Sobre
“A Náusea” (La Nausée, 1938)
do
escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Quando
a Literatura explicita uma existência nauseante
p2
Escrever
sobre a vida de outra pessoa é uma forma autêntica de dar sentido a
própria vida? Em que medida a vida do Sr. Rollebon justifica a
atenção de um biógrafo? Uma vida vazia se legitima pela narração
de uma vida aventurosa e misteriosa? Assim como um fã se alimenta
das vitórias e conquistas de seus ídolos? Eu nada sou – mas sou
fã de um rock star e assim tenho em quem me espelhar …
Mas
ao termos acesso ao diário de Roquetin temos não apenas a vida do
enigmático crápula Rollebon, mas também a vida sem rumos do
biógrafo, que escreve a própria biografia em fragmentos –
processo que também identificamos em “O Livro do Desassossego”
de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa (1889-1935), com
centenas de trechos desordenados, repetitivos, sobrepostos,
descritivos, que desafiam a leitura – a ponto de deixar o
biografado Rollebon em segundo plano. Ambas, a biografia e a
autobiografia, se entrelaçam e se complementam – uma vida
misteriosa e aventureira junto a uma vida mesquinha, cotidiana,
gratuita.
Roquetin
vive de lembranças e de uma saudade – sua amiga-amante Anny. De
súbito chega em suas mãos uma carta da memorável Anny, e já basta
para fender a vida sem sentido do biógrafo-escritor-de-diário, que
espera, que tem uma espera, a chegada da amiga. Sem cortesias e
formalidades, ela avisa a chegada. Ela se torna um destino – para
quem nada tinha. Uma expectativa surge em seu horizonte – a chegada
de Anny. Antes da chegada de Anny ele é um homem vazio. É como se
Anny fosse um Godot (da peça de Samuel Beckett, 'Esperando
Godot') que se espera, como legitimação do estar-aqui. Roquetin
vive mais alguns dias – esperando Anny. “Quinta-feira –
Escritas quatro páginas. A seguir, um longo momento de bem-estar.
Não refletir sobre o valor da história. Se corre o risco de se
desgostar. Não esquecer que o Sr. de Rollebon representa, neste
momento, a única justificativa de minha existência. / De hoje a
oito dias eu verei Anny.” (“Jeudi – Écrit quatre pages.
Ensuite, un long moment de bonheur. Ne pas trop réfléchir sur la
valeur de l'histoire. On court le risque de s'en dégoúter. Ne pas
oublier que M. de Rollebon représente, à l'heure qu'il est, seule
justification de mon existence. / D'aujourd'hui en huit, je vais voir
Anny.” p. 104)
Sem
rumos, vivendo gratuito, descolado, as coisas perdem a fixidez, se
esvanecem, os valores pessoais e sociais se perdem em relativismos
morais, em perspectivas metafísicas, em alternados pontos de vista,
em que deve o protagonista se apegar?
Bem, hoje, elas, as coisas, não se
ficam mais: parecia que a própria existência delas estava em
questão, que tinham uma grande dificuldade de passarem de um
instante a outro. Eu segurava fortemente nas mãos o livro que eu
lia: mas as sensações as mais violentas estavam entorpecidas. Nada
tinha um ar verdadeiro: eu me sentia rodeado por um cenário de
cartolina que poderia ser bruscamente deslocado. O mundo esperava,
segurando o fôlego, se encolhia – a esperar sua crise, sua Náusea,
como o Sr. Achille noutro dia. (“Eh bien, aujourd'hui, ils ne
fixaient plus rien du tout: il semblait que leur existence même
était mise en question, qu'ils avaient la plus grande peine à
passer d'un instant à l'autre. Je serrai fortement dans mes mains le
volume que je lisais: mais les sensations les plus violentes étaient
émoussées. Rien n'avait l'air vrai; je me sentais entouré d'un
décor de carton qui pouvait être brusquement déplanté. Le monde
attendait, en retenant son souffle, en se faisant petit – il
attendait sa crise, sa Nausée, comme M. Achille l'autre jour.”
