segunda-feira, 22 de julho de 2013

sobre O Estranho / O Estrangeiro / p2 - A. Camus


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Sobre O Estrangeiro / O Estranho (L’étranger, 1957)
do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960)


A literatura ousa explicitar o estranhamento

 
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P2


Na segunda parte de O Estranho / O Estrangeiro encontramos maior evidência do embate sujeito versus mundo, ou engrenagem versus máquina, pois após o crime, ao ter assassinado o árabe, de modo gratuito, o protagonista Meursault, também o narrador, percebe o quanto está sob os olhares dos que julgam, o quanto está exposto, em todas as suas ações, e como será condenado por mais que se esforce. Na verdade, ele não se esforça, nem se defende.

Meursault é submetido a vários interrogatórios, sofre com o rigor e o desrespeito da polícia, é julgado pelos concidadãos, é avaliado por colegas de escritório, por conhecidos, em suma, está sob os olhares. Não é mais um anônimo na multidão, mas um criminoso a ser condenado. Ao se sentar no banco dos réus já é um condenado por antecipação.

O próprio Meursault se vê condenado, lembra sempre que matou um homem, que perdeu sua condição de homem livre. Não será mais visto como um homem comum, cumpridor dos deus deveres, mas na condição de criminoso, e toda a sua vida anterior será contemplada a partir deste crime. Ele levou uma vida normal até o crime, mas é após o crime que sua vida será avaliada – como a vida de um criminoso! Assim sua vida será investigada e julgada.

Há todo um ritual do advogado, todo um ritual do juiz, todo um ritual do sacerdote – tudo é ritualizado nas teias da justiça humana. E o criminoso, o futuro condenado, deve seguir todos os rituais, todo o protocolo. O fato de Meursault não seguir o comportamento protocolar o prejudica ainda mais – ainda mais do que não cuidar de sua mãe, não guardar luto, não se afastar de certos mulherengos, não ser amigável com os vizinhos. Não seguir o protocolo judicial é ainda pior.

Não se arrepender dos 'pecados' é ainda pior – na visão do sacerdote que deseja salvar almas. Meursautl deve ser salvo – mesmo que ele não queira – pois assim terá sentido sua vida absurda. Assim o protagonista precisa se explicar para a justiça humana e para a justiça divina. Relatar tudo novamente, “Raymond, a praia, o banho, a briga, ainda a praia, a pequena fonte, o sol e os cinco tiros de revólver” (“Raymond, la plage, le bain, la querelle, encore la plage, la petite source, le soleil et les cinques coups de revolver.” p. 105) até a exaustão, de fadiga ou de justificação.

Qual a causa do crime? Eis o que intriga aos figurões da justiça. Será o sol abrasante uma justificativa suficiente? O ambiente hostil legitima a hostilidade do ser humano? A carência externa causando a carência interna? A causa será a ausência de Deus? Será a indiferença religiosa do protagonista-criminoso? Indiferença que para os juízes é justamente descrença e impenitência, como bem se expressa o juiz de instrução, ao apontar um crucifixo na parede,

Em seguida , ele olhou-me atentamente e com um pouco de tristeza. Ele murmurou: 'Jamais vi uma alma tão impenitente quanto a vossa. Os criminosos que chegam diante de mim sempre choram diante desta imagem da dor.' Eu responderia que era justamente porque eles agiam como criminosos. Mas pensei que eu também era igual a eles.” (“Ensuite, il m'a regardé attentivement et avec un peu de tristesse. Il a murmuré: 'Je n'ai jamais vu d'âme aussi endurcie que la vôtre. Les criminels qui sont venus devant moi ont toujours pleuré devant cette image de la douleur.' J'allais répondre que c'était justement parce qu'il s'agissent de criminels. Mais j'ai pensé que moi aussi j'étais comme eux.” p. 109)


De tanto ser apontado como criminoso, o protagonista passa a se ver como um criminoso. Antes ele era um cidadão qualquer, nas ruas, no trabalho, na vida rotineira, agora é um cruel assassino, pois assim é julgado. O crime passa a ser o sentido de sua vida. As pessoas agora podem dizer: Ele, o sujeito estranho, só podia mesmo ser um homicida, um assassino cruel. Como se toda a vida fosse uma preparação para o crime. É assim: Meursault, o ateu, o anticristo, nasceu para cometer o crime e ser condenado.

