quarta-feira, 16 de junho de 2010

Les Misérables - Parte 2 - Batalha de Waterloo






Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)

As Obras Clássicas (ensaio 3)

O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna
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Parte 2 – Cosette – Livro 1 (Waterloo)
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O Narrador descreve o Campo de Hougomont, em 1861, o mesmo local onde em junho de 1815 aconteceu a terrível Batalha de Waterloo, onde as forças francesas do imperador Napoleão Bonaparte foram derrotadas pelos ingleses, holandeses, belgas e prussianos.

Além das descrições dos momentos decisivos da Batalha, o Narrador traça um paralelo com outras batalhas, tais como a de Austerlitz (dezembro de 1805) e a das Nações (ou de Leipzig, outubro de 1813), apresentado os combatentes e suas desventuras, enquanto a figura de Napoleão 'personifica' o 'gênio militar'. Além de comparar até as 'condições meteorológicas' antes das Batalhas!

O cenário épico é confuso para o Narrador, imagine-se para as personagens... Lembramos logo daquele Fabricio del Dongo que atravessa o campo de Waterloo - sem saber o que acontece! - em “Cartuxa de Parma” (“La Chartreuse de Parme”, 1839), outro romance de Stendhal. Em “Guerra e Paz”, no Livro II, temos a descrição da Batalha de Austerlitz, quando as forças francesas derrotaram os austríacos, prussianos e russos.

A Batalha das Nações foi uma das maiores da Europa, antes da Primeira Guerra Mundial (um século depois), ao congregar austríacos, prussianos e russos, além de suecos e saxões, para derrotarem os franceses de Napoleão.

As imagens evocadas no campo de Waterloo são realmente muito fortes, com um evidente propósito de incomodar, chocar a sensibilidade do Leitor, no sentido de apresentar os horrores da guerra, e não um alegado aspecto 'glorioso',

“A tormenta do combate está ainda neste espaço; o horror é visível; a irrupção do conflito é de petrificar; tanto vive, tanto morre; foi bem aqui. Os muros agonizam, as pedras tombam, as fendas gemem; os buracos na campina, as árvores pendidas e trêmulas parecem faze esforço para se libertarem.” (“L'orage du combat est encore dans cette cour; l'horreur y est visible; le bouleversement de la mêlée s'y est pétrifié; cela vit, cela meurt; c'était hier. Les murs agonisent, les pierres tombent, les brèches crient; les trous sont des plaies; les arbres penchés et frissonnants semblent faire effort pour s'enfuir.” II, p. 324)
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“Após a ação, tem-se pressa para enterrar os cadáveres. A morte tem uma maneira toda dela de empestar a vitória, e logo depois da glória envia a peste. O tifo é um anexo do triunfo. Se o poço é profundo, faz-se dele um sepulcro. Ali se joga uns trezentos mortos.” (“Après l'action, on eut une hâte, enterrer les cadavres. La mort a une façon à elle de harceler la victoire, et elle fait suivre la gloire par la peste. Le typhus est une annexe du triomphe. Ce puits était profond, on en fit un sépulcre. On y jeta trois cents morts.” II, p. 326)
O Narrador tem 'visão panorâmica' ao usar o seu 'direito' de 'flashback', “Voltemos atrás, eis um dos direitos do narrador, e nos localizemos no ano de 1815, e mesmo um pouco antes da época onde começa a ação narrada na primeira parte desse livro.” (“Retournons em arrière, c'est un des droits du narrateur, et replançons-nous em l'année 1815, et même un peu avant l'époque où commence l'action racontée dans le première partie de ce livre.”)

O Narrador aqui vem lembrar que temos uma 'ação narrada' situada numa dada cronologia – Jean Valjean 'surge na página' em outubro de 1815, sendo percebemos no Segundo Livro do Volume I – e se preocupa em relocalizar o leitor na 'sequência' da Narrativa, demasiadamente densa.

