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Sobre O Estrangeiro / O Estranho (L’étranger, 1957)
do
escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960)
A
literatura ousa explicitar o estranhamento
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P2
Na
segunda parte de O Estranho / O Estrangeiro encontramos
maior evidência do embate sujeito versus mundo, ou engrenagem
versus máquina, pois após o crime, ao ter assassinado o
árabe, de modo gratuito, o protagonista Meursault, também o
narrador, percebe o quanto está sob os olhares dos que julgam, o
quanto está exposto, em todas as suas ações, e como será
condenado por mais que se esforce. Na verdade, ele não se esforça,
nem se defende.
Meursault
é submetido a vários interrogatórios, sofre com o rigor e o
desrespeito da polícia, é julgado pelos concidadãos, é avaliado
por colegas de escritório, por conhecidos, em suma, está sob os
olhares. Não é mais um anônimo na multidão, mas um criminoso a
ser condenado. Ao se sentar no banco dos réus já é um condenado
por antecipação.
O
próprio Meursault se vê condenado, lembra sempre que matou um
homem, que perdeu sua condição de homem livre. Não será mais
visto como um homem comum, cumpridor dos deus deveres, mas na
condição de criminoso, e toda a sua vida anterior será contemplada
a partir deste crime. Ele levou uma vida normal até o crime, mas é
após o crime que sua vida será avaliada – como a vida de um
criminoso! Assim sua vida será investigada e julgada.
Há
todo um ritual do advogado, todo um ritual do juiz, todo um ritual do
sacerdote – tudo é ritualizado nas teias da justiça humana. E o
criminoso, o futuro condenado, deve seguir todos os rituais, todo o
protocolo. O fato de Meursault não seguir o comportamento protocolar
o prejudica ainda mais – ainda mais do que não cuidar de sua mãe,
não guardar luto, não se afastar de certos mulherengos, não ser
amigável com os vizinhos. Não seguir o protocolo judicial é ainda
pior.
Não
se arrepender dos 'pecados' é ainda pior – na visão do sacerdote
que deseja salvar almas. Meursautl deve ser salvo – mesmo que ele
não queira – pois assim terá sentido sua vida absurda. Assim o
protagonista precisa se explicar para a justiça humana e para a
justiça divina. Relatar tudo novamente, “Raymond, a praia, o
banho, a briga, ainda a praia, a pequena fonte, o sol e os cinco
tiros de revólver” (“Raymond, la plage, le bain, la querelle,
encore la plage, la petite source, le soleil et les cinques coups de
revolver.” p. 105) até a exaustão, de fadiga ou de
justificação.
Qual
a causa do crime? Eis o que intriga aos figurões da justiça. Será
o sol abrasante uma justificativa suficiente? O ambiente hostil
legitima a hostilidade do ser humano? A carência externa causando a
carência interna? A causa será a ausência de Deus? Será a
indiferença religiosa do protagonista-criminoso? Indiferença que
para os juízes é justamente descrença e impenitência, como bem se
expressa o juiz de instrução, ao apontar um crucifixo na parede,
“Em seguida , ele olhou-me
atentamente e com um pouco de tristeza. Ele murmurou: 'Jamais vi uma
alma tão impenitente quanto a vossa. Os criminosos que chegam diante
de mim sempre choram diante desta imagem da dor.' Eu responderia que
era justamente porque eles agiam como criminosos. Mas pensei que eu
também era igual a eles.” (“Ensuite, il m'a regardé
attentivement et avec un peu de tristesse. Il a murmuré: 'Je n'ai
jamais vu d'âme aussi endurcie que la vôtre. Les criminels qui sont
venus devant moi ont toujours pleuré devant cette image de la
douleur.' J'allais répondre que c'était justement parce qu'il
s'agissent de criminels. Mais j'ai pensé que moi aussi j'étais
comme eux.” p. 109)
De
tanto ser apontado como criminoso, o protagonista passa a se ver como
um criminoso. Antes ele era um cidadão qualquer, nas ruas, no
trabalho, na vida rotineira, agora é um cruel assassino, pois assim
é julgado. O crime passa a ser o sentido de sua vida. As pessoas
agora podem dizer: Ele, o sujeito estranho, só podia mesmo ser um
homicida, um assassino cruel. Como se toda a vida fosse uma
preparação para o crime. É assim: Meursault, o ateu, o anticristo,
nasceu para cometer o crime e ser condenado.
