segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

sobre "Os Sofrimentos do Jovem Werther" - de J W von Goethe



Sobre “Os Sofrimentos do Jovem Werther

(Die Leiden des jungen Werthers, 1774)

de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)



A juventude que oscila entre a febre e a melancolia



Introdução



Depois da literatura sobre crianças, vamos para a literatura sobre os jovens, aqueles em transição desde a infância, aqueles que descobrem as paixões amorosas, os sonhos eróticos, as pulsões de violência. Uma literatura escrita por adultos que se lembram dos tempos de juventude até uma literatura escrita por jovens para outros jovens.


O desenvolvimento (em educação ou infortúnio) das crianças já foi tematizado em obras como “Oliver Twist” e “Aventuras de Tom Sawyer”, onde faltaram as continuidades: o que seria de um Oliver Twist jovem? Ou de um Tom Sawyer universitário? Como poderiam continuar as histórias destas crianças?


No intuito de contar histórias – com as vicissitudes, os erros e os progressos – outros autores preferiram jogar um foco sobre o o crescimento físico e intelectual das crianças ao adentrarem o mundo jovem até uma fase pré-adulta. Acompanham o protagonista desde o seio da família até uma escola, um internato, uma pensão em outra cidade. Ou o protagonista em peregrinações em busca de uma identidade.


Estes romances que apresentam a educação do protagonista se constituíram em contexto germânico, no século 18 – ainda que obras inglesas e francesas apresentassem algumas característica do gênero – por isso o nome em alemão é referencial : Bildungsroman (romance de formação / educação, ou de aprendizagem, em inglês: Formation / Apprenticeship Novel).


A obra de Johann Wolfgang von Goethe (que escreveu em vários gêneros e sempre com qualidade!) tornou-se referencial para entender o 'romance de formação', principalmente com o romance epistolar “Os Sofrimentos do Jovem Werther” e “Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, onde é apresentada a fase juvenil dos protagonistas até o momento de uma ingressão numa escola ou carreira pública ou escolha de uma profissão liberal.


Estas características – acompanhar o desenvolvimento da personagem, entender o contexto dos aprendizados e peregrinações, resguardar uma moral ou legitimidade ética para o narrado – podem ser encontradas em várias obras, uma mais narrativas, outras mais panfletárias, outras mais doutrinárias. Espera-se que o autor tenha a dizer algo edificante com a vida do protagonista – geralmente um jovem íntegro que percorre uma jornada de amadurecimento.


Em momento oportuno analisaremos a vida do aprendiz e peregrino Wilhelm Meister, mas queremos enquanto introdução lembrar dois romances que pouco aparecem nos cânones do Bildungsroman, mas podem ser assim considerados.


O autor inglês Charles Dickens (1812-1870) publicou, de forma seriada, em 1849-50, o interessante (e de sucesso!) “David Copperfield” que apresenta o desenvolvimento de um jovem que em muito lembra o próprio Dickens (daí alguns considerarem como autobiográfico, assim como Werther seria muito semelhante ao autor Goethe). Copperfield sofre com perdas familiares, mudanças de moradia, desencontros, perda de amigos, viagens e penúrias, mas se mantem sempre íntegro e audaz, sempre pronto a fazer amizades e evitar encrencas.


De tal modo que Copperfield é um bom mocinho, um protagonista positivo. Digamos que ele aprende, que se desenvolve – a ponto de depois narrar as próprias aventuras com um distanciamento. Há uma estética do 'observar-se' enquanto observa o outro. Ao tomar consciência das mesquinharias – lembramos do vilão Uriah Heep, ambicioso que se finge de servil submisso – ao encontrar a amizade e o amor.


Mas o protagonista pode também se questionar, desfazer-se da educação doméstica, repensar os valores morais dos próprios pais, como é o caso do protagonista Emil Sinclair, do romance “Demian” (1919) do autor alemão-suiço Hermann Hesse (1877-1962), que descobre os novelos da moral, a hipocrisia da sociedade, e encontra um amigo, o Max Demian, com ideias nada ortodoxas, que leva o jovem a auto-superação.


De algum modo “Demian” pode ser considerado um embrião de “O Lobo da Estepe” (Der Steppenwolf, 1927) que fez sucesso na época iconoclasta da contracultura no Ocidente nos anos de 1950 a 1970) que seria mais um anti-Bildungsroman, pois não há desenvolvimento do protagonista, mas uma desconstrução de valores, um carroussel de delírios, uma afronta aos costumes burgueses. Mas ainda em “Demian” encontramos a figura do aluno (também presente em outra obra de Hesse, “Sob as Rodas” / Unterm Rad , 1906) que adentra uma vida estudantil cheia de restrições, carregada de disciplina e avessa à liberdade de pensamento. É o mesmo ambiente que encontraremos em outras obras, tais comoAteneu”, “Jovem Törless” e “Retrato do Artista quando Jovem”.


Quando o romance tematiza a vida estudantil de um artista, ou de uma artista na vida cotidiana, recebe uma denominação de sub-gênero 'romance de artista' (Künstlerroman ) onde o artista se esforça para manter sua identidade, individualidade e liberdade de expressão meio a um ambiente hostil de ambiciosos e hipócritas. É uma crítica a sociedade da época, o que os autores pretendem. Assim é com o Tonio Kroeger de “Tonio Kroeger” e o Stephen Dedalus de “Retrato do Artista quando Jovem”, artistas que se desenvolvem enquanto identidade estilística e singularidade estética.


Há também os alunos ou não, artistas ou não, mas sempre desassossegados os protagonistas Werther de “Jovem Werther” e o Holden Caulfield de “Catcher in the Rye” que sempre entram em desacordo com o contexto, a época, a sociedade que cerca o jovem, sempre desconfiado e pronto a criticar. Estes jovens são aqueles cujas vozes ecoaram nos iconoclastas dos protestos juvenis-estudantis dos anos 1950-1970.


O quanto podemos falar em 'Bildungsroman' atualmente? Qual seria o desenvolvimento do protagonista? Sua identidade singular ou sua ingressão no mercado de trabalho? Sua diferença ou sua conformidade? Fato é que na primeira parte do século XX é visível na literatura o fenômeno da 'crise do sujeito', com a percepção do fragmentário, da incompletude do indivíduo. É também um momento de 'crise do romance' com as implosões causadas por James Joyce, Virginia Woolf, Proust, Kafka. Saiu o realismo e entrou a 'sondagem psicológica'.


No mais, alguns críticos diagnosticam também o fim do Bildungsroman, onde teríamos paródias (tais como “O Tambor” de Günther Grass) e anti-Bildungsroman (tais como “Catcher in the Rye” e “A Clockwork Orange”). Assunto para outros ensaios, seguramente.



mais info


http://es.wikipedia.org/wiki/Bildungsroman


http://en.wikipedia.org/wiki/K%C3%BCnstlerroman





O Jovem Werther


parte 1


(Todas as citações aqui traduzidas por LdeM,

exceto trechos de Ossian, por Marcelo Backes)



fonte: “Die Leiden des jungen Werther”, München, DTV, 1978


também Projekt Gutenberg http://gutenberg.spiegel.de/buch/3636/1



Vamos adentrar o universo pessoal e passional do Jovem Werther, que em conflito com a sua época, que incapaz de alcançar seus desejos, vive de frustração em frustração, com altas dosagens de introspecção, através de cartas que envia a um amigo que parece muito atento e compreensivo (assim como nós somos, nós, os bons leitores).


Werther é um jovem que adora os próprios sentimentos, ele sabe que é um sentimental incurável, e se tivesse cura, ele não desejaria, certamente. Adora o próprio coração – aqui enquanto símbolo dos afetos, centro das emoções – e não hesita em falar sobre suas paixões. Temos aqui uma série de cartas endereçadas ao amigo Wilhelm (Guilherme), mas não temos as cartas do amigo. É um romance epistolar (Briefroman), mas com apenas um correspondente. Apenas ouvimos a voz de Werther, e com ele nos emocionamos.


Como estou feliz em ter ido embora! Grande amigo, o que é o coração do homem! Deixar-te, a quem tanto amo, de quem eu não me separava e ficar feliz! Sei que perdoas-me. Não eram todas as minhas demais relações certamente escolhidas pelo destino, para angustiar um coração como o meu?” (trad. LdeM)


Wie froh bin ich, daß ich weg bin! Bester Freund, was ist das Herz des Menschen! Dich zu verlassen, den ich so liebe, von dem ich unzertrennlich war, und froh zu sein! Ich weiß, du verzeihst mir's. Waren nicht meine übrigen Verbindungen recht ausgesucht vom Schicksal, um ein Herz wie das meine zu ängstigen?” (p. 7)



com suas impressões sobre o mundo, suas autodescrições, suas viagens introspectivas, o seu universo íntimo é desvelado diante de nossos olhos de leitor voyeur (pois estamos lendo as cartas pessoais de um jovem ao seu amigo), o que proporciona um acesso à intimidade alheia, quando é possível se emocionar por compaixão ou identificação, ainda mais quando estamos plenos de juventude,


De resto me encontro muito bem. A solidão é o bálsamo mais delicioso de meu coração nesta região paradisíaca, e esta época da juventude esquenta com toda plenitude o meu coração tão trêmulo.” .

