segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

sobre "O Ateneu" - de Raul Pompeia




Sobre “O Ateneu” (1888)

do escritor Raul Pompeia (1863-1895)


Sofrimentos juvenis na educação padronizada



A vida escolar


A instituição escola com todas as suas benesses e limitações é aqui tematizada, enquanto ambiente de aprendizado de amizades e hostilidades, de superação e de submissão, onde o aluno é educado (aqui educação equivale a formatação) para um lugar determinado, uma posição na sociedade adulta. Mero processo de encaixe numa ordem estabelecida.


Escola de 'elite', uma educação para a Elite – um tipo avançado de adestramento. Como se portar num mundo onde uns lucram e outros pagam o preço. No aclamado internato Ateneu os filhos dos novos-ricos da borracha e do charque – novas riquezas e novos arrivistas – da desigual sociedade de classes.


No Ateneu temos a imponência da escola, com as cerimônias os discursos, os meros discursos. A ignorância e o vício continuaram e continuam. Tudo dentro de uma ordem de reprodução do mesmo, onde todos devem ser enquadrados. Onde o conceito de normalidade depende de quem manda – quem julga.


Assim não nos espanta que a descrição do Dr. Aristarco Argolo de Ramos, o diretor, seja tão irônica quanto aquela do Dr. Bacamarte, de “O Alienista” de Machado de Assis. Tanto um quanto outro procuram 'enquadrar' pessoas num modelo de comportamento.


Diante de uma educação padronizada e castradora, podemos lembrar do clima escolar opressor em “Sociedade dos Poetas Mortos” (Dead Poets Society, 1989 ) o filme (de Peter Weir) que evidencia as diferenças entre a educação formal e a criatividade. Escolas não formam pessoas criativas, mas ao contrário. Um processo de Educação ligado à severidade, à solenidade, conduzindo não à criatividade, mas à melancolia. “a atmosfera moral da meditação e do estudo” (p. 18) (As citações de “O Ateneu” . Ática, 1998. (Série Bom Livro))


Eis o ambiente da escola de internato, com sua ordem, sua disciplina, sua coerção, seu proto-militarismo. Nada diferente das escolas inglesas, irlandesas, austríacas e alemãs, ou norte-americanas, como veremos em obras tais como “O Retrato do Artista Quando Jovem”, “O Jovem Törless”, “Tonio Kroeger” e “Apanhador no Campo de Centeio”.


a certeza de amestrada disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exército sob o comando do mais raro instrutor.” (p. 19)


Como assim um instrutor? Quem seria além daquele pedante Aristarco? O diretor é aquela figura a simbolizar a Vaidade, a vã-glória, o poder paternal e paternalista, gentil, mas hipócrita, se atento, por dever de vigilância, numa presença que intimida o novo aluno,


O diretor recebeu-nos em sua residência, com manifestações ultra de afeto. Fez-se cativante, paternal; abriu-nos amostras dos melhores padrões do seu espírito, evidenciou as faturas do seu coração. O gênero era bom sem dúvida nenhuma; que apesar do paletó de seda e do calçado raso com que se nos apresentava, apesar da bondosa familiaridade com que declinava até nós, nem um segundo o destituí da altitude de divinização em que o meu critério embasbacado o aceitara.” (p. 23)


Esta é a imagem do diretor: educador pedagogo paternal e gerente esperto, “A cadeira girava de novo à posição primitiva; o livro da escrituração espalmava outra vez as páginas enormes; e a figura paternal do educador desmanchava-se, volvendo a simplificar-se na esperteza atenta e seca do gerente.” (p. 26) Evidencia-se a feição dupla da mesma individualidade: educador-empresário (“opostos, mas justapostos”) o acolhimento de acordo ou proporcional a 'condição social', isto é, trata-se melhor quem pode pagar mais...


Do outro lado a condição do aluno – a sua posição na hierarquia interna do Ateneu-Mundo – é dada pela condição econômica da família, seu lugar na escala social, não pelas virtudes e alentos da personalidade infantil e juvenil. Para se desenvolver enquanto mente criativa o jovem precisa deixar tanto os valores familiares quanto os da suposta 'educação'.