A descrição da Batalha no campo de Hougomont não é de 'historiador', sabemos, mas de 'romancista', há toda uma 'voz poética' a florear os eventos (lembramos que Victor-Hugo foi reconhecido poeta, além de prosador e dramaturgo). Mas não faltam os detalhes da 'arte militar', onde sabemos como estavam dispostas as forças combatentes, o número de canhões, o avanço e o retrocesso de cada ala, de cada regimento. Enquanto Napoleão explora o uso da artilharia concentrada para romper as frentes inimigas, os soldados são as vítimas que marcham diretamente para a morte. Há uma voz de comando e uma miríade de vozes de obediência.

Mas o 'gênio militar' de Napoleão não mostra muito brilho. A chuva certamente teria influenciado a firmeza do solo, e assim a dificultar o avanço da artilharia, o que acabou por atrasar a batalha – cerca de cinco horas de atraso, segundo o Narrador – e houve tempo para a chegada das tropas prussianas, para reforçarem as tropas inglesas e holandesas-belgas, em retirada.

“Suponha que a terra seque, a artilharia poderia rolar, a ação começaria às seis horas da manhã. A batalha estaria ganha e acabada às duas horas, três horas antes da peripécia prussiana. // Qual a quantidade de falhas existiram por parte de Napoleão na perda desta batalha? O naufrágio é imputável ao piloto?”(“ Supposez la terre sèche, l'artillerie pouvant rouler, l'action commençait à six heures du matin. La bataille était gagnée et finie à deux heures, trois heures avant la péripétie prussienne. // Quelle quantité de faute y a-t-il de la part de Napoléon dans la perte de cette bataille? le naufrage est-il imputable au pilote?” III, p. 330

A culpa da derrota: a chuva? O atraso da artilharia? O cansaço de Napoleão (após 20 anos de guerras)? Aqui o Narrador se permite ter opinião sobre o fato histórico! Não se limita a narrar – mas assume ares de historiador – em pleno romance. Se fosse uma personagem (como fará depois o Tolstoy) até poderíamos desculpar, mas... O Narrador preocupa-se com a 'veracidade' dos eventos narrados, e depois ainda se explica, se justifica.

“Desnecessário dizer que não pretendemos fazer aqui a História de Waterloo; uma das cenas primordiais de um drama que narramos se prende à esta batalha. (...)”
"Il va sans dire que nous ne prétendons pas faire ici l'histoire de Waterloo; une des scènes génératrices du drame que nous racontons se rattache à cette bataille;" p. 331

Pois “essa história não é nosso assunto” (“Il va sans dire que nous ne prétendons pas fare ici l'histoire de Waterloo...” “cette histoire n'est pas notre sujet.” p. 331)

E, em seguida, o Narrador lembra os nomes de 'historiadores' famosos (na época), tais como Walter Scott, Lamartine, Vaulabelle, Charras, Quinet, Thiers, e diz não ter “competência estratégica” para julgar os fatos de Waterloo, pois o próprio se justifica, “nós julgamos igual ao povo, este juiz ingênuo” (“nous jugeons comme le peuple, ce juge naïf”)

Napoleão, o Imperador, o “dernier césar”, encara o destino do seu Império, em pleno 'Governo dos Cem Dias', diante da 'confusão' do campo de batalha, a mesma que confundiu Fabricio Del Dongo, e confunde até hoje os especialistas da 'arte militar'. “Quid obscurum, quid divinum” (algo que é 'divino' por ser 'obscuro')

O Narrador assume que seu relato é resumo de resumo, um capítulo de romance baseado na História, que é um resumo dos acontecimentos. “O historiador, nesse caso, tem o direito evidente de resumir” (“L'historien, em ce cas, a le droit evident de résumé.” p. 336) O que o Leitor tem acesso é a uma das narrativas – ou seja, 'versão' – dos fatos.

Sabemos que os ingleses, e holandeses-belgas, recuam às 16 horas, quando a 'linha de defesa' é abalada. Sabemos que Hougomont e Haie-Sainte estão em mãos francesas. Sabemos que Napoleão sorri (“Napoléon de belle humeur”, VII), diante da retirada dos aliados. “O homem que foi sombrio em Austerlitz ficou alegre em Waterloo. Os grandes predestinados eram de contrasensos.” (“L'homme qui avait été sombre à Austerlitz fut gai à Waterloo. Les plus grands prédestinés font de ces contresens.” p. 339) E entendemos essa contradição ao lembramos que em Austerlitz, o General francês venceu, enquanto em Waterloo foi derrotado.

