sábado, 9 de outubro de 2010

sobre O Fauno de Mármore - parte 2







Sobre O Fauno de Mármore
(The Marble Faun, 1860)
do escritor norte-americano
Nathaniel Hawthorne (1804-1864)


Entre a Arte e a Fé, entre a Estética e Ética



Parte 2


Este é um romance que teria melhor disposição se fosse dividido em 2 partes. [Foi dividido em dois volumes no Project Gutenberg.] O motivo? A mudança total de cenário, além de um tom ultra-romântico para um estilo mais bucólico, arcadista (como diríamos aqui nas Minas Gerais...) Há uma sensível mudança de vocabulário e vivências das personagens.


É no Cap XXIV que encontramos a mudança de cenário – saem as ruínas, surgem os campos e colinas. Estamos no Monte Beni. Lembramos que o subtítulo do livro é “O Romance de Monte Beni”, e agora entendemos o motivo. Se o capítulos 1 a 23 têm o foco em Roma, do 24 ao 50 teremos outros cenários, até o final novamente em Roma.

Encontramos, em pleno verão, Kenyon a cavalgar para a região dos Apeninos na Toscânia. Situa-se entre os outros anfitatros de arte na Itália. Toscania, Florença, Veneza. O verão ensolarado em contraste com o sombrio inverno em Roma. (roma que então recebe o fluxo de turistas de toda a Euroap e América...) No Monte Beni temos a descrição bucólica – arcadista em contraste com o ambiente quase gótico – barroco de antes (principalmente nos capítulos 16 a 21) O vocabulário sofre mudanças (muda o 'campo semântico': 'spacious valley', 'summer time', 'mountain-towns', 'hill-side', 'streamlet', 'landscape', 'Nature', etc) para se adpatar a um outro olhar (para onde é guiado o Leitor já cansado de ruínas...

Presenciamos a visita de Kenyon ao jovem Conde Donatello. (O Narrador faz questão de recordar o título do jovem italiano) Mas, ao chegar, Kenyon nota um diferente Donatello – não aquele jovem que conhecemos em Roma – não é mais o espontâneo e vivaz confundido com o Fauno de Praxíteles. Não há mais animação – agora um ar sério, um semblante de gravidade. Mas Donatello se alegra com a chegada do visitante, que aprecia a quase 'torre de marfim' do nobre – acima do mundo.

“Eu tenho te imaginado numa espécie de vida arcadista, degustando figos suculentos, e espremendo o suco de ensolaradas videiras, e dormindo ruidosamente toda a noite, após um dia de prazeres simples.” (“I have fancied you in a sort of Arcadian life, tasting rich figs, and squeezing the juice out of the sunniest grapes, and sleeping soundly all night, after a day of simple pleasures." p. 184/85)

Mas esta foi a vida de outrora – quando foi criança. “O tempo passa e deixa sombras.” (“Time flies over us, but leaves its shadow behind.") Este tema do carpe diem, de o tempo nos devora e tal, é nada original... , mas é original, peculiar em Donatello, toda esta 'fala grave', séria, fruto de angustiosa reflexão.


Mas adentremos a vida bucólica. A degustação de vinho produzido ali mesmo no vinhedo da propriedade. O refinado Sunshine – raio de sol – vinho do Monte Beni. E vinho lembra Baco, o deus festivo, sempre acompanhado pelas Bacantes, pelas ninfas e faunos. Um vinho não produzido para o mercado, para o lucro, mas para o prazer à mesa - um vinho para se oferecer aos convivas. O vinho enquanto símbolo da hospitalidade – no mais melhor degustar o vinho em sua (dele) própria terra, não adulterado pelo transporte.


Temos adescrição da propriedade rural, a imponência e rusticidade do casarão. “Nas paredes desenhos de caráter festivo e alegre, representando cenas arcadistas, onde ninfas, faunos, e sátiros se divertiam, meio aos jovens e donzelas mortais; e Pã, e o deus do vinho, e ele de luz solar e música, não desdenhava brilhar tal algum bricalhão silvestre com a raramente velada glória de suas presenças.” (“The designs were of a festive and joyous character, representing Arcadian scenes, where nymphs, fauns, and satyrs disported themselves among mortal youths and maidens; and Pan, and the god of wine, and he of sunshine and music, disdained not to brighten some sylvan merry-making with the scarcely veiled glory of their presence.” pp. 190/91)


Temos o ambiente alegre e agradável, de singeleza e bem-estar, de plena comunhão entre o homem e a Natureza. (como se tal fosse mesmo possível...) e o vocabulário novamente é adaptado, as palavras refletem um novo brilho ('brightness', 'festive', 'gorgeous', 'enlivening', 'splendour' , 'cheerfullest ideas ans emotions', 'harmonious glow and variety of color')

A vida no campo é constraste para a vida na cidade decrépita. Mas a vida no campo também está decadente, não é mais igual aos 'tempos de outrora', assim como os afrescos (desenhos) nas paredes. Desenhos que são antigos, estão desbotados, são agora “lembranças de um passado feliz”.


A decadência das imagens alegres mostra a “instabilidade das alegrias terrestres” (“instability of earthly joys”, p. 192) segundo diz Kenyon. De fato, Donatello está sombrio, pois concorda com o visitante, sim “sombrio, pensativo e penitente”, segundo as palavras de Kenyon. A proposta de Kenyon: fazer um busto do Conde. Afinal, o jovem nobre não se parece tanto com o ideal clássico arcadista – um fauno?

Donatello, no entanto, não se mostra muito animado, mas aceita. De repente, um tema reprimido (e de interesse de ambos) aparece: Miriam. E Kenyon revela que a pintora foi embora de Roma pouco depois da viagem do jovem nobre. O assunto é logo encerrado, os jovens conversam, num passeio. Mas a converssa é 'insatisfatória', cercada de “silêncios sombrios” - toda a graça peculiar de Donatello se perdeu, somente sobrou um homem entristecido. Se usarmos categorias do pensamento de Nietzsche, diríamos que Donatello deixou de ser dionisíaco – espontâneo, cheio de vivacidade – para tornar-se um apolíneo – agora pensativo, tímido, contido.