De início a dificuldade da detenção, pois deixa-se de ser um 'homem livre', quando se passa a ter pensamentos de detido, de confinado. É uma prisão mais explícita que a rotina, com barras de ferro e grades, não apenas cargos e horários,

No início de minha prisão, assim, o que foi mais difícil, é que eu tinha só pensamentos de homem livre. Por exemplo, uma vontade me tomava de estar na praia e de descer até o mar. A imaginar o som das primeiras ondas sob a sola dos pés, a entrada do corpo na água e a libertação que eu encontraria, sentia tudo subitamente como os muros da prisão estavam próximos. Mas não dura mais que uns meses. Em seguida, eu tinha só pensamentos de prisioneiro. […] eu estava pouco a pouco habituado. […] Aliás, era uma ideia de mamãe, que ela sempre repetia, que se acaba por se habituar a tudo.” (“Au début de ma détention, pourtant, ce qui a été le plus dur, c'est que j'avais des pensées d'homme libre. Par exemple, l'envie me prenait d'être sur une plage et de descendre vers la mer. A imaginer le bruit des premiéres vagues sous la plante de mes pieds, l'entrée du corps dans l'eau et la délivrance que j'y trouvais, je sentais tout d'un coup combien les murs de ma prison étaient rapprochés. Mais cela dura quelques mois. Ensuite, je n'avais que des pensées de prisonnier. […] je m'y serais peu à peu habitué. […] C'était d'ailleurs une idée de maman, et elle le répétait souvent, qu'on finissait par s'habituer à tout.” pp. 119-120)

Como tudo é uma questão de hábito, o protagonista se entrega à rotina da prisão. Enquanto isso, continua em suas impressões e esclarecimentos – a própria narrativa – como uma expressão de sua pálida revolta. E inútil defesa, que ele não despeja no tribunal. E em sua rotina, recebe carta (e a visita) da amante, visitas do advogado, entrevistas com o juiz, pregações do sacerdote, em suma, ele se integra como engrenagem da máquina. Somente a sua consciência e sua narrativa possibilitam o deslocamento, o distanciamento, ou o estranhamento, que vem agir sobre o protagonista e os leitores.

Se na obra do russo Dostoiévski, Crime e Castigo, o protagonista pensa no crime e na culpa antes de se entregar à punição, aqui Meursault tem tempo suficiente para pensar em sua condenação. Nada sabemos sobre o processo, a investigação, ou se ele se entregou à justiça. Não é essa a questão aqui, mas o drama psicológico do narrador, entre os aprisionados e os que julgam. Temos um condenado diante daqueles que são pagos para julgar. O juiz que se julga acima, acima dos crimes, que exige o arrependimento moral do acusado.

Enquanto a sentença não vem, o pesadelo do prisioneiro consiste em 'matar o tempo', isto é, como passar tanto tempo ali preso, sem nada fazer, a olhar para as grades? Como ocupar o tempo? Como evitar uma apatia mental devastadora do ânimo e do intelecto? Aqui, Meursault se permite rememorar, relembrar o tempo passado, todo o vivenciado, em mínimos detalhes. Assim encontra uma forma de 'preencher' o tempo.

Exceto por estes aborrecimentos, não estava mais tão desgraçado. Toda a questão, ainda uma vez, era a de matar o tempo. Acabei por não mais me entediar a partir do momento em que me dediquei a relembrar. […] Assim, quanto mais eu refletia e mais coisas desconhecidas e esquecidas eu tirava da minha memória. Entendi então que um homem que tivesse vivido um só dia poderia viver cem anos numa prisão. Teria lembranças o bastante para não se entediar. Num certo sentido, era uma vantagem.” (“A part ces ennuis, je n'étais pas trop malheureux. Toute la question, encore une fois, était de tuer le temps. J'ai fini par ne plus m'ennuyer du tout a partir de l'instant où j'ai appris à me souvenir. […] Ainsi, plus je réfléchissais et plus de choses méconnues et oubliées je sortais de ma mémoire. J'ai compris alors qu'un homme qui n'aurait vécu qu'un seul jour pourrait sans peine vivre cent ans dans une prison. Il aurait assez de souvenirs pour ne pas s'ennuyer. Dans un sens, c'était un avantage.” pp. 122-123)


