com um sinal de cabeça dei-me licença para ficar sentado, mas escolhi o
lugar mais incômodo no patamar.” (p. 69)
O problema da
consciência além das penúrias da miséria, “O
quê: sua consciência? Nada de infantilidades, você é pobre demais para ter
consciência. Está com fome, não é? [...] Bem, seu estado é assustador, você
está em luta com as potências da treva; à noite, sustenta uma luta medonha
contra enormes monstros silenciosos, um verdadeiro horror. Está sedento de
leite e de vinho, e não os possui. Eis a que ponto você chegou.” (p. 70)
Pois o protagonista
corre o dia todo em busca da sobrevivência – um centavo para um pão – e é tudo
inútil : ele sabe que resta a opção de deitar-se e morrer, mas tem consciência
– e dignidade – o suficiente para ainda persistir. Não quer descer ao nível do
roubo ou da mendicância. Mas é inevitável. Ele sofre com as indignidades e ao
se lembrar das indignidades. Prefere passar fome do que virar um marginal, um
criminoso.
Mas a debilidade da
fome é tanto física quanto mental, o sofrimento arrasa corpo e alma, joga ambos
na desfiguração e degradação, e entende-se que é difícil aceitar tal estado
como natural, “Tinha o ar de quê? É o
diabo, a gente ir se deixando desfigurar, vivo, unicamente por obra da fome.
Senti a cólera invadir-me uma vez mais; era a última chama, o último espasmo.
[...] em plena cidade de Cristiânia, jejuava a ponto de perder a figura humana!
Então isso tinha sentido, isso se harmonizava com a ordem natural das coisas?”
(p. 74)
Depois de mendigar
alguns centavos - e inutilmente ! - o narrador se recrimina, angustiado,
“Retirei-me, doente
de fome, ardendo de vergonha. Não, era preciso acabar com isso! Tinha realmente
ido longe demais. Mantivera-me durante tantos anos, conservara-me firme durante
tantas horas cruéis, e eis que de repente caía na mendicância brutal. Um único
dia degradara meu raciocínio, salpicara de impudor minh’alma.” (p. 77)
“Fizera tudo a meu
alcance. ‘Um dia inteiro sem ter sorte uma única vez!’, dizia comigo. ‘Se
contasse isso a qualquer pessoa, ninguém acreditaria; se escrevesse, diriam que
tinha inventado. Não tivera sorte em nenhum lugar! Bolas, não havia nada a
fazer; principalmente, que não tentasse mais inspirar piedade.” (pp. 77-78)
No momento de maior penúria, o faminto
protagonista recebe a ajuda providencial de um conhecido – aqui sequer nomeado.
Consegue cinco coroas para sobreviver mais uma semana.
Na Parte 3, ainda na luta, o autor se
esforça para escrever, e vender seus artigos para algum editor. É preciso
escrever para poder comer, o desejo sempre adiado, a necessidade constante a
roer o estômago, “Três ou quatro artigos
em preparo saqueavam meu pobre cérebro, confiscando cada pensamento, cada
faísca que nele brotava; e tudo parecia andar melhor do que antes.” Contudo
“A última crise me afetara muito;
começava a perder grandes mechas de cabelo; afligiam-me dores de cabeça,
principalmente pela manhã, e o nervosismo não queria ceder.” (p. 83)
Quando se é
benevolente com ele, o narrador não julga merecer, até se comove. E ao mesmo
tempo nutre seu orgulho, não quer que tenham piedade dele. Ele se sente
humilhado, quando mostram ter compaixão. Pois o narrador quer ser reconhecido e
admirado por seu trabalho literário, por seus artigos bem escritos e não por ser
alvo da piedade alheia.
