segunda-feira, 15 de abril de 2013

sobre O LOBO DA ESTEPE - de Hermann Hesse / P 2






Sobre “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927)
do escritor alemão Hermann Hesse
(da trad. de Ivo Barroso)


A busca de si mesmo enquanto jornada literária

p2


Vivendo num mundo de leituras, o burguês-iconoclasta Haller é ainda um idealista. Assim na mesma condição de Emil Sinclair, no anterior “Demian”. O idealismo de Emil se manifesta até no plano da sexualidade, quando ele imagina uma amante ideal e evita contato com as garotas de sua idade e grupo social. Assim, como Harry Haller, o 'lobo da estepe', idolatra a bela Hermínia, que é uma projeção dele mesmo, o jovem Emil idolatra uma imagem, por ele mesmo desenhada, que denomina Beatrice, tal qual a musa das musas, a de Dante, poeta dos poetas. Muitas vezes as autodescrições do narrador Emil parecem-se com as ansiedades de um jovem 'lobo da estepe', como no momento em que ele lembra da obsessão pela imagem desenhada.


Impressionante como Hermínia conhece a vida (e os enigmas) de Haller, a ponto de ser uma amiga-mãe-conselheira, mesmo não se encaixando com a figura amoral, que vive da noite e na noite, que era desprezada pelo (ainda) moralista 'lobo da estepe',

Quero dizer-lhe hoje uma coisa que já sei há muito e que você também sabe, mas que talvez nunca a confessou a si mesmo. Quero dizer-lhe agora o que sei de mim, de você, de nosso destino. Você, Harry, sempre foi um artista e um pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre no encalço do grande e do eterno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais foi despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado destino, nada pôde ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura. Não é verdade, Harry? Não é este o seu destino?” ( pp. 162-63)

Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão. E, contudo, terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo...” (p. 164)

pois desde antes explicitava as relações de semelhança entre ambos, “Sou como você. Porque estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim mesmo quanto você; e, como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem conformar-se com sua estupidez e crueldade.” (p. 138)

Interessante a relação de Haller com o músico jazzista Pablo – a lembrar certa relação de Sinclair com o músico organista Pistórius, em “Demian” – que apresenta a música enquanto expressão e libertação dos instintos, em conexão com as harmonias universais, que devem ser captadas pelas mentes superiores, verdadeiramente ligadas com o macrocosmo. Mentes que devem adentrar mistérios, criar rituais e festividades, novas cerimônias coletivas, novos símbolos compartilhados, pois uma religião solitária não existe. Toda celebração é integrada a um contexto, uma força além do indivíduo, dos indivíduos.

Ao fim, numa série de cenas, que não sabemos serem reais, surreais ou alucinações, o protagonista se vê num baile de máscaras, e, logo depois, num 'teatro mágico' habitado por suas obsessões, delírios, desejos personificados, onde encontra velhos eruditos, gênios, tais como Mozart e Goethe, além de velhos burgueses em campos de batalha, em cenas de crueldade (a qual se acreditava banida da civilização ocidental...). Na mocinha Hermínia, Haller vê o amigo de infância Hermann, vê a si mesmo, vê um objeto de desejo. Meio ao ambiente festivo-delirante, o narrador sente sua própria despersonalização,

Mas hoje, nesta bendita noite, expandia eu mesmo, Harry, o Lobo da Estepe, aquele sorriso, agitava-me eu mesmo no doce sonho e na embriaguez da comunidade, da música, do ritmo, do vinho e dos prazeres do sexo, cuja exaltação ao descrever um baile eu ouvira na voz de qualquer estudante em outros tempos com um ar de mofa e pobre superioridade. Eu já não era eu mesmo, minha personalidade se dissolvera na embriaguez da festa como o sal na água.” (p. 183)

Havia perdido a noção do tempo, não sabia as horas ou os instantes que durava aquela felicidade embriagadora. Tampouco percebi que a festa, quanto mais animada se fazia, tanto mais se concentrava num espaço menor. (…) Eu não tinha pensamentos. Flutuava imponderável no torvelinho da dança, comovido pelos perfumes, os sons, os suspiros e as palavras, saudado por olhos estranhos, rodeado por estranhos rostos, lábios, braços, peitos, joelhos, levado daqui para ali ao compasso da música como uma onda.” (p. 184)
Haller sofre um processo de despersonalização, de fragmentação das identidades, vendo-se o que ele era, o que desejava ser, o que seria se seguisse um caminho na vida. Tudo num caleidoscópio de potencialidades, de possibilidades do ser, como vários Hallers em universos paralelos, ou alternados. Um jogo de espelho onde a imagem do Eu (a imagem que temos de nós mesmos) se distorce, se desfoca, para mostrar faces que desconhecemos ou não admitamos em nós mesmos.

