Sobre
O Estrangeiro
/ O Estranho (L’étranger,
1957)
do
escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960)
A
literatura ousa explicitar o estranhamento
parte 1
Um
estranho homem taciturno e indiferente, de origem francesa, é
julgado, na Argélia, por ter matado um árabe argelino, quase em
legítima defesa, contudo o estranho não se defende e, então, é
condenado. Eis o enredo básico do romance O
Estranho ou
O Estrangeiro
(L'étranger)
do franco-argelino Albert Camus que se destacou, juntamente com os
franceses André Malraux, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, na
onda existencialista de meados do século 20 na literatura europeia.
Comparando
com o romance-diário A
Náusea (de
Sartre, tema do artigo anterior) temos também uma voz em 1ª pessoa,
um protagonista-narrador, que nos apresenta sua visão-de-mundo, seus
dissabores diante da sociedade. Uma voz subjetiva contra um universo
objetivo, ou ainda, uma engrenagem gritando contra a máquina.
Enquanto Roquetin vive nauseado, desassossegado, em sua crise
existencial, temos aqui um Meursault que vive indiferente em sua
rotina, à superfície das situações, sem se envolver, sem se
engajar.
Ambos,
Roquetin e Meursault, observam o mundo, tecem longas descrições,
julgam gregos e troianos, criticam burgueses e marginais, se
desapegam da vida social, e adotam um modo de vida derrotista.
De tanto se sentirem atacados, atacam e, por fim, perdem. Uma
engrenagem contra engrenagens numa máquina de monstruosa
desproporção. Não há como um soldado derrotar um exército, ainda
mais quando o soldado dispensa as ajuda de outros soldados. Estar só
é ser mais uma vítima facilmente moída.
Tanto
Camus quanto Sartre oscilam entre uma visão humanista e uma visão
ceticista com relação aos seres humanos de seu tempo, uma época de
derrotas políticas das esquerdas e uma ascensão dos regimes
ditatoriais de direita (Espanha, Itália, Alemanha, etc), quando a
burguesia se alia aos antidemocratas para se manter no poder, com
medo dos revolucionários. Quando a maré fascista avança, os
intelectuais ou se convertem ou se exilam. Alguns enfrentam a bota e
a tortura, mas apenas para serem destruídos. Um sentimento de
derrotismo - e de hedonismo - se alastra, um viver-aqui-agora, um
desfrutar-dos-prazeres-enquanto-ainda-é-tempo passa a dominar e
anestesiar os cidadãos, incapazes de engajamento e ânimo-de-combate.
Não se admira que a França tenha caído sob as botas e tanques
nazistas (em menos de um mês!) em 1940, tendo antes enfrentado os
alemães por 4 anos sangrentos (na Primeira
Guerra Mundial,
1914-18).
Mas falemos do Sr. Meursault,
sempre indiferente em seu mundo de rotinas. Vamos reler esta obra que
muita impressão causou uma década antes quando da primeira leitura.
A linguagem de Meursault é clara e explicativa, a filosofia está
nas entrelinhas (se compararmos com as digressões do nauseado
Roquetin) pois seu propósito é confessar, é se expor, ciente de
seu crime. Mesmo que não entenda exatamente porque o crime foi
cometido. Vamos aos trechos memoráveis do livro. (Todas
as citações com tradução minha.)
O
início – desde a primeira frase – é chocante. A simplicidade,
ou a banalidade, do dito, do enunciado, se contrasta com o vivido. Há
a perda de um ente querido que é declarado como um fato meramente
declarativo. Nem se sabe quando ocorreu a morte da própria mãe. Há
uma rotina que domina os dias, que entorpece os sentimentos. “Hoje,
mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei. Recebi um telegrama do
asilo: ' Mãe falecida. Sepultamento amanhã. Nossas condolências.
Isso quer dizer nada. Talvez fosse ontem.” (“Aujoud’hui,
mamam est morte. Ou peut-être hier., je ne sais pas. J’ai reçu un
télégramme de l’asile: ‘Mère décédée. Enterrement demain.
Sentiments distingués.' Cela ne veut rien dire. C’était peut-être
hier.” p.