Enquanto se esforça
para escrever, o protagonista se vê as voltas com uma aventura amorosa. Uma
certa moça, que ele abordara inconvenientemente algumas semanas antes, passa a
esperar seu vulto, junto a um poste na rua. Ele se entrega ao impulso de
curiosidade, quer saber quem é a moça, mas nem tem condições de se apresentar
socialmente – está sem roupas adequadas, tem aparência abatida. Não pode mais
resistir à fome, “Começara, porém, a
enfraquecer sensivelmente, e já não podia, de modo algum, jejuar como antes;
agora, bastava um dia para me dar vertigens, e se bebesse água desandava logo a
vomitar.” (p. 86)
Ele passa fome, mas
tem mais necessidade de escrever seus textos, assim mais importante que um pão
seria um lápis ou toco de vela. A escrita deverá atrair reconhecimentos – e
rendas. Ele escreve não apenas pelo dinheiro, mas para demonstrar seu talento,
e ser admirado. Contudo, a fome é o obstáculo, “E eu não tenho duas coroas. Que desolação, que miséria inigualável, ser
indigente a esse ponto! Que humilhação, que desonra!” (p. 87)
O protagonista
precisa se sentir superior – pois é um intelectual ! – para se manter digno na
miséria, para não mergulhar na inferioridade e na subserviência. Mas com as
mulheres é ele ainda um ‘desarranjado’, não consegue se impor, sente-se
miserável e assim nem uma prostituta ele consegue. Ele anda e anda pelas ruas da cidade, em
delírios de fome, a criar situações imaginativas, ora é um jornalista que
gastou tudo numa farra, ora um religioso que tece sermões para as ‘decaídas’, “Que alegria, perambular assim, fazendo boas
ações! [...] Sentia-me com ânimo absolutamente radioso, bem-disposto, cheio de
coragem – acontecesse o que acontecesse. Só me faltava uma vela; se
conseguisse, poderia terminar o artigo...” (p. 89)
Mas o ato de escrever
é cada vez mais difícil, o esforço é sempre maior, as palavras não correspondem
às ideias, os argumentos se embaralham, a miséria implode as abstrações. O mundo
é um fato concreto: a carência. Com o estômago vazio é mesmo impossível
filosofar! “o homem é aquilo que come”, já escrevera o pensador alemão
Feuerbach. “Com grande dificuldade
consegui alinhavar algumas frases curtas, duas dezenas de pobres palavras,
arrancadas Deus como, para avançar de qualquer jeito. E parei; a cabeça era um
vazio, não podia mais.” (p. 91)
Então o narrador se
angustia, em torpor, com auto-piedade e aguda consciência do próprio drama. Ele
escreve tempos depois do vivenciado, mas resta uma amargura, com certa
auto-ironia. Como pode uma mente tão alerta se deixar abater tanto? Ele luta o
tempo todo contra a indignidade, mas eis uma oportunidade para se valer de um
mal-entendido, de um troco equivocado. Não pensa duas vezes, tal o torpor, tal
o desespero. “A primeira desonestidade
verdadeira fora cometida; o primeiro furto, diante do qual todos os anteriores
nada significavam; a primeira pequena ... grande queda. Basta! Não havia meio
de voltar atrás.” (p. 94)
Ele tenta comer, mas
é inútil, pois de tão debilitado ele não consegue nem digerir o alimento. Não
há como aplacar a fome! “Isso me
exasperou; tornei a subir a rua, chorando, amaldiçoando os espíritos cruéis,
não importava quais fossem, que assim me perseguiam; condenei-os à danação
eterna e infernal, como castigo de tanta baixeza.” (p. 95)
Ainda curioso com a moça sob a luz do poste, o
moço esquece a fome e aborda a senhorita. É a mesma moça que ele abordara
semanas antes, em plena rua, por inconveniência. Ele não sabe o nome da jovem,
e sua mente mitomaníaca cria o sonoro nome Ilaiáli. No mais, ele idealiza mais
do que vivencia. E idealiza porque não pode vivenciar. Não tem dinheiro, nem
status, nem roupas, nem aparência digna.
Por outro lado, a
moça não percebe o quão miserável é o estado do nosso narrador. Ela se sente
atraída para ele, por seu modo diferente, ousado, mas antes imagina que ele
seja um bêbado do que um faminto com ares extravagantes. Quanto a ele, tudo
bem, ele aceita o interesse dela, mas está distante de poder corresponder ao
que ela espera – sequer tem um capital extra para divertir-se ou tomar um
drinque num lugar decente. Assim ele precisa revelar que é pobre, quase miserável
– e assim arriscar-se a perder a interessante senhorita.
Ele se esforça para
agradar, mas somente ele sabe o esforço que faz, que personagem precisa
interpretar, ele um moço sem qualquer posse ou posição social – como poderá
acompanhar uma senhorita decente pelas ruas, ao anoitecer, sem criar suspeitas?
Mas ele precisa dela, da atenção dela, para se reerguer...
