Sobre “Os Sofrimentos do Jovem Werther”
(Die Leiden des jungen Werthers, 1774)
de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
A juventude que oscila entre a febre e a melancolia
Parte 2
Na parte 2 do livro, temos um Werther se esforçando para ser um cidadão de bem, com emprego (no gabinete de um fidalgo, um nobre da Corte local), a conviver com os homens práticos, que desprezam idealismos e poesia. Homens que somente se interessam pelo poder e posse – de bens e mulheres. Cidadãos que vivem de aparências, numa vida hipócrita, ao professarem uma religião do Além, mas se dedicarem aos ganhos do Agora,
“O que mais me incomoda são estes fatais contatos burgueses. Eu sei bem o quanto é necessária a diferença de classes, e quantas vantagens obtenho para mim mesmo: apenas a diferença não pode ficar no caminho, onde eu poderia gozar ainda um pouco de alegria, um vislumbre de boa sorte na terra.”
“Was mich am meisten neckt, sind die fatalen bürgerlichen Verhältnisse. Zwar weiß ich so gut als einer, wie nötig der Unterschied der Stände ist, wie viel Vorteile er mir selbst verschafft: nur soll er mir nicht eben gerade im Wege stehen, wo ich noch ein wenig Freude, einen Schimmer von Glück auf dieser Erde genießen könnte.” (p. 63)
A carta de 8 de janeiro de 1772 é curta e direta, desprezando aqueles que desejam vencer em tudo, estar sempre na frente, aqueles conquistadores ambiciosos, a construírem carreiras, sedentos de poder e privilégios, adeptos fanáticos do jogo social,
“Que pessoas são aquelas cuja alma repousa sobre ceremoniais, cujos trajes e discursos passam durante anos como se elas tivessem rumando para uma cadeira mais próxima da cabeceira da mesa: não, muitas vezes acumulam-se os trabalhos, mesmo porque com tais pequenas chateações mantêm-se longe da realização de coisas importantes. Semana passada foi o tumulto na corrida de trenós, e acabou com o divertimento.
Os tolos que não podem ver que não depende, realmente, do lugar sobretudo,e que quem tem o primeiro lugar raramente tem o atuado no primeiro papel ! Quantos reis não são governados por seu ministro, e quantos ministros não são governados pelo secretário! E quem é então o primeiro? Aquele, me parece, que observa os outros e tem muito poder e astúcia, para concentrar suas forças e paixões para a execução de seus planos.”
“Was das für Menschen sind, deren ganze Seele auf dem Zeremoniell ruht, deren Dichten und Trachten jahrelang dahin geht, wie sie um einen Stuhl weiter hinauf bei Tische Angelegenheit hätten: nein, vielmehr häufen sich die Arbeiten, eben weil man über den kleinen Verdrießlichkeiten von Beförderung der wichtigen Sachen abgehalten wird. Vorige Woche gab es bei der Schlittenfahrt Händel, und der ganze Spaß wurde verdorben.
Die Toren, die nicht sehen, daß es eigentlich auf den Platz gar nicht ankommt, und daß der, der den ersten hat, so selten die erste Rolle spielt! Wie mancher König wird durch seinen Minister, wie mancher Minister durch seinen Sekretär regiert! Und wer ist dann der Erste? Der, dünkt mich, der die andern übersieht und so viel Gewalt oder List hat, ihre Kräfte und Leidenschaften zu Ausführung seiner Plane anzuspannen.” (p. 64)
Ao lidar com nobres e plebeus (muitos burgueses enriquecidos), o jovem Werther deve aprender os modos de uma rígida etiqueta social – e deve se retirar de uma reunião social se certos nobres assim o desejarem. Não há igualdade de direitos – estamos numa época pré-Revolução Francesa (1789-1799) – e os plebeus só podem esperar migalhas de atenção e renda dos nobres. Não vale apenas ser rico – assim eram os burgueses – mas ter 'sangue azul', ter títulos nobiliárquicos, ter árvores genealógicas, ter carreira na Corte ou no Exército, ter propriedades desde os tempos feudais. Em suma, ter um nome. Em suma, ter privilégios.
Os burgueses não têm nome, mas têm muito dinheiro. Salvam muitos nobres da ruína quando se casam com as jovens duquesas e condessas – numa troca onde o burguês ganha um título de nobreza. Com o tempo, os burgueses conseguem bons privilégios – com o comércio de títulos e cargos – e conseguem ascender até ousarem a própria revolução (na Alemanha a tentativa foi em 1848, e fracassada).