Übrigens befinde ich mich hier gar wohl. Die Einsamkeit ist meinem Herzen köstlicher Balsam in dieser paradiesischen Gegend, und diese Jahreszeit der Jugend wärmt mit aller Fülle mein oft schauderndes Herz.” (p. 13)


O jovem Werther é um sentimental que despreza os cidadãos medíocres, os comedidos, os pouco-a-pouco, em suma, os filisteus, com suas vidas regradas, medidas, mesuradas, segundo as 'boas normas' da sociedade. Werther quer viver tudo intensamente, doa a quem doer, incomode a quem incomodar. Ele tem uma alta noção sobre si mesmo – adora falar sobre si-mesmo – e sobre o que é viver em sociedade, as etiquetas e bons-tons a serem seguidos.


O jardim é simples, e sente-se logo ao entrar que não é um jardineiro científico, ao contrário é um coração sensível que formou o plano, que aqui queria deleitar-se por si mesmo. Algumas lágrimas tenho consagrado a sua memória num arruinado gabinete, que é seu lugar favorito e também é o meu.” (trad. LdeM)


Der Garten ist einfach, und man fühlt gleich bei dem Eintritte, daß nicht ein wissenschaftlicher Gärtner, sondern ein fühlendes Herz den Plan gezeichnet, das seiner selbst hier genießen wollte. Schon manche Träne hab' ich dem Abgeschiedenen in dem verfallenen Kabinettchen geweint, das sein Lieblingsplätzchen war und auch meines ist.” (p. 8)


O jovem Werther despreza também os geômetras do pensamentos, os iluministas que surgiam – importados da França – com seus projetos e medições. Lembramos que o movimento pré-romântico Sturm und Drang [ Tempestade e Ímpeto, ou Tormenta e Impulso, ou ainda Turbulência e Urgência] se caracterizava por uma reação às ideias iluministas de mesuração, quantificação, em suma, de controle da vida. Os românticos queriam viver livremente, com impulsos livres, mesmo caprichosos, e auto-destrutivos.


Werther nina o coração como se fosse uma criança – cede a todos os impulsos e paixões, odeia a racionalidade dos pacatos cidadãos, prefere os excessos, as paixões febris,


Quantas vezes tenho ninado meu sangue agitado até acalmar, então assim disparatado, assim não tens nada visto como este coração. Querido! Preciso dizer-te que tens tantas vezes carregado o fardo, ao me ver passar da aflição ao excesso e da doce melancolia à paixão perversa? Também tenho eu tratado meu pequeno coração como se fosse uma criança adoentada; fazendo-lhe todas as vontades.”


Wie oft lull' ich mein empörtes Blut zur Ruhe, denn so ungleich, so unstet hast du nichts gesehn als dieses Herz. Lieber! Brauch' ich dir das zu sagen, der du so oft die Last getragen hast, mich vom Kummer zur Ausschweifung und von süßer Melancholie zur verderblichen Leidenschaft übergehen zu sehn? Auch halte ich mein Herzchen wie ein krankes Kind; jeder Wille wird ihm gestattet.” (p. 10)



Além de observar – e descrever – os próprios sentimentos, o jovem Werther observa os demais concidadãos, os 'seres humanos' que transitam pelas ruas, que habitam as moradas, que bebem nas tavernas, que queimam os cérebros nas faculdades. O que elas têm a oferecer? O que ele tem a oferecer a elas? Como pode ele fazer amizades? Como pode ser aceito? Deve se assemelhar a elas ou esperar que elas o aceitem tal como ele é?


Eu tenho feito vários contatos, mas não tenho encontrado companhia. Eu não sei o que devo ter atraente para as pessoas; tantos que se agradam e se prendem a mim, e é pena, seguir adiante quando nosso caminho se juntou em pequenos trechos. Quando perguntas como as pessoas são aqui, devo te responder: iguais em todo o lugar! É uma coisa semelhante à espécie humana. A maioria trabalha a maior parte do tempo para viver, e um pouquinho de tempo que resta para eles, acaba por angustiá-los tanto que eles buscam todos os modos para se livrarem disso. Ó fado dos homens!


Ich habe allerlei Bekanntschaft gemacht, Gesellschaft habe ich noch keine gefunden. Ich weiß nicht, was ich Anzügliches für die Menschen haben muß; es mögen mich ihrer so viele und hängen sich an mich, und da tut mir's weh, wenn unser Weg nur eine kleine Strecke miteinander geht. Wenn du fragst, wie die Leute hier sind, muß ich dir sagen: wie überall! Es ist ein einförmiges Ding um das Menschengeschlecht. Die meisten verarbeiten den größten Teil der Zeit, um zu leben, und das bißchen, das ihnen von Freiheit übrig bleibt, ängstigt sie so, daß sie alle Mittel aufsuchen, um es los zu werden. O Bestimmung des Menschen!” (p.11)



O jovem aqui se rebela contra as convenções sociais e contra os limites da existência humana, sempre o desejo e a resignação, entre a paixão e o medo. Na carta de 22 de maio [de 1771] ele registra profundas impressões,


Que a vida dos homens seja apenas um sonho, é como tem ocorrido a muitos , e também a mim este sentimento anda ao redor. Quando penso nas restrições (limites) nos quais são restritas as forças ativas e investigativas do ser humano; quando eu vejo como toda potência se gasta para satisfazer nossas necessidades, que têm pequenos propósitos, enquanto a prolongar nossa pobre existência, e então, que toda tranquilidade sobre conhecido ponto do investigar é apenas uma sonhadora resignação, como se as paredes, nas quais estamos presos, fossem pintadas com figuras coloridas e perfis luminosos – eis tudo, Guilherme, que me deixa mudo. Eu adentro mim mesmo e encontro todo um mundo! Uma vez mais em pressentimentos e desejos obscuros do que em presença e força ativa. E assim tudo nada diante de meus sentidos, e eu estou sorrindo e sonhando mais adiante no mundo.”


Daß das Leben des Menschen nur ein Traum sei, ist manchem schon so vorgekommen, und auch mit mir zieht dieses Gefühl immer herum. Wenn ich die Einschränkung ansehe, in welcher die tätigen und forschenden Kräfte des Menschen eingesperrt sind; wenn ich sehe, wie alle Wirksamkeit dahinaus läuft, sich die Befriedigung von Bedürfnissen zu verschaffen, die wieder keinen Zweck haben, als unsere arme Existenz zu verlängern, und dann, daß alle Beruhigung über gewisse Punkte des Nachforschens nur eine träumende Regignation ist, da man sich die Wände, zwischen denen man gefangen sitzt, mit bunten Gestalten und lichten Aussichten bemalt – das alles, Wilhelm, macht mich stumm. Ich kehre in mich selbst zurück, und finde eine Welt! Wieder mehr in Ahnung und dunkler Begier als in Darstellung und lebendiger Kraft. Und da schwimmt alles vor meinen Sinnen, und ich lächle dann so träumend weiter in die Welt.” (p. 13)



Werther como um bom romântico só estilo Rousseau, não hesita em idealizar a Natureza, como uma fonte de inspiração para os artistas,


“Isto me fortalece em meu propósito, de futuramente sozinho prender-me à Natureza. Ela é infinitamente rica, e ela somente forma o grande artista.” (“Das bestärkte mich in meinem Vorsatze, mich künftig allein an die Natur zu halten. Sie allein ist unendlich reich, und sie allein bildet den großen Künstler.” p. 15)


Entusiasta, ele quer tudo inteiro, nada pela metade. Quer o amor intenso, não apenas o namoro de fim de semana. O moço ama a vida inteiramente – e não a vida contabilizada, mensurada, quantificada, como quer o bom burguês.


bom amigo, devo fazer a ti uma comparação? É assim com o amor. Um jovem coração pende inteiramente a uma mocinha, passa todas as horas de seu dia ao lado dela, exaure todas as suas forças, todo seu talento, para expressar a ela, a cada momento, que ele a ela se dedica completamente.”

.

guter Freund, soll ich dir ein Gleichnis geben? Es ist damit wie mit der Liebe. Ein junges Herz hängt ganz an einem Mädchen, bringt alle Stunden seines Tages bei ihr zu, verschwendet alle seine Kräfte, all sein Vermögen, um ihr jeden Augenblick auszudrücken, daß er sich ganz ihr hingibt.” (p. 15)



Então chega o cidadão, o bom burguês, e aconselha o jovem a acumular patrimônio, a pensar no matrimônio, a dedicar-se a uma profissão que no final deixará pouco tempo para que o jovem envolver-se com seu amor – que é o mais importante para ele. O jovem então poderá ver sua amada apenas nos fins de semana, ou momentos festivos. O amor romântico é limitado pela vida social. Ou antes, as convenções da vida em sociedade.