O ambiente do colégio Ateneu lembra aquele seminário onde estudou o aluno seminarista Julien Sorel em “O Vermelho e o Negro” (“Le Rouge et le Noir”, 1830 ), obra já analisada aqui no Meu Cânone Ocidental. Lá o inteligente Sorel precisa enfrentar falsos sacerdotes, nobres decadentes, burgueses arrivistas, para conseguir um 'lugar no mundo'.



Mais no link http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/04/sobre-o-vermelho-e-o-negro-stendhal.html


Tanto o ambicioso Julien quanto o tímido Sérgio passam pelo ambiente do internato onde se pretende 'formar cidadãos' num verdadeiro processo de moralização: isto é, de correção, domesticação dos instintos (segundo uma perspectiva que encontramos no pensamento de Nietzsche) onde o trabalho do mestre é corrigir os maus hábitos, enquanto mantem os alunos num sistema de disciplina e padronização.


Para esta domesticação servem também os bedéis e demais colegas. Uns condicionando os outros. Neste contexto aparecem o bedel João Numa, o professor Mânlio e o aluno Rebelo. Aparecem em descrições caricaturais dos colegas. Cada aluno tem um defeito ou virtude que o destaca, que o identifica meio à multidão. E diante deste coletivo, o novo aluno se intimida.


Assim o narrador (o eu adulto) até exagera a timidez do novo aluno Sérgio (o eu juvenil) quando declara a real fobia que o oprime quando é chamado ao quadro-negro diante da classe, “acovardou-me o terror supremo das exibições” (p. 31)


É quando Sérgio toma consciência do descompasso entre o idealizado e o real, pois ele desejava impressionar os colegas, mas apenas consegue passar vexame. Percebe-se no time dos fracos, dos tímidos, dos pouco sociáveis. Somente assim se entende a atitude de Rebelo ao alertar sobre os grupos de 'imorais' e ao descreve as personalidades dos outros alunos. Ali toda uma sociedade de desejos juvenis é congregada para a vida comum do internato.


Não faltam os conselhos: “faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se” e “comece por não admitir protetores” (p. 33) Que conselhos importantes se considerarmos o ambiente de colégio interno. Ali a vida é regulada por forças de amizade e de hostilidade. Grupos se juntam contra outros grupos, rivalidades surgem por caprichos. Assim é em “O Jovem Törless” (1906) de Musil, que analisaremos em ensaio próximo.


O colégio é mais um lugar de competições, de disputa, de luta constante, um mundo darwiniano onde apenas os fortes sobrevivem, meio ao naufrágio dos ideais, lá o protagonista vive sua 'solidão moral',


Ao mesmo tempo oprimia-me o pressentimento da solidão moral, fazendo adivinhar que as preocupações mínimas e as concomitantes surpresas inconfessáveis dariam pouco para as efusões de alívio, a que corresponde o conselho, a consolação.


Nada de protetor, dissera Rebelo. Era o ermo. E, na solidão, conspiradas, as adversidades de toda espécie, falsidade traiçoeira dos afetos, perseguição da malevolência, espionagem da vigilância; por cima de tudo, céu de trovões sobre os desalentos, a fúria tonante de Júpiter-diretor, o tremendo Aristarco dos momentos graves.” (p. 36)


pois o menino imaginava uma escola e encontra outra.... o descompasso cria uma angústia: não o mundo perfeito? Lá onde cultivar amizades e evitar desavenças, onde seu desenvolvimento estaria garantido na perfeita educação do corpo e da mente. Assim, ao representar antagonismos e lutas de interesses, o colégio é mais um microcosmo do mundo adulto, o mundo dos que mandam e dos que obedecem.


Comportamentos ambíguos não faltam. A mesma mão que acaricia pode em seguida ferir de morte. O colega Sanches provoca quase afogamento e ao mesmo tempo selva Sérgio – proteção? Amizade? O que pode se esperar? Em quem se pode confiar? Afinal, uns são fortes porque vivem se impondo aos outros, enquanto os demais, os fracos, são aqueles que abrem mão dos micropoderes (por opção ou por medo).