No julgamento, Meursault volta ao seu natural estado de apatia, deslocado e estranho ao ambiente, ao ritual. Ali estão os figurantes do drama: o juiz, os advogados, o promotor, os jurados, a plateia, os jornalistas, enfim todos para o ritual do julgamento, o processo montado para se condenar um homem. Ele teve tempo suficiente para pensar em crime e culpa, assim já está distanciado dos acontecimentos – que ele narra como uma estória lida. (Igual a história trágica do novo rico tcheco assassinado por parentes. Caso este encontrado numa tira de jornal sob o colchão. Ele confessa ter lido 'mil vezes' este drama. Tanto que começa a situar entre o verídico e o provável, entre o factual e o fictício.)

Todos me olhavam: percebi que eram os jurados. Mas não posso dizer que podia distingui-los uns dos outros. Eu não tinha mais que uma impressão: a de que estava diante de um banco de bonde e todos estes viajantes anônimos espiavam aquele que embarcava para notar algum ridículo. Eu sabia bem que era uma ideia idiota pois que não era um ato ridículo que queriam achar, mas o crime. No entanto a diferença não era tão grande e em todo caso está foi a ideia que me ocorreu.” (“Tous me regardaient: j'ai compris que c'étaient les jurés. Mais je ne peux pas dire ce qui les distinguait les uns des autres. Je n'ai eu qu'une impression: j'étais devant une banquette de tramway et tous ces voyageurs anonymes épiaient le nouvel arrivant pour en apercevoir les ridicules. Je sais bien que c'était une idée niaise puisque ici ce n'était pas le ridicule qu'ils cherchaient, mais le crime. Cependant la différence n'est pas grande et c'est en tout cas l'idée qui m'est venue.” p. 129)


Diante dos olhares dos concidadãos, o réu adquire uma identidade, ou aceita-a, a de um criminoso. Ele precisa se explicar e se justificar, ou seja, se defender. Acusar o árabe, alegar legítima defesa, denunciar o gigolô interesseiro. Mas ele se deixa em sua apatia, vendo tudo com deslocamento, sentindo-se um estranho. Ou como se assistisse o julgamento de outro réu. Pois tudo já está em processo: os advogados criam uma defesa, a imprensa cria um monstro, um cruel assassino, enquanto os sacerdotes julgam moralmente o ateu e anticristo. Como pode ele se defender se já está condenado pelos outros? Tudo o que disser será usado contra ele. Todas as suas ações apontam para o seu crime. Como se ele tivesse tudo premeditado! Todas as pessoas de sua vida agora observam-no como o criminoso. Ele, um cidadão tão apagado, agora pelo menos fez algo, reprovável, é verdade, mas fez algo, e será assim rotulado: assassino. É ele refém das impressões alheias, não tem controle sobre sua imagem pública.

Perguntas são feitas, sobre sua vida, seu passado, seus relacionamentos, a perda da mãe, sua amante conquistada logo em enlutamento, sua indiferença interpretada como misantropia própria de um 'monstro moral', tudo investigado e exposto, para os olhares da plateia e para o delírio dos jornais. Enquanto isso o estranho Meursault se sente estrangeiro no próprio julgamento! Assim como os outros são estranhos à sua vida – então como podem julgá-lo? O que tem enquanto ligação a sua relação com a mãe e a premeditação de um crime? Será o Sr. Meursault um ser sem sentimentos? Um psicopata à solta?

Todos os atos anteriores são usados para julgá-lo, como uma premeditação do crime. Sua apatia no velório, o fato de fumar, a insensibilidade, os lugares onde frequenta, a solidão onde se resguarda, a inoportuna conquista sexual, um filme qualquer visto no cinema, a escolha de um amigo com ações suspeitas, tudo configura o curriculum vitae de um criminoso! Ou seja, não há escapatória: tudo é interpretado sob a perspectiva do crime – logo tudo leva ao crime! É muito simples julgar estando fora da ação, assim como é complexo o julgar sendo o autor da ação.