“Caminhando a
contemplá-la, sentia-me cada vez mais corajoso; ela me estimulava, me atraía
para si, a cada palavra de sua boca. Por um momento esqueci minha miséria,
minha baixeza, toda a existência lamentável; o sangue corria-me, ardente, pelo
corpo, como antes da decadência.” (p. 100)
“Mas, ao chegar à
porta, minha miséria toda desabou novamente sobre mim. Também, como não perder
a coragem quando alguém se vê assim esmagado pela vida? Ali estava eu diante
daquela moça, roto, vestido pela metade, desfigurado pela fome, sem tomar banho:
era de afundar pela terra adentro.” (p. 101)
Meio ao enlevo
amoroso, o protagonista se vê obcecado pelo engodo do troco na mercearia. Ele
sequer pagara a vela, mas recebera um troco indevido. Mas ele precisa provar a
sua honestidade. É pobre, mas não vai se apropriar de bens alheios... “De qualquer modo, porém, aquele dinheiro me
pesava um pouco no bolso, não me deixava em paz. Investigando bem no fundo de
mim, descobri, claro como água, que antes era mais feliz, quando sofria com
toda a honestidade.” (p. 103)
Ele se desfaz das
moedas, entrega a uma velha vendedora ambulante, sem dizer palavra.
“Que gosto admirável,
o de sentir-me novamente homem de bem! Os bolsos vazios já não me pesavam, era
uma delícia encontrar-me outra vez a nenhum. Refletindo bem, esse dinheiro, no
fundo, me enchera de preocupações secretas, eu realmente me arrepiava ao pensar
nele; não era uma alma endurecida, pois minha natureza honesta se indignara
profundamente com aquela ação vil.” (p. 103)
O narrador pode ser
pobre, miserável, faminto, mas sua conduta ética é de base kantiana – faz o que
deve ser feito, e espera ser imitado – segue seu imperativo categórico de
dignidade humana. O que não evita que ele zombe de transeuntes ou confunda um
cocheiro com uma viagem inútil de um lado a outro da cidade. Sente-se em delírio,
em exaltação, quase embriagado, em ‘loucas imaginações’ – mas tudo consciente. “A loucura lavrava em meu espírito; deixei
que lavrasse, com plena consciência de estar submetido a forças que não poderia
dominar.” (p. 106) e “Sentia-me tão
profundamente desgostoso e fatigado por toda essa vida miserável, que já não me
parecia valer a pena lutar em sua defesa. A má sorte vencera, e fora demasiado
rude: eu era apenas uma extraordinária ruína.” (p. 107)
E ele segue a
perambular, sem ideias, sem esperanças, com nojo de si mesmo. Acaba por
confessar o engodo, o troco indevido, da noite anterior, apenas para deixar
perplexo o atendente da mercearia. E volta a perambular para casa, apenas para
se acusar de arrogância e se sentir culpado com a barriga vazia. Só resta
passar mais fome e se torturar. Em
febre, em delírio, ele se lembra de – e idealiza – sua Ilaiáli.
Após a febre – “não tinha consciência nítida do que
acontecera, olhava espantado em volta; transformara-se completamente minha
maneira de ser; já não me reconhecia a mim mesmo.” (p. 109) – ele segue com
fome medonha, a ponto de roer osso descarnado, até se cansar de vaguear,
enraivecido contra a providência que o martiriza, no fundo de sua miséria, ao
ponto de tornar-se um ser insensível, até se salvar com uma ajuda derradeira de
um possível editor – ou autoridade pública.
Com o dinheiro, ele
se abriga num hospedaria para viajantes, e lembra-se então de um encontro
marcado com a senhorita Ilaiáli. Mas é inútil insistir num enlace amoroso –
eles estão separados pela miséria dele. Faminto, neurótico, megalomaníaco,
orgulhoso, com cabelos a cair, em suma, desprezível ele se revela diante dos
olhos dela. Pior que um estudante farrista, um excêntrico bêbado, ele se mostra
o que é – um autor pobre, miserável. Ele revela toda a verdade, gasta sua ‘verborragia
literária’, é rude, cínico, terrivelmente sincero – e perde a senhorita de seus
sonhos e pesadelos. Ela é encantadora, logo ele não pode aceitar que ela se
rebaixasse à pobreza dele.