Percebemos que não faltam castas e hierarquias no Ateneu: o 'aristocrata' Aristarco a reproduzir a 'ordem social' – líderes, polícias, políticos, servos, onde reina uma disciplina (“suprema ditadura”) cheia de punições (“regime siberiano”). Ao notar tantas camadas de poder opressivo num mundo tão pequeno – um internato! - o jovem protagonista constata em si mesmo a perda dos “ideais ingênuos” quando “premia-me a força das coisas” (p. 40), o jovem sufocado pelo mundo das hierarquias, onde se evidencia a influência do meio sobre a personalidade, do contexto sobre o sujeito, “A letargia moral pesava-me no declive” e “Tudo ameaça os indefesos” e também “o risco da decadência era constante.” (cap. III)

Sérgio se deixa sob a 'proteção' e 'orientação' de Sanches, aluno aplicado mas 'as aparências enganam'. O protagonista até reconhece a 'erudição' da Sanches e afasta a repulsa do primeiro contato – mas os novos contatos, a aproximação constante não é de amigo. Sanches é o aluno mais velho que simula amizade para se aproximar e seduzir o mais novo – e se o passivo resistir à sedução, o mais velho faz chantagem, que o novato vai perder a proteção.


O orientador exerce domínio sobre o pupilo – é um possuidor – ousa 'risos de malícia', cria uma 'zona magnética' que cativa , “Não causavam estranheza as nossas relações.” (p. 47) mas o avanço erótico de Sanches é refreado por Sérgio – que assim perde o sedutor e orientador.


Destas relações de dominador – dominado veremos mais detidamente no ensaio sobre “O Jovem Törless” (de Musil) onde são mais explicitadas. Os mais fortes (decididos, ousados, perversos, etc) dominam ao manipularem o medo dos mais fracos (tímidos, retraídos, etc). Ainda o tema do Darwinismo – a seleção dos mais fortes – que tanto atraía a atenção do autor Raul Pompeia.


Há todo um idealismo - “a reabilitação do mundo” (cap. IV) – ao perder-se o ideal da escola. A escola não estimula a criatividade – mas o medo. O medo da avaliação de desempenho – o livro das notas – que aterroriza até os alunos destacados, os bedéis. Há toda uma punição moral: a exposição pública das faltas, assim a destruir a reputação do aluno diante dos outros.


O protagonista atravessa um período de 'febre religiosa' – ao pecar aos olhos da disciplina, ao sofrer a humilhação e a solidão, na figura do mártir - “andava só e calado como um monge” (p. 52) onde o crescimento espiritual é um nome sublime para resignação. A mesma imagem castradora da religião é encontrada em “Retrato do Artista quando Jovem”, onde a descrição do inferno traz um sofrimento psíquico e moral ao jovem Stephen Dedalus, o alter-ego juvenil do autor James Joyce, que não hesita em mostrar as consequências da vida religiosa na formação das neuroses.


É uma fase de misticismo e de melancolia que é narrada numa atmosfera a lembrar os versos de um Alphonsus de Guimaraens e de um Cruz e Sousa... Onde não há uma elevação, mas resignação, um deixar-de-ser, um fugir-do-mundo.


Pairando sobre tudo a figura entre deus e demiurgo, entre providencial e demoníaca de Aristarco: dono, fundador, diretor, constante vigilante (uma espécie de Grande Irmão / Big Brother ao estilo pensado por Orwell? ) mais atento que a espionagem entre os alunos. O diretor sabe de tudo e age como agiria tempos depois um líder fascista, um policial nazista: olhos em toda parte, patrulha a espontaneidade alheia.


Num momento quando o protagonista se envolve na vida do Ateneu, em seus contatos com os alunos problemáticos, Sérgio entoa hinos com Ribas, se apieda de Franco, perseguido e humilhado por todos. Tanto que Franco quer se vingar: decide jogar vidro quebrado dentro da piscina. Enquanto isso Sérgio, cúmplice, sofre de remorso. É mesmo mais fácil a decadência, o degradar-se – do que a autonomia, a independência?


No capítulo V encontramos mais imagens religiosas, místicas, simbolistas, no mergulho e no emergir da obsessão religiosa - “depois desses entusiasmos foi-se-me a religião escurecendo” (p. 66) - onde temos descrições da punição, do inferno - tal como no inferno descrito no livro de J. Joyce, o “O Retrato do Artista quando Jovem”, pois a religião é vista mais como fomentadora do medo e não da superação – a vida religiosa é uma domesticação, tal como dizia o pensador alemão F. Nietzsche.