Temos todo um preâmbulo ao idílio de Werther. Ele ainda não conheceu Carlota (Charlotte) num baile rural. As cartas seguintes montam o 'cenário' e então veremos a mocinha adentrar o palco. Quem é ela? De onde vem? É solteira? É compromissada?


Afinal, por que Werther vai se sentar para escrever ? Deixar a natureza e sentar para anotar uma abstração? Afinal, Werther desconfia da linguagem – isto é, não acredita que as palavras possam expressar sentimentos. A linguagem é sempre falha, pois limitada, enquanto as emoções não pode ser transmitidas, compartilhadas. Apenas em raros casos – e pessoalmente. Por exemplo, quando ele ouve uma narrativa, muito simples, mas sincera, da boca de um camponês.


Por isso, falar de Carlota é tão difícil. Descrevê-la, impossível. Há muito sentimento, e as palavras apenas são restrições, compartimentos inoportunos das emoções. Werther parece sempre escrever no calor das emoções – num momento curto de controle, senão ele deixaria a pena e o papel e correria para a órbita da amada.


Tudo isto é ridículo nonsense, o que eu te digo, vaga abstração, que não expressa o mínimo traço dela. Em outro momento – não, não em outra ocasião, agora mesmo devo contar-te tudo. Se eu não fizer agora, jamais será feito.” (“Das ist alles garstiges Gewäsch, was ich da von ihr sage, leidige Abstraktionen, die nicht einen Zug ihres Selbst ausdrücken. Ein andermal – nein, nicht ein andermal, jetzt gleich will ich dir's erzählen. Tu' ich's jetzt nicht, so geschäh' es niemals.” pp. 19-20)



As próximas cartas de Werther são mais narrativas – isto é, ele não fala tanto de si mesmo – mas aborda eventos do mundo exterior. Passeio no campo, bailes rurais, o encontro com Carlota, os amigos da nova amada. Há todo um mundo ao redor do protagonista – somente agora percebemos. A carta de 16 de junho concentra a maior parte do interesse. Até parece que tudo antes era um preâmbulo para esta carta-narrativa.


As demais cartas giram ao redor, completam, detalham eventos e pessoas da carta de 16 de junho, em sobreposições, pois os sentimentos de Werther são intensos e mutáveis – e muitas vezes ele sente-se bem com alguém que depois ele pode se sentir desconfortável. Seu julgamento flutua de acordo com as emoções – ora tem despeito do noivo de Carlota, ora elogia as gentilezas do noivo. Ora considera os figurantes do círculo social como esnobes ora elogia a sociedade ao redor de Carlota.


Aliás, após a carta de 16 de junho, com a entrada de Carlota, temos de verdade um enredo aqui – um jovem vai para uma cidade e lá encontra uma adorável mocinha, no entanto comprometida, e que não pode corresponder aos desejos do enamorado. No entanto, o jovem logo faz amizade com o casal, com o círculo social do casal. E o noivo, o pacato Alberto, de alguma forma, desconfia dos sentimentos do amigo em relação a noiva. Tudo muito ambíguo – ou quase 'triângulo amoroso'.


(Vamos aqui aos lances biográficos. Não são importantes em si mesmos, apenas para esclarecer algo da obra. Realmente o Autor Goethe se apaixonou por uma mocinha compromissada e ficou amigo do casal – tanto que temos cartas deste noivo amigável, que permite encontros da noiva com o 'amigo', e até elogia o jovem que se mantem tão decente e cordial. Ora, será mesmo tudo isso possível? Esta 'relação à três' foi de algum modo transladada ao romance.)


As cartas de Werther são realmente cheias de êxtases, cheias de 'som e fúria' (como dizia Macbeth), de auto-análises (como fazia o atormentado Hamlet), com um sentimentalismo romântico contagiante – não se admirar que tantos tenham sido influenciados (assim como Goethe foi influenciado por Shakespeare, o criador de Macbeth e Hamlet) a ponto de mergulharem no mesmo destino do jovem Werther. Protagonistas sensíveis, emotivos e trágicos.


Todo o meu coração estava pleno neste momento; as lembranças tantas do passado pesavam-me na alma, e as lágrimas subiam aos olhos.” (“Mein ganzes Herz war voll in diesem Augenblicke; die Erinnerung so manches Vergangenen drängte sich an meine Seele, und die Tränen kamen mir in die Augen. p. 34)



alguns ensaios meus sobre obras

de Shakespeare


http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/04/sobre-tempestade-w-shakespeare.html


http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/04/sobre-romeu-e-julieta-w-shakespeare.html


http://www.germinaliteratura.com.br/2010/literatura_set10_leonardodemagalhaens.htm



Que Werther tenha algo de Hamlet eis um tema frutífero para críticos e literatos discutirem ad infinitum. Mas os êxtases e tempestades do príncipe da Dinamarca estão presentes no jovem Werther. Apenas com uma diferença: aqui Werther narra sua própria paixão e tragédia. Seria Hamlet capaz de escrever sua própria tragédia? (Em ambos temos alguém que conserva o drama para a posteridade: na obra de Shakespeare temos o honesto Horácio, que dá publicidade ao drama do Príncipe infeliz, enquanto na obra de Goethe temos um editor, aquele que recolherá as cartas e publicará o livro.


Enquanto um bom romântico, o jovem Werther se perde em contemplações de uma natureza, numa ânsia de mergulho na natureza, que ele mesmo saber ser insatisfatória, incompleta, até impossível, para um ser de cultura, no velho embate Kultur vs. Natur,


É maravilhoso: como eu, quando aqui chegava, e olhava o belo vale lá do alto da colina, como me atraía os arredores. - lá o pequeno bosque! - ah, se eu pudesse me misturar a sua sombra! - lá o topo da montanha! - ah, pudesses tu contemplar de lá a ampla região! - as colinas unidas umas às outras e os vales discretos! - ó se eu pudesse me perder neles! - Eu corria apressado até lá, e voltava, e não tinha encontrado o que esperava. Ó acontece com a distância o mesmo que com o futuro! Uma grande e crepuscular completitude repousa diante de nossa alma, nosso sentimento flutua diante de nossos olhos, e nós ansiamos, ah, por entregar todo nosso ser, nos deixarmos preencher com todo o gozo de um singular, imenso, dominante sentimento, - e, ah, quando nos apressamos, quando lá chegamos, quando tudo está perto, e nós estamos em nossa miséria, em nossa limitação, e nossa alma suspira pelo bálsamo que se acaba.”


Es ist wunderbar: wie ich hierher kam und vom Hügel in das schöne Tal schaute, wie es mich rings umher anzog. – dort das Wäldchen! – ach könntest du dich in seine Schatten mischen! – dort die Spitze des Berges! – ach könntest du von da die weite Gegend überschauen! – die in einander geketteten Hügel und vertraulichen Täler! – o könnte ich mich in ihnen verlieren! – ich eilte hin, und kehrte zurück, und hatte nicht gefunden, was ich hoffte. O es ist mit der Ferne wie mit der Zukunft! Ein großes dämmerndes Ganze ruht vor unserer Seele, unsere Empfindung verschwimmt darin wie unser Auge, und wir sehnen uns, ach! Unser ganzes Wesen hinzugeben, uns mit aller Wonne eines einzigen, großen, herrlichen Gefühls ausfüllen zu lassen. – und ach! Wenn wir hinzueilen, wenn das Dort nun Hier wird, ist alles vor wie nach, und wir stehen in unserer Armut, in unserer Eingeschränktheit, und unsere Seele lechzt nach entschlüpftem Labsale.” (p. 29)




Werther aborda sempre as relações humanas, o combate contra as caretices e o mau humor,


Agora, nada me irrita mais do que as pessoas incomodarem umas as outras, quando mais pessoas jovens na flor da vida, lá poderiam estar livres para todas as alegrias, desperdiçam os bons dias com caretas umas para as outras e apenas muito tarde percebem o irreparável de suas perdas. O que me aborreceu, e eu não pude deixar, quando voltávamos de tarde para o presbitério e tomávamos leite à mesa e a conversa se voltou para alegrias e tristezas do mundo, de agarrar as tramas e falar com ardor contra o mau humor.”


Nun verdrießt mich nichts mehr, als wenn die Menschen einander plagen, am meisten, wenn junge Leute in der Blüte des Lebens, da sie am offensten für alle Freuden sein könnten, einander die paar guten Tage mit Fratzen verderben und nur erst zu spät das Unersetzliche ihrer Verschwendung einsehen. Mich wurmte das, und ich konnte nicht umhin, da wir gegen Abend in den Pfarrhof zurückkehrten und an einem Tische Milch aßen und das Gespräch auf Freude und Leid der Welt sich wendete, den Faden zu ergreifen und recht herzlich gegen die üble Laune zu reden.” (p. 32)



Não hesita, o moço, em louvar o amor no mundo, do amor que se transmite. Basta que o criado veja a amada, para que ele se torne especial aos olhos de Werther!