É uma alma delicada,
sensível, mas severamente atormentada pela miséria. O único ganho é sua
capacidade de observação, descrição, análise, “o fato é que a pobreza aguçara em mim certas faculdades, a ponto de
causar-me profundos dissabores, sim, posso lhe garantir, profundos dissabores –
ai de mim! Por outro lado, isso tem suas vantagens: até me ajuda, em certas
situações. O pobre inteligente é um observador bem mais fino que o rico
inteligente. O pobre olha em redor, a cada passo; examina, desconfiado, cada
palavra das pessoas que vai encontrando; cada passo que ele próprio dá impõe a
seu espírito e a seu coração uma tarefa, um dever. Tem ouvido fino, é
impressionável, experiente, leva queimaduras na alma...” (pp. 124-25)
O narrador, na parte 4 do romance, consegue manter-se
um tempo na hospedaria, onde pelo menos um desjejum básico é oferecido. Mas nem
sempre tem inspiração para seus textos. Mal consegue ter um pouco de
concentração, fazer um cálculo aritmético simples. Mas sua capacidade de
observação continua aguçada. E tem consciência da própria presença de espírito
– descarta a loucura.
“Havia muitos dias
que retomara o trabalho, sem conseguir escrever nada que me satisfizesse; não
tinha sombra de inspiração, sem embargo de aplicar-me e de tentar a todo
instante. Em vão atacava um assunto qualquer: nada saía certo, a sorte voara.” (p.
129)
“Afinal, acabaria
percebendo o estado de fraqueza a que chegara, e a que ponto o cérebro embotado
era incapaz de qualquer esforço.” (p. 130)
“O cérebro falhara.
Tornara-me assim um tão completo idiota, a ponto de ser incapaz de calcular o
valor de um pedacinho de queijo adubado? Por outro lado, seria possível que
houvesse perdido a inteligência, quando podia fazer a mim mesmo tais
perguntas?” (p. 132)
“Do que observava, eu
nada perdia, nem mesmo um aspecto insignificante. Minha atenção era vigilante
ao extremo. Respirava delicadamente cada pequenina coisa, e me representava
intelectualmente cada circunstância, à medida que ela transcorria. Assim era
impossível que minha razão estivesse perturbada. De resto, como poderia ficar
perturbada, agora?” (p. 134)
“Ri nervosamente de
minhas próprias brincadeiras, achando-as engraçadíssimas. Não tinha mesmo nada
de maluco, estava perfeitamente são de espírito.” (p. 134)
Ele ainda tenta
escrever, mas é sempre interrompido, pelas crianças que brincam e brigam no
pátio, pela presença da dona da hospedaria, pelas dores físicas e morais da
existência em penúria. Após tentativas infrutíferas, o narrador resolve sair em
andanças pelas ruas, onde ele encontra conhecidos, além de ver, por acaso, a
senhorita Ilaiáli (nome dado por ele) em companhia de um famigerado sedutor de
donzelas. Percebe que tudo o que via na mocinha era fruto de sua própria
imaginação exaltada. Era mais uma moça do povo que será enganada por outro moço
com segundas intenções. A vida é assim mesmo. Uns vencem, muitos perdem.
Ele vive de favor na
hospedaria, e tenta escrever. Mas há todo um drama familiar indiferente ao
talento frustrado do jovem autor pobre. Tudo serve para distrair a atenção do
autor, assim nunca consegue terminar seus textos, sempre incompletos e
fracassados. A amargura somente cresce – ele sabe que nunca conseguirá pagar
suas dívidas. O drama familiar ao redor do narrador é bem mais angustiante do
que o drama medieval barroco que ele tem em mente. A realidade é sempre mais
cruel que a idealização. Onde ele poderá se abrigar?