Pois “comecei a achar a religião de insuportável melancolia” (p. 67), numa melancolia onde a moral dos fracos se perpetua ao enfraquecer os fortes. E na luta pela vida não há lugar para fraquezas e hesitações. Logo o jovem Sérgio percebe o caráter espectral do cristianismo, tal um teatro de sombras, “ignorante do ateísmo, limitei-me a voltar o rosto aos fantasmas do eterno” (p. 67).


Afinal, a metafísica torna-se um pesadelo, e o jovem resolve dizer um NÃO ao rebanho e assim resguardar-se na volta à solidão. Assim o jovem protagonista prefere a autonomia, foge do arbítrio da coletividade opressiva, e ousa ter opinião própria, que tem vantagem, “a vantagem alta da originalidade. Com uma palavra fez-se um anarquista.” (p. 69).


Quando percebemos o duelo que surge entre a independência e a autoridade, o pensamento original no meio da instituição, quando se firmam a individualidade e a identidade do jovem. É quando o protagonista Sérgio começa a ganhar rivais e inimigos.


Pois é preciso lutar contra a influência do meio a pressionar sobre a personalidade (a determinar a consciência de muitos), mas há sempre os 'flutuantes', pois que flutuam acima da mesmice, são os seres criativos, deslocados, os 'gauche na vida', os ironizados e invejados nerds, os artistas. Afinal que determinismo explica um Van Gogh? Um Nietzsche? Um Kafka?



Justamente o artista precisa fugir da conformidade instituía pelo poder, pela autoridade, pelas hierarquias que esmagam o caráter do Eu em formação. Veremos mais sobre isso nos Künstlerroman Tonio Kroeger “ e “Artista quando Jovem”.


Ao nível do enredo – ou seja, o mundo fora das impressões de Sérgio – temos a ocorrência de um crime a chocar alunos e mestres no Ateneu. Um cadáver vem romper o mundo da elevada educação. Um cadáver de um serviçal cria uma paródia de cena de tragédia.


Um crime causado por competição amorosa, pois a causa é uma jovem sedutora e volúvel, indiferente aos que matam ou morrem para possuí-la. Assim o crime surge aqui devido a presença da mulher. Justamente a presença feminina – imagem e corporificação da sexualidade na forma de 'objeto de desejo' - que perturba o jovem Sérgio (assim como perturba os jovens Törless e Stephen Dedalus) em momento tão delicado.


No capítulo VI o protagonista tem contato com a arte literária e a retórica, com destaque para o escritor francês Jules Verne com suas aventuras de “volta ao mundo' ou de “léguas submarinas”, com a figura do Capitão Nemo no fundo obscuro do mar, além de outros clássicos (adaptados para o público infanto-juvenil no século 20) tais como “Os Três Mosqueteiros” e “Viagens de Gulliver”, além das peças de Shakespeare (“Romeu e Julieta” e “Rei Lear”, por exemplo).


Sérgio agora admira outro aluno, lá das classes superiores, o discreto Bento Alves, a quem o narrador não hesita em admirações, “Estimei-o femininamente” (p. 84), pois “sentia-me bem na submissão voluntária” quando espera o olhar alheio – não é fato que precisamos do olhar do Outro para nos definirmos? Ainda mais quando somos jovens...


As conferências retóricas do Dr. Claudio sobre o darwinismo, sobre o cientificismo, tudo isso muito em voga no fins do século 19. (Vide o positivismo que influenciou o republicanismo brasileiro...) Na erudição retórica aqui desfilam as imagens da evolução das espécies, da luta pela vida, da firmação dos instintos, do aparecimento do ser humano, do fenômeno da consciência, da formação do indivíduo, em suma uma aula de história natural e humana, ao alcance dos jovens alunos,


Arte, estética, estesia é a educação do instinto sexual.


A manutenção da existência indivídua tem a razão de ser no instinto de vitalidade da espécie. O momento presente das gerações nada mais é que a ligação prolífica do passado com a posteridade. E a razão de ser das espécies? A indagação não perscruta.