Foi preciso que milhares de homens, os mais fortes e bravos, se matassem naquele longo dia de combates para que odestino da Europa – e do mundo! - fosse decidido. E para que fossem escritas estas páginas memoráveis sobre a glória e a estupidez das guerras, sobre o sangue e o ferro nos campos de Waterloo, nas obras “Cartuxa de Parma” e este, “Os Miseráveis”.

O Narrador vê o campo de batalha como uma enorme sepultura francesa, “duas grandes sepulturas; uma, a tumba inglesa, à esquerda; a outra, a tumba alemã, à direita. Não há uma tumba francesa. Para a França, toda esta planície é sepulcro.” (“deux grands sépultures; l'une, le tombeau anglais, à gauche; l'autre, le tombeau allemand, à doite. Il n'y a point de tombeau français. Pour la France, toute cette plaine est sépulcre.” VII, p. 543)

Segundo as estimativas, em Hougomont, 1500 mortos em menos de uma hora, enquanto em Haie-Sainte, 1800 mortos em menos de uma hora, ou ainda menos! Toda esta carnificina aos olhos de Napoleão, p. 345

A narrativa da batalha tem algo de 'cubista', expressionista quase poética (poema em prosa)

“Tais narrativas parecem ser de outra época. Algo de semelhante a esta visão aparecia sem dúvida nas velhas epopeias órficas narrando sobre homens-cavalos, os antigos centauros, esses titãs de face humana e corpo equino, cujo galope escalou o Olimpo, horríveis, invulneráveis, sublimes; deuses e bestas.”
(“Ces récits semblent d'un autre âge. Quelque chose de pareil à cette vision apparaissait sans doute dans les vieilles épopées orphiques racontant les hommes-chevaux, les antiques hippanthropes, ces titans à face humaine et à poitrail équestre dont le galop escalada l'Olympe, horribles, invulnérables, sublimes; dieux et bêtes.” IX, p. 348)

Quem derrotou Napoleão? Os ingleses? As fatalidades? O terreno acidentado? O Narrador garante que é a 'vontade divina', “Bonaparte vencedor em Waterllo não estaria na regra do século dezenove. Uma outra série de fatos de preparava, onde Napoleão não tinha lugar. A má vontade dos acontecimentos se anunciavam de longa data. // Era tempo de que esse homem poderoso tombasse.” (“Bonaparte vainqueur à Waterloo, ceci n'était plus dans la loi du dix-neuvième siècle. Une autre série de faits se préparait, où Napoléon n'avait plus de place. La mauvaise volonté des événements s'était annoncée de longue date. // Il était temps que cet homme vaste tombât.” IX, p. 350)

A História enquanto 'lei da estatística', se X não acontecesse então Y seria diferente, o século XIX seria outro com a vitória de Napoleão, etc... E não dizemos o mesmo hoje, quando nos referimos às guerras mundiais? Se os alemães vencessem, se Hitler vencesse os Aliados, se os japoneses vencessem os norte-americanos... Como seria o nosso mundo? (Eis toda um 'segmento de mercado' para os autores de distopias históricas, vejam http://en.wikipedia.org/wiki/Category:World_War_II_alternate_histories)

O Narrador de Victor-hugo sabe ser grandioso (ou melhor, exagerado) em suas descrições demasiadamente românticas, a lembrar as cenas épicas de um Sir Walter Scott, ou as batalhas descritas no clássico português “Euríco, o Presbítero” (1844) de Alexandre Herculano (1810-1877), na guerra entre godos e árabes,“O chão pareceu afundar-se com o encontro daquelas duas mós enormes de homens armados, e o eco dos botes das lanças nos escudos convexos e nas armas sonoras dos cavaleiros repercutiu nas encostas fronteiras e desvaneceu-se ao longe, murmurando entre as quebradas. Desde o primeiro embate, não mais fora possível distinguir os exércitos travados como dous lutadores furiosos.” (11, Dies Irae)