p. 112)
Em
sua mesa de restaurante, ou taverna, no seio da vida pacta da
cidadezinha, Roquetin observa os cidadãos, aqueles que são
autoridades, aqueles que andam deslocados, cada um a cumprir certos
papéis sociais, dados pela comunidade, uns se aderem à ordem
instituída, outros desviam dos padrões, que apenas reforçam a
conformidade. Um sujeito solitário numa das mesas atrai sua atenção,
como desviante em relação aos que se ostentam enquanto autoridades,
que mandam na vida e que merecem existir. Mas o que liga o narrador
ao outro sujeito solitário? Somente o fato de ambos não serem
'autoridades'? “Não é a simpatia o que há entre nós: somos
parecidos, eis aí. É sozinho, igual a mim, porém mais afundado na
solidão do que eu. Deve esperar sua Náusea ou qualquer outra coisa
do gênero.” (“Ce n'est pas de la sympathie qu'il y a entre
nous: nous sommes pareils, voilà. Il est seul comme moi, mais plus
enfoncé que moi dans la solitude. Il doit attendre sa Nausée ou
quelque chose de ce genre.” p. 97 )
Do
outro lado, tem-se as autoridades, os especialistas pretendem dar um
sentido para a vida coletiva, que recebem homenagens, pois concedem
diretrizes, com suas vozes ativas, para guiar a 'vida de gado' das
massas populares. O fato de ostentarem um 'sagrada sabedoria', um
saber não acessível aos demais, é o que provoca a 'aura' de seres
especiais, donos da experiência, da qual os demais dependem. “O
doutor tem a experiência. É um profissional da experiência: os
médicos, os padres, os magistrados e os oficiais conhecem o homem
como se eles o tivesse feito.” (“le docteur a de l'expérience.
C'est un professionnel de l'expérience: les médecins, les prêtres,
les magistrats et les officiers connaissent l'homme comme s'ils
l'avaient fait.” p. 100 )
São
eles os profissionais da experiência (“professionnels de
l'expérience”) dizem (proclamam!) “acreditem em mim, eu vos
falo por experiência, tudo o que eu sei, eu tirei da vida”
(“croyez-moi, je vous parle d'expérience, tout ce que je sais,
je le tiens de la vie.” pp. 101-102 ) Os experts, os
eruditos, os líderes que se acham 'dignos de existir', enquanto os
outros, os submissos, a ralé, a plebe, devem obedecer ou serem
excluídos. Mas Roquetin não vê qualquer 'sentido' ou 'dignidade do
existir', pois há uma gratuidade, existe-se e pronto.
Roquetin
vai ao museu, em perambulações, onde pode contemplar as faces e as
poses das autoridades locais, os patriarcas, os líderes, as figuras
da tradição. Ele logo se sente deslocado, sob tais olhares rígidos,
austeros, idealizados. Temos ainda uma perspectiva dos seres
solitários diante dos seres sábios. Assim o mesmo contraponto entre
o sujeito solitário e a figura do médico respeitado, figuras que
são dois lados da mesma moeda. Um não existiria sem o outro – o
desvio precisa do padrão tanto como o conformista precisa do
subversivo – e quem considera especial é por pura arrogância, por
se julgar no 'direito' de existir (de preferência acima dos demais).
Mas acontece que estamos jogados no existir – sem aviso, sem
ensaio. E os arrogantes se enchem de 'direitos de existir', tal qual
fazem as autoridades, mas para o homem deslocado não sentido, muito
menos direito, “Eu não tinha o direito de existir. Apareci por
acaso, existia tal uma pedra, uma planta, um micróbio. Minha vida
crescia com sorte e em todos os sentidos.” (“Je n'avais pas le
droit d'existir. J'étais apparu par hasard, j'existais comme une
pierre, une plante, un microbe. Ma vie poussait au petit bonheur et
dans tous les sens.” p. 122)
Com
a expectativa da chegada de Anny, Roquetin se distrai na escrita da
biografia do Sr. de Rollebon, até ao ponto de desistir da escrita.