Temos a árvore genealógica, o 'pedigree' dos nobres do Monte Beni, que remota há pelo menos uns mil anos. Raízes que remotam à decadência do Império Romano. O peso da tradição, da venerável linhagem. Temos assim o interesse 'romântico' por antiguidades, ruínas cobertas por musgo, castigadas pelo Tempo inclemente... Tesouros de família que romotam às brumas da Idade Média... ou à 'eras imemoriais'.

Tudo isso fascina ao escultor – como forma de possível moldura ou explicação para a exótica semelhança de Donatello com uma entidade pagã – o fauno. Corre uma lenda que os nobre de Monte Beni se acreditavam descendentes de povos gregos, de origem asiática - “a mesma familia feliz e poética que habitavam na Arcádia” (“the same happy and poetic kindred who dwelt in Arcadia.” p. 197) e legaram as fábulas e mitos sobre as entidades da Natureza, os faunos, os sátiros, as ninfas.

Os mitos e as idealizações – bodas entre figuras míticas e humanos. Toda uma raça de homens com paternidade selvagem. “Eles eram fortes, ativos, geniais, radiantes tal o raio de sol, pasionais tal qual o tornado. Suas vidas eram jubilosas devido a uma pronta harmonia com a natureza.” (“They were strong, active, genial, cheerful as the sunshine, passionate as the tornado. Their lives were rendered blissful by an unsought harmony with nature.” p. 197)

Uma imagem idealizada, claro. Mas possível, se comparada com a cultura medieval, de penitência e sacrifício. Tempo de constantes guerras, ou pestes, a Itália dividida em reinos e cidades-Estados rivais, e assim desunida, alvo fácil para os invasores. (em 1860 se iniciava o processo de unificação da Itália, que prosseguiu até 1870-80)

O estilo predominante em dois-terços do capítulo XXVI é a dissertação, as digressões do escultor sobre as linhagens e tradições do local (Monte Beni).

A família nobre conserva qualidades tais como “simplicidade e naturalidade”, além de traços físicos e fisionômicos que o escultor percebe nos quadros e retratos. A curiosidade onívora de Kenyon abrange imagens e documentos. Papéis corroídos e mofados reconstiruem uma história – somadas às lendas narradas pelos serviçais, camponeses de longa data. Um olhar sobre a infância de Donatello – crinça ativa, esportiva, a brincar entre as outras crianças “um tanto rústicas”. Uma criança que não temia ferir-se, pois se integrava aos “elementos da natureza”.

“Numa palavra, tanto o que ele ouviu nestas lendas quanto outras, Kenyon poderia imaginar que aqueles vales e colinas ao redor dele era a verdadeira Arcádia. E que Donatello não foi apenas um fauno silvestre, mas o genial deus do vinho em pessoa.” ( “In a word, as he listened to such tales as these, Kenyon could have imagined that the valleys and hillsides about him were a veritable Arcadia; and that Donatello was not merely a sylvan faun, but the genial wine god in his very person.” p. 201)

O quanto Donatello mudou depois de voltar de Roma! Roma, “a cruel e miserável cidade”. Conversando com os serviçais e camponeses, Kenyon percebe que também eles notaram a tristeza do jovem Conde. E de como, agora, o mundo parece 'mais triste' (“the world is sadder now”). Pois atualmente – meados do século 19! - “O inteiro sistema dos negócios humanos, como atualmente estabelecido, está construído com o propósito de excluir a alma feliz e despreocupada” (“The entire system of man's affairs, as at present established, is built up purposely to exclude the careless and happy soul.” p. 202) Ou seja, a mesma 'denúncia' da contracultura de um século depois!


Pois “É a lei férrea em nossos dias exigir um objeto e um propósito na vida. Isto nos faz todos partes de um complicado esquema de progresso, o qual pode apenas resultar em nossa chegada a uma região mais fria e tediosa do que aquela em que nascemos.” (“It is the iron rule in our day to require an object and a purpose in life. It makes us all parts of a complicated scheme of progress, which can only result in our arrival at a colder and drearier region than we were born in.” p. 202)

Aqui fala o Artista em contraponto ao mundo do progrsso, da eficiência, da utilidade – como já notamos no capítulo XVI. Arte X Utilidade. Assim é impossível o jovem conde atual ser igual aos seus antepassados – em harmonia com a Natureza, numa época de transformações – principalmente na futura Itália. (Encontraremos esta temática em “Os Noivos” de Manzoni e “O Gatopardo” de Lampedusa, além de “A Bela Estação”, de Pavese, segundo veremos no panorama da Literatura Italiana.)


É este mundo antigo idealizado que os tradicionalistas, os fascistas, queriam resgatar com seus 'corporativismo'. Interessante que tal contraponto: Itália moderna X Itália clássica aparece em escritos de Goethe e Lord Byron – ambos apaixonados por uma Itália idealizada – ensolarada, vivaz, espontânea.

O jovem Conde desce de sua (dele) torre para passear com o visitante, o escultor. Paisagens bucólicas, lavouras, colinas, arvoredos, fontes. Lembramos sempre que Donatello simboliza a vida silvestre, o bucólico, o arcadismo. O jovem conde relembra a infância, os “recantos encantadores” das brincadeiras infantis – o momento de ser singelo, pois a criança ainda não se sente culpada. A infância é o momento de ser feliz – e para resgatar este momento de felicidade somente o poeta é capaz.