“Olhei para a porta,
não com propósito de ir embora, de modo algum. Veio-me uma ideia audaciosa. Se
a porta estivesse com chave, eu a trancaria e ficaríamos todos presos lá
dentro; assim, não seria obrigado a sair. Acometera-me um pavor absolutamente
histérico de me ver outra vez no olho da rua. Mas não havia chave na porta, e
levantei-me. Sem nenhuma esperança.” (p. 145)
Expulso da
hospedaria, novamente as andanças desvairadas sem rumo pela cidade. Atenção em
tudo para não sentir a fome. (Em A Náusea,
de Sartre, temos Roquetin que anda e vagueia pela cidade para conseguir afastar
de si o espectro da ‘náusea’, sua angústia existencial. E em Angústia, de Ramos, o protagonista
perambula para se livrar das frustrações amorosas e vivenciais) “A fome voltava a roer-me com ferocidade, e
era necessário dar um jeito o mais depressa possível. Com esse pensamento, dormi
no banco.” (p. 146)
Ele ainda se esforça
para escrever, mas o mundo ao redor é incremente, é indiferente. E nunca há uma
condição propícia para a concentração exigida pela escrita. Como compor um
drama sobre vultos medievais no meio de uma cidade grande com gritos de
cocheiros, olhares de guardas, cusparadas de mendigos? O mundo moderno destrói
qualquer tentativa de resgate histórico. Temos o cidadão tentando fugir da
cidade, mesmo mergulhado em seu tumulto. “Ah,
se arranjasse um lugar onde esconder-me... Refletia nisso, parado bem no meio
da rua; a questão é que não conhecia na cidade um único lugar sossegado onde me
instalasse por momentos.” (pp. 146-47)
Não há lugar
sossegado na cidade: todos lutam e se combatem e se entrechocam. Querem um
lugar ao sol, querem subir ao pódio! Seduções, traições amorosas, violências
físicas e morais, latrocínios, crimes passionais, tudo se confunde e se
complementa. Uma insensível selva urbana é o que temos diante dos olhos. “Era impossível continuar. Por fim, tudo começou
a girar na cabeça; parecia-me que tudo o que havia escrito não prestava para
nada, que aquela ideia era absurda e perigosa.” (pp. 148-49) Mas um momento
de sossego possibilita um encadeamento de ideias, até serem novamente
interrompidas por presenças do mundo real – a senhoria que reclama dívidas, que
vem mesmo expulsar.
“Tudo correu
admiravelmente durante alguns minutos. Réplicas e mais réplicas surgiam
prontas, num trabalho incessante. Enchia página sobre página, a galope. Soltei
como que um doce vagido, no êxtase da inspiração, inconsciente. O único som que
chegava até mim era esse vagido de alegria. Nisto, veio-me uma ideia
felicíssima: introduzir em certa passagem do drama o repicar de um sino. Ia
tudo às mil maravilhas.” (p. 149)
Expulso, o protagonista
teme morrer nas ruas, lugar indiferente aos seus sofrimentos. A miséria traz um
sofrimento físico que se torna um sofrimento moral quando o faminto toma
consciência de sua indignidade num mundo onde as posses definem o ser. Ser
despossuído é ser expulso e excluído – não há meio termo. Ou se torna um
corruptível como todos os que ‘vencem na vida’ ou deixa-se a cair na sarjeta.
Ao lembrar que a bela
mocinha de semanas antes, e da piedade que ela sente, ao enviar-lhe
anonimamente uma cédula – prontamente atirada à face da senhoria que o
expulsava – o narrador sente que está no fundo de sua miséria. Tornou-se um
mendigo, a viver de favores e da caridade alheia. Finalmente desiste da
composição do drama medieval – constata a impossibilidade de fugir do moderno,
da vida moderna e da fome na cidade – onde morrer diante da indiferença geral.
Mais um derrubado pela vida de competições e desigualdades.
Mesmo quando ele atua
com desprendimento, não recebe igual paga, não há reciprocidade, afinal ele não
passa de um miserável – não é visto como um cidadão, mas um pedinte que vem
incomodar. Se um dia ele entregou moedas a uma velha vendedora, dias depois ela
nem o reconhece, não concorda em matar a fome daquele pedinte. Inutilmente ele
tenta aplacar a fome – deve abrir mão de seu talento, de seus escritos e
assumir nova carreira. Que tal embarcar no próximo navio que sai do porto?
Empregar-se como um auxiliar de bordo seria uma forma de matar a fome. A escrita?
Ora, a escrita não satisfaz jamais a fome.
Fonte: HAMSUN, Knut. Fome. (Sult) Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Círculo do
Livro.
fev/mar/13
Leonardo
de Magalhaens
mais info sobre ‘Fome’
Hunger – on-line – Project Gutenberg
Filme
Hunger / Sult (1966)
baseado
no romance
Muito interessante. Posso perguntar como "traduziu" Ylajali para Ilaiáli?
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