Guilherme, o que é ao nosso coração o mundo sem amor! O que é uma lanterna mágica sem luz! Tão logo tu colocas lá dentro uma pequena lâmpada e logo se projetam as mais coloridas imagens na parede branca! E se nada fosse mais do que efêmeros espectros, ainda assim faria a nossa alegria, enquanto ficássemos diante delas como as crianças e nos deliciamos com as aparições maravilhosas. Hoje não pude ir até Carlota, um compromisso inevitável me impediu. O que fazer? Eu enviei meu criado, apenas para ter junto de mim uma pessoa que hoje estivesse perto dela. Com que impaciência eu o esperei, com que alegria eu o revi! Eu teria com satisfação o abraçado e beijado, se disso não me envergonhasse.”


Wilhelm, was ist unserem Herzen die Welt ohne Liebe! Was eine Zauberlaterne ist ohne Licht! Kaum bringst du das Lämpchen hinein, so scheinen dir die buntesten Bilder an deine weiße Wand! Und wenn's nichts wäre als das, als vorübergehende Phantome, so macht's doch immer unser Glück, wenn wir wie frische Jungen davor stehen und uns über die Wundererscheinungen entzücken. Heute konnte ich nicht zu Lotten, eine unvermeidliche Gesellschaft hielt mich ab. Was war zu tun? Ich schickte meinen Diener hinaus, nur um einen Menschen um mich zu haben, der ihr heute nahe gekommen wäre. Mit welcher Ungeduld ich ihn erwartete, mit welcher Freude ich ihn wiedersah! Ich hätte ihn gern beim Kopfe genommen und geküßt, wenn ich mich nicht geschämt hätte.” (p. 39)



Assim, o outro – a amada – passa a ser o sentido da vida do amante, ainda mais o jovem apaixonado … Assim o Werther na curtíssima carta de 19 de julho (passou-se um mês desde a descoberta da amada Carlota, lembremos)


'Vou vê-la!' grito logo de manhã, quando logo desperto e com toda serenidade encaro o sol maravilhoso; 'eu irei vê-la!' e desde então não tenho outro desejo durante todo o dia. Tudo, tudo some diante desta perspectiva.'”(“»Ich werde sie sehen!« ruf' ich morgens aus, wenn ich mich ermuntere und mit aller Heiterkeit der schönen Sonne entgegenblicke; »ich werde sie sehen!« und da habe ich für den ganzen Tag keinen Wunsch weiter. Alles, alles verschlingt sich in dieser Aussicht.” p. 40)



Quanto mais Werther se envolve, e é aceito enquanto amigo e rejeitado enquanto namorado, mais ele se vê distante de seu ideal – ele não quer 'aparências', ou 'etiqueta social', ele quer o amor total – e nada mais distante do que ele vive! Ele resolve que o melhor é partir para outros climas. Até porque não pretende ser um indesejado entre Carlota e o noivo Alberto.


Werther sabe que poderia ser um jovem mais sossegado, caso não seguisse tanto as emoções em ebulição, segundo confessa na carta de 10 de agosto,


Eu poderia ter a vida melhor e mais aprazível, se eu não fosse um maluco. Assim boas circunstâncias não se unem tão facilmente para agradar a alma de uma pessoa tais como estas nas quais me encontro. Ah, vejo com certeza que apenas nosso coração pode criar a própria sorte. - ser um membro da família mais amável, ser estimado pelo velho como se fosse um filho, e pelos pequeninos como se fosse o pai, e por Carlota!”


Ich könnte das beste, glücklichste Leben führen, wenn ich nicht ein Tor wäre. So schöne Umstände vereinigen sich nicht leicht, eines Menschen Seele zu ergetzen, als die sind, in denen ich mich jetzt befinde. Ach so gewiß ist's, daß unser Herz allein sein Glück macht. – ein Glied der liebenswürdigen Familie zu sein, von dem Alten geliebt zu werden wie ein Sohn, von den Kleinen wie ein Vater, und von Lotten!” (p. 44)



Ainda uma amizade leve é possível com o prudente Alberto – uma espécie de anti-Werther – que sempre prega a modéstia, o meio-termo, a razão. Na carta de 12 de agosto é narrado – pela perspectiva de Werther, claro – um longo diálogo entre o protagonista e o noivo de Carlota. É quando Werther solicita o empréstimo das armas (pistolas de caça) de Alberto. Ao mesmo tempo, o jovem discursa contra os homens razoáveis, cheios de regras e morais, enquanto sabe que Alberto pouco entende – e se entendesse logo estaria em desacordo.


Que vós, homens”, eu exclamei, “para falar sobre alguma coisa devem logo falar em 'isto é tolo, isto é sensato, isto é bom, isto é mau!' e o que quer dizer tudo isso? Tens então investigado as relações internas de um ato? Sabeis como se desenvolvem com firmeza as causas para que o ato acontecesse? Se tivésseis feito assim não estarias tão apressado com teus julgamentos.”


“»Daß ihr Menschen«, rief ich aus, »um von einer Sache zu reden, gleich sprechen müßt: ›das ist töricht, das ist klug, das ist gut, das ist bös!‹ und was will das alles heißen? Habt ihr deswegen die innern Verhältnisse einer Handlung erforscht? Wißt ihr mit Bestimmtheit die Ursachen zu entwickeln, warum sie geschah, warum sie geschehen mußte? Hättet ihr das, ihr würdet nicht so eilfertig mit euren Urteilen sein«.” (p. 46)


e


'Ah, vós pessoas razoáveis!' exclamei rindo. 'Paixão! Embriaguez! Loucura! Continuais assim serenos, sem participar, vós, as pessoas sensatas, repreendeis o bêbado, detestais o insensato, passais longe iguais ao padre e agradeceis a Deus iguais ao fariseu, que ele não tem feito a vós como um destes. Estive bêbado mais de uma vez, minhas paixões nunca estiveram longe da loucura, e de ambas não me arrependi: pois eu tenho aprendido numa medida como têm caminhado todas as pessoas extraordinárias que fizeram algo grandioso, algo que parecia impossível, desde sempre foram chamadas de ébrias e loucas. Mas também na vida cotidiana é intolerável ouvir os gritos quase sempre quando alguém faz uma ação inesperada, nobre, quase-livre. 'Esta pessoa está bêbada, que palhaço!' Tenham vergonha, vós os sóbrios! Tenham vergonha, vós, os sábios!”


»Ach ihr vernünftigen Leute!« rief ich lächelnd aus. »Leidenschaft! Trunkenheit! Wahnsinn! Ihr steht so gelassen, so ohne Teilnehmung da, ihr sittlichen Menschen, scheltet den Trinker, verabscheut den Unsinnigen, geht vorbei wie der Priester und dankt Gott wie der Pharisäer, daß er euch nicht gemacht hat wie einen von diesen. Ich bin mehr als einmal trunken gewesen, meine Leidenschaften waren nie weit vom Wahnsinn, und beides reut mich nicht: denn ich habe in einem Maße begreifen lernen, wie man alle außerordentlichen Menschen, die etwas Großes, etwas Unmöglichscheinendes wirkten, von jeher für Trunkene und Wahnsinnige ausschreiten mußte. Aber auch im gemeinen Leben ist's unerträglich, fast einem jeden bei halbweg einer freien, edlen, unerwarteten Tat nachrufen zu hören: ›der Mensch ist trunken, der ist närrisch!‹ Schämt euch, ihr Nüchternen! Schämt euch, ihr Weisen!«” (p. 47)


Muitas vezes o diálogo parece aqueles monólogos de Hamlet, ou diálogos de Hamlet com Horácio ou com os 'amigos' Rosencrantz e Guilderstern, ou as falas irônicas de Mercutio (a personagem mais 'retórica', digamos, em “Romeo and Juliet”), onde os protagonistas ousam discursos sobre a natureza humana (ou o que julgam 'natureza humana')


'A natureza humana', eu continuei, 'tem seus limites: ela pode suportar alegria, pesar, dor até certo grau e se arruína tão logo excedê-lo. Não está aqui a questão se alguém é fraco ou forte, mas se ele pode suportar a medida de seu sofrer, seja moral ou físico. E eu acho mesmo estranho o dizer que é covarde a pessoa que se livra da vida, quando pareceria indecente considerar covarde aquele que morre de uma febre maligna.”


»Die menschliche Natur«, fuhr ich fort, »hat ihre Grenzen: sie kann Freude, Leid, Schmerzen bis auf einen gewissen Grad ertragen und geht zugrunde, sobald der überstiegen ist. Hier ist also nicht die Frage, ob einer schwach oder stark ist, sondern ob er das Maß seines Leidens ausdauern kann, es mag nun moralisch oder körperlich sein. Und ich finde es ebenso wunderbar zu sagen, der Mensch ist feige, der sich das Leben nimmt, als es ungehörig wäre, den einen Feigen zu nennen, der an einem bösartigen Fieber stirbt«.” (p. 48)



Na carta de 18 de agosto, Werther volta a cantar loas à Natureza, ao estilo (pré)romântico, ao comparar seu afeto não-correspondido com seu sofrer, numa mudança de olhar sobre o mundo, onde ele via beleza e agora vê melancolia. Ele vê a paisagem de acordo com seu humor – a paisagem não existe lá fora simplesmente, ela existe para a percepção do protagonista, que se rende aos pensamentos espiritualizados,


Então deve ser, que o que faz a felicidade do homem, se torne por sua vez a fonte de seu infortúnio?