Ao abandonar o ambiente da Corte, Werther segue para outras viagens – no estilo andarilho que imortalizará o Wilhelm Meister, o Bildungsroman [romance de formação] clássico, escrito e publicado por Goethe, entre 1777 e 1786 – a ponto de declarar numa carta curtíssima - “Sim, pois sou apenas um andarilho, um errante sobre a terra. Mas, serás vós mais que isso?” (“Ja wohl bin ich nur ein Wandrer, ein Waller auf der Erde! Seid ihr denn mehr?” p. 75)
Em muitos momentos, o culto e erudito Werther menospreza a cultura e erudição, ao preferir os simples e rústicos, ao sentir 'educado' para nada. “Nós, os educados – mimados para nada.” Que educação recebe um jovem erudito no século 18? Apenas para servir aos nobres? Para trabalhar nos gabinetes da Corte?
“Este amor, esta lealdade, este sofrimento não é invenção poética. Eles vivem, numa maior pureza sob a classe de pessoas que nós consideramos ignorantes, que consideramos mal-educados, Nós os educados -mimados para nada!” (“Diese Liebe, diese Treue, diese Leidenschaft ist also keine dichterische Erfindung. Sie lebt, sie ist in ihrer größten Reinheit unter der Klasse von Menschen, die wir ungebildet, die wir roh nennen. Wir Gebildeten – zu Nichts Verbildeten!” pp. 78-79 )
e
“É para ficar furioso, Guilherme, que devam existir pessoas sem senso e sentimento para as poucas coisas que ainda têm valor sobre a terra.” (“Man möchte rasend werden, Wilhelm, daß es Menschen geben soll ohne Sinn und Gefühl an dem wenigen, was auf Erden noch einen Wert hat.” p. 80)
Às vezes, é de se pensar que paciência tem esse Wilhelm (Guilherme) ao aguentar tanto desabafo do amigo Werther. Com tanta auto-consciência, ao estilo Hamlet (com referências aqui), Werther sabe disso. Agradece ao amigo o “interesse carinhoso que consagras a mim”, além dos “bons conselhos”, pois o que não falta na vida de Werther são dilemas e vicissitudes – ele nada tem de moderado ou acomodado – mas sempre em busca de emoções.
Ele volta a se encontrar com Carlota, e assim a se atormentar mais – ao desejar e idealizar a criatura amada. Ele a eleva num pedestal – o que a torna duplamente inacessível, inalcançável. É uma mulher comprometida e é uma musa. Em seu sofrimento, Werther se sente muito especial e original, mas basta ler um poeta de outrora para perceber que sofrer por amor nada tem de original e peculiar. (Basta ler “Romeu e Julieta”, “Love's Labour's Lost” ou “Hamlet”, para encontrar os 'arquétipos'.)
“Às vezes digo a mim mesmo: teu destino é singular; considere todo o resto feliz – assim é que nenhum foi tão atormentado. - então eu leio um poeta do passado, e é para mim como se eu lesse em meu próprio coração. Eu tenho que aguentar tudo isso! Ah, existiram pessoas antes de mim assim tão miseráveis?”
“Manchmal sag' ich mir: dein Schicksal ist einzig; preise die übrigen glücklich – so ist noch keiner gequält worden. – dann lese ich einen Dichter der Vorzeit, und es ist mir, als säh' ich in mein eignes Herz. Ich habe so viel auszustehen! Ach, sind denn Menschen vor mir schon so elend gewesen?” (p. 88)
Ao sofrer de amor, Werther até preferiria a loucura – se amar não foi também uma espécie de loucura, ao procurar no Outro um sentido para a existência do Eu – ainda mais quando encontra campônios apaixonados, ou loucos que colhem flores. (Detalhe do enredo: depois Werther descobre que o louco a colher flores foi um dos empregados na casa de Carlota, e enlouqueceu de amor por ela! Será este o mesmo destino de Werther?)
Um contraponto a 'vida útil', Werther tem todo o interesse pelas narrativas do passado, na dedicação às leituras dos textos do bardo celta Ossian (na verdade, obras do escocês James Macpherson , 1936-1796), que se adaptam ao culto romântico a um passado idealizado meio ao meio natural intocado. Cenas de solidão meio às colinas e charnecas, onde sopram ventos e permanecem as tormentas.