Temos apenas o seu diário, prolixo, fragmentado, obsessivo, onde
registra a incapacidade de fazer a biografia de alguém, quem quer
que seja, Segunda-feira – Já não escrevo mais o livro sobre
Rollebon; acabou, não posso mais escrever. O que é que vou fazer de
minha vida? / Então como eu que não tive força para reter meu
próprio passado, posso esperar que salvaria o de outro? (“Lundi
– Je n'écris plus mon livre sur Rollebon; c'est fini, je ne peux
plus l'écrire. Qu'est-ce que je vais faire de ma vie? / Comment
donc, moi qui n'ai pas eu la force de retenir mon propre passé,
puis-je espérer que je sauverai celui d'un autre? pp. 135-136)
pois
O Sr. de Rollebon era meu sócio: ele
precisava de mim para ser e eu precisava dele para não sentir meu
ser. Quanto a mim, eu fornecia a matéria bruta, esta matéria que eu
tinha para revender, com a qual não sabia o que fazer: a existência,
a minha existência. Ele, de sua parte, estava a representar.
Ele ficava diante de mim, e se apoderava de minha vida para me
representar a sua própria. […] Eu não era mais que um meio
de fazê-lo viver, ele era minha razão de viver, ele tinha me
livrado de mim mesmo. O que é que farei agora?(“M. de Rollebon
était mon associé: il avait besoin de moi pour être et j'avais
besoin de lui pour ne pas sentir mon être. Moi, je fournissais la
matière brute, cette matière dont j'avais à revendre, dont je ne
savais que faire: l'existence, mon existence. Lui, sa partie, c'était
de représenter. Il se tenait en face de moi, et s'était
emparé de ma vie pour me représenter la sienne. […] Je
n'étais qu'un moyen de le faire vivre, il était ma raison d'être,
il m'avait délivré de moi. Qu'est-ce que je vais faire à present?”
p. 140)
As
coisas, as imagens, as palavras não têm mais sentido – o existir
é suspenso sobre o vazio, sobre o Nada, sem consistência e mesmo
assim é tudo o que se tem: viver, respirar, sofrer, procriar.
Estar-aí para assumir-se e responsabilizar-se, enquanto ser
consciente de existir. Além da consciência o que há? Que
transcendência nos espera? Alguma Imortalidade ou Transmigração
das almas? “é tanto esforço se imaginar o nada. Agora eu sei: as
coisas são inteiramente o que parecem – e detrás delas … nada
há.” (“tant on a de peine à imaginer le néant. Maintenant,
je savais: les choses sont tout entières ce qu'elles paraissent –
et derrière elles... il n'y a rien.” p. 137)
Sendo
assim o que sobra do passado? Apenas memórias, feitas de imagens e
sombras, e o Nada. Aquele eu de ontem já era, não voltará,
é irrecuperável. Ele/ela somente existe enquanto recordação – é
fluido e inacessível. O eu de outrora pode ser uma ficção –
ou melhor, uma ficcionalização do eu que atuou factualmente –
andou, amou, venceu, perdeu, odiou, esqueceu. (Assim descobriram os
memoralistas Marcel Proust e Pedro Nava que dedicaram suas
maturidades literárias para o resgate do 'tempo perdido' ou da
'geografia sentimental'.)
A
condição de ser coisas entre coisas – e coisa com consciência.
Fenômeno de saber-se no mundo, toda plena, a afastar o Nada. Tudo
que há na consciência a preenche intencionalmente. A consciência
não tem conteúdo, ela é o conteúdo. “A coisa, que
aguardava, estava alerta, ela veio sobre mim, se infiltrou em mim,
estou pleno dela. - Não é nada: a Coisa sou eu. A existência,
liberada, despregada, reflui sobre mim. Eu existo.” (“La
chose, qui attendait, s'est alertée, elle a fondu sur moi, elle se
coule en moi, j'en suis plein. - Ce n'est rien: la Chose, c'est moi.
L'existence, libérée, dégagée, reflue sur moi. J'existe.”