De
início a dificuldade da detenção, pois deixa-se de ser um 'homem
livre', quando se passa a ter pensamentos de detido, de confinado. É
uma prisão mais explícita que a rotina, com barras de ferro e
grades, não apenas cargos e horários,
“No início de minha prisão, assim,
o que foi mais difícil, é que eu tinha só pensamentos de homem
livre. Por exemplo, uma vontade me tomava de estar na praia e de
descer até o mar. A imaginar o som das primeiras ondas sob a sola
dos pés, a entrada do corpo na água e a libertação que eu
encontraria, sentia tudo subitamente como os muros da prisão estavam
próximos. Mas não dura mais que uns meses. Em seguida, eu tinha só
pensamentos de prisioneiro. […] eu estava pouco a pouco habituado.
[…] Aliás, era uma ideia de mamãe, que ela sempre repetia, que se
acaba por se habituar a tudo.” (“Au début de ma détention,
pourtant, ce qui a été le plus dur, c'est que j'avais des pensées
d'homme libre. Par exemple, l'envie me prenait d'être sur une plage
et de descendre vers la mer. A imaginer le bruit des premiéres
vagues sous la plante de mes pieds, l'entrée du corps dans l'eau et
la délivrance que j'y trouvais, je sentais tout d'un coup combien
les murs de ma prison étaient rapprochés. Mais cela dura quelques
mois. Ensuite, je n'avais que des pensées de prisonnier. […] je
m'y serais peu à peu habitué. […] C'était d'ailleurs une idée
de maman, et elle le répétait souvent, qu'on finissait par
s'habituer à tout.” pp. 119-120)
Como
tudo é uma questão de hábito, o protagonista se entrega à rotina
da prisão. Enquanto isso, continua em suas impressões e
esclarecimentos – a própria narrativa – como uma expressão de
sua pálida revolta. E inútil defesa, que ele não despeja no
tribunal. E em sua rotina, recebe carta (e a visita) da amante,
visitas do advogado, entrevistas com o juiz, pregações do
sacerdote, em suma, ele se integra como engrenagem da máquina.
Somente a sua consciência e sua narrativa possibilitam o
deslocamento, o distanciamento, ou o estranhamento, que vem
agir sobre o protagonista e os leitores.
Se
na obra do russo Dostoiévski, Crime e Castigo, o protagonista
pensa no crime e na culpa antes de se entregar à punição, aqui
Meursault tem tempo suficiente para pensar em sua condenação. Nada
sabemos sobre o processo, a investigação, ou se ele se entregou à
justiça. Não é essa a questão aqui, mas o drama psicológico do
narrador, entre os aprisionados e os que julgam. Temos um condenado
diante daqueles que são pagos para julgar. O juiz que se julga
acima, acima dos crimes, que exige o arrependimento moral do acusado.
Enquanto
a sentença não vem, o pesadelo do prisioneiro consiste em 'matar o
tempo', isto é, como passar tanto tempo ali preso, sem nada fazer, a
olhar para as grades? Como ocupar o tempo? Como evitar uma apatia
mental devastadora do ânimo e do intelecto? Aqui, Meursault se
permite rememorar, relembrar o tempo passado, todo o vivenciado, em
mínimos detalhes. Assim encontra uma forma de 'preencher' o tempo.
“Exceto por estes aborrecimentos,
não estava mais tão desgraçado. Toda a questão, ainda uma vez,
era a de matar o tempo. Acabei por não mais me entediar a partir do
momento em que me dediquei a relembrar. […] Assim, quanto mais eu
refletia e mais coisas desconhecidas e esquecidas eu tirava da minha
memória. Entendi então que um homem que tivesse vivido um só dia
poderia viver cem anos numa prisão. Teria lembranças o bastante
para não se entediar. Num certo sentido, era uma vantagem.” (“A
part ces ennuis, je n'étais pas trop malheureux. Toute la question,
encore une fois, était de tuer le temps. J'ai fini par ne plus
m'ennuyer du tout a partir de l'instant où j'ai appris à me
souvenir. […] Ainsi, plus je réfléchissais et plus de choses
méconnues et oubliées je sortais de ma mémoire. J'ai compris alors
qu'un homme qui n'aurait vécu qu'un seul jour pourrait sans peine
vivre cent ans dans une prison. Il aurait assez de souvenirs pour ne
pas s'ennuyer. Dans un sens, c'était un avantage.” pp.