Para que o indivíduo perdure, momento genésico da existência específica no tempo, é indispensável adaptar-se às imposições do meio universal. O rio a correr não despreza o detalhe do mais insignificante remanso, nem pode sofismar o obstáculo só menor rochedo no alvéu. O critério inconsciente do instinto é o guia da adaptação.


O esforço da vida humana, desde o vagido do berço até o movimento do enfermo, no leito de agonia, buscando uma posição mais cômoda para morrer, é a seleção do agradável. Os sentidos são como as antenas salvadoras do inseto titubeante; vão ao encontro das impressões avisadores, oportunos e cautelosos.


[…] A perfectibilidade evolutiva dos organismos em função, manifestando-se prodigiosamente complexa, no tipo humano, corresponde à revelação, na ordem animal, do misterioso fenômeno personalidade, capaz de fazer a crítica do instinto, como o instinto faz a crítica da sensação.” (pp. 88-89)


Enquanto isso a luta pela vida se materializa ali dentro do Ateneu. As rivalidades entre os alunos fortes. Pois são contínuos a rotina e o tédio no colégio, o que abafa a criatividade dos alunos. Por isso a chegada das férias é sempre esperada com ansiedade. É o alívio geral dentro da prisão-escola. A educação é uma fadiga, pois é fruto da coerção.


Outros detalhes do enredo aparecem entre as introspecções do protagonista. O jovem genro do mestre Aristarco. O aluno Rômulo que é prometido à filha Amália. Ocorre uma exposição de desenhos. Surgem até caricaturas do diretor – que mesmo assim se sente lisonjeado... Longas descrições de ambientes, personagens, eventos, onde a prosa de “O Ateneu” se aproxima da poesia, podemos falar em prosa poética, notável no “Igitur” de Mallarmé e nos poèmes en prose de Baudelaire, e de Rimbaud, além de Gerard de Nerval, com longas descrições psicológicas, impressionistas,


Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas desde que vira, à primeira vez, as ideais crianças vivificadas no estuque pelo contágio do entusiasmo ingênuo, ronda feliz do trabalho... Agora, um por um que os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as nádegas brancas com reverso igual de candura, um por um por um que os julgasse, e todo aquele gesso das facezinhas rechonchudas coraria de uma sanção geral e esfoladora de palmadas. Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos, bons, imaculados, saudade inefável dos primeiros anos, tempos da escola que não voltam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação, a covardia, a inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, a impotência, o colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do mestre, confederação de instintos em evidência, paixões, fraquezas, vergonhas, que a sociedade exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós, que só vemos azul o passado, porque é ilusão e distância.” (p. 109)


Um avanço temporal. No capítulo VIII estamos no 'ano seguinte' momento onde se evidencia a condição do aluno no 'despotismo da administração'. Mas aqui não uma visão ou análise do jovem Sérgio, mas do narrador (ou o autor RP), que desabafa sobre sua sofrida transição de criança para jovem,


Comecei a penetrar a realidade exterior como palpava a verdade da existência no colégio. Desesperava-me então ver-me duplamente algemado à contingência de ser irremissivelmente pequeno ainda e colegial. Colegial, quase calceta! Marcado com um número, escravo dos limites da casa e do despotismo da administração.” (p. 112)



Narrados os passeios dos estudantes – excursões campestres e também ao Jardim Botânico – sabemos que continua a amizade sublimada de Sérgio e Bento Alves e depois a súbita briga. Será um caso de homoafetividade? Aliás, o que faz o diretor quanto a estes afetos entre os alunos? Previsível: o mestre Aristarco combate a homoafetividade (própria dos 'adeptos de Sodoma') ali no Ateneu, onde os mais fracos tornam-se 'namoradas' dos mais fortes.


Em outra categoria estão aqueles equivalentes a 'preso político' – são os que armam verdadeiros 'motins' contra os inspectores, que desobedecem, que reclamam, que criam poderes paralelos - assim como na sociedade temos os subversivos, os anarquistas, os comunistas, etc.


Mas se Aristarco expulsar mesmo os 'pederastas' e os 'revoltados', ele perde a verba das mensalidades, e enfrentar o risco de uma falência... O diretor resolve 'perdoar' os rebeldes e punir com média severidade os réus morais. Assim o diretor 'rasga' as regras, mas salva o crédito.