[Pablo] manteve o espelho suspenso diante de meus olhos (lembrei-me de uns versos infantis: 'Espelhinho, espelhinho em minha mão') e vi, algo liquefeito e nebuloso, uma imagem inquietante, voltada sobre si mesma, auto-atormentada, trabalhando em si mesma – eu próprio, Harry Haller. E dentro desse Harry Haller, vi o lobo da Estepe, um lobo tímido, formoso, mas de olhar confuso e angustiado que ora faiscava com malignidade ora com tristeza, e essa figura de lobo corria incessante pelo corpo de Harry, como um afluente na correnteza do rio principal, com outra cor, turvo e agitado, lutando dolorido, devorando-se um ao outro pra preservar a sua forma. Triste, muito triste me contemplava o lobo fugidio e meio plasmado, com seus belos e tímidos olhos.” (p. 189)


No teatro dos sonhos, no mundo dos delírios, Haller encontrará a libertação de si mesmo? Pablo é o mestre-de-cerimônias no show de surrealismo, em bizarro mundo de imagens e deformações, desejos e desilusões,

Sem dúvida já terá adivinhado há algum tempo que o domínio do tempo, a libertação da realidade e tudo aquilo que deseja chamar de seu anseio não significam outra coisa senão o desejo de libertar-se de sua chamada personalidade. Tais são as prisões em que você se encontra. E se entrasse neste teatro assim como está, assim como é, acabaria por ver tudo com os olhos de Harry, com os velhos óculos do Lobo da Estepe. Por isso convido-o a despojar-se desses anteparos e deixar no vestíbulo a sua honrada personalidade, onde estará a sua disposição a qualquer momento que assim o desejar. A maravilhosa noite de baile da qual acabam de vir, o Tratado do Lobo da Estepe e, por fim, os estimulantes que acabamos de tomar devem tê-lo preparado suficientemente.” (p. 190)

Num espelho reflete-se as mil possibilidades de ser, as mil personalidades que se abrigam num único indivíduo – como bem explicitou Walt Whitman e Fernando Pessoa em seus poemas onde se manifestam multidões de possíveis Eus – em várias situações, circunstâncias, momentos da existência, a ponto de Haller se imaginar um esquizofrênico, um louco de fato.

E vi, durante um brevíssimo instante, o Harry que eu conhecia, mas com uma fisionomia inusitada, de bom humor, luminosa e sorridente. Mal o reconheci, porém, desfez-se em pedaços, dele saltando uma segunda figura, uma terceira e logo dez ou vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de Harrys e de fragmentos de Harrys, infinitos Harrys, cada um dos quais eu olhava e reconhecia em um momento instantâneo como um relâmpago. Alguns daqueles Harrys eram tão velhos quanto eu, outros muito mais, alguns velhíssimos, outros muito jovens, rapazes, meninos, crianças de escola, garotos, molecotes. Harrys de cinquenta e de vinte anos corriam e saltavam uns atrás dos outros, de trinta e de cinco anos, sérios e divertidos, dignos e cômicos, bem-vestidos e esfarrapados e também completamente despidos, e todos eram eu mesmo, e cada qual era visto e reconhecido por mim e logo desaparecia com a velocidade do raio, corriam em todas as direções, para a direita, a esquerda, para o fundo do espelho e até saíam dele.” (p. 193)

        No mundo dos delírios, Haller pode ter a mulher que deseja, pode dirigir automóveis em alta velocidade, pode testemunhar o duelo da máquina versus o ser humano, pode realizar anseios ocultos reprimidos, pode visitar campanhas de batalhas, pode inclusive fazer parte das carnificinas! A guerra enquanto loucura coletiva, onde até os mais sensatos, mais eruditos, professores, estudantes, oficiais, podem se tornar assassinos compulsivos a dispararem projéteis sobre quem parece ao alcance do tiro, não passando de alvo numa mira, não um ser igual, não um 'próximo' a quem a religião postula que amemos como se fosse nós mesmos.