“Esta estranha batalha era como um duelo entre feridos furiosos que, cada qual de seu lado, sempre resistindo e combatendo, e perdendo todo o sangue. Qual dos dois tombará primeiro?” (“Cette étrange bataille était comme un duel entre deux blessés acharnés qui, chacun de leur côté, tout en combattant et en se résistant toujours, perdent tout leur sang. Lequel des deux tombera le premier?” X, p. 353 )

A ponto de vencer os ingleses (e holandeses e belgas), os franceses receberam na retaguarda o ataque prussiano (cap. XII, La Guarde), “Como ela [a Guarda Imperial] sentia que iria morrer, ela gritava: 'Viva o Imperador!' A história nada mais tem de mais emocionante que esta agonia a romper em aclamações.”(“Comme elle sentait qu'elle allait mourir, elle cria: vive l'empereur!
L'histoire n'a rien de plus émouvant que cette agonie éclatant en acclamations.”
, XII, p. 357)

O Narrador – de um Autor francês – nesse ponto perde toda a pretensa 'objetividade' (ou 'imparcialidade') pois não hesita em exaltar o Imperador Napoleão e o 'nosso' exército – a glória da França (assim como Tolstoy, em “Guerra e Paz”, exalta a resistência russa às ofensivas napoleônicas...), “nas brumas deste conflito, o inimiga sentia o respeito pela França” ("dans le brume de cette mêlèe, l'ennemi sentit le respect de la France” p. 357)

Sabemos que o Marechal Ney perdeu cinco cavalos – mas não morreu! - e acabou fuzilado pelos 'monarcas', culpado por ter apoiado Napoleão! E que os prussianos se vingaram do que sofreram nas mãos dos exércitos franceses em 1806, em Austerlitz e em Leipzig, 1813. “Blücher ordena o extermínio” (“Blücher ordonna l'extermination”) e “A vitória se completa com o assassinato dos vencidos. Posto que somos a história, devemos punir: o velho Blücher se desonra.” (“La victoire s'acheva par l'assassinat des vaincus. Punissons, puisque nous sommes l'histoire: le vieux Blücher se déshonora.” (XIII, La Catastrophe, p. 359)

Conclui-se (se podemos concluir algo) que os franceses e os britânicos (ingleses e escoceses, e juntamente com holandeses e belgas) combateram o dia todo e não se derrotaram, e quando os britânicos já recuavam então foram 'salvos' pelos prussianos. [Continuando, uma vez que 'somos a história', podemos lembrar que nas Grandes Guerras do século XX, franceses e britânicos não conseguiram vencer os alemães – foi preciso uma força aliada congregando norte-americanos e russos. Na Primeira Guerra Mundial, quando os alemães já estavam exaustos, chegaram os norte-americanos em prontidão.] Em Waterloo, os franceses exaustos caíram aos pés dos recém-chegados prussianos. Então, os franceses que dominaram por vinte anos a política europeia, os franceses da “Grand Armée”, se debandaram em fuga: foi o dia do desastre, o fim do império de Napoleão (depois foi enviado para outro exílio, ainda mais distante, na ilha de Santa Helena, onde escreveu suas memórias, que tanto influenciaram – como já vimos – o aventureiro Julien Sorel, de “Le Rouge et Le Noir”, de Stendhal )

“Essa vertigem, esse terror, essa queda em ruína da mais alta bravura que já assombrou a história, seria pois sem uma causa? Não. A sombra de uma mão enorme se projeta sobre Waterloo. Era o dia do destino.” (“Ce vertige, cette terreur, cette chute en ruine de la plus haute bravoure qui ait jamais étonné l'histoire, est-ce que cela est sans cause? Non. L'ombre d'une droite énorme se projette sur Waterloo. C'est la journée du destin. XIII, p. 360)

O século 19, então, é fruto de Waterloo, “Waterloo é a dobradiça do século dezenove. O desaparecimento de um grande homem era necessário à ascensão do grande século.” (“Waterloo, c'est le gond du dix-neuvième siècle. La disparition du grand homme était nécessaire à l'avènement du grand siècle.” XIII, p. 360)

[Então, é de se perguntar: o século 20 é fruto de que? De Verdun? De Brest-Litovski? De Stalingrad? De El-Alamein? Do Dia-D na Normandia? A história é mesmo movida por batalhas ganhas e batalhas perdidas?]