O pleno e ardente sentimento de meu coração para com a natureza viva, que me inundava com tanto prazer, que criava ao redor do mundo para mim um paraíso. Tornou-se para mim num insuportável torturador, num espírito que atormenta, que me persegue em todos os lugares.”


Mußte denn das so sein, daß das, was des Menschen Glückseligkeit macht, wieder die Quelle seines Elendes würde?


Das volle, warme Gefühl meines Herzens an der lebendigen Natur, das mich mit so vieler Wonne überströmte, das rings umher die Welt mir zu einem Paradiese schuf, wird mir jetzt zu einem unerträglichen Peiniger, zu einem quälenden Geist, der mich auf allen Wegen verfolgt.” (p. 51)


e


para mim se abria a íntima, reluzente, sagrada vida da natureza: como eu abraçava tudo em meu peito ardente, sentia-me na plenitude torrencial como se fosse divinizado, e as maravilhosas formas do mundo infinito se animavam todas em minha alma. […] e as pessoas então se abrigavam em casebres e se animavam e dominavam em seus sentidos sobre o vasto mundo! Pobre tolo! Que considerais tudo de pouco valor porque sois tão pequeno. - desde as inacessíveis montanhas até o deserto, que nenhuma pé pisou, até o fim do desconhecido oceano lá sopra o espírito do eterno criador e alegra-se cada grão que o percebe e vive.”


mir das innere, glühende, heilige Leben der Natur eröffnete: wie faßte ich das alles in mein warmes Herz, fühlte mich in der überfließenden Fülle wie vergöttert, und die herrlichen Gestalten der unendlichen Welt bewegten sich allbelebend in meiner Seele. […] und die Menschen dann sich in Häuslein zusammen sichern und sich annisten und herrschen in ihrem Sinne über die weite Welt! Armer Tor! Der du alles so gering achtest, weil du so klein bist. – vom unzugänglichen Gebirge über die Einöde, die kein Fuß betrat, bis ans Ende des unbekannten Ozeans weht der Geist des Ewigschaffenden und freut sich jedes Staubes, der ihn vernimmt und lebt.” (pp. 51-52)



E a Natureza é criadora e destruidora, ao mesmo tempo, indiferente ao nosso alegrar e sofrer, numa dialética de transformações sucessivas, cadeias alimentares, extinções e evoluções. Cenas de “Frankenstein” de Mary Shelley e de poemas narrativos de Lord Byron, não são meras coincidências, com esta presença do protagonista atormentado numa paisagem que se transmuta.


E foi movida uma cortina de diante de minha alma, e a cena da vida infinita transmutou-se diante de mim num abismo para sempre aberto. Podeis dizer: Eis! Pois tudo passa? Pois tudo roda com a pressa de uma tormenta, assim raramente mantemos a plena força de sua existência, ah, na torrente é tudo desfeito, afundado e despedaçado nas rochas? Pois não há momento que não te devore e aos teus ao teu redor, nenhum momento, pois se não és um destruidor, deverás ser; […] ao meu coração oprime esta força consumidora que jaz sutilmente em toda a natureza; que nada tem construído que não destrua o seu vizinho, que não se destrua. E assim eu vagueio angustiado. Céu e Terra e suas forças ondulantes sobre mim: eu nada via exceto um monstro sempre devorando, sempre ruminando.”


Es hat sich vor meiner Seele wie ein Vorhang weggezogen, und der Schauplatz des unendlichen Lebens verwandelt sich vor mir in den Abgrund des ewig offenen Grabes. Kannst du sagen: Das ist! Da alles vorübergeht? Da alles mit der Wetterschnelle vorüberrollt, so selten die ganze Kraft seines Daseins ausdauert, ach, in den Strom fortgerissen, untergetaucht und an Felsen zerschmettert wird? Da ist kein Augenblick, der nicht dich verzehrte und die Deinigen um dich her, kein Augenblick, da du nicht ein Zerstörer bist, sein mußt; […] mir untergräbt das Herz die verzehrende Kraft, die in dem All der Natur verborgen liegt; die nichts gebildet hat, das nicht seinen Nachbar, nicht sich selbst zerstörte. Und so taumle ich beängstigt. Himmel und Erde und ihre webenden Kräfte um mich her: ich sehe nichts als ein ewig verschlingendes, ewig wiederkäuendes Ungeheuer.” (pp. 52-53)



Werther sofre com o amor não correspondido e perde o sentido para viver, chega a invejar quem tem que trabalhar, e assim não tem tempo para se meditar e lamentar numa vida ociosa de intelectual,


É uma desventura, Guilherme, minhas forças ativas são destoadas por uma inquieta lassidão, não posso ficar ocioso e, no entanto, não posso fazer algo. Estou sem ideias, nenhuma emoção quanto a natureza, e os livros me desagradam. Se estamos ausentes de nós mesmos, falta-nos tudo. Eu te juro que muitas vezes desejei ser um assalariado ao despertar a cada manhã ter uma expectativa para o dia de trabalho, um impulso, uma esperança.


Es ist ein Unglück, Wilhelm, meine tätigen Kräfte sind zu einer unruhigen Lässigkeit verstimmt, ich kann nicht müßig sein und kann doch auch nichts tun. Ich habe keine Vorstellungskraft, kein Gefühl an der Natur, und die Bücher ekeln mich an. Wenn wir uns selbst fehlen, fehlt uns doch alles. Ich schwöre dir, manchmal wünschte ich, ein Tagelöhner zu sein, um nur des Morgens beim Erwachen eine Aussicht auf den künftigen Tag, einen Drang, eine Hoffnung zu haben.” (p. 53)



Na carta de 30 de agosto, Werther confessa o quanto é inútil o esforço de conquistar Carlota, já comprometida com um sujeito tão decente e ordeiro quanto Alberto, e assim alguém tem que se afastar, arrumar outro caminho. E é justamente Werther.


Infeliz! Não és um louco? Enganaste a ti mesmo? O que tens desta confusa e infinda paixão? Eu não tenho mais culto que não seja ela; nenhuma outra figura aparece em minha imaginação do que a dela, e tudo no mundo ao meu redor eu vejo apenas em relação a ela. E isto me traz algumas horas felizes – até que devo novamente fugir dela! Ah, Guilherme, para onde o meu coração me leva!”


Unglücklicher! Bist du nicht ein Tor? Betrügst du dich nicht selbst? Was soll diese tobende, endlose Leidenschaft? Ich habe kein Gebet mehr als sie; meiner Einbildungskraft erscheint keine andere Gestalt als die ihrige, und alles in der Welt um mich her sehe ich nur im Verhälnisse mit ihr. Und das macht mir denn so manche glückliche Stunde – bis ich mich wieder von ihr losreißen muß ! Ach Wilhelm! Wozu mich mein Herz oft drängt!” (p. 55)


continua....



dez/11 e fev/12



Leonardo de Magalhaens


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...


mais sobre o Werther


Wikipedia


http://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Sofrimentos_do_Jovem_Werther



Wikisource


english

http://en.wikisource.org/wiki/The_Works_of_J._W._von_Goethe/Volume_6/The_Sorrows_of_Young_Werther


Projekt Gutenberg


http://gutenberg.spiegel.de/buch/3636/1



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Próximos Ensaios de MEU CÂNONE OCIDENTAL




Próximos Ensaios


A Literatura tematiza a Juventude


Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774)
de J W von Goethe



O Ateneu (1888)
de Raul Pompéia



Tonio Kroeger (1903)
de Thomas Mann



O Jovem Törless (1906)
de Robert Musil



Retrato do Artista quando Jovem (1916)
de James Joyce



Catcher in the Rye (1946)
(
Apanhador no Campo de Centeio)
de J D Salinger




Aguardem!



Leonardo de Magalhaens



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terça-feira, 13 de dezembro de 2011

mais sobre livros com a temática: crianças




Opa!


Mais obras sobre crianças e infanto-juvenis

aqui no MEU cânone brasileiro …



Menino de Engenho” / 1932

(José Lins do Rego)


http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/11/sobre-menino-de-engenho-jose-lins-do.html




Capitães da Areia” / 1937

(Jorge Amado)


http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/12/sobre-capitaes-da-areia-de-jorge-amado.html





Meu Pé de Laranja Lima” / 1968

(Vasconcelos)

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/12/sobre-meu-pe-de-laranja-lima-1968.html



by LdeM


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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

sobre 'Os Meninos da Rua Paulo' - de Ferenc Molnár









Sobre “Os Meninos da Rua Paulo
(tradução de Paulo Rónai, em 1952)
(“A Pál-Utcai fiúk”, 1906)
do escritor húngaro Ferenc Molnár (1878-1952)


Quando as crianças aprendem sobre jogos e guerras
(
ou O fim da Infância)


Ainda em nosso tema 'Crianças na Literatura', em seguida às leituras de “Oliver Twist” (do inglês Charles Dickens) e “Aventuras de Tom Sawyer” / “Aventuras de Huckleberry Finn” (do norte-americano Mark Twain) escolhemos a interessante obra do autor húngaro Ferenc Molnár (que chegou até nós através da tradução pioneira de Paulo Rónai) que trata de crianças em transição, aprendendo as razões e desrazões adultas, entendendo que a vida é um jogo, onde uns poucos vencem e a maioria perde.