A guerra é o grande drama que Demian, na obra anterior, profetiza, ou pressente, é o mesmo grande conflito que Nietzsche esperava para o fim da civilização (tal como se conhecia), o mesmo conflito que ceifou a vida de poetas e jovens estudantes, além de personagens, como bem lembramos de Hans Castorp, do clássico “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924) de Thomas Mann, que morre ao fim do romance, após uma vida retirada (e algo meditativa e digressiva) num sanatório no alto das montanhas, longe dos dramas da planície, com sua mesquinharia e competição.

Quando a grande guerra finalmente começa, em fins de 1914, Demian se apresenta como oficial, e segue junto aos milhares, depois milhões, de jovens rumo ao front e a morte violenta. Alemães, austríacos, turcos matam, e se deixam morrer, em batalhas com britânicos, franceses, russos, sérvios, árabes, depois norte-americanos, brasileiros, etc. Nacionalismos e ideologias se combatem nos campos de sangue, entre arame farpado e tiroteios, matando toda uma geração de jovens tradicionalistas ou idealistas.

Podemos imaginar os poetas alemães, franceses, ingleses, cada um lutando por sua pátria, a matarem uns aos outros, entre euforia e melancolia, assim um Erich Remarque atirando num Alain-Fournier, ou num Céline; ou Ernst Jünger metralhando um Wilfred Owen, ou um Rupert Brooke, num drama de cenário despedaçado e ensanguentado. Lembramos poemas de Georg Trakl, de Edward Thomas, de Siegfried Sassoon, que tematizam a guerra ao mesmo tempo em que a sofrem, enquanto findam junto com as marchas e metralhas.


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No campo de batalha o livre-pensador vislumbra o quanto os seres humanos estão dispostos a morrer por ideais, mesmo que não sejam ideais deles, mas de um sistema político ou classe social. A matança não é algo apenas externo, mas antes uma projeção do desejo de morte, da autodestruição interna, que Freud já diagnosticara, em contraponto ao ‘princípio do prazer’.


Enquanto participam da guerra, em cena bizarra e surreal, além de trágica, Haller e um professor discutem filosofia, quando tecem seus comentários metafísicos sobre a nossa doentia civilização. Explica-se o professor, ou ex-professor, agora no papel de combatente ou terrorista, tomado por uma obsessão de destruição autodestrutiva, uma demonstração do princípio de morte, diagnosticado por Sigmund Freud,

A noção de dever me é inteiramente desconhecida. Antes, em decorrência de minha profissão, tinha muito a ver com ela; era professor de Teologia. Além disso, fui soldado e tomei parte na guerra. O que me parecia o dever e o que as autoridades e as leis me haviam ordenado não era realmente bom, e de boa vontade teria feito exatamente o contrário. Mas embora admita que o conceito do dever não mais me atinja, conheço contudo o conceito da culpa; talvez sejam a mesma coisa. Desde o instante em que nasci, já era culpado, condenado a viver, obrigado a pertencer a um Estado, a ser soldado, a matar, a pagar impostos para comprarem armas. E agora, neste exato momento, o delito de haver nascido me força a matar, como na guerra. E desta vez não mato com repugnância; estou resignado à minha culpa, nada tenho a opor que este mundo imbecil e obtuso se faça em pedaços, e colaboro com gosto na tarefa, e prazerosamente sucumbirei com ele.” (pp. 200-01)

         O ex-professor justifica a violência com o pulsar do instinto, como uma explosão de selvageria, como uma 'infantilidade', como uma consequência da superpopulação, como um embate de ideais, tudo isso entre um tiro e outro, uma tirada irônica e outra. Mil outras aventuras, mil outros desejos se afiguram diante dos olhos do 'lobo da estepe' ávido por experiências de despersonalização, onde ele pode assumir várias identidades e satisfazer vários delírios egoístas, mesquinhos, hedonistas. Taras sexuais, gulodices, mantras, espiritualismos ritualísticos, tudo à mão, tudo acessível, tudo à venda, basta que o indivíduo – ou consumidor – tenha o passe, o desejo, o dinheiro, o cartão de crédito.