O Narrador se dirige ao Leitor (aquele imaginado, idealizado), “O leitor francês querendo ser respeitado, talvez a mais bela palavra que um francês tenha dito não poderá ser repetida. Evita-se o relatar o sublime na história.” (“Le lecteur français voulant être respecté, le plus beau mot peut-être qu'un Français ait jamais dit ne peut lui être répété. Défense de déposer du sublime dans l'histoire." XV, p. 362)

Sempre a exaltar o heroísmo dos franceses (caso contrário, somente haveria o derrotismo francês...), o Narrador lembra do oficial da 'velha Guarda' que disse um impronunciável 'merde' aos oficiais ingleses, que exigiam a rendição. [No século XX, em plena Segunda Guerra, é famoso o caso do general norte-americano McAuliffe a responder com um 'nuts!' - 'ora bolas!' - a uma ordem de rendição dos alemães, em Bastogne, em plena Batalha do Bulge, dezembro de 1944] Assim a fanfarronice de Cambronne ao final da tragédia, é possível dizer que Waterloo finda em carnaval, a completar Leónidas [dos 300 de Esparta contra os persas] com Rabelais [o autor de comédias e sátiras].

Enquanto Leitor podemos dizer que o 'estilo' de um Machado de Assis, nosso tão louvado escritor brasileiro, está quase todo aqui em Victor-Hugo, só faltando mesmo os 'toques' de Sterne e Xavier de Maistre, com suas digressões... A relação Narrador (ou, par conséquence, Autor) e o Leitor é sempre tensionada pela 'cumplicidade' exigida, num 'flerte' entre o pedagógico e o irônico, pois tanto Victor-Hugo quanto Machado de Assis querem 'ensinar' algo – uma moral – aos leitores, confiam em tão sublime missão da Literatura.

A narrativa épica pretende algo semelhante: o sublime para melhor 'edificar os espíritos', despertar as mentes com as 'visões da glória'. Mas no campo de batalha, em Waterloo, não há qualquer 'glória'. A noite e a morte dominam. “foi assim que as legiões francesas, maiores que aquelas de Roma, expiraram em Mont-Saint-Jean sobre a terra molhada de chuva e de sangue, nos trigais sombrios, ...” (“c'est ainsi que les légions françaises, plus grandes que les légions romaines, expirèrent à Mont-Saint-Jean sur la terre mouillée de pluie et de sang, dans les blés sombres", XV, p. 364)

Quando Victor-Hugo escreveu Les Misérables (1861-62) ainda havia paz entre as nações – europeias, entenda-se – com apenas um conflito de 'renome', a Guerra da Crimeia, entre 1853 e 56, quando os britânicos (apoiados por franceses e italianos da Sardenha) e os turcos enfrentaram a expansão russa no Mar Negro – lá os ingleses enfrentaram dificuldades dignas das 'guerras napoleônicas' onde a carga da cavalaria ('brigada ligeira') inglesa na Batalha de Balaclava – outubro de 1854 – foi tão disastrosa quanto a carga da cavalaria ('cuirassiers') francesa em Waterloo. Na Europa, na época em que o Autor redigia sua obra-prima, despontava a guerras de unificicação da Itália e da Alemanha. Nesta última, destacava-se o 'punho forte' do chanceler prussiano von Bismarck, em guerra contra a Dinamarca (1864), Áustria (1866) e França (1870-71). Logo, o Victor-Hugo pode dizer que a Queda de Napoleão trouxe paz (de 1815 a 1870 a paz era quebrada por 'revoluções internas' em cada país – 1830, 1832, 1848). É nesse sentido que pode se entender que “o desmoronamento da monarquia militar' (“écroulement de la monarchie militar”) [de Napoleão] trouxe a “ derrota da guerra” (“déroute de la guerre.”)