9 )
A
relação de Meursault com a mãe, que se entediava em sua companhia,
daí o internamento no asilo, ilustra bem como ele se comporta em
relação às pessoas ao redor. Se acostuma, por rotina. “Quando
estava em casa, mamãe passava o tempo a me seguir com os olhos em
silêncio. Nos primeiros dias quando foi para o asilo, ela chorava
muito. Mas é uma questão de hábito. Ao fim de alguns meses, ela
teria chorado se fosse retirada do asilo. Sempre um questão de
hábito.” (“Quand
ele était à la Maison, maman passait son temps à me suivre des
yeux en silence. Dans les premiers jours où ele était à l’asile,
ele pleurait souvent. Mais c’était à cause de l’habitude. Au
bout de quelques mois, ele aurait pleuré si on l’avait retirée de
l’asile. Toujours à cause de l’habitude.”
p. 12)
O
comportamento do filho enlutado é sempre observado, avaliado, como
são suas reações, suas palavras, como expressa – ou não –
seus sentimentos de perda. Os representantes das instituições, os
familiares, os idosos no asilo, todos têm suas impressões e
avaliações, que depois serão usadas contra ele no tribunal.
Foi neste momento que os
amigos de mamãe entraram. Eram cerca de uma dezena, e eles
deslizavam em silêncio nesta claridade cegante. Se sentaram sem que
nenhuma cadeira gemesse. Eu os observava como jamais observara antes
uma pessoa e nenhum detalhe de suas aparências ou de suas vestes não
me escapava. No entanto não os escutava e com muito custo podia crer
na realidade deles. (C'est
à ce moment que les amis de maman sont entrés. Ils étaient en tout
une diziaine, et ils glissaient en silence dans cette lumière
aveuglante. Ils se sont assis sans qu'aucune chaise grinçât. Je les
voyais comme je n'ai jamais vu personne et pas un détail de leurs
visages ou de leurs habits ne m'échappait. Pourtant je ne les
entendais pas et j'avais peine à croire à leur réalité. p.
18)
Ao
mesmo tempo em que é observado, o protagonista observa, descreve,
sim, em longas descrições, a tecer julgamentos sobre as pessoas ao
redor, sobre as situações que o enchem de tédio. É este tédio
que o mantém sempre indiferente, sempre a espera das ações ao
redor. Ele não toma iniciativas, mas reage às iniciativas de
terceiros. Pois para ele 'tanto faz' fazer ou não fazer.
Participar
de um velório, de um enterro, isto é, de uma série de cerimoniais
de enlutamento e sepultamento, eis o que enreda o protagonista em
impressões sobre a existência, sobre o viver e o morrer, nas
relações em sociedade. Cada gesto a se fazer, cada palavra a se
dizer, como inscritas num protocolo, como pré-escritas num rito, e
quem destoar, ou não pronunciar, ou se expressar diferente, pode
sofrer as desconfianças e sanções.
Eu estava um pouco perdido
entre o céu azul e branco e a monotonia dessas cores, preta grudante
de piche aberta, terno preto das vestes, o preto laqueado da carroça.
Tudo isso, o sol, o odor de couro e de // da carroça, esse de verniz
e de incenso, a fatiga de uma noite de insônia, me perturbava o
olhar e as ideias. (J'étais
un peu perdu entre le ciel bleu et blanc et la monotonie de ces
couleurs, noir gluant du goudron ouvert, noir terne des habits, noir
laqué de la voiture. Tout cela, le soleil, l'odeur de cuir et de
crottin de la voiture, celle du vernis et celle de l'encens, la
fatigue d'une nuit d'insomnie, me troublait le regard et les idées.
p. 29)
Para
se deslocar até o velório da mãe, Meursault mudou sua rotina, de
casa para o trabalho, tendo alguns dias de folga, assim se ver em
situação nova, não esperada. Também não esperada é a
aproximação de uma mulher, que o deseja. Ele encara esta situação
de desejo com a mesma indiferença diante da morte. A mulher está
disponível, é desejável, e ele se envolve. Nem percebe que tudo
isso acontece quando ele deve manter o luto pela morte da mãe. A
mulher se surpreende com o luto do novo amante, mas nada diz. O
protagonista se sente levemente culpado.
O
narrador segue em sua vida sem atrativos, em monotonia, reagindo em
torpor a cada estímulo, apenas fisicamente engajado, como se o ânimo
estivesse em outro lugar. Ele é incapaz do 'se envolver de corpo e
alma', sempre à superfície, como que anestesiado. Em mais um
domingo, dia que ele pouco aprecia, ao deixar o quarto de solteiro,
ele segue pelas ruas, a observar a vida rotineira, as mesmas pessoas,
as mesmas roupas, os mesmos gestos. Cena a lembrar as perambulações
de Antoine Roquetin na cidadezinha de Bouville (no romance-diário “A
Náusea”,
Sartre), quando é descrita a vida na cidade, os pequenos cafés, a
diversão, os bondes (tramways)
que passam. Ele anda e anda até ao anoitecer,
Os lampiões na rua se
iluminaram bruscamente e deixavam pálidas as primeiras estrelas que
subiam na noite. Sentia meus olhos se cansarem de observar as
calçadas com suas cargas de pessoas e de luzes. Os lampiões
iluminavam a rua molhada, e os bondes, em intervalos regulares,
deixavam reflexos sobre os cabelos brilhantes, um sorriso ou um
bracelete prateado. (Les
lampes de la rue se sont alors allumées brusquement et elles ont
fait pâlir les premières étoiles qui montaient dans la nuit. J'ai
senti mes yeux se fatiguer à regarder les trottoirs avec leur
chargement d'hommes et de lumiéres. Les lampes faisaient luire le
pavé mouillé, et les tramways, à intervalles réguliers, mettaient
leurs reflets sur des cheveux brillants, un sourire ou un bracelet
d'argent. p.