         A questão da guerra como absurdo e que nos faz ter consciência da efemeridade da vida é uma pulsões principais para que autores grandes como Hermann Hesse e Thomas Mann tenham escrito obras tão existenciais quanto “Demian”, “O Lobo da Estepe” e “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924) onde o ser humano está no limite, a questionar sua presença e participação neste mundo tão inexplicável. O senso comum simplesmente 'aceita o mundo como ele é', e reproduz a ignorância e a inércia social.



Desde Freud (ou Dostoiévski?), com sua psicanálise, sabemos que o ser humano não é uma unidade psíquica, mas uma criatura segmentada em camadas psíquicas, do profundo Id ao socializado SuperEgo, em contradições e incoerências, muitos Eus num só ser catalogado, numerado pelos trâmites do Estado. Vem daí a impressão de ser uma pessoa, quando, em verdade, somos muitas personas, em espantosa diversidade. Diz Pablo ao protagonista, textual e metaforicamente, sobre o fenômeno das personalidades, ou da pluralidade de personas num único indivíduo,

O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou para esse fenômeno a designação de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multiplicidade dos egos subordinados. Esse erro da ciência acarreta consequências desagradáveis; sua única vantagem reside na simplificação do trabalho dos mestres e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em consequência deste erro, muitos homens que passam por 'normais', e até por valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da alma. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio eu, que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jogo da vida. Assim como o dramaturgo cria um drama a partir de um punhado de personagens, assim construímos, com as peças de nosso eu despedaçado, novos grupos com novos jogos e atrações, com situações eternamente novas.” (pp. 207-08)

No teatro mágico temos o apogeu, o clímax da dramaticidade na cena de ares expressionistas, até góticos, de novela noir, onde Harry Haller destrói a sua 'cara-metade', a parte-de-si-mesmo, personificada na bela e enigmática Hermínia,

Abri. O que encontrei foi uma cena bela e simples. Num tapete que recobria o solo vi duas figuras desnudas, a bela Hermínia e o formoso Pablo, uma ao lado da outra, adormecidas profundamente, totalmente esgotadas pelo jogo do amor, que tão insaciável parece e, contudo, tão logo nos sacia. Formosas, formosíssimas criaturas, soberba imagem, corpos maravilhosos! Sob o seio esquerdo de Hermínia havia uma mancha redonda e fresca, que começava a roxear – uma dentada amorosa dos alvos dentes de Pablo. Ali onde havia a marca, cravei meu punhal até o cabo. O sangue correu sobre a pele branca e delicada de Hermínia. Eu teria beijado aquele sangue cem, mil vezes, se tudo tivesse corrido um pouco diferente. Agora já não havia lugar para isso; olhava apenas como o sangue fluía e vi seus olhos se abrirem por um momento, cheios de dor, profundamente assombrados. 'Por que se espanta?', pensei. Então me ocorreu que eu teria que cerrar-lhe os olhos. Mas estes se cerraram por si sós. E tudo estava feito. Só se voltou um pouco de lado, e desde a axila até o seio vi correr uma delicada e fina sombra, que pareceu querer recordar-me algo, mas não atinava com o que era. Logo jazeu imóvel.

Contemplei-a por longo tempo. (…)

Seu desejo se havia cumprido. Antes que fosse inteiramente minha, havia matado o meu amor. Fizera o impensado, e então me ajoelhei diante dela e fitei-a fixamente e não sabia o que esta ação significava, se fora justa e boa ou totalmente o contrário. (…)

Cada vez refulgia-a mais rubra a boca pintada no rosto apagado. Assim fora toda a minha vida. Minha parca felicidade e amor tinham sido como aquela boca pasma: um pouco de carmim numa máscara mortuária.

E do rosto morto, dos brancos ombros mortos, dos mortos braços alvos exalava um horror, que se aproximava lentamente, uma solitude e um deserto hibernal, um frio que crescia lenta e lentamente, no qual se iam tornando hirtos os lábios e as mãos. Terei apagado o sol? Matei o coração de toda a vida? O frio da morte estender-se-á por todo o universo?” (pp. 226-27)


Toda esta pungente cena lembra aquele dolorido poema de Oscar Wilde, a Balada no Cárcere de Reading, “No entanto, cada um mata o que ama”. Segue-se a execução de Harry – após ter matado no teatro dos sonhos (e em si mesmo) a sua cara-metade Hermínia – em toda uma encenação, daquelas de tribunal, que tanto empolgam os que adoram julgar, apontar dedos para os pecados alheios. O juiz é algo caricato e pedante, como se é de esperar numa obra com uma sensível ironia,