A grandeza de um povo não está nas armas (cap. XVI, Quot libras in duce? , Qual o peso, o valor, de um chefe?), “Os povos são grandes além das lúgubres aventuras da espada. Nem a Alemanha, nem a Inglaterra, nem a França, têm sua grandeza numa bainha de espada.” ( “Les peuples sont grands en dehors des lugubres aventures de l'epée. Ni l'Allemangne, ni l'Angleterre, ni la France, ne tienent dans un fourreau." p. 365) Pois, além dos generais – Wellington, Blücher, Napoleão – existem os poetas, os literatos – Goethe, Schiller, Lord Byron, Shelley, Baudelaire – que 'humanizam' a civilização tão manchada de sangue.

O que a Inglaterra e a Alemanha foram no século XIX não se deve a Waterloo, “O que elea stiveram de engrandecimento no século dezenove não tem origem em Waterloo.” (“Ce qu'elles ont d'agrandissement au dix-neuvième siècle n'a point Waterloo pour source.” p. 365) Então o que foi Waterloo? Uma partida! “O que é Waterloo? Uma vitória? Não. Uma partida. // Partida ganha pela Europa, paga pela França” (“Qu'est-ce que Waterloo? Une victoire? Non. Un quine. // Quine gagné par l'Europe, payé par la France.” p. 365)

As estratégias de guerra dependem das idiossincrassias dos generais? Parece que sim. Wellington, o inglês, é a precisão e o cálculo, enquanto Napoleão é a intuição, a arte, a genialidade. “Wellington era o Barême da guerra, Napoleão era o Michelângelo; e dessa vez o gênio foi vencido pelo cálculo.”(“Wellington était le Barème de la guerre, Napoléon en était le Michel-Ange; et cette fois le génie fut vaincu par le calcul.” p. 366)

Barême aqui evoca o prodigioso matemático francês do século 17, enquanto Michelângelo é aquele magistral artista italiano, pintor, escultor e arquiteto, que viveu entre os séculos 15 e 16. Assim, temos o confronto entre o Cálculo e a Intuição. Além disso, haviam as tropas coligadas que os generais esperavam como 'reserva estratégica', “De ambos os lados esperava-se alguém. E foi o calculador exato que foi bem sucedido. Napoleão esperava Grouchy; ele não veio. Wellington esperava Blücher; ele veio.” (“Des deux côtés on attendait quelqu'un. Ce fut le calculateur exact qui réussit. Napoléon attendait Grouchy; il ne vint pas. Wellington attendait Blücher; il vint.” p. 366)

Também nas guerras modernas encontramos o clássico (iguais a Wellington) e o românticos (semelhantes a Napoleão), por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, temos o genial general alemão Rommel em contrapronto ao metódico Montgomery; ou no plano político, o clássico Churchill contra o revolucionário-alucinado Hitler). São paradigmas dados pelo próprio Napoleão, que revolucionou a guerra, com o uso de artilharia concentrada, exército popular, guerra total, etc. , a ponto de atemorizar as Monarquias – principalmente a Inglaterra, Prússia e Rússia – que se uniram contra o Imperador francês. A fama de Napoleão era tanta que aquele que o venceu – Wellington – foi glorificado. E o Narrador (voz do Autor) declara que a Inglaterra ao glorificar Wellington (o ingrato) acaba por desmerecer o bravo exército inglês, que mantinha a ordem até em retiradas (enquanto o exército francês entrou em pânico...) “Ao fazer Wellington tão grande, a Inglaterra se faz pequena.” (“Faire Wellington si grand, c'est faire l'Angleterre petite.” p. 367)

É a velha mania de engrandecer os 'grandes homens', os heróis, enquanto são os povos que se matam nas batalhas e os nobres levam a fama. Ainda mais a Inglaterra que mesmo após as revoluções de 1688, 1789, 1848, ainda conserva a Nobreza – seria diferente se a Inglaterra fosse derrotada em 1815? ou em 1918? ou em 1940? é uma boa questão...)