Premeditado ou mero acaso? Eis uma questão que define o crime. Os juízes não acreditam em acaso, logo é como se Meursault fosse responsável pela amizade com Raymond, o homem de 'moralidade duvidosa', e responsável pela escrita da carta, e responsável pela visita à casa de praia, e responsável pela briga e por andar armado, e responsável por apertar o gatilho. Responsável pela morte da mãe, pela amante, pelo filme cômico, pelo banho de mar, pelo passeio na praia, pelos golpes, em suma, pelo assassinato. Não há um caminho de acasos até o crime, mas responsabilidade, assim julga o promotor. É tão culpado pela morte da mãe quanto pela morte do árabe. Afinal, é o mesmo 'coração criminoso'.

Com tanta pressão, tanto ódio popular, sendo tão detestado, o narrador começa mesmo a se sentir culpado, começa a internalizar sua identidade de 'monstro moral'. Ele se sente estrangeiro ao julgamento que o condena, tudo acontece sem ele, à revelia, quando falam em nome dele, quando o representam, quando o acusam e o defendem, sua voz raramente é ouvida, e quando ele fala, se explica sobre a angústia do sol abrasante, todos não hesitam em rir em aberta zombaria. Como pode o sol levar ao crime? Como pode ele não sentir remorsos? Como pode viver tão à superfície?


Ele não tem remorsos de coisa alguma, pois não se liga ao quer que seja, sempre sem afeto ou sem engajamento. É o que ele deseja explicar ao afetado promotor que o acusa retoricamente de ser um 'monstro moral' incapaz de se arrepender, “Eu não lamentaria muito o meu ato. Mas tanta obstinação me surpreendia. Gostaria de tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeto, que eu jamais tinha me arrependido realmente de alguma coisa.” (“Je ne regrettais pas beaucoup mon acte. Mais tant d'acharnement m'étonnait. J'aurais voulu essayer de lui expliquer cordialement, presque avec affection, que je n'avais jamais pu regretter vraiment quelque chose.” pp. 154-155)

No final temos um adensamento mais filosófico, ou até teológico, com o embate entre Meursault e o sacerdote, quando o protagonista já se sabe condenado, diante da morte iminente, o fim de sua angústia de preso e culpado. Houve o julgamento e a condenação e ele só pode aceitar sua condição. Quer agora ser consolado pelo padre? Confessará para alcançar a salvação de sua alma? Ele está distante de piedade ou constrição, mais preocupado com o mecanismo que vem moendo sua identidade e rotina. Como pode ele escapar ao seu destino? Vive um momento absurdo, onde é inútil qualquer defesa pois desde o início estava condenado.

Deitado, passo as mãos sob a cabeça e espero. Não sei quantas vezes eu me perguntei se havia exemplos de condenados à morte que tivessem escapado ao mecanismo implacável, desaparecido antes da execução, rompido os isolamentos dos agentes.” (“Couché, je passe les mains sous ma tête et j'attends. Je ne sais combien de fois je me suis demandé s'il y avait des exemples de condamnés à mort qui eussent échappé au mécanisme implacable, disparu avant l'exécution, rompu les cordons d'agents.” p. 165)

É difícil aceitar a condenação, uma sentença assinada por terceiros, segundo interpretações de terceiros. Ao narrar sua condição presente, ele tece considerações sobre o passado, é quando podemos conhecê-lo melhor, sua relação com a mãe (pois o pai ele não conheceu), seu desenvolvimento, suas lembranças, ainda que deslocadas, ou mesmo desfocadas, pois ele não narra aqui uma autobiografia, no máximo uma autojustificação.

Ciente que a morte pode chegar a qualquer momento, que o cadafalso ou a guilhotina haverão de selar a absurda existência, o narrador só tem mesmo está narrativa – não sabemos se escrita ou a se desenrolar em sua mente - para desabafar sua angústia – a consciência da morte. É inevitável quando a condenação faz cessar uma vida ainda jovem. (Mas em nenhum momento ele pensa no árabe gratuitamente assassinado...) Muitos viverão, muitos nascerão, mas sua consciência vai se extinguir em breve.