Ainda algo de arcadismo, de culto à vida pastoril, rural. E ainda uma volta às raízes tradicionais do povo, suas lendas e cânticos. Surge um interesse pelo folclore – vejam o alemão J. G. von Herder (1744-1803), admirado por Goethe, que reuniu lendas e cantigas populares.
Eis um trecho melancólico, e até lúgubre, de Ossian (“Colma”) na tradução de Marcelo Backes (2001:155),
“Estou sentado em meus lamentos, aguardo a manhã em minhas lágrimas. Abri o túmulo, vós, os amigos dos mortos, mas não o fecheis até que eu chegue! A minha vida desvaneceu-se como um sonho, como poderia ficar pra trás... Quero morar aqui, com meus amigos, junto à torrente que brota do rochedo... Quando a noite chegar à colina, e o vento soprar na charneca, o meu espírito irá com ele, a lamentar a morte dos meus amigos. O caçador ouvir-me-á de seu esconderijo, receará a minha voz e haverá de amá-la, porque ela será doce ao chorar os meus amigos; eu gostava tanto de ambos!”
No ápice do sofrer de amor, com cartas excessivamente pungentes (ou próprias ao estilo da época) Werther cede espaço a uma outra voz narrativa – um editor. Um editor que surge diante do leitor – para explicar algumas lacunas, apresentar mais cartas, trechos de Ossian, em suma, algo mais que explica um gesto extremo. O editor sabe algo que nós, os leitores, não sabemos?
O que aconteceu com o pobre Werther? Por que outro assume o posto de narrador? Quem é esta nova voz que sabe tanto sobre o nosso Werther? Será a voz autoral?
“O tempo claro pode agir pouco sobre sua mente turva, uma vaga pressão sobre a sua alma, as tristes imagens tinham se instalado nele, e sua mente não conhecia movimento além de um pesaroso pensamento a outro.
Como ele vivia consigo em eterno desassossego, o estado dos outros parecia-lhe apenas mais hesitante e distraído, ele acreditava que ter incomodado a bela relação entre Albert e sua esposa, ele se fazia censuras, nas quais se misturava uma secreta insatisfação contra o esposo.”
“Das klare Wetter konnte wenig auf sein trübes Gemüt wirken, ein dumpfer Druck auf seiner Seele, die traurigen Bilder hatten sich bei ihm festgesetzt, und sein Gemüt kannte keine Bewegung als von einem schmerzlichen Gedanken zum andern.
Wie er mit sich in ewigem Unfrieden lebte, schien ihm auch der Zustand andrer nur bedenklicher und verworrner, er glaubte, das schöne Verhältnis zwischen Albert und seiner Gattin gestört zu haben, er machte sich Vorwürfe darüber, in die sich ein heimlicher Unwille gegen den Gatten mischte.” (p. 94)
O referido editor se esforça por esclarecer certos fatos – tudo com muita verossimilhança – para o leitor acreditar que existe mesmo um Werther que se matou – ao reconstituir certas cenas, tudo o que levou ao ato extremado. Outras personagens – de cartas anteriores – voltam, como o camponês apaixonado, que então comete um crime passional. (Será que Werther temia cometer um crime passional? Contra Carlota? Contra Alberto? Contra ambos?)
Afinal, a situação de Werther é trágica. Ele gosta de Carlota e admira o noivo de Carlota, o prudente Alberto. E quer ser correspondido – mas então acabará por separar o casal ! É complicado, mesmo. Se ele desprezasse ou odiasse Alberto, poderia muito bem raptar a mocinha e fugir com ela – ou eliminar o noivo. Mas Werther é um bom mocinho e, se não é correspondido, também não vai forçar as coisas – prefere ele mesmo ir embora, deixar os outros em paz.
Uma carta (datada de 12 de dezembro) encontrada entre os papéis de Werther é uma amostra do desespero, febril e lastimante ao estilo dos ultra-românticos (que liam Hamlet juntamente com Fausto e o Jovem Werther, além de Peregrinações de Childe Harold e Cain),
“'Querido Guilherme, estou num estado que devia sido aquele dos desventurados, dos quais se acreditava, que estariam movidos por um espírito maligno. Às vezes acontece comigo; não é medo, nem desejo – é íntimo e desconhecido furor, que ameaça romper o meu peito, que me estrangula! A doer! Doer! Então eu vagueio por aí em fuga nas cenas terríveis e noturnas desta época desumana.”