122-123)
No
julgamento, Meursault volta ao seu natural estado de apatia,
deslocado e estranho ao ambiente, ao ritual. Ali estão os figurantes
do drama: o juiz, os advogados, o promotor, os jurados, a plateia, os
jornalistas, enfim todos para o ritual do julgamento, o processo
montado para se condenar um homem. Ele teve tempo suficiente para
pensar em crime e culpa, assim já está distanciado dos
acontecimentos – que ele narra como uma estória lida. (Igual a
história trágica do novo rico tcheco assassinado por parentes. Caso
este encontrado numa tira de jornal sob o colchão. Ele confessa ter
lido 'mil vezes' este drama. Tanto que começa a situar entre o
verídico e o provável, entre o factual e o fictício.)
“Todos me olhavam: percebi que eram
os jurados. Mas não posso dizer que podia distingui-los uns dos
outros. Eu não tinha mais que uma impressão: a de que estava diante
de um banco de bonde e todos estes viajantes anônimos espiavam
aquele que embarcava para notar algum ridículo. Eu sabia bem que era
uma ideia idiota pois que não era um ato ridículo que queriam
achar, mas o crime. No entanto a diferença não era tão grande e em
todo caso está foi a ideia que me ocorreu.” (“Tous me
regardaient: j'ai compris que c'étaient les jurés. Mais je ne peux
pas dire ce qui les distinguait les uns des autres. Je n'ai eu qu'une
impression: j'étais devant une banquette de tramway et tous ces
voyageurs anonymes épiaient le nouvel arrivant pour en apercevoir
les ridicules. Je sais bien que c'était une idée niaise puisque ici
ce n'était pas le ridicule qu'ils cherchaient, mais le crime.
Cependant la différence n'est pas grande et c'est en tout cas l'idée
qui m'est venue.” p. 129)
Diante
dos olhares dos concidadãos, o réu adquire uma identidade, ou
aceita-a, a de um criminoso. Ele precisa se explicar e se
justificar, ou seja, se defender. Acusar o árabe, alegar legítima
defesa, denunciar o gigolô interesseiro. Mas ele se deixa em sua
apatia, vendo tudo com deslocamento, sentindo-se um estranho.
Ou como se assistisse o julgamento de outro réu. Pois tudo já
está em processo: os advogados criam uma defesa, a imprensa
cria um monstro, um cruel assassino, enquanto os sacerdotes julgam
moralmente o ateu e anticristo. Como pode ele se defender se já está
condenado pelos outros? Tudo o que disser será usado contra ele.
Todas as suas ações apontam para o seu crime. Como se ele tivesse
tudo premeditado! Todas as pessoas de sua vida agora observam-no como
o criminoso. Ele, um cidadão tão apagado, agora pelo menos
fez algo, reprovável, é verdade, mas fez algo, e será assim
rotulado: assassino. É ele refém das impressões alheias, não tem
controle sobre sua imagem pública.
Perguntas
são feitas, sobre sua vida, seu passado, seus relacionamentos, a
perda da mãe, sua amante conquistada logo em enlutamento, sua
indiferença interpretada como misantropia própria de um 'monstro
moral', tudo investigado e exposto, para os olhares da plateia e
para o delírio dos jornais. Enquanto isso o estranho Meursault se
sente estrangeiro no próprio julgamento! Assim como os outros
são estranhos à sua vida – então como podem julgá-lo? O que tem
enquanto ligação a sua relação com a mãe e a premeditação de
um crime? Será o Sr. Meursault um ser sem sentimentos? Um psicopata
à solta?
Todos
os atos anteriores são usados para julgá-lo, como uma premeditação
do crime. Sua apatia no velório, o fato de fumar, a insensibilidade,
os lugares onde frequenta, a solidão onde se resguarda, a inoportuna
conquista sexual, um filme qualquer visto no cinema, a escolha de um
amigo com ações suspeitas, tudo configura o curriculum vitae
de um criminoso! Ou seja, não há escapatória: tudo é interpretado
sob a perspectiva do crime – logo tudo leva ao crime! É muito
simples julgar estando fora da ação, assim como é complexo o
julgar sendo o autor da ação.