O cenário sempre surge cercado de uma moldura fantástica. Onde figuras míticas das lendas populares habitaram em tempos de outrora. Nestas paisagens de sonho e vida idílica habitavam os faunos e ninfas – símbolos da 'vida natural'. “Lendas selvagens” de “poderoso encanto”, segundo se entusiasma o escultor.


Não são lendas divertidas ou risíveis, mas alegorias até graves e sombrias. O que era natural à criança, é estranho ao adulto. O “homem natural” é aquele ser infantil (no bom sentido!) que vive anterior a 'sofisticação do intelecto humano', quando o ser humano podia 'ler' na Natureza os sinais e simpatias que garantiam uma espécie de irmandade. Essa é uma idealização – ao estilo 'bom selvagem' de Rousseau – pois não sabemos se em algum momento houve uma simbiose Humanos – Natureza. Desde quando a Natureza é 'amiga' do ser humano? Idealizamos a Natureza, mas ela sequer nos reconhece. Faz frio, faz sol, chove, o homem que se aqueça, ou se refresque, ou se abrige. O corpo do Homem é parte da Fauna...

[O que não havia é a forma 'industrial' de exploração e devastação de flora e fauna que existe nos últimos 500 anos. No mais, a população humana cresce em progressão geométrica, e os recursos renováveis em progressão aritmética (e Malthus disse algo parecido há 400 anos...), e os não-renováveis, o nome já diz – não se renovam, acabam, acabou-se.]

Donatello sabe que a Natureza não mais 'se comunica' com ele – até parece rejeitá-lo. Saberá a fauna e flora sobre o crime cometido junto às ruínas de Roma? Toda a angústia de Donatello se reflete na relação próxima com os seres naturais – toda a angústia se revela enfim ao atôntio escultor. “nenhum ser inocente se aproxima de mim” (“No innocent thing can come near me”), desespera-se o conde.

No que muito se assemelha ao drama de Miriam na primeira metade do Romance. A 'maldição' de Miriam se transmitiu a Donatello – e bem que ela tinha avisado. (vide o cap. XVI, Passeio ao Luar) Kenyon tenta consolar o amigo, “todos nós, quando crescemos, perdemos algo de nossa proximidade com a natureza. É o preço que nós pagamos pela experiência.” ( "We all of us, as we grow older," rejoined Kenyon, "lose somewhat of our proximity to nature. It is the price we pay for experience." XXVII, p. 212)

Ao que Donatello responde, se recuperando, “É um pesado preço, então.” nesta cena enquanto alegoria à um paralelo com a perda do Paraíso, quando Adão sabe demais. Meio a toda esta alegoria / teologia, percebemos que o Narrador – quando não o Autor – tem claros objetivos moralistas. Este 'moralismo' rompe com a estética arcadista em muitos ângulos. Pesa e oprime o Leitor com metafísicas em plena natureza.

Kenyon quer conhecer a torre onde mora o Conde. A torre onde se refugia o solitário, o meditativo, o poeta – acima dos 'mortais'. Referência à Lord Byron, “Qualquer homem seria um poeta, tanto quanto Byron, com semelhante vinho e semelhante tema. Mas, vamos subir à tua torre?” (“Any man might be a poet, as well as Byron, with such wine and such a theme,” rejoined the sculptor. “But, shall we climb your tower?” XXVIII, p. 214)

Aqui a torre surge como um microcosmo gótico meio a um macrocosmo bucólico. Em muitas obras, há o terror a invadir o mundo rural – é o gótico a destruir a 'singeleza' do bucólico – vide “A Abadia de Northanger “ de Jane Austen (veremos em breve) A torre é símbolo da reclusão, do isolamento, da prisão, da vida monástica, ali habitada por mochos e espectros, a torre é 'unheimliche' – o sinistro, o indomesticável.

As corujas são as únicas criaturas a não abandonarem o sombrio Donatello. Mas isso apenas reforça a metamorfose do jovem Conde, “Quando eu era criança selbagem e brincalhona, as corujas não gostvam tanto de mim” (“When I was a wild, playful boy, the owls did not love me half so well.” p. 216) Para Donatello, a torre é mais prisão do que reclusão, ele que não se penitencia, mas oculta um pecado...


Nesta cena, pela primeira vez, uma distinção 'católico' e 'herético' (isto é, protestante) é evidenciada. De repente, lembramos que a Arte é o único 'denominador comum' entre os dois personagens. Um é nobre, italiano, católico, e o outro um auto-exilado artista note-americano, protestante. “Você herege, eu sei, tenta rezar sem mesmo ter um crucifixo diante do qual se ajoelhar.”, recrimina o católico nobre.

Kenyon mostra que sofre menos com a ideia de ser mortal, pois prefere acreditar nas 'esperanças imortais'. “É absurdamente monstruoso, meu amigo, jogar assim o peso mortal de nossa mortalidade sobre nossas esperanças imortais.” (“It is absurdly monstrous, my dear friend, thus to fling the dead weight of our mortality upon our immortal hopes.” p. 217) O peso aqui é aquele da culpa. Pois os antepassados de Donatello sempre amaram a vitalidade e abominavam qualquer 'pensamento de morte'.


Se o interior da torre é 'gótico', a visão exterior é 'bucólica' – colinas, vinhedos, olivais, aldeias, conventos, capelas, rios – num constraste dentro X fora, miséria X fartura – que se entende melhor com a alegoria – Moisés a observar a Terra prometida, ao estar numa condição precária a admirar uma promessa de bem-aventurança, materializada na ampla paisagem de uma planície ensolarada.

É a beleza da Natureza que desperta a reverência religiosa em Kenyon – não o medo da morte, ou a culpa. É preciso 'ler' a Natureza tal qual um livro sagrado; mas sem recorrer às palavras, à linguagem humana. “É um grande mal-entendido tentar colocar nossos melhores pensamentos em linguagem humana” (“It is a great mistake to try to put our best thoughts into human language”, p. 219) diz o escultor. O importante aqui é elevar-se em meditações, em 'voo espiritual' diante da paisagem contemplada. [Há vários quadros de pessoas a contemplarem paisagens na tradição romântica – as pinturas de Turner, de Gaspar David, de Bierstadt, etc.]