p. 141)
“Mas o pensamento sou eu que o
continuo, que o desenrolo. Existo. Penso que existo.” (“Mais
la pensée, c'est moi qui la continue, qui la déroule. J'existe. Je
pense que j'existe.”e “Meu pensamento sou eu: eis aí porque
eu não posso me deter. Eu existo porque eu penso... e não posso me
impedir de pensar. Mesmo neste momento – é apavorante – se eu
existo é porque tenho horror de existir. Sou eu, sou eu que me tiro
do nada ao qual aspiro: o ódio, o desgosto de existir, são também
maneiras de me fazer existir, de me forçar dentro da existência. Os
pensamentos nascem por detrás de mim como uma vertigem, eu sinto que
nascem atrás de minha cabeça... se eu cedo, eles vem para a frente,
entre os meus olhos – e eu cedo sempre, o pensamento engrossa,
engorda e eis aí, é imenso, que me preenche todo e renova minha
existência.” (“Ma pensée, c'est moi : voilà pourquoi je ne
peux pas m'arrêter. J'existe par ce que je pense... et je ne peux
pas m'empêcher de penser. En ce moment même – c'est affreux –
si j'existe, c'est parce que j'ai horreur d'existir. C'est moi, c'est
moi qui me tire du néant auquel j'aspire: la haine, le dégoût
d'existir, ce sont autant de maniéres de me faire exister, de
m'enforcer dans l'existence. Les pensées naissent par-derrière moi
comme un vertige, je les sens naître derrière ma tête … si je
cède, elles vont venir là devant, entre mes yeux – et je cède
toujours, la pensée grossit, grossit et la voilà, l'immense, qui me
remplit tout entier et renouvelle mon existence.” pp. 142-43)
Nas
sombras de Descartes, eis onde Roquetin perambula, “Eu sou, existo,
eu penso, logo sou; eu sou porque eu penso, porque será que eu
penso? Não quero mais pensar, eu sou porque eu penso que eu não
quero ser, eu penso que eu ...” (“Je suis, j'existe, je pense
donc je suis; je suis parce que je pense, pourquoi est-ce que je
pense? Je ne veux plus penser, je suis parce que je pense que je ne
veux pas être, je pense que je ...” p. 144) e mais: “a
existência prende meus pensamentos por detrás e docemente os
expande por detrás: me agarram por detrás, por detrás me forçam a
pensar, então a ser qualquer coisa, detrás de mim que respira em
ligeiras bolhas de existência, é bolha de bruma de desejo, é
pálido no espelho como um morto, Rollebon é morto, Antoine Roquetin
não está morto, me desfaleço:” (“l'existence prend mes
pensées par-derrière et doucement les épanouit par-derrière: on
me prend par-derrière, on me force par-derrière de penser, donc
d'être quelque chose, derrière moi qui souffle en légères bulles
d'existence, il est bulle de brume de désir, il est pâle dans la
glace comme un mort, Rollebon est mort, Antoine Roquetin n'est pas
mort, m'évanouir : [...]” p. 146)
Dentro
de sua náusea existencial, Roquetin só vê uma luz no fim do túnel:
a chegada de Anny. Ele passa a medir o tempo em base de tal
expectativa. Verei Anny daqui a cinco dias, ou reverei Anny dentro de
quatro dias, assim como uma baliza para seguir vivendo, a evitar o
deslize para a não-existência (considerando que a morte corporal é
o fim de tudo, ao contrário do que esperam os espiritualistas...)
Enquanto isso, ele perambula, frequenta a biblioteca por inércia,
conversa superficialmente com o Autodidata, até chegam a almoçar
juntos, mas ao contrário de construírem uma amizade, acabam por
expor ainda mais suas diferenças e contradições...
Às
vezes, Roquetin passa da amargura ao sarcasmo, diz que se preocupar
com as pessoas seria uma forma de não ficar entediado, não uma
forma de compaixão, ou de aproximação afetiva. “Sou todo
ouvidos: não desejo mais do que me apiedar dos problemas alheios,
eis uma mudança. Não tenho problemas, tenho dinheiro como um homem
de rendas, sem patrão, nem mulheres, nem filhos; eu existo, eis
tudo. E é tão vago, tão metafísico, este tédio, que tenho
vergonha.” (“Je suis tout oreilles: je ne demande qu'à
m'apitoyer sur les ennuis des autres, cela me changera. Je n'ai pas
d'ennuis, j'ai de l'argent comme un rentier, pas de chef, pas de
femmes ni d'enfants; j'existe, c'est tout. Et c'est si vague, si
métaphysique, cet ennui-là, que j'en ai honte.” pp. 150-151)
A
conversa nunca é espontânea, é cheia de intencionalidade, de
má-fé, de jogos de palavras, onde o interesse é fazer o outro se
interessar pelo que nos interessa. Não apenas um interesse
financeiro, ou político, ou sexual, mas um interesse existencial,
estético – fazer o outro se interessar pelo sentido que assumimos
para a nossa existência. Observações singelas podem ter
interpretações maliciosas, frases fora de contexto podem gerar
ambiguidades, afirmações sem precisão podem causar mal-entendidos.