Premeditado
ou mero acaso? Eis uma questão que define o crime. Os juízes
não acreditam em acaso, logo é como se Meursault fosse responsável
pela amizade com Raymond, o homem de 'moralidade duvidosa', e
responsável pela escrita da carta, e responsável pela visita à
casa de praia, e responsável pela briga e por andar armado, e
responsável por apertar o gatilho. Responsável pela morte da mãe,
pela amante, pelo filme cômico, pelo banho de mar, pelo passeio na
praia, pelos golpes, em suma, pelo assassinato. Não há um caminho
de acasos até o crime, mas responsabilidade, assim julga o
promotor. É tão culpado pela morte da mãe quanto pela morte do
árabe. Afinal, é o mesmo 'coração criminoso'.
Com
tanta pressão, tanto ódio popular, sendo tão detestado, o narrador
começa mesmo a se sentir culpado, começa a internalizar sua
identidade de 'monstro moral'. Ele se sente estrangeiro ao
julgamento que o condena, tudo acontece sem ele, à revelia, quando
falam em nome dele, quando o representam, quando o acusam e o
defendem, sua voz raramente é ouvida, e quando ele fala, se explica
sobre a angústia do sol abrasante, todos não hesitam em rir em
aberta zombaria. Como pode o sol levar ao crime? Como pode ele não
sentir remorsos? Como pode viver tão à superfície?
Ele
não tem remorsos de coisa alguma, pois não se liga ao quer que
seja, sempre sem afeto ou sem engajamento. É o que ele deseja
explicar ao afetado promotor que o acusa retoricamente de ser um
'monstro moral' incapaz de se arrepender, “Eu não lamentaria muito
o meu ato. Mas tanta obstinação me surpreendia. Gostaria de tentar
explicar-lhe cordialmente, quase com afeto, que eu jamais tinha me
arrependido realmente de alguma coisa.” (“Je ne regrettais pas
beaucoup mon acte. Mais tant d'acharnement m'étonnait. J'aurais
voulu essayer de lui expliquer cordialement, presque avec affection,
que je n'avais jamais pu regretter vraiment quelque chose.” pp.
154-155)
No
final temos um adensamento mais filosófico, ou até teológico, com
o embate entre Meursault e o sacerdote, quando o protagonista já se
sabe condenado, diante da morte iminente, o fim de sua angústia de
preso e culpado. Houve o julgamento e a condenação e ele só pode
aceitar sua condição. Quer agora ser consolado pelo padre?
Confessará para alcançar a salvação de sua alma? Ele está
distante de piedade ou constrição, mais preocupado com o mecanismo
que vem moendo sua identidade e rotina. Como pode ele escapar ao seu
destino? Vive um momento absurdo, onde é inútil qualquer defesa
pois desde o início estava condenado.
“Deitado, passo as mãos sob a
cabeça e espero. Não sei quantas vezes eu me perguntei se havia
exemplos de condenados à morte que tivessem escapado ao mecanismo
implacável, desaparecido antes da execução, rompido os isolamentos
dos agentes.” (“Couché, je passe les mains sous ma tête et
j'attends. Je ne sais combien de fois je me suis demandé s'il y
avait des exemples de condamnés à mort qui eussent échappé au
mécanisme implacable, disparu avant l'exécution, rompu les cordons
d'agents.” p. 165)
É
difícil aceitar a condenação, uma sentença assinada por
terceiros, segundo interpretações de terceiros. Ao narrar sua
condição presente, ele tece considerações sobre o passado, é
quando podemos conhecê-lo melhor, sua relação com a mãe (pois o
pai ele não conheceu), seu desenvolvimento, suas lembranças, ainda
que deslocadas, ou mesmo desfocadas, pois ele não narra aqui uma
autobiografia, no máximo uma autojustificação.
Ciente
que a morte pode chegar a qualquer momento, que o cadafalso ou a
guilhotina haverão de selar a absurda existência, o narrador só
tem mesmo está narrativa – não sabemos se escrita ou a se
desenrolar em sua mente - para desabafar sua angústia – a
consciência da morte. É inevitável quando a condenação faz
cessar uma vida ainda jovem. (Mas em nenhum momento ele pensa no
árabe gratuitamente assassinado...) Muitos viverão, muitos
nascerão, mas sua consciência vai se extinguir em breve.