Contraponto – altura X precipício. As alturas seduzem e fascinam Kenyon. Enquanto os abismo causam funesta atração. A simples referência ao precipício que atrai, feita por Kenyon, traz horror ao pobre Donatello que relembra um outro precipício – e um corpo que cai... É uma terrível forma de morrer. A queda, o choque, os ossos quebrados... Kenyon até se asssusta com o horror passional do amigo – não sabe que o outro DESCREVE o crime !

Kenyon aliás teme que o amigo sofra – por acidente ou intenção – uma queda do alto da torre. Mas Donatello considera-se muito covarde para agir assim, isto é, para jogar-se dali de cima. O escultor passa a ter pena do nobre amigo, de feliz nascimento, dadivosa ascendência e agora vitimado por sombrios pensamentos aflitivos – mas qual o motivo da Culpa?

Não há mais aquela 'simplicidade' no espontâneo jovem, mas uma sensibilidade atormentada, “uma inteligência que começava a lidar com assuntos elevados, embora de um modo débil e infantil.” (“an intelligence that began to deal with high subjects, though in a feeble and childish way”, XXIX, p. 222) A culpa traz consciência e meditação: traz, então, alguma compensação. Uma lição que vem através da aflição, mas uma lição que já está em nós. (“the instruction comes without the sorrow; and oftener the sorrow teaches comes without the sorrow; and oftener the sorrow teaches no lesson that abides with us.” p. 222) E pior para Donatello: ao não falar francamente, ninguém pode ajudá-lo a enfrentar o remorso. E parece que o jovem até gosta de torturar-se...

Mas no estilo notamos que a 'narrativa' (o récit) é o que menos importa. O enredo é apenas uma 'desculpa' para o Autor (confundido com o Narrador) tecer longas digressões sobre 'assuntos elevados', o pecado, a culpa, a redenção – no que muito se aproxima de Lord Byron (nos Cantos III e IV de “Childe Harold”, e vários trechos de “Don Juan”), de Proust, de V Woolf, e Clarice Lispector. A narrativa serve à filosofia (ilustrando-a), enquanto as personagens servem à simbologia /alegoria.

Enquanto isso Kenyon nutre seu amor por Hilda – uma imagem sacra de idealizações. A mulher enquanto objeto de culto mais do que objeto erótico. Enquanto isso – e saberemos no cap. XXXVII – Hilda pensa em Kenyon. O amante vê na Amada o que deseja ver, assim como dois observadores de uma determinada nuvem pode encontrar nesta imagem a Mulher desejada.

No mais, Donatello revela sua ideia de trocar a torre por uma cela, isto é, a vida monástica – o que muito surpreende Kenyon, “O que? Tornar-se monge? Ideia horrível!” Kenyon despreza a miséria da vida monástica. Kenyon prefere ser 'filantropo' – os católicos preferem penitências, peregrinações, oferendas, enquanto os protestantes fazem campanhas de donativos, e doam fortunas para fundações filantrópicas. Mas Donatello pensa que é bem próprio de um 'herege'... e na expressão do jovem ressurge um fulgor do Fauno de outrora.


O escultor dedica-se a trabalhar no busto de Donateelo, pois almeja apresntar as feições exteriores e também as características pessoais. Processo que envolve muita interpretação. Muito do projeto inicial, idealizado por Kenyon, deve ser alterado – tanto quanto mudado está o 'modelo'. Pretende, assim, retratar o drama moral através de um traço fisionômico! “Vã expectativa!”


A escultura nãoa grada ao artista nem ao modelo – até que Kenyon cria, sem intenção, um aspecto distorcido à argila, “uma aparência distorcida e violenta, a combinar a ferocidade animal com ódio consciente” (“a distorted and violent look, combining animal fierceness with intelligent hatred”, XXX, p. 231) É esta aparência desarmônica que o modelo prefere: a marca do crime. [Esta cena do escultor e o modelo diante da obra de arte, lembra-me as cenas do pintor Basil e o jovem Dorian Gray no clássico de Oscar Wilde..]


Mas Kenyon se recusa a eternizar a imagem do remorso. “É necessário que voc atravesse o vale das sombras” (“It was needful for you to pass through that dark valley”, p. 231) Kenyon prefere a espontaneidade o 'Fauno' de outrora do que o jovem atormentado por pensamentos de culpa. Enquanto não trabalha na escultura, Kenyon passeia pelos campos e vinhedos do vale italiano, deliciando-se com a vida rural, onde pode encontrar jovens saudáveis e bronzeados, ali junto as terras do Monte Beni que muito se assemelha aos “habitantes de uma não-sofisticada Arcádia”. Faltam apenas os faunos ou o própri Baco... E , ao mesmo tempo, compara o encanto de Monte Beni à imagem bíblica do antigo Éden, de onde Adão e Eva foram expulsos, na lenda hebraica.

Então temos Miriam novamente na narrativa. Durante sete vapítulos – umas 55 páginas – convivemos com Kenyon e Donatello, rodeados por vida burocrática. A senhorita espera o escultor na capela da 'villa'. Lá estão peças de arte da propriedade de Monte Beni.

Ao encontrar a pálida Miriam, no salão da capela, o escultor até imagina que Srta está doente. A Miriam retorna como uma autêntica heroína de romance gótico – repentina, pálida, dramática. Ela parece mais um 'herói byroniano' num corpo feminino. Infortunado aquele que se aproximam de sua vida e enigma.