As crianças brincam mas já se organizam segundo regras (muitas inventadas por eles mesmos, outras 'adaptadas' do mundo adulto), já idealizam carreiras, se imaginam heróis, generais, vencedores de mil peripécias. É assim num mundo de competição, onde os maias fortes vencem, onde os perdedores são humilhados. Assim aprendem como 'funciona' o mundo adulto.


Se a vida é um jogo, para os meninos da Rua Paulo a vida pode ser uma batalha, e se organizam até militarmente para protegerem seus lugares de brincadeiras. Crianças-adultos assim como encontraremos na obra “Capitães da Areia” (1935) de Jorge Amado. Crianças que precocemente aprendem sobre amizade, companheirismo, confiança, obediência, traição, perda.


Através de competição, jogos, brigas, 'batalhas', os meninos demarcam territórios, elegem chefes, trocam confidências, tramam aventuras, inventam fortalezas e castelos nos ares. Tudo como uma imitação da vida adulta, da qual encontram-se excluídos. Assim olham os adultos com certa ironia, no momento em que percebem as contradições entre o que os adultos pregam e o que os adultos realmente fazem.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


Desde a primeira cena temos o mundo das crianças em relação ao mundo dos 'crescidos'. Os alunos e os professores. Os neófitos diante da Autoridade. É quando um dia de aula finda, e os meninos fogem da escola como se fugissem de uma prisão... a correria assim que ressoa o sinal de fim de aula ...


“Num instante, a sala se esvaziou. Começou uma correria feroz pelas escadas abaixo, no meio das colunas, a qual só se transformava em pressa moderada quando, entre a barulhenta multidão de meninos, aparecia a silhueta ereta de um professor. Então os que corriam detinham o passo, o zunzum se acalmava, mas logo que o professor desaparecia a uma volta do corredor, todos se punham novamente a precipitar-se escada abaixo.

O portão despejava um magote de meninos que se espalhavam metade à direita, metade à esquerda, tirando o chapéu à passagem de um ou outro professor. Depois dirigiam-se para casa, cansados e esfaimados, pela rua banhada de sol. Como outros tantos escravos, libertos de repente, cambaleavam naquela abundância de luz e de ar, ao retomar contato com a cidade viva, ruidosa, movimentada, essa mistura confusa de carros, bondes de burro, ruas e lojas, que eles deviam atravessar para chegarem a casa.”
pp. 12-13, I


Temos uma visão dos personagens da narrativa, cada um com uma característica que o identifica ao longo do texto. Uns mais exaltados, outros mais sarcásticos, outros mais reservados, introvertidos. Uns fortes, outros franzinos. Somente meninos, num colégio para meninos. (Nenhuma menina é nomeada ou tem papel secundário...) Mas o destacado aqui é o líder juvenil João Boka, desde o primeiro momento,


Iam abraçados, com Boka no meio, o qual explicava algo com gravidade em voz pausada, como de costume. Tinha quatorze anos e o seu rosto ostentava ainda poucos traços de maturidade. Quando abria boca, porém, ganhava alguns anos. Tinha uma voz funda, meiga e grave, e o que dizia parecia-se com a voz. Raramente dizia bobagens, e não mostrava nenhum jeito para valentão ou sabido. Não gostava de entrar em brigas, e quando o convidavam para árbitro, recusava-se. Já aprendera que, após a sentença, uma das partes dica sempre amargurada, irritada contra o juiz. Somente quando a briga já tomava proporções maiores, chegando quase a exigir a intervenção de um professor, é que ele intervinha para apaziguar. Pois aquele que apazigua, pelo menos , anão encoleriza nenhuma das partes. Numa palavra, Boka parecia um rapaz inteligente: dava a impressão de alguém que, mesmo que não fizesse carreira, desempenharia na vida um papel decente.” pp. 15-16, I


Também temos a descrição do 'mascote' da turma, o pequeno e curioso Nemecsek, franzino filho de um humilde alfaiate, que aparece de início a narrar uma ação nada amistosa de meninos de uma turma rival, os irmãos Pásztor, o que muito indigna seus colegas,


“Nemecsek ficava nervoso quando sentia estar dendo importante, o que raramente lhe acontecia. Ninguém ligava ao lourinho. 'Não dividia e não multiplicava', como se costuma dizer, assim como o um na aritmética. Simplesmente não contava. Era um guri franzino, insignificante e fraco; e foram provavelmente essas qualidades que o tomaram uma vítima excelente.” p. 17, I


e, também, percebemos a atitude de Nemecsek diante da 'disciplina rigorosa' que é exigida quando os meninos cuidam da defesa do 'forte', lá no terreno,

“E Nemecsek obedecia a todos com verdadeira felicidade. Há também guris assim, que gostam de obedecer a ordens. A maioria, no entanto, gosta de mandar. É bem humano isso. Eis porque não é de surpreender que no grund todos fossem oficiais, e apenas Nemecsek soldado raso.” p. 20, II


Outros meninos são figurantes entre Boka e Nemecsek, dentre aqueles da Rua Paulo. São os 'oficiais' entre o general e soldado raso. Do outro lado, temos os meninos que frequentam o Jardim Botânico, que não têm um terreno deles para brincadeiras. Aliás, esta falta de um terreno será um dos motivos das disputas. Os meninos da Rua Paulo conservam uma área só deles. A descrição do 'Grund', uma espécie de terreno baldio, que se torna campo de batalha entre as turmas rivais, no ápice do enredo,


“Ó grund... Ó vós, belos e sadios estudantes da planície, aos quis basta dar um passo para vos encontrardes na estepe imensa, sob a admirável redoma azul que se chama firmamento, vós cujos olhos estão acostumados às grandes distâncias, aos longes, vós que não viveis apertados entre edifícios altos, nem podeis imaginar o que é para os guris de Budapeste um terreno baldio, um grund. É a sua planície, a sua estepe, o seu reino; é o infinito, é a liberdade. Um pedacinho de terra, limitado a um dos lados por uma cerca meio desmoronada, ao passo que pelos demais lados altos muros de edifícios o rodeiam. Atualmente o grund da Rua Paulo também já se encontra ocupado por um triste edifício, de quatro andares, cheio de moradores, nenhum dos quais sabe, talvez, que aquele pedacinho de terra significou a mocidade para alguns pobres estudantes de Budapeste.” pp. 18-19, II


Os adversários, prontos para a 'invasão', são igualmente meninos da cidade, igualmente alucinados por mil aventuras. Adiante temos uma descrição do líder da turma adversária, o Chico Áts, que 'reina' no território do Jardim Botânico, local público, percebemos.

A ideia de que os Pásztor podiam também estar por ali, Nemecsek sentiu calafrios na espinha. Já sabia o que era um encontro com os Pásztor. Quanto a Chico Áts, acabara de vê-lo de perto pela primeira vez. Ele o assustara bastante, sem, no entanto, desagradar-lhe. Pelo contrário, gostou daquele rapaz moreno, espadaúdo, de traços bonitos, em quem a camisa vermelha assentava às mil maravilhas. Aquela camisa vermelha dava-lhe um ar marcial, garibaldino. Os rapazes do Jardim Botânico, que o imitavam, usavam todos camisas dessa cor.” p. 21, II


Esta cor particular – o vermelho – como marca da turma de Chico Áts pode parecer uma distinção ideológica – seriam os subversivos? Os comunistas? Os filhos de proletários? - não ficam claro, e se assim fosse, os meninos da Rua Paulo seriam quem? Os filhos dos pequeno-burgueses? Os filhinhos-de-papai? Não, tais distinções baseadas em 'luta de classe' não se adequam aqui. Antes, a disputa é por território, não por ideias políticas. Uma guerra por território – numa época de colonialismo, quando os avanços imperialistas exaltavam os sentimentos nacionalistas. Aliás, por um território definido, como sabemos, o grund.


Aliás, a presença súbita de Chico Áts no grund explica-se como uma provocação aos meninos da Rua Paulo, como uma 'declaração de guerra', ainda mais quando uma das bandeirolas do 'forte' é subtraída. Assim, diante da provocação externa, todos os meninos se unem na disciplina e na obediência ao 'oficial' Boka, pois desejam defender o grund como se fosse o solo da Pátria!