Surge o novo amigo Egbert, quando o jovem Sérgio percebe que a amizade não é temor nem submissão - “Achava-me forte para querer bem e mostrar” (p. 127) – surge a oportunidade de confiar em alguém. “A companhia de Egbert ultimava a situação e o estudo era uma festa.” (p. 131) O narrador adulto gosta de descrever os amigos (e os inimigos) da vida escolar – mas é com olhar de adulto – pois não reproduz o que o menino Sérgio sentia na época.


Também percebemos esta dupla narração – criança e adulto em camadas e mesclando-se – em “Menino de Engenho” onde o narrador /autor José Lins do Rego descreve a vida de criança num estilo entre romance e livro de memórias, o que é quase autobiográfico.


ensaio sobre “Menino de Engenho” em

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/11/sobre-menino-de-engenho-jose-lins-do.html



Entre as leituras do jovem Sérgio temos outros clássicos tais como “Robinson Crusoé” (de Daniel Defoe) e “Paulo e Virgínia” (de Bernardin de Saint-Pierre ) obras dos séculos 18 , pré-românticas, onde as personagens vivem em isolamento, em solidão cultivada, ou buscam amores impossíveis.



Nestes intertextos, nestes livros dentro de livros, encontramos a vontade de escrever que nasce da paixão da leitura, “As páginas sorriam de literatura, com o sorriso conhecido dos objetos familiares.” (p. 131) Entre descrições caricaturais dos professores, temos listas de leituras – que aliviam os estresse do aprender – quando surgem nomes de autores, dramaturgos franceses, tais como Corneille, Racine, Molière, Chateaubriand.



No capítulo X temos a narração dos exames, não apenas do Ateneu, mas de outras escolas. Claro que o Ateneu recebe o destaque – tanto pela perspectiva autoral, quanto pela excelência já declarada do colégio. “O Ateneu era invejado. Vítimas do uniforme, os discípulos de Aristarco passeavam entre os grupos dos colégios rivais, sofrendo dichotes, com uma paciência recomendada de boa educação.” (p. 136) É possível a existência de um 'lobby' do Ateneu junto aos examinadores – que fazem uma espécie de 'vestibular' – num processo apenas insinuado.


Mas a atenção do jovem Sérgio se volta para eventos menos aterrorizantes. Os exames recebem um foco – mas há outra acontecimento que marca pessoalmente. A amizade com Egbert prospera, ainda que o protagonista flutue tanto em suas emoções, “Continuava cordialmente com o Egbert. Parecia-me, entretanto, a sua amizade agora uma coisa insuficiente como se houvesse em mim uma selvageria amordaçada de afetos.” (p. 138)


As flutuações de humor e afeto são evidentes, são dependentes das impressões que o jovem colhe em sua vida de forçada coletividade, tal como veremos acontecer com o jovem Törless (obra também do Meu Cânone Ocidental),


Estes intervalos de dormência sem sonho, sem ideias, sem definida cisma, eram o meu sossego. Pensar era impacientar-me. Que desejava eu? Sempre o desespero da reclusão colegial e da idade. Vinham-me crises nervosas de movimento, e eu cruzava de passos frenéticos o pátio, sôfrego, acelerando-me cada vez mais, como se quisesse passar adiante do tempo.” (p. 139)



Nesta coletividade minima onde 'estratos sociais' se formam entre o diretor e os mestres, entre os mestres e os alunos, onde hierarquias têm lugar, uma diferenciação se percebe e podemos distinguir 'tipos sociais' meio a 'massa'. Existem os ingênuos, os espertalhões. Os eufóricos, os interesseiros. Os que bajulam os fortes ou os professores em busca de proteção. Os fracos que aceitam 'protetores' e pagam com carícias. Os místicos, os depravados, e os 'queridinhos' dos professores.


Sendo uma espécie de 'microcosmo' da sociedade, o Ateneu apresenta estas segmentações que observamos nas coletividades – estratificações, relações, intrigas, delações, luxúrias, amizades, hostilidades, etc – que apresentam o humano ao homem – o mais próximo que podemos chegar de uma 'natureza humana' (da qual Sartre desconfiava ou nem acreditava...), afinal há algo de comum nas vidas alunos confinados em internatos. Seja aqui seja na Oceânia. Seja no Rio de Janeiro na Áustria. É o que veremos na leitura de “Jovem Törless” (1906, de Robert Musil).