O sofrer de Miriam nada mais é do que o ruminar da culpa, o corroer do remorso, o definhar da misantropia. E o horror de Miriam aumenta quando ela percebe a mágoa de Donatello. Mas Kenyon acredita que ainda há paixão possível entre a Srta e o jovem conde. Donatello sabe sobre a presença de Miriam – mas continua a punir a si-mesmo ao evitar qualquer contato com ela.

Assim explica o escultor, e a visitante se acalma. Enquanto isso, Kenyon descreve a 'metamorfose' íntima do jovem Conde. “O mundo do pensar se abre para a visão interior” do Adão expulso do Paraíso. Miriam pretende ajudá-lo, ela que partilha a mesma culpa; mas teme as atitudes passionais que pode despertar. Kenyon pretende convidar Donatello para uma excursão, na qual Miriam poderá oportunamente se encontrar. A srta sugere a grande praça de Perugia, cidade turística.

A excursão até Perugia segue através da vida bucólica no norte italiano – a toscania. Eis o 'encanto de Arcádia' das regiões silvícolas. Daí o estilo do cap. XXXII em pleno tom arcadista, em contraponto a cena claustrofóbica na capela, no capítulo anterior. Assim sentimos melhor o 'espaço aberto' porque acabamos de sair de um 'espaço fechado'.

Aqui os camponeses ('contadini') fazem parte da paisagem. Em nenhum momento o Narrador apresenta um retrato realista da vida dos camponeses. O excesso de idealização encobre o processo de dominação, esconde os conflitos de interesses. Os casebres são contemplados junto com os olivais, a miséria não sofre um 'olhar radiográfico' – característico no clássico de Victor-Hugo, “Os Miseráveis”.

As descrições se prendem ao caráter estético – 'narrow street', 'grim ugliness of the houses', 'stone built, gray, dilapited', 'dark and half-ruinous habitation', 'hideous scene' – que obviamente revelam um 'olhar estrangeiro' – o Narrador certamente NÂO é italiano. Compara os camponeses italianos com aqueles da Nova Inglaterra. Na verdade, o olhar aqui é o de 'turista' – superficial, não adentra a realidade social.


No mais, elementos destoam. A penitência, o sacrifício, a auto-tortura da vida religiosa destoa do 'bucolismo'. É um olhar de protestante que deita-se sobre a tradição católica, sobre a identidade cultural italiana. O Narrador compartilha aqui os sentimentos de Kenyon – chega a referir-se ao jovem conde como “nosso pobre Donatello” - tal qual Kenyon em outros momentos.

Seguem-se outras cenas em campo aberto em contraponto aos vitrais das igrejas góticas. Caminhadas e visitas às igrejas. As cidades e suas arquiteturas tradicionais, em tantas comparações entre a Itália e a New England. A arquitetura gótica provoca tristeza e temor, enquanto o verdadeiro templo – a Natureza – resplandece diante de todos... A religião é sombria em sua ambientação gótica, causa mais temor do que júbilo. Daí citar obra de John Milton, com traços de Barroco. [Lembramos que entre Milton e Byron – os séculos 17 e 18 – está a Augustan Age, na Inglaterra, numa espécie de 'neoclassicismo', e também pré-romantismo, com os Graveyard Poets].


Para Kenyon, há na cultura italiana um maior peso da tradição. Mas, em tudo, Donatello continua sombrio. Pouco se assemelha ao resignado Adão, parece antes o angustiado Caim (aquele do poema-drama de Lord Byron, segundo já vimos)

http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/09/sobre-obra-poetica-de-lord-byron-12.html


Os capítulos XXXII e XXXIII só se explicam por serem escritos por um estrangeiro: um norte-americano protestante tentando entender a cultura italiana católica. As questões do pecado e penitência são constantes. No capítulo XXXIV temos a chegada à cidade de Perugia. Situada na Umbria, ao sul da Toscania.

Em Perugia destacam-se os afrescos, e também o mercado, a feira-livre na cidade. O comércio de mercadorias, artesanatos, mercadores, hortigranjeiros. O Narrador se permite ser menos grave, até ousando 'pilhérias' com humor britânico, “todos tão loquazes que mais palavras foram gastas em Perugia, neste dia de mercado, do que na praça mais ruidosa de Roma expressaria durante um mês.” (“everybody so loquacious, that more words were wasted in Perugia on this one market-day, than the noisiest piazza of Rome would utter in a month” , XXXIV, p. 265)

Miriam, junto a estátua na praça de Perugia, revela-se a Kenyon. Mas hesita em abordar Donatello. Miriam prefere falar sobre a 'reclusão' de Hilda. Finalmente, Donatello percebe a presença de Miriam, que sente a mudança daquele ao qual se uniu em 'crime mútuo'. (Nestes momentos 'românticos' temos o tom dos clássicos de Jane Austen, Lord Byron, Emily Brontë, isto é, os clássicos do 'sofrer de amor' que atravessaram o século 19.)

Mas um fato é importante na Narrativa. Nós, os leitores, sabemos sobre o crime mútuo de Miriam e Donatello, mas Kenyon não sabe. (ou finge não saber – caso ele seja o Narrador?) Kenyon deixa os amantes reconciliados e segue para Roma, onde deseja consolar a pobre Hilda. Assim, o foco narrativo volta para a “Cidade Eterna” onde está a 'torre de Hilda'.

No capítulo XXXVI, o Narrador volta a descrever o 'cadáver' de Roma – a decadência, as ruínas... a Cidade Eterna só conserva ruínas do antigo esplendor. Voltamos ao cenário dos primeiros capítulos – saímos totalmente da atmosfera bucólica da 'torre de Donatello' lá nos Apeninos.