Olharam para o terreno e para as pilhas de lenha, iluminadas pelo sol sereno da tarde primaveril. Via-se-lhes nos olhos que amavam aquele pedacinho de terra e estavam prontos a defendê-lo. Era uma espécie de patriotismo, como se ao gritarem – 'Viva o grund!' - tivessem gritado – 'Viva a pátria!' Os olhos brilhavam, os corações transbordavam” p. 26, II


De pronto, os meninos resolvem fazer uma 'excursão' até o terreno dos adversários – para mostrar que não têm medo de provocações. Mas quem será o corajoso que adentrará o covil inimigo? Dois meninos, Csónakos e Nemecsek, são voluntários para acompanharem o líder Boka. Assim, a 'tropa avançada' está formada. Sim, em muitos momentos a narrativa toma empréstimo de jargões da arte militar, ao comparar os meninos com soldados em campanha,


“[...] Mas desta vez não se assustaram mais. Sabiam que aquilo era o sinal para render as sentinelas. Por outro lado, sentiam-se no mais aceso da luta: já não se assustariam tão facilmente. Na verdadeira guerra, com os soldados de verdade, dá-se o mesmo. Enquanto não veem o inimigo, têm medo até das moitas do caminho. Mas quando as primeiras balas lhe passam, assobiando, perto do ouvido, criam coragem, sentem-se como que embriagados e esquecem que estão correndo para a morte.” p. 35, III


Muitas vezes a narrativa grandiloquente exagera um episódio puramente prosaico, uma brincadeira, mas lembremos que, para as crianças toda aquela ação era séria! Acreditavam realmente defender um 'forte', quando na verdade, ao olhar de um adulto, trata-se apenas de um mero terreno baldio. O Narrador adentra o mundo infantil quando apresenta tal perspectiva, compartilhando o olhar dos meninos,


Assim, decidiram a luta por motivo semelhante ao que desencadeia as guerras de verdade. Os russos precisavam de mar, por isso atacaram os japoneses. (*) Os camisas-vermelhas precisavam de um terreno para jogar péla, e como não havia outro jeito, iam recorrer à guerra.” pp. 36-37, III


Claro em toda ação há reação – e traição. Um dos meninos da Rua Paulo será visto em companhia dos meninos do Jardim Botânico, um daqueles de confiança de Boka, mas que se mostrará um miserável traidor da 'causa' – a defesa do grund. Em muitos momentos, parece-nos que o Narrador se inclina mais em defesa dos amigos de Boka – como se ele mesmo fosse um dos 'meninos da Rua Paulo' (**) – e traça um retrato pouco lisonjeiro dos comandados de Chico Átis.


Paralelo aos movimentos de guerra e guerrilha para defesa e conquista do grund, temos outra 'associação' de meninos – aqueles que ficam mascando uma espécie de resina, aqui traduzida como 'betume', daí a Sociedade do Betume, os Eleitos que devem zelar – com a própria saliva – para manter úmida um bocado do material, antes extraído dos encaixes das vidraças. Interessante aqui notar o quanto os meninos adoram se reunir em tais 'coletivos', são seres gregários que precisam defender algo, uma causa, nem que seja um bocado de betume!


Os primeiros a se levantarem contra as 'sociedades' são obviamente os adultos, aqui, no caso, na instituição Escola, será o professor, que não admite estas 'sociedades secretas' na turma. Afinal, só deve haver o Estado – que ele, o Professor na Escola representa. Nenhuma autoridade além do Estado, que tudo vigia. Nada de partidos, de gangues, ou facções, ou bandos, ou cabalas, tudo deve ser administrado e catalogado pelo Estado, que dá autoridade ao Professor.

“-Soube que vocês andaram fundando uma sociedade. Estou a par do caso. É uma Sociedade do Betume, ao que parece. Quem me informou, deu-me também a lista dos sócios. São vocês, não é verdade?

Ninguém respondeu. Permaneceram imóveis, cabisbaixos, demonstrando assim que a acusação era justa.

-Vamos por ordem – continuou o Sr. Professor –Quero saber, antes de tudo, quem foi que fundou a sociedade, apesar de eu ter dito claramente que não admitia sociedade alguma na turma
.” p. 43, IV


Realmente, os meninos criaram uma sociedade bem nacionalista, com direito a bandeira e versos patriotas. Para 'defender' um bocado de betume, as crianças criam regras, formalidades, cerimônias, cargos oficiais, hierarquias! Ironia é o que não falta aqui! Os meninos querem ser adultos - mas assim imitam o que há de pior nos adultos! Querem logo seguir regras e obedecer burocracias! Seguir líderes e marchar para a morte! (Crianças sempre crianças, como é Peter Pan, ironizam essas coisas! Contudo, bem que Peter Pan não abre mão de ser o líder dos 'Meninos Perdidos'...)

sobre 'Peter Pan'
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Não é mera impressão que em vários momentos a narrativa se prenda ao pequeno Nemecsek – mas não seria exato dizer que ele seja o protagonista – em suas aventuras, para provar a coragem diante dos maiores (que são sempre os oficiais...), o que leva o leitor a acompanhar o menino com mais atenção e participação. Nemecsek precisa provar que é corajoso – eis a missão aqui. Ele aparecerá em vários momentos essenciais da narrativa – ora para confundi-la, ora para resolvê-la. Mas toda a ação dele depende dos outros – ele apenas aproveita as oportunidades. Ou tem muita sorte!

O que não evita que Nemecsek seja excluído ou vitimado por algum mal-entendido. Os meninos maiores não hesitam em encontrar um 'bode expiatório' para as próprias falhas. Qualquer deslize e o menorzinho é logo rotulado de 'traidor' (enquanto nós, os leitores, sabemos quem é o traidor, quem realmente está tramando contra os meninos da Rua Paulo) e excluem o menino daquela Sociedade do Betume (assim como os 'marginais' são excluídos da 'nossa' sociedade...)


Atento a cosmovisão infantil, o Narrador não pode evitar, vez ou outra, comentários sobre o quanto as crianças se encontram indefesas no mundo dos adultos. O que as crianças julgam ser o mundo delas é apenas mais um terreno com dono, com direitos de proprietário, que pode negociar o grund como apenas mais uma fonte de renda.

De dentro ouvia-se o barulho alegre dos garotos jogando péla e, depois, o estrondo de uma aclamação: os da Sociedade do Betume festejavam o novo presidente... Ali dentro ninguém suspeitava que aquele pedaço de terra talvez nem lhes pertencesse mais. Aquele pedacinho estéril de Budapeste, cheio de altos e baixos, aquela planiciezinha confinada entre dois edifícios que para suas almas juvenis significava o infinito, a liberdade; prairie americana de manhã, estepe húngara de tarde, oceano quando chovia, pólo norte pelo inverno – em suma, o amigo de todos eles, que se transformava naquilo que eles queriam, só para diverti-los...” p. 54, IV


Precisamos lembrar também da época. É um drama entre crianças que ocorreu nos fins do século 19, antes das Guerras Mundiais que começaram na Europa e assolaram os povos – também os húngaros – ali entre alemães e austríacos, entre nazistas e estalinistas – e acabaram todo resto de inocência que aquele povo teria.

Neste sentido, o menino-moço Chico Átis não tem inocência. Ele é o líder sem escrúpulos, sem idealismos. Não quer conferências, nem negociações. Quer conquistar o grund através da força bruta. Ele quer guerra. Poderia ser um revolucionário de direita ou guerrilheiro de esquerda. O traidor apenas vem trazer uma melhor descrição dos pontos-fracos da defesa inimiga. Assim, o traidor é uma peça logo fora do baralho. Só merece mesmo o desprezo. (Agora desprezo duplo, tanto dos amigos de antes, quanto dos inimigos. O traidor jamais merece confiança...)


Enquanto o traidor somente afunda em indignidades (querem maior indignidade do que ser desprezado pelos meninos da Rua Paulo?), por outro lado, o pequeno Nemecsek dá provas de coragem – ao se insinuar no próprio covil do inimigo ! - a ponto de trair a admiração do severo Chico Áts. É inversamente proporcional, quanto mais o traidor entra em decadência, mais o menorzinho do grupo alcança ascensão – até a apoteose final, como veremos.


(O traidor, chamado Geréb, ainda recebe um foco, pouco antes da 'batalha', mas não a ponto de prender a atenção. Ele está em cima do muro, ao trair, ao pedir perdão, ao querer voltar para a tropa. Boka até perdoa, mas não aceita no grupo. É preciso uma intervenção externa – a presença do pai de Geréb – para que os meninos da Rua Paulo o aceitem. E o que mais ressaltamos é a generosidade de Nemecsek em não reafirmar diante do pai que o filho é um traidor dos amigos.)