É
deste momento que o sacerdote se aproveita para rogar pela 'salvação
da alma' do condenado. É preciso um profundo arrependimento para que
a alma possa alcançar a redenção. Mas Meursault recusa qualquer
consolo e desconhece qualquer constrição. Ele sabe que a pregação
do religioso somente tem efeito sobre o homem desesperado. Fala em
crença e provação, acusa o desvio e a perdição, num discurso já
demasiadamente conhecido. Como pode um impenitente conviver consigo
mesmo, se sabe que a morte o espera? Não entende que o condenado
nega o próprio processo (ao qual não compreende, assim como o
Joseph K. protagonista da obra de Franz Kafka) que o vitimou.
link
para meu ensaio sobre O Processo
Ao
condenado, agora um homem revoltado (o 'homme revolté' é
figura marcante na obra do revoltado Albert Camus, escritor em
desassossego), o padre vem falar em esperança! Vem falar em vida
eterna! Ao homem que perdeu tudo (se é que alguma vez teve algo...)
o sacerdote vem falar em vida após a morte. Condenado na justiça
dos homens está o estranho protagonista, mas desejará ele ser
absolvido na justiça divina? Para o padre, a verdadeira condenação
não é a humana, mas a divina. “Segundo ele, a justiça dos homens
nada era e a justiça de Deus era tudo. Eu observei que a primeira
havia me condenado. Ele me respondeu que ela não havia, por outro
lado, lavado o meu pecado.” (“Selon lui, la justice des hommes
n'était rien et la justice de Dieu tout. J'ai remarqué que c'était
la premiére qui m'avait condamné. Il m'a répondu qu'elle n'avait
pas, pour autant, lavé mon péché.” p. 179)
Ao
condenado nada aborrece mais que a presença de um sacerdote com suas
frases feitas e crenças ancestrais. Falando em esperança e salvação
somente consegue irritar aquele que aguarda a chegada da morte, para
aquele que tem pouco tempo. Aqui se configura um duelo entre a crença
e a descrença, sob a óptica do descrente, que não suporta mais as
tentativas de consolo. O homem revoltado encara o absurdo do
viver e do morrer e sem buscar consolos em crenças ou ideologias.
Ele está só em sua condição e saberá morrer sozinho.
Mas
a descrença do condenado incomoda a crença do sacerdote, que
precisa da fé para dar sentido à existência. Para o crente
é uma tragédia a vida ser um absurdo – pois tudo deve
existir para a glória de Deus. Tanto o crime quando o arrependimento
são para a excelsa glória divina. Tanto o santo como o criminoso
existem para a maior glória do Altíssimo. A atitude paternalista do
sacerdote visa abrandar os ânimos do infiel para que este retorne ao
rebanho dos redimidos. Mais para provar a própria fé do que para
realmente converter o outro.
Meursault
não tem outra certeza do que a própria finitude. Há uma ordem
judicial para executá-la. Assim como ele tirou a vida alheia, sua
vida será tirada. Agora vem um padre falar em redenção? Mais um
julgamento sob o trono divino? Um homem que não tem mais amanhã,
deve agora acreditar numa vida eterna? Deve crer no privilégio de
viver além da morte? O narrador usa mesmo esta palavra 'privilégio',
pois lembra que uns são privilegiados, enquanto outros são
simplesmente condenados. Como pode um privilegiado aparecer com
lições de moral para um condenado? Que direito tem de usar tal
paternalismo? Por que não deixar o outro na descrença?
O
protagonista, o estranho a si e aos outros, exige nada mais que o
direito de ser descrente, de ser excêntrico num mundo de absurdos. O
direito de dispensar confortos e devoções. Mas ao devoto não pode
haver chance de descrença – pois a não fé do outro abala a fé
do missionário. Daí o totalitarismo da fé religiosa: não pode
haver descrentes. Que apenas uma pessoa negue Deus: eis um perigo ao
edifício religioso, que apregoa crença absoluta. O sacerdote nega a
liberdade do outro, que não está livre para descrer! Aquele que
despreza a fé, e suas instituições tradicionais, é um coração
endurecido, é um monstro moral. Mas, Meursault, o
estranho, o que se sente estrangeiro, só deseja morrer em paz,
liberto enfim, mesmo cercado pelos gritos de ódio daqueles que
assistem a execução.
Fonte:
CAMUS, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 1957.
Jul/13
Leonardo de Magalhaens
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