Mas, afinal, o que foi Waterloo? Um massacre. “Para concluir, digamos que em Waterloo houve mais massacre do que batalha” (“Au total, dison-le, il y eut à Waterloo plus de massacre que de bataille” p. 368 ) Na campina próxima a Waterloo morreram 60 mil dos 144 mil combatentes! Das baixas, mais da metade (cerca de 56 por cento) eram franceses.

Os liberais, estranhamente, parecem não odiar Waterloo, a derrota que restaurou o Absolutismo. Uma discussão que já encontramos nas páginas de “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, escrito em 1830, quinze anos após a terrível batalha. Para o Narrador, Waterloo é a “vitória contrarevolucionária”, pois venceram as velhas monarquias contra o novo César, o novo Imperador. Assim, seria Napoleão – com seu 'liberalisme bonapartiste' - um 'revolucionário'? Ou outro imperialista a ameaçar os imperialistas de antes? (De modo semelhante, se Churchill é o conservador, então Hitler era o 'revolucionário'?)

Encontramos algo de bom em Waterloo? Afinal, o status quo foi mantido – as velhas Monarquias. (Muitas sobreviveriam até 1918, ou mais, 1945), “é o status quo contra a iniciativa, é o 14 de julho de 1789 atacado através do 20 de março de 1815; é o ressoar do combate das monarquias contra a indomável revolta francesa.” (“ c'est le statu quo contre l'initiative, c'est le 14 juillet 1789 attaqué à travers le 20 mars 1815, c'est le branle-bas des monarchies contre l'indomptable émeute française.” XVII, p. 369)

Após Waterloo, iniciou-se o ciclo de 'monarquias constitucionais', daí a aprovação dos liberais, contrários ao 'droit divin' (Absolutismo) Para Victor-Hugo, a 'revolução' é o Progresso. E Waterloo foi um retrocesso, mas aceitando (sendo condescendente) o Constitucionalismo – daí se dizer “Monarquias Constitucionais” para se distinguir das “Monarquias Absolutistas” - que 'amansou' (momentaneamente, como sabemos) o 'espírito revolucionário'.

“Não vejamos em Waterloo mais do que há em Waterloo. Nenhuma liberdade intencional. A contrarevolução era involuntariamente liberal, do mesmo modo que, por um fenômeno correspondente, Napoleão era involuntariamente revolucionário. Em 18 de junho de 1815, derrubaram Robespierre do cavalo.”

(“Ne voyons dans Waterloo que ce qui est dans Waterloo. De liberté intentionnelle, point. La contre-révolution était involontairement libérale, de même que, par un phénomène correspondant, Napoléon était involontairement révolutionnaire. Le 18 juin 1815, Robespierre à cheval fut désarçonné.” XVII, p. 369)

Após Waterloo, volta-se a simbiose Nobreza + Clero, como é explítico em “O Vermelho e o Negro”, quando “O altar e o trono se fraternizaram majestosamente.”( "L'autel et le trône fraternisèrent majestueusement” XVIII, p. 371) Foi a famosa “Restauração”, patrocinada pelas Monarquias Centrais (Áustria, Prússia e Rússia, congregadas na “Santa Aliança”), “e o antigo regime tronou-se o novo, e toda a sombra e toda a luz do mundo mudaram de lugar” (“et l'ancien régime est devenu le nouveau, et toute l'ombre et toute la lumière de la terre ont changé de place,” XVIII, p. 371)

O Antigo retorna dizendo-se 'novo', “As velhas realezas malsãs e venenosas se cobriram de novas aparências. A mentira desposa 1789, o direito divino se mascara com uma Constituição [Carta Magna], as ficções tornaram-se constitucionais, os preconceitos, as superstições e as ambiguidades [pensamentos dúbios], com o artigo 14 no coração, se envernizaram de liberalismo. Troca de pele de serpentes.”(“Les vieilles réalités malsaines et vénéneuses se couvrirent d'apparences neuves. Le mensonge épousa 1789, le droit divin se masqua d'une charte, les fictions se firent constitutionnelles, les préjugés, les superstitions et les arrière-pensées, avec l'article 14 au coeur, se vernirent de libéralisme. Changement de peau des serpents.” p. 372)