“»Lieber Wilhelm, ich bin in einem Zustande, in dem jene Unglücklichen gewesen sein müssen, von denen man glaubte, sie würden von einem bösen Geiste umhergetrieben. Manchmal ergreift mich's; es ist nicht Angst, nicht Begier – es ist ein inneres, unbekanntes Toben, das meine Brust zu zerreißen droht, das mir die Gurgel zupreßt! Wehe! Wehe! Und dann schweife ich umher in den furchtbaren nächtlichen Szenen dieser menschenfeindlichen Jahrszeit.” (p. 98)
O herói romântico Werther lembra aqueles herói byronianos do romantismo inglês que viviam intensamente as próprias paixões a ponto de se deixarem vulneráveis ao olhares da sociedade padronizada que não hesitava em julgá-los, marginalizá-los, exilá-los, destruí-los. Assim esta relação Werther – Byron é lembrada pelo tradutor e ensaísta Leonardo Fróes ao lembrar a mútua admiração entre Goethe e Lord Byron, na era do Romantismo,
“O desajuste de Werther, como o dos heróis byronianos, não se restringe ao plano das relações afetivas. Nas cartas exclamativas que dão forma ao romance, as próprias relações sociais são questionadas em bloco, sucedendo-se as imprecações e denúncias contra o mundo cortesão e burguês. Com excesso de sensibilidade e olhar de artista em discórdia. Werther, que gosta de gente simples, escarnece da frieza dos ricos que se distanciam do povo para se fazer respeitar, combate o mau humor e a avareza, defende a embriaguez e a loucura, classifica de tolo quem se sobrecarrega de trabalho só por honraria e dinheiro, além de declarar-se um peregrino na Terra, que apenas representa seu papel quando, num salão pretensamente elegante, sente-se em face de uma exibição de fantoches.” (2009:62-63)
A posição do próprio Goethe é ambígua, ou antes, é mutante. Ele era de início romântico e depois voltou-se ao classicismo. Ora defendia o êxtase, ora a ordem. Enquanto admira o povo e seu folclore não hesita em conviver com nobres pedantes. Há um Goethe para cada leitor – há um Goethe para Lord Byron, há um Goethe para os contemporâneos, há um Goethe para o academicismo alemão, há um Goethe para Nietzsche, há um Goethe para Hermann Hesse, há um Goethe para Thomas Mann. Todos podem ser o mesmo Goethe, que não era nenhum deles.
Em que medida Goethe era Werther (ou foi Werther quando jovem) é uma questão para os biógrafos. Filmes que simulam biografias até se esforçam por representar Goethe como um Werther febril e eufórico, servo das paixões e inimigo das convenções sociais. É uma imagem que encontramos em Lord Byron (e em muitos românticos...) mas que destoa do Goethe clássico – aquele da cultura alemã, aquele da literatura mundial.
Não abordaremos questões biográficas aqui, nem sobre os pontos de interseção entre a vida e a obra. Importa mais uma leitura do livro e seu contexto e sua influência. Quantos jovens não se sentiram na pele do jovem Werther quando leram o romance ? Quantos não choraram ao lerem as cartas arrebatadas do jovem romântico?
É isto o que interessa: a forma, o contexto e a influência da obra, não o que o autor pretendia, nem se o autor viveu o que escreveu. Se a obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther” é até hoje lida e admirada é porque possui em si mesma valor e qualidade atemporais – a sua linguagem, a sua poesia, o seu clamor por uma liberdade que é ansiada pelos jovens.
(Todas as citações aqui traduzidas por LdeM,
exceto trechos de Ossian, por Marcelo Backes)
fonte: “Die Leiden des jungen Werther”, München, DTV, 1978
também Projekt Gutenberg http://gutenberg.spiegel.de/buch/3636/1
dez/11 e fev/12
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com
mais sobre o Werther
Wikipedia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Sofrimentos_do_Jovem_Werther
Wikisource
english
http://en.wikisource.org/wiki/The_Works_of_J._W._von_Goethe/Volume_6/The_Sorrows_of_Young_Werther
Projekt Gutenberg
http://gutenberg.spiegel.de/buch/3636/1
mais
http://www.starnews2001.com.br/literatura/werther.htm
filmes
Goethe ! (2010)
http://www.youtube.com/watch?v=qMDuE-WSRF0
Referências
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os Sofrimentos do Jovem Werther. Tradução, organização, prefácio, comentários, notas de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2011.
__________. Trilogia da Paixão. Traduzido e seguido do ensaio, A puberdade repetida e a obra pural de Goethe, por Leonardo Fróes. Porto Alegre, RS: L± Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
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