40)
Recuperando
novamente sua rotina, Meursault volta ao escritório, onde o trabalho
contínuo o impede de pensar, de refletir. A jornada de trabalho
provoca uma rotinização da vida, que abafa a angústia. Só quando
o drama irrompe é que o protagonista se perceberá numa trama que
ele não controla: a vida. Situações que ele não causou, problemas
alheios a ele, mas que interferem em seu cotidiano. Ele evita se
envolver, então é envolvido.
Não
há razão para não conversar com o Sr. Raymond Sintès, sujeito que
é olhado com desconfiança por alguns concidadãos. Estará ele
envolvido com contrabando ou outras negociações ilícitas?
Meursault não se importa, desde que o outro não o prejudique. E até
podem travar algum contato, ou quiçá amizade. Mas nada de se
envolver com os negócios do outro. Mas não há como se evitar: logo
se está envolvido. Começa com uma conversa, um almoço, um favor e,
então, se está jogado na vida do outro. Assim Meursault não
procura amante e amigo – tanto a mulher quanto o amigo adentram a
vida apática do protagonista.
O
novo 'amigo' quer um favor, que Meursault escreva uma carta para a
amante que não 'se comporta bem', como um aviso antes que ela seja
'devidamente punida'. “Escrevi a carta. Escrevi um pouco ao acaso,
mas me concentrei a contentar Raymond pois não tinha razão para não
o contentar.” (J'ai
fait la lettre. Je l'ai écrite un peu au hasard, mais je me suis
appliqué à contenter Raymond parce que je n'avais pas de raison de
ne pas le contenter.
p. 54) Será que o mulherengo é mesmo um cafetão, um explorador de
mulheres? Não se sabe, e pouco importa. Aliás, a expressão “pra
mim tanto faz” (“moi
cela m'était égal”)
é recorrente. O protagonista coopera e tem a amizade o outro.
Amizade esta que o levará ao núcleo do drama. Pois a mulher é
árabe, e o irmão árabe logo pretende se vingar. E o irmão árabe
logo adentrará a vida de Meursault, dramaticamente.
Enquanto
o drama não vem, o protagonista continua a ser envolvido pela bela e
morena Maria, a mulher que reapareceu em sua vida logo no momento de
enlutamento. Ele perdeu a mãe, mas não se lembra mais. Agora está
nos braços da amante e tudo segue bem. Até recebe convite do
'amigo' – que não hesitara em espancar a amante - para um pouco
de lazer numa casa de praia, com outro casal. Sabe-se-lá que
relações os casais mantêm, qual a participação do gigolô
Raymond, pouco importa. Meursault aceita o convite. É quando o
árabe, num grupo de mais árabes, aparece.
É
quando Meursault percebe-se envolvido. Só pelo fato de estar ao lado
de Raymond, de testemunhar a seu favor quando diante da polícia
(logo atraída pela violência contra a mulher), só pelo fato de não
reprovar as ações do outro, tudo isso caracteriza – ao olhar dos
outros – uma amizade. Ora, o protagonista nada sabe sobre o gigolô,
pouco se importa. Como pode uma amizade nascer da indiferença?
No
mais, o protagonista concorda com o interlocutor, não porque esteja
de acordo, mas para evitar polêmica, para evitar discussões. E
assim é prontamente envolvido – ele não sabe dizer um claro Não,
e é interpretado como um possível Sim.
Seja na conversa com um diretor de asilo, uma amante a propor
casamento, um amigo interesseiro, um vizinho solitário a pedir
conselho, o patrão a oferecer uma oportunidade, sempre Meursault
adota uma atitude de 'tanto faz' que seja sim ou não, desde que ele
não se envolva. Ele não toma qualquer iniciativa para se envolver.
Mas, é então que ele se envolve! Basta não dar atenção, como faz
um Roquetin, para não se envolver. Fingir atenção é pior.