Vários símbolos aparecem para ilustrar o 'plano alegórico' da Narrativa. Fartura de imagens religiosas: Hilda e a Virgem. Paraíso, Eden, e expulsão (de Adão e Eva) . Todo o estilo narrativo tem inúmeras referências – porém não mais que em outra obra carregada de drama religioso, “A Letra Escarlate” (como já citamos). O Narrador usa sempre o pronome coletivo 'we' (nós) mais frequentemente que nos primeiros capítulos – e não usou nos capítulos 24 a 36. este NÓS representa mais de um Narrador OU a junção Narrador + Leitor?

O crime de Miriam e Donatello contamina o cúmplice Donatello e transtorna a testemunha Hilda. Somente Kenyon permanece 'acima' de tudo e todos – e pode ser mesmo o Narrador. O único 'ponto fraco' de Kenyon é a idealização de Hilda. (Mas o que o amor não faz?) Se Kenyon é o Narrador – em algum momento ele deverá saber do crime.

A testemunha sofre. Hilda sente a solidão enquanto visita as galerias de arte na velha Roma. Lá onde – sob o peso da autoridade, da tradição – é preciso seguir em reverência aos 'old masters'. Toda uma tradição que conserva a Arte e ao mesmo tem sofre o ataque dos inovadores – que se tornarão os conservadores de amanhã... Uma tradição que foi seguida no Barroco, no Neoclassicismo, no Romantismo, mas recusada no Simbolismo, no Modernismo... Contra a tradição, o artista se martiriza pela Arte! Aquele ousa ser o pioneiro sofre as consequências. O admirador comum apenas deixa-se render, submeter-se à força da obra de Arte.

“Deixe a tela brilhar como deve, você deve olhar com os olhos da fé, ou sua sublime excelência foge a você.” (“Let the canvas glow as it may, you must look with the eye of faith, or its highest excellence escapes you” , XXXVII, p. 285) O admirador deve usar e ampliar a sensibilidade e a imaginação. Muitas obras brilham mais ao tocar a percepção do admirador do que em si mesmas, ou mérito do Autor.

O Narrador, por sua vez, envolvesse numa digressão sobre as obras de Arte, principalmente pinturas. Os motivos, os temas, os mestres, as tradições. Personalidades, imagens religiosas, figuras mitológicas. Podemos até rastrear a questão Autor X Obra aqui neste Narrador: é preciso valorizar as Obras, não os Autores (expressam idealizações de si-mesmos e suas ideias), “eles [os autores] tentam expressar ao mundo o que eles não têm em suas próprias almas.” (“they essayed to express to the world what they had not in their own souls.” XXXVI, p. 288)

Por outro lado, o Narrador sempre a buscar a cumplicidade do Leitor ('nós damos expressão' ou 'nós lembramos também que'), a referir-se a Hilda ora com ternura, ora com piedade ('pobre Hilda'). Sim, a Hilda se sente desiludida em suas visitas. É o 'demônio da fadiga', um Mefistófeles (vide o Faust, de J W Goethe) que destrói toda a outra magia. “Ele aniquila cor, calor, e mais especificamente, sentimento e paixão, com um toque.” (p. 285)


A obra de Arte pode não passar de artifício, um polido esmalte... Homens nada santos ousam pintar, representar a santidade e a pureza... Hilda começa a sentir isso. A Arte enquanto artifício, não autêntica, sendo até hipócrita, e se deixa deprimir. A moça sofria a melancolia ao perambular pela vastidão da galeria. Onde o fulgor da Arte, que ela antes sentia? Galerias de palácios romanos – que mais parecem corredores de prisão... algumas partes até retomam o tema 'ruínas da glória antiga', “Ó medonhas ruas, palácios, igrejas e sepulcros imperiais da quente e empoeirada Roma, atravessada pelo enlameado Tibre, em redemoinhos, e não um ribeiro dourado.” (p. 291)) Aqui a escrita quer ser pintura: a ânsia do romancista em ousar ser um pintor! Pintor X poeta – imagem X palavra: quem é mais puro, mais sagrado?

O Narrador busca compartilhar responsabilidades com o leitor? “Não devemos trair a segredo de Hilda” - e qual segredo? Ah, as saudades que ela sente do escultor! Ela espera aliviar o próprio fardo, ao compartilhar com ele o terrível segredo ( o crime testemunhado) E na mesma tarde kenyon sentiu que devia voltar à Roma, “Naquela mesma tarde, como o leitor deve se lembrar” (“that very afternoo, as the reader may remember,”) quando ele sentiu também uma saudade... (refere-se ao capítulo XXIX) Hilda olha de Roma para os montes, onde Kenyon olha na direção de Roma – mais romântico, impossível.

O consolo da fé poderia atrair a desconsolada Hilda (criada no puritanismo da Nova Inglaterra) A religião promete consolo e remédio para todos as carências humanas... ainda mais o Catolicismo, com pompa e rituais, altares e incensos... Cercada de templos, ao visitar igrejas, Hilda pode se deixar seduzir. O Catolicismo, num sistema de ritualismo, enquanto exagero – aqui o barroquismo, p. ex. - de pinturas, vitrais, mosaicos, colunas, esculturas, arcadas, etc, enquanto o puritanismo destaca-se pela simplicidade, ascetismo. Existem capelas para cada devoção... E prece e culto é o que não falta na capital do Catolicismo – a magnificiência feita para que o fiel se sinta insignificante, e assim submisso ao poder do Clero.

Imagens sacras de mulheres – Maria (Virgem) , Eva – em relação ao Salvador. Eva fez nascer o pecado; enquanto a Virgem Maria fez nascer o Salvador. Hilda, a virgem, deve buscar o consolo da Virgem católica? Pensmentos religiosos se mesclam às descrições da Catedral de São Pedro – quanto ouro roubado da Cristandade para se construir tal prepotência...! “Onde milhares de adoradores se ajoelham juntos”. É sempre um modo comparativo: o Catolicismo em relação ao Puritanismo. Ou um puritano a observar o mundo católico...