Meus senhores, em vossa presença está Harry haller, acusado e julgado culpado de uso fraudulento de nosso teatro mágico. Harry não só ultrajou a arte sublime, confundindo nossa formosa casa de imagens com a chamada realidade, matando uma jovem ilusória com um punhal ilusório, com também demonstrou sua intenção de servir-se de nosso teatro como de uma máquina de suicídio, sem nenhum humor. Em consequência, condenamos o mencionado Sr. Haller à pena de vida eterna e a proibição por doze horas de entrar em nosso teatro. Tampouco poderemos perdoar ao condenado o castigo de lhe rirmos na cara.

Ao três todos os presentes prorromperam numa gargalhada unânime, uma gargalhada em coro elevado, uma gargalhada do além, dificilmente suportável pelos ouvidos humanos.” (p. 232)


Assim, teatralmente, o livro se encerra com uma risada geral. Pablo, Mozart e o ‘lobo da estepe’ Harry Haller, todos a rirem de sua dramática autoconsciência. Tanto em sua obra anterior, “Demian”, quanto em “O Lobo da Estepe”, o autor Hermann Hesse apresenta os dilemas do intelectual numa sociedade massificada, onde os bens espirituais são também comercializados, e o bom senso é mercantilizado como outra etiqueta no catálogo, sem consideração pela dignidade ou pela elevação cultural, tudo numa busca de efemeridades que apenas alienam o ser pensante e empobrecem suas potencialidades de entendimento e da expressão. A tarefa do intelectual é observar o mundo, superar o isolamento, evitar o anonimato na multidão, mas participar dos dramas, testemunhar o vivenciado e alertar para que as perdas e os horrores não se repitam.



Fonte: HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. Trad. Ivo Barroso. RJ: Record, 2010.



nov/12 & mar/13


Leonardo de Magalhaens





Sobre o autor Hermann Hesse :

Contista, poeta e ensaísta, Hermann Hesse nasceu em 2 de julho de 1877 na pequena cidade de Calw, na Alemanha. Filho de um pregador pietista, estudou Latim e Teologia no seminário de Maulbronner, do qual fugiu em 1891. trabalhou como livreiro e antiquário, dedicando-se exclusivamente à literatura a partir de 1903. entre seus títulos mais conhecidos estão O Lobo da Estepe, Demian e Sidarta. Hermann Hesse foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, e morreu em 9 de agosto de 1962.”


O tradutor Ivo Barroso sobre a vida e obra de Hesse:

Cabe uma palavra final sobre a atitude de Hesse em relação à guerra e à comunidade. Pode parecer hoje um tanto superado o desprezo pela coletividade demonstrado por Sinclair, passível de confundir-se com um sucedâneo da torre de marfim. Mas o que Hesse realmente ataca é a aceitação do rebanho, permeável a influências externas, capaz de ser levado à guerra na ilusão de estar praticando um ato heróico. A atitude não está certamente isenta de alguma aristocracia intelectual, mas formulada antes do sentido do culto do individualismo enquanto útil, capaz de encontrar o destino, do que no isolamento gratuito e inaplicável. Hesse rebela-se contra a uniformização; não é a massa que o impressiona, mas os processos de submissão, de estandardização a que ela se submete. Ergue um canto de glorificação ao indivíduo consciente de si mesmo e de seu próprio caminho e execra o morticínio capaz de destruir com uma simples bala esse experimento único e insubstituível da natureza : o homem.”

fonte: Record, 2006.



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wikipedia


filme
(1974, diretor Fred Haines )



artigo de Bernardo Carvalho

ensaio de Sandro Nasser

sobre a Contracultura

Hermann Hesse
curta biografia (inglês)



Referências


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do Subsolo. Trad. Maria Aparecida B. Soares. L&PM Ed. 2009.


HESSE, Hermann. Demian. Trad. Ivo Barroso. 37ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2006.

_______ . O Lobo da Estepe. Trad. Ivo Barroso. 35ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.

MAUGHAM, W. Somerset. O Fio da Navalha. (The Razor's Edge, 1944) Trad. Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Nova Cultural, 1986.


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