O liberalismo das 'monarquias constitucionais' seria uma 'aparência', discurso demagógico, apenas 'verniz' sobre o 'antigo Regime'. Assim é atualmente, em nosso início de século 21, onde as Democracias liberais são apenas 'verniz' de 'decisão popular'. A dominação continua.] Após o terremoto chamado Napoleão Bonaparte, o que sobrou? Um vazio de poder, cobiçado pelos reis. “Os reis cobiçaram este vazio. A velha Europa aproveita para se reformar. Teve até uma Santa-Aliança. Bela Aliança, teria dito antes o campo fatal de Waterloo.” (“Les rois se mirent dans ce vide. La vieille Europe en profita pour se reformer. Il y eut une Sainte-Alliance. Belle-Alliance, avait dit d'avance le champ fatal de Waterloo.” XVIII, p. 372)

Interessante que Waterloo, para os prussianos, é a Batalha de Belle-Alliance. Na verdade, cidade belga Waterloo ficava a 4 quilômetros de distância, e meia légua de Mont-Saint-Jean, o acampamento britânico.

Pois bem, os capítulos I a XVIII do Livro I (Waterloo) – sabemos agora – é uma longa digressão, épica-romântica, pois há uma cena que integra o romance, a 'narrativa propriamente dita'. Assim revela o capítulo derradeiro (XIX, O campo de batalha à noite), “Voltemos, é uma necessidade desse livro, sobre esse fatal campo de batalha.” (“Revenons, c'esr une nécessité de ce livre, sur ce fatal champ de bataille.” p. 373)

Waterloo. 18 de junho de 1815. Noite de lua cheia. Os prussianos perseguem os franceses. Os ingleses dormem no acampamento dos franceses (“eis a constatação habitual da vitória; dormir na cama do vencido.”, “c'est la constatation habituelle de la victoire; coucher dans le lit du vaincu.” p. 373) Nada mais que a vã-glória da guerra, “Não somos daqueles que elogiam a guerre; quando a ocasião se apresenta, nós dizemos as verdades.” (“Nous ne sommes pas de ceux qui flattent la guerre; quand l'occasion s'en présente, nous lui disons ses vérités.” p. 373)

Após a batalha, sobre os corpos sangrados dos 'heróis' voam os abutres, os corvos e ... perambulam os ladrões! “Quem são estes ladrões a se aproveitarem da glória?” (“Quels sont ces filous faisant leur coup derriere la gloire?” p. 374) Podem ser soldados do exército vencedor? “O herói do dia é o vampiro da noite. Se acham no direito de, após tudo, espoliar os cadáveres dos quais são causadores. Quanto a nós, não pensamos assim.” (“Le héros du jour est le vampire de la nuit. On a bien le droit, après tout, de détrousser un peu un cadavre dont on est l'auteur. Quant à nous, nous ne le croyons pas.” p. 374)

O Narrador não acusa os soldados, mas os desertores, os mercadores de beira de estrada, mesmo que alguns generais tenham permitido a 'pilhagem' como um 'troféu'. Um exemplo é o general francês Turenne, nas guerras do século 17. Foram terríveis os saques franceses durante a Guerra dos 30 Anos, que vitimou principalmente a região dos Estados germânicos, a atual Alemanha.

Lá estão, os ladrões a saquearem os mortos em Waterloo. Para coroar o horror da batalha, eis a mesquinharia dos ladrões. Quem é aquele ladrão a perambular nas sombras? E quem é o agonizante que se reanima? Na cena final, sabemos que o ladrão diz se chamar Thenardier, e ser sargento. E o homem ferido é o oficial Pontmercy.

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por Leonardo de Magalhaens
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Um comentário:

  1. Gostei do seu comentário. Quando li, e depois reli, esta notável obra dos "Miserables" fiquei impressionada com esta descrição desta fatídica batalha para os Franceses. As pontes com outros autores são enriquecedoras. Não refere o "louvor" à fibra do soldado Inglês que VF Hugo expressa quase no fim... achei curioso...

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