O
patrão oferece oportunidade, e a mulher quer se casar, onde fica o
protagonista nestas situações? Sempre indiferente, sem ânimo ou
ambição, sem interesse por dinheiro ou formar família. O que ele
faz é por rotina ou hábito, por reação, não atuação. Não que
Meursault não tenha opinião, pois ele tem. Sempre descreve e julga,
mesmo nas entrelinhas. Afinal, a narrativa é dele, só temos seu
ponto de vista, sua perspectiva. O que os outros pensam ou julgam?
Como os outros atuariam no lugar do narrador? Não temos respostas.
Claro que o julgamento exterioriza bastante as opiniões alheias
sobre Mersault, mas aí já estão viciadas pelo pré-julgamento: ele
é um criminoso, um assassino. Ele não se defenderá, e poucos o
defendem. Interessante seria um julgamento antes
do crime. Será que esperavam que ele o cometesse?
É
tudo gratuito: um amigo interesseiro, cuja amante foi espancada, cujo
irmão árabe quer se vingar, em jogo de espreita que o leva às
proximidades da casa de praia – ou seja, tudo se entrelaça e se
encaminha para o embate, o drama, o crime. Um crime do qual o
protagonista pouco sabe, sequer premeditou, e do qual não vai se
defender.
Primeiro,
percebe-se o quanto a incidência solar, o sol abrasante, é um dos
estímulos ao torpor de Meursault, sendo quase um figurante, ou
antagonista. Como não pode atirar contra o sol, ele atira em alguém
mais próximo? Ou ele agiu por legítima defesa? Afinal, o árabe
estava armado, como é relatado.
O sol tombava quase em prumo
sobre a areia e seu clarão sobre o mar era insustentável. Ninguém
estava na praia. (…) Se respirava penosamente no calor de pedra que
subia do sol. (…) Nada me ocupava a mente pois estava meio que
adormecido pelo sol em minha cabeça descoberta. (Le
soleil tombait presque d'aplomb sur le sable et son éclat sur la mer
était insoutenable. Il n'y avait plus personne sur la plage. […]
On respirait à peine dans la chaleur de pierre qui montait du sol.
[…] Je ne pensais à rien parce que j'étais à moitié endormi par
ce soleil sur ma tête nue.
p. 85)
Ensolarado
no corpo e na mente, Meursault se depara com uma aparição: o grupo
de árabes. Cheiro de animosidades no ar. Mas nada acontece além de
um luta corporal. O mulherengo Raymond é ferido. O combate se
encerra por enquanto. Ainda não há o crime. O protagonista e o
amigo perambulam pela praia. Continua o sol abrasante, e 'o sol e o
silêncio'. O ferido carrega um revólver. Os árabes descansam junto
a uma fonte atrás de um rochedo, e quando os franceses aparecem, e
medem forças, os primeiros recuam.
Depois
os franceses voltam à casa de praia, mas apenas Raymond sobe as
escadas, pois Meursault resolve continuar em andanças pela areia.
Sempre sob o sol abrasante. Andança que o levará fatalmente ao
mesmo lugar onde está o árabe. Temos então a cena mais dramática
do romance, brilhantemente narrada (a ponto de se pensar que tipo de
narrador é este Meursault, tão indiferente e ao mesmo tempo tão
atento às minúcias...)
a cabeça retinindo de sol,
desânimo diante do esforço necessário para subir os degraus de
madeira e encarar as mulheres. Mas o calor era tal que me era penoso
ficar imóvel sob a chuva cegante que caía do céu. Ficar aqui ou
partir, dava no mesmo. Ao fim de um momento, voltei à praia e me
comecei a caminhar.
Havia o mesmo clarão rubro.
Sobre a areia, o mar arfava de toda a respiração rápida e sufocada
das pequenas ondas. Caminhava lentamente rumo aos rochedos e sentia
me testa inchar sob o sol. Todo este calor sobre mim e se opondo ao
meu avanço.
“[...] la
tête retentissante de soleil, décourage devant l'effort qu'il
fallait faire pour monter l'étage de bois et aborder encore les
femmes. Mais la chaleur était telle qu'il m'était pénible aussi de
rester immobile sous la pluie aveuglante qui tombait du ciel. Rester
ici ou partir, cela revenait au même. Au bout d'un moment, je suis
retourné vers la plage et je me suis mis à marcher.