O problema seria a instituição 'internato'? A reclusão geraria o mesmo dano tanto num colégio fechado quanto numa prisão? O coletivo, a aglomeração criaria o fenômeno? A educação rigorosa produz efeito contrário ao esperado? No próprio romance encontramos vozes que teorizam sobre o internato no processo educativo,


A reclusão exacerba as tendências ingênitas?

Tanto melhor: é a escola da sociedade.

Ilustrar o espírito é pouco; temperar o caráter é tudo. É preciso que chegue um dia a desilusão do carinho doméstico. Toda a vantagem em que se realize o mais cedo.


A educação não faz almas: exercita-as. E o exercício moral não vem das belas palavras de virtude, mas do atrito com as circunstâncias.


Ensaiados no microcosmo do internato, não há mais surpresas no grande mundo lá fora, onde se vão sofrer todas as convivências, respirar todos os ambientes; onde a razão da maior força é a dialética e nos envolvem as evoluções de tudo o que rasteja e tudo o que morde, porque a perfídia terra-terra é um dos processos mais eficazes da vulgaridade vencedora; […]


O internato é útil; a existência agita-se como a peneira do garimpeiro: o que vale mais e o que vale menos, separam-se.


E não se diga que é um viveiro de maus germens, seminário nefasto de maus princípios, que hão de arborescer depois. Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora. Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso, como os que se perdem, a marca da condenação.” (p. 145)



Assim diante de tão eminentes considerações de pedagogia não se estranha a legitimação do internato – mesmo que a indisciplina seja punida com sofrimentos que podem levar à debilidade e até à morte (o protagonista narra a resignação e a doença do aluno Franco, que vem a falecer) – e a vida continua com aulas, festas, solenidades, cerimônias, bajulações, reunião de especialistas, pais indiferentes ou superexigentes, formaturas, presença de monarcas.


Quando parece haver um triunfo do Ateneu – o internado rigoroso e castrador – com um triunfo do diretor – não dos alunos – entra em cena a vingança pessoal do narrador-autor. É que um aluno se vinga do símbolo da severidade patriarcal: incendeia o corpo do Ateneu. Assim o belo edifício, que simbolizava uma ordem e uma pedagogia (ou uma visão de pedagogia...), é consumido pelas chamas, que decretam a ruína do diretor-patriarca.


E tudo acabou com um fim brusco de mau romance...


Um grito súbito fez-me estremecer no leito: fogo! Fogo! Abri violentamente a janela. O Ateneu ardia.” (p. 164)


O susto de tal maneira me surpreendera, que eu não tinha exata consciência do momento. Esquecia-me a ver os dragões dourados revoando sobre o Ateneu as salamandras imensas de fumaça arrancando para a altura, desdobrando contorções monstruosas, mergulhando na sombra cem metros acima.


O fogo crescia ímpetos de entusiasmo, como alegrado dos próprios clarões, desfeiteando a noite com a vergasta das labaredas.“ (p. 165)


É assim, numa apoteose de chamas, que encerra-se as lembranças narradas pelo narrador-autor Raul Pompeia, ao dar voz ao jovem de outrora que esperava encontrar a educação, o crescimento intelectual e encontrou tão somente a disciplina e a conformidade, assim a educação enquanto 'linha de produção' de jovens para uma sociedade de segmentações e hierarquias, a qual os 'educandos' devem servir sem pensamento próprio. Causa sensação o final no qual o mestre-patriarca contempla a própria ruína, num misto de desespero e pose de resignação, diante da queima da estrutura, e da ciência, da cartografia, e da literatura.


(As citações de “O Ateneu” . Ática, 1998. (Série Bom Livro))



dez/11 e fev/12



Leonardo de Magalhaens


http://leoliteraturaescrita.blogspot.com

http://leoleituraescrita.blogspot.com



mais sobre “O Ateneu” de Raul Pompeia


http://literaturacnec.blogspot.com/2006/05/impressionismo-o-ateneu-raul-pompia.html


http://prof.saulo.vilabol.uol.com.br/Oateneu-estudos.html



aqui a obra on-line (Domínio Público)

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=107


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