Cada personagem tem uma temática e um estilo. Ainda a acompanhar Hilda, o tema é religioso, a descrição do mundo religioso – a arquitetura e o idealismo. Descrição da 'catedral do mundo', a de Basílica de São Pedro. A santidade, a devoção: estar separado do mundo terreno. Não se procura uma transformação do mundo, mas alcançar um outro mundo, além, acima.

A Fé que traz consolo – perdão para os pecados que a própria religião cria... Aqui, Hilda sente-se 'herege' – afinal, ela é protestante – mas resolve confessar-se! Assim, ela ao menos desabafa o crime que testemunhou. E a encontrar um alívio. Mas o padre percebe que é a primeira confissão da 'devota', e ela declara ser da Nova Inglaterra, criada como uma 'herege'. E o padre – ah, as coincidências de romance! - revela ser da mesma região. Ele questionma a súbita procura por 'perdão e absolvição'. Ela não crê que a Igreja possa fazer o que só Deus pode – perdoar e absolver. O padre não entende. Ela só desejava desabafar (ah, se já existissem os psicanalistas...)

Mas o padre não pretende guardar segredo da confissão – a moça não é católica! Ela suplica ao padre que conserve o segredo entre ele e Deus. O padre inssite para que a moça entre na 'verdadeira igreja' – ela recusa, 'sou filha de puritanos'. Mas aceita, de joelhos, a benção do sacerdote católico. (Insistimos: sempre presente aqui o contraponto Catolicismo X Puritanismo. Lembrar que a visão do mundo puritano é o foco central em “The Scarlet Letter”, uma espécie de Madame Bovary transposto para a Nova Inglaterra)

sobre A Letra Escarlate em
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2394

interessante artigo sobre o adultério na cultura ocidental e na literatura
http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/010807/trecho_monogamia.html


É no capítulo XL, no ciclo final do romance que Hilda vai reencontrar Kenyon. Afinal, quem testemunha a confissão de Hilda na Catedral? Um indivíduo junto ao altar... Ninguém menos que o escultor Kenyon (que sabemos, no capítulo XXXV, seguia para Roma...) Parece que Kenyon se assume enquanto observador de seus amigos...

Kenyon já encontra Hilda reconfortada, mas em paz consigo mesma. A descrição de Hilda é romântica, idílica, idealizada. A diferença entre a angústia de momentos antes e a 'beatitude' de agora – é evidente ; em relação a ela quem está sombrio é o Kenyon. Ele quer saber porque antes angustiada, e o que a fez ficar aliviada. Enquanto ela não precisa mais desabafar com ele, e assim revelar o crime. A confissão foi um alívio, como se tirasse um fardo do peito, umpeso da consciência.

De início, Kenyon não elogia o catolicismo, ao contrário, “Hilda, você jogou sua pureza angelical na massa de indescritível corrupção, a Igreja Romana?” (“Hilda, have you flung your angelic purity into that mass of unspeakable corruption, the Roman Church?” XL, p. 310) O escultor reprova a exibição de pompa arquitetônica (antes, no capítulo XXXIII, ele diz o mesmo a Donatello, ao desprezar os vitrais góticos)

Kenyon acaba por reprovar a presença de Hilda no confessório. Mas se ele tivesse chegado no dia anterior, ela se confessaria a ele. Foi o pecado de outros que a levou ao confessório – ela admira a exuberância, mas despreza a iniquidade dos sacerdotes... Pois ela reverencia a pompa que ele ridiculariza. (A questão aqui: A fé precisa de templos e monumentos?) No fundo, Kenyon não é tão irreverente quanto parece. (Kenyon não é um 'herói byroniano'. Aliás, o Byron aqui, usaria saias, seria a enigmática Miriam, que atrai o singelo Donatello ao abismo... No mais, Byron é lembrado, em Marble Faun, quando se descreve as ruínas.)


Após um período de torpor, agora Hilda 'renasce' para a alegria. Parece mais uma criança (bipolar: depressão – euforia ou alegria – melancolia) Hilda pensa em voltar para casa... “Em Roma, há algo sombrio e assustador, do qual não podemos escapar” (“In Rome, there is something dreary and awful, which we can never quite escape.” p. 315) Para Kenyon, é indiferente o local. Para ele, Hilda está sempre elevada – inalcançável. É a mulher idealizada – um contraponto a byroniana Miriam. O que para Hilda é amizade, para Kenyon é amor.

O Narrador se permite analisar o casal. Distancia-se de Kenyon, refere-se a ele com o simples 'escultor' – não se identifica com Kenyon. Há um método de 'imparcialidade'? Aqui, é ela quem hesita em amar, enquanto ele admira a mocidade e a beleza. Ela retorna à pintura, aos passeios, e ele volta às esculturas – o busto de Cleópatra – e aos passeios. Passeios em Roma, nos quais os dois se encontram.

Aliás, o cenário volta a ser tematizado. Começa a temporada de turismo em roma – descrição de ambiente é o que não falta. O olhar de turista: as casas romanas desprovidas de aquecimento, o quanto os latinos são despreparados para o inverno... Mas o inverno mediterrâneo é agradável aos turistas do Norte.

Em Roma os dois eixos temáticos se encontram – a Arte e a Fé – pois a 'Cidade Eterna' é a cidade da Arte – um centro com elementos do passado classiscita, e depois renascentista (isto é, neoclassicista) – e ao mesmo tempo, a capital da fé católica, é um centro religioso. Há, portanto, em toda a narrativa uma dicotomia : estética x fé .

Ao determos o foco sobre as personagens, os dois casais permitem uma comparação. A paixão de Miriam e Donatello é turbulenta, tem crime e cumplicidade. Já o amor-amizade de Kenyon e Hilda é romântico, idílico, idealizado. Por exemplo, temos a cena de Kenyon e Hilda, no estúdio de escultor, diante do busto de Cleópatra – uma repetição, mas em contraponto do capítulo 13, onde Miriam faz uma visita a Kenyon.