C'était le même
éclatement rouge. Sur le sable, la mer haletait de toute la
respiration rapide et étouffée de ses petites vagues. Je marchais
lentement vers les rochers et je sentais mon front se gonfler sous le
soleil. Toute cette chaleur s'appuyait sur moi et s'opposait à mon
avance.
pp. 91-92
Para
onde ele seguia ? E por que? Não sabia o perigo a que se expunha? Ou
que expunha o árabe que queria vingar a irmã? Ele, Meursault,
nutria algum rancor contra o árabe que atacou seu amigo Raymond?
Será que o antes indiferente se tornou um frio assassino? Parece que
ele deseja se justificar diante de todas estas questões? Se ele não
se defende no tribunal, ao menos se defende nestas linhas escritas.
Pensava na fonte fresca detrás
do rochedo. Queria reencontrar o murmúrio de sua água, desejo de
fugir do sol, o esforço e os choros de mulher, desejo de reencontrar
a sombra e seu repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o
sujeito do Raymond tinha retornado.
Ele estava só. Repousava de
costas, as mãos sob a nuca, a cabeça nas sombras do rochedo, todo o
corpo ao sol. Sua bolsa esfumaçava no calor. Fiquei um pouco
surpreso. Por mim, era um caso acabado e tinha chegado lá sem
pensar.
[…] Je
pensais à la source fraîche derrière le rocher. J'avais envie de
retrouver le murmure de son eau, envie de fuir le soleil, l'effort et
les pleurs de femme, envie enfin de retrouver l'ombre et son repos.
Mais quand j'ai été plus près, j'ai vu que le type de Raymond
était revenu.
Il était seul. Il reposait
sur le dos, les mains sous la nuque, le front dans les ombres du
rocher, tout le corps au soleil. Son bleu de chauffe fumait dans la
chaleur. J'ai été un peu surpris. Pour moi, c'était une histoire
finie et j'étais venu là sans y penser. p.
92
Seu
ato impensado será causado pelo horror ao sol abrasante? Um mero
reflexo fisiológico ao sofrimento externo, ao meio ambiente? Ele
reage assim ao empunhar a arma e atirar? Estará se defendendo? Ou
agindo finalmente? Contra o sol que o persegue, desde o sepultamento
de sua mãe. Ou ele apenas reage, indiferente, como sempre fez em sua
vida?
“Eu adivinhava seu olhar por
instantes, entre suas pálpebras semicerradas. Mas, com frequência,
sua imagem dançava diante de meus olhos, no ar inflamado.
Pensei que não teria mais que
dar meia-volta e tudo acabaria. Mas toda uma praia vibrante de sol se
pressionava atrás de mim. (…) A queimadura do sol dominava minhas
bochechas e sentia as gotas de suor se ajuntarem em minhas
sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia quando havia enterrado mamãe e,
como então, a cabeça me doía e todas as veias pulsavam juntas sob
a pele.
(…) o suor ajuntado nos
minhas sobrancelhas escorreu de uma vez sobre as pálpebras e a
recobri-las com um véu morno e denso. Meus olhos estavam cegados
atrás dessa cortina de lágrimas e de sal. Não sentia mais que os
címbalos do sol sobre minha cabeça e, indistintamente, a lâmina
golpeante desliza do punhal sempre diante de mim.
[…] Je
devinais son regard par instants, entre ses paupières micloses. Mais
le plus souvent, son image dansait devant mes yeux, dans l'air
enflammé. […]
J'ai pensé que je n'avais
qu'un demi-tour à faire et ce serait fini. Mais toute une plage
vibrante de soleil se pressait derrière moi. […] La brûlure du
soleil gagnait mes joues et j'ai senti des gouttes de sueur s'amasser
dans mes sourcils. C'était le même soleil que le jour où j'avais
enterré maman et, comme alors, le front surtout me faisait mal et
toutes ses veines battaient ensemble sous la peau.
[…]
[…] la
sueur amassé dans mes sourcils a coulé d'un coup sur les paupières
et les a recouvertes d'un voile tiède et épais. Mes yeux étaient
aveuglés derrière ce rideau de larmes et de sel. Je ne sentais plus
que les cymbales du soleil sur mon front et, indistinctement, le
glaive éclantant jailli du couteau toujours en face de moi.”
pp. 93-94
Todo
o sol, todo o calor que angustia o protagonista é despejado em ira
descontrolada sobre o árabe, que cai tombado pelo disparo, e mais
quatro tiros sobre 'o corpo inerte', assim a 'destruir o equilíbrio
do dia' como reconhece o narrador agora um criminoso, com seu destino
selado pela tragédia. Quem o defenderá? Ou como ele se defenderá?
Eis o que veremos na segunda parte do romance.
Fonte:
CAMUS, Albert. L’étranger.
Paris: Gallimard, 1957.
continua …
Leonardo de Magalhaens
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