É deste momento que o sacerdote se aproveita para rogar pela 'salvação da alma' do condenado. É preciso um profundo arrependimento para que a alma possa alcançar a redenção. Mas Meursault recusa qualquer consolo e desconhece qualquer constrição. Ele sabe que a pregação do religioso somente tem efeito sobre o homem desesperado. Fala em crença e provação, acusa o desvio e a perdição, num discurso já demasiadamente conhecido. Como pode um impenitente conviver consigo mesmo, se sabe que a morte o espera? Não entende que o condenado nega o próprio processo (ao qual não compreende, assim como o Joseph K. protagonista da obra de Franz Kafka) que o vitimou.

link para meu ensaio sobre O Processo


Ao condenado, agora um homem revoltado (o 'homme revolté' é figura marcante na obra do revoltado Albert Camus, escritor em desassossego), o padre vem falar em esperança! Vem falar em vida eterna! Ao homem que perdeu tudo (se é que alguma vez teve algo...) o sacerdote vem falar em vida após a morte. Condenado na justiça dos homens está o estranho protagonista, mas desejará ele ser absolvido na justiça divina? Para o padre, a verdadeira condenação não é a humana, mas a divina. “Segundo ele, a justiça dos homens nada era e a justiça de Deus era tudo. Eu observei que a primeira havia me condenado. Ele me respondeu que ela não havia, por outro lado, lavado o meu pecado.” (“Selon lui, la justice des hommes n'était rien et la justice de Dieu tout. J'ai remarqué que c'était la premiére qui m'avait condamné. Il m'a répondu qu'elle n'avait pas, pour autant, lavé mon péché.” p. 179)

Ao condenado nada aborrece mais que a presença de um sacerdote com suas frases feitas e crenças ancestrais. Falando em esperança e salvação somente consegue irritar aquele que aguarda a chegada da morte, para aquele que tem pouco tempo. Aqui se configura um duelo entre a crença e a descrença, sob a óptica do descrente, que não suporta mais as tentativas de consolo. O homem revoltado encara o absurdo do viver e do morrer e sem buscar consolos em crenças ou ideologias. Ele está só em sua condição e saberá morrer sozinho.

Mas a descrença do condenado incomoda a crença do sacerdote, que precisa da fé para dar sentido à existência. Para o crente é uma tragédia a vida ser um absurdo – pois tudo deve existir para a glória de Deus. Tanto o crime quando o arrependimento são para a excelsa glória divina. Tanto o santo como o criminoso existem para a maior glória do Altíssimo. A atitude paternalista do sacerdote visa abrandar os ânimos do infiel para que este retorne ao rebanho dos redimidos. Mais para provar a própria fé do que para realmente converter o outro.

Meursault não tem outra certeza do que a própria finitude. Há uma ordem judicial para executá-la. Assim como ele tirou a vida alheia, sua vida será tirada. Agora vem um padre falar em redenção? Mais um julgamento sob o trono divino? Um homem que não tem mais amanhã, deve agora acreditar numa vida eterna? Deve crer no privilégio de viver além da morte? O narrador usa mesmo esta palavra 'privilégio', pois lembra que uns são privilegiados, enquanto outros são simplesmente condenados. Como pode um privilegiado aparecer com lições de moral para um condenado? Que direito tem de usar tal paternalismo? Por que não deixar o outro na descrença?

O protagonista, o estranho a si e aos outros, exige nada mais que o direito de ser descrente, de ser excêntrico num mundo de absurdos. O direito de dispensar confortos e devoções. Mas ao devoto não pode haver chance de descrença – pois a não fé do outro abala a fé do missionário. Daí o totalitarismo da fé religiosa: não pode haver descrentes. Que apenas uma pessoa negue Deus: eis um perigo ao edifício religioso, que apregoa crença absoluta. O sacerdote nega a liberdade do outro, que não está livre para descrer! Aquele que despreza a fé, e suas instituições tradicionais, é um coração endurecido, é um monstro moral. Mas, Meursault, o estranho, o que se sente estrangeiro, só deseja morrer em paz, liberto enfim, mesmo cercado pelos gritos de ódio daqueles que assistem a execução.



Fonte: CAMUS, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 1957.



Jul/13


Leonardo de Magalhaens




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