Até diante das maiores humilhações, quando obrigado a mergulhar no lago frio, o pequeno Nemecsek mantém-se firme e altivo, e desafia os adversários. Prefere ser um 'sapo' nas águas frias do lago do que ser o traidor dos amigos. O menorzinho mostra coragem diante dos 'inimigos',

Não tenho medo de nenhum de vocês. E se vierem à Rua Paulo tomar-nos o nosso terreno, lá estaremos. Lá, verão que, quando nós também somos dez, sabemos falar em outro tom. Comigo a briga não foi difícil ! Vence quem é mais forte.” (p. 59, V)

De fato haverá uma guerra pela posse ou defesa do grund, aquele terreno baldio que torna-se um símbolo do solo sagrado da Pátria. Uma guerra com Regras – com diplomatas, embaixadores, patrulhas avançadas, honra e cavalheirismo, e declaração oficial – pois ainda estamos antes da 'guerra total', tal como se manifestou nas Guerras Mundiais (a Primeira, 1914-18, e a Segunda, 1939-1945), onde não havia sequer declaração de guerra, mas ofensivas-surpresa, saques, destruição em massa, bombardeio de civis, gases tóxicos, assassinato em escala industrial, bombas atômicas.


O esperto Boka arquiteta todo um plano de batalha – digno de um Alexandre ou Napoleão – para defender o amado grund, aquele terreno que significa tanto para os meninos – tanto pessoalmente, quando coletivamente. Significava algo deles e um lugar da infância.

“Boka sentia que nesse momento tudo dependia dele – o bem-estar daquela minúscula sociedade, as tardes alegres, as partidas de péla e de outros jogos, os divertimentos de seus amigos – e enchia-se de orgulho por ter-se encarregado de uma tarefa tão bela.

-Sim – disse consigo mesmo – defendê-los-ei.

Envolveu num olhar o querido grund. Olhou em direção das pilhas de lenha, por trás das quais se levantava curiosa a esbelta chaminé da serraria, cuspindo as brancas nuvenzinhas de vapor com alegria tão sossegada como se aquele dia fosse como os outros, como se tudo não estivesse em perigo...

Sim, Boka sentia-se como um grande capitão pouco antes da batalha decisiva. Pensava em Napoleão... Depois os seus pensamentos se aventuraram pelo futuro a dentro. Como seria? Que fim levaria ele? Acabaria soldado de verdade, capitão a comandar um exército fardado, em algum lugar longínquo, num verdadeiro campo de batalha... para defender não um pedacinho de terra tão pequeno como o grund, mas aquela grande porção de terra querida que se chama pátria? Ou acabaria médico, enfrentando diariamente as enfermidades numa grande batalha, séria e renhida?
” p. 69, VI


A batalha mesmo somente ocorre dois dias depois. Os preparativos, enquanto isso, são minuciosamente descritos. Esquemas das tropas, posicionamentos dos reservas, áreas da ofensiva e da retirada, assim todo um vocabulário militar com o qual os meninos demonstram uma estranha familiaridade – como se a guerra fosse assunto de crianças! A 'guerra' em si ocupa muitas páginas e uma atenção especial do Narrador (o Autor certamente terá vivenciado e participado da batalha...)


Mas não é nosso interesse resumir aqui os movimentos bélicos dos meninos. Mas, antes, a questão da infância. De como é possível aos meninos se relacionarem em termos militares – onde um à amigo e o outro inimigo, onde um é fiel e o outro traidor. Todos estes conceitos de honra são próprios do mundo adulto. As crianças seguem – e incorporam - tais conceitos, apenas para reproduzirem a violência. Principalmente, as relações entre jogo e guerra são ressaltadas, além dos 'níveis semânticos' compartilhados (i.e. quando o vocabulário usado é de origem militar),


Correspondentes de guerra verdadeiros que assistiram a batalhas de verdade, dizem que o maior perigo que ameaça um exército é a confusão. Os generais têm menos receio de centenas de canhões que de uma confusãozinha de anda, que pode em poucos instantes transformar-se num verdadeiro caos. Pois se a confusão enfraquece um exército de verdade, armado de fuzis e de canhões, como é que uns soldadinhos de infantaria, cujo uniforme consistia apenas em camisas-de-esporte vermelhas, poderiam resistir a esse perigo?” p. 93, VIII


O mais importante, em nossa leitura, acha-se mais para o fim da 'batalha', quando o pequeno Nemecsek, mesmo adoentado, vem, digamos, 'salvar a pátria', e deixa o 'campo de batalha' com honras militares. É quando o foco da narrativa vai do coletivo para o individual, na parte final, quando o menino, doente e agonizante, recebe a atenção digna de um protagonista. Todos os olhares se voltam para ele – tanto de amigos quanto 'inimigos' – seu nome é 'reabilitado' diante dos meninos da Rua Paulo, sua coragem é louvada até pelos adultos.


Diante da casa humilde do menino Nemecsek, os dois rivais – João Boka e Chico Áts – se encontram, sem esperar, na dor compartilhada,

E os dois generais fitaram-se dos dois lados da rua.

Pela primeira vez na vida deles se encontravam assim a sós, cara a cara, diante daquela casinha triste, um trazido pelo coração, outro pela consciência. Fitaram-se sem uma palavra. Depois Chico Áts recomeçou o seu vaivém diante da casa. Andou muito tempo, até que o porteiro saiu do quintal escuro para fechar o portão. Então Chico Áts tirou o chapéu e perguntou-lhe algo baixinho. A resposta do porteiro chegou até Boka. Era apenas esta palavra: -Mal.

E o homem bateu com o portão pesado. O barulho quebrou o silêncio da rua, mas apagou-se logo depois como o trovão no meio das montanhas
.” p. 104, VIII


E a prova de coragem do pequeno Nemeseck – e o consequente sacrifício da saúde física – é o momento marcante, no fechamento do livro. O menino prova a todos que ele sempre foi do mesmo nível - e até acima -, e assim ele não aceita o fato de que sempre o vejam como um 'soldado raso'. Esta necessidade de provar que é do mesmo nível (e até superior) é um exemplo dos 'ritos de passagem' que as crianças sofrem durante a pré-adolescência. Ser aceito no grupo, ser respeitado, ser amado, ser correspondido nos afetos.


Num desfecho triste, o menino resigna-se, 'nunca mais verei o grund', justo ele que considerava semelhante a uma 'pátria' aquele terreno de brincadeiras; e, junto aos familiares e os amigos, finalmente morre. E, felizmente, ele não vê a perda do grund, o terreno baldio que será destinado a novas construções na cidade em crescimento. Por fim, é o líder Boka sofre com o fim do 'solo sagrado' da infância e com o fim da infância.


A terra girava aos olhos de Boka. Desta vez as lágrimas brotaram. Estugou o passo, foi correndo ao portão, fugindo daquele pedaço de terra infiel que eles haviam defendido com tamanho sofrimento, tamanho heroísmo, e que ia deixá-los para carregar um imóvel nas costas para sempre.

Do portão voltou-se mais uma vez, como quem abandona de vez a pátria. Para a grande dor que, a essa ideia, lhe apertava o coração, só encontrava uma consolação bem fraca. Coitado do Nemecsek! Se não vivera bastante para receber a delegação da Sociedade do Betume pedindo perdão, pelo menos também não vira arrancarem-lhe a pátria pela qual morrera
.” p. 120, X


O terreno da infância se perde, a própria infância se vai, restam as reminiscências – e a narrativa que acabamos de ler. As crianças adentram o mundo normatizado e oficializado pelos adultos. O Autor-Narrador demonstra amargura, ele que possivelmente lá esteve, junto aos corajosos e destemidos meninos da Rua Paulo, meninos em muitos aspectos semelhantes aos vários meninos de várias ruas em todo o mundo.


Todas as citações extraídas da tradução de Paulo Rónai
Os Meninos da Rua Paulo”, RJ : Ediouro, 1992.


nov/11

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/




Notas:


(*) Para os críticos historicistas eis um prato-feito! Por que o Autor fala em russos versus japoneses? Ora, a obra é de 1906, e o contexto é a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), que empolgou nacionalistas de ambos os impérios, até a vitória nipônica, e a eclosão da Revolução de 1905 contra o Czar.

(**) Aliás, o tradutor Paulo Rónai apresenta duas marcas textuais, consideradas involuntárias, que possibilitam uma leitura na qual o Autor tenha participado da turma da Rua Paulo. Assim, na página 19, II, temos um “Nós, meninos da cidade, não queríamos saber de outro. O grund da Rua Paulo era chão e representava para nós as savanas americanas.” e também, na página 90 , VIII, “Os nossos receberam-nos firmes como se quisessem aceitar a batalha, mas isso durou apenas alguns segundos:” Onde o Narrador se inclui no grupo de meninos.)


artigos sobre “Os Meninos da Rua Paulo
http://www.tellesdasilva.com/crmeninos.html



filmes baseado no romance de Molnár

A Pál-Utcai fiúk”(The Boys of the Paul Street, 1969)
http://www.youtube.com/watch?v=yleSDV47o3M&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=9UM7liecYQs
http://www.youtube.com/watch?v=yKo1TczV-UM&feature=related


I Ragazzi della Via Pal (TV, 2003)
http://www.youtube.com/watch?v=ynJZ5Nx3lkc
http://www.youtube.com/watch?v=JONEir2hErI&feature=related



LdeM