Assim, tanto no cap. XLI quanto no XIII são tematizadas a Arte pensada e a obra realizada: há uma distância/lacuna. A obra não é tal como foi idealizada. Os admiradores veem a obra pronta, consideram-na uma 'obra-prima' – mas não sabem sobre o 'original' imaginado. A inspiração primeira do artista. Hilda acha que o Artista tem o mérito de 'sugerir' – os admiradores imaginam mais a partir da imaginação artística.

No busto de Donatello, a sensível Hilda percebe uma expressão diferente – uma perda da inocência, do caráter selvagem do 'jovem fauno'. O que ela denomina 'crescimento intelectual e moral' advem da culpa e remorso. Hilda deve suspeitar sobre a mudança de Donatello – ela testemunhou o crime – Kenyon desconfia que ela sabe, por isso ela antes se angustiava. Mas não sabemos – nós, os leitores – o que ele sabe.

Kenyon revela que conversou com Miriam – a motivar Hilda a também falar sobre o 'enigma' – ele diz que o crime resultou no amor de dois amigos. Hilda revolta-se, não admite tal confusão entre Certo e Errado, Bem e Mal. Na fé de Hilda, o Mal é Mal e Bem é Bem. Não há meio-termo, ou mistura. Kenyon insiste que a 'natureza humana' não é assim. Nas ações humanas encontra-se misturados o Bem e o Mal. Um ato que pretende ser bom – pode ser errado, e vice-versa. Hilda revela-se 'juiz severo' – sem compaixão. E se entristece novamente. Hilda lembra-se de Miriam.


Mas qual Miriam? Nos capítulos finais, as personagens – após uma radical 'carnavalização' – estão demasiadamente transmutadas! São OUTRAS em relação com as que presenciámos nos capítulos iniciais. Assim como Adão e Eva são diferentes antes e depois da Queda, do Pecado. Lembremos o simbolismo.


Simbologias preenchem as entrelinhas, elaboram um 'outro nível de leitura' – igualmente acontece com os contos de Kafka – onde o realismo é também uma alegoria. Miriam é Miriam, certo. Mas é também Eva, é ninfa, é imagem de mistério, segredo.Donatelo é Donatello, e também Adão, e também Fauno, o espírito singelo, jovial, no mundo bucólico, não o corrompido ambiente das cidades. O pecado de Miriam-Eva e Donatello-Adão é o mesmo de Caim, a morte do próximo, o homicídio. E Hilda é a Virgem Maria, ou a Beatrice, de Dante Alighieri, sempre numa castidade mantida acima (ela vive numa torre). E Kenyon? Ele é o Artista, o Observador dos amigos e do mundo ao redor, está na posição de ser (posivelmente) o Narrador.

A carnavalização é evidente no capítulo XLVII onde temos o camponês Donatello e a camponesa (contadina) Miriam que sabem algo sobre o destino de Hilda. A mesma Hilda que então era inalcançável ao escultor – que sente a ausência da mulher idealizada, e peregrina em busca da Amada. A busca tem algo de um andarilho medieval a seguir para a terra da noiva prometida. Um seguir até o ser amado.


A sucessão de eventos – a própria história, uma sequência de altos e baixos, impérios sobem e entram em decadência. O homem atravessa esse museu de escombros e ruínas e descobre que agora é atração turística! A geração de hoje se apossa dos bens das gerações passadas – o mármore de um túmulo pode ser a estátua de um palacete atual. “Este antigo esplendor há muito tinha sido roubado dos mortos, para decorar os palácios e igrejas dos vivos.” (“This antique splendor has long since been stolen from the dead, to decorate the palaces and churches of the living.” XLVI, p. 356)

Tudo começa a se desvelar. As personagens – principalmente – abordam o simbolismo da Obra. “Tenho prazer em meditar à beira desse grande mistério. A história da queda do homem! Não está ela repetida no nosso romance de Monte Beni?” (“I delight to brood on the verge of this great mystery, ... The story of the fall of man! Is it not repeated in our romance of Monte Beni?” p. 369) Lembramos que “Romance de Monte Beni” é o subtítulo do livro, ainda mais se comparmos com o trecho no capítulo XXXV, em Perúgia. E então o foco recai sobre o 'novo' Donatello – que após o 'pecado' passou a ter consciência do 'Bem e do Mal'.


“Mas aqui, Miriam, está alguém a quem uma terrível desventura começou a educar; ela o tirou, e por sua atuação, de uma condição selvagem e feliz que, dentro de limites circunscritos, deu-lhe alegrias que ele já não pode encontrar em nenhum outro lugar sobre a terra.” ("But here, Miriam, is one whom a terrible misfortune has begun to educate; it has taken him, and through your agency, out of a wild and happy state, which, within circumscribed limits, gave him joys that he cannot elsewhere find on earth.” XXXV, p. 269)


O 'bom selvagem' (ver os escritos de Rousseau) assume 'consciência' devido ao remorso pelo pecado – também em obras de James Joyce, “remordimento íntimo da consciência” (agenbite of innerwit) quando a personagem se depara com os limites religiosos e cria consciência de si-mesma quando ultrapassa tais limites.

O romance Fauno de Mármore, de Hawthorne é, assim, uma fábula sobre a condição humana ao tomar consciência depois de sofrer. A ponto de praticamente se ligitimar o sofrer – pois dizemos que o 'sofrer é que nos faz crescer'. É assim que moralizamos o sofrimento, e religiosamente nos resignamos. Ou então criamos Arte.
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jul/ago/10
digt. set/10
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Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
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Marble Faun online (Project Gutenberg)
vol 1
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1448192

vol 2
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1448195

Marble Faun no Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/The_Marble_Faun
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