De modo, que um simples diálogo pode se tornar sondagem,
solicitação, interrogatório, confissão, justificação, sempre
com intencionalidade discursiva.
Enquanto
levam uma conversa cheia de lacunas e mal-entendidos, o ex-biógrafo
e o leitor de biblioteca observam os demais comensais, e suas
atitudes e gestos, a espera de suas ambições e temerosos do absurdo
de existir.
“Passeio os olhos pela sala. Eis uma
farsa! Todas essas pessoas se sentam com ar sério; comem. Não, não
comem: repõem forças para realizarem suas incumbências. Cada uma
tem sua pequena obsessão pessoal que lhe impede de se aperceberem
que existem; não há um que não se creia indispensável a alguém
ou a alguma coisa. […] Tenho aparência de nada, mas sei que existo
e que eles existem. E se eu conhecesse a arte de persuadir, iria me
sentar junto ao simpático senhor de cabelos brancos e explicaria a
ele o que é a existência. Morreria de rir, à ideia da cara que ele
faria. O autodidata me olha com surpresa. Gostaria de me conter, mas
não posso: choro de tanto rir.” (“Je parcours la salle des
yeux. C'est une farce! Tous ces gens sont assis avec des airs
sérieux; ils mangent. Non, ils ne mangent pas: ils réparent leurs
forces pour mener à bien la tâche qui leur incombe. Ils ont chacun
leur petit entêtement personnel qui les empèche de s'apercevoir
qu'ils existent; il n'en est pas un qui ne se croie indispensable à
quelqu'un ou à quelque chose. […] Je n'ai l'air de rien, mais je
sais que j'existe et qu'ils existent. Et si je connaissais l'art de
persuader, j'irais m'asseoir auprès du beau monsieur à cheveux
blancs et je lui expliquerais ce que c'est que l'existence. A l'idée
de la tête qu'il ferait, j'éclate de rire. L'Autodidacte me regarde
avec surprise. Je voudrais bien m'arrêter, mais je ne peux pas: je
ris aux larmes.” p. 158)
Não
há razão para existir – primeiro existimos, depois inventamos um
sentido qualquer para nos justificar enquanto existentes. Existimos
para servir ao Deus todo-poderoso? Existimos para servir ao Estado?
Existimos para procriar e constituir famílias? Existimos e é tão
pesado e gratuito que inventamos uma leveza e razão de ser:
existimos para algo fora de nós mesmos. Lá fora está a explicação:
capricho divino ou exigências estatais, amores filiais ou desejos
lascivos. Eis tudo. Mas será que vale a pena existir? Devemos nos
orgulhar? Ou é bem pior não ter nascido? Ficar lá na
não-existência...
Diante
do ceticismo de Roquetin, surgem os argumentos do Autodidata, que é
um humanista, que ainda acredita nos homens, de modo ingênuo, mas
também homoerótico como um sacerdote que seduz pupilos (em cena que
depois será explícita, como veremos...), com argumentos que soam
livrescos, deslocados, idealistas. O autodidata tenta se refugir de
sua solidão num coletivo idealista, numa ideologia. Enquanto isso,
Roquetin sabe muito bem como pensam os humanistas, pois há um modo
de pensar humanista, compartilhado pelo coletivo de humanistas, os
vários tipos de humanista, que varia de acordo com a ideia do que
seria a 'Humanidade'. Os homens são abstrações, são símbolos,
não personalidades de carne e osso. No mais, os idealistas se
detestam, detestam o vizinho ao lado, se irritam com as contradições,
pois amam apenas uma ideia. “O que posso fazer? É culpa minha se
em tudo o que ele diz eu reconheço, de passagem, a referência, a
citação? Se eu vejo reaparecer, enquanto ele fala, todos os
humanistas que conheci? Ai, e tenho conhecido tantos!” (“Que
puis-je faire? Est-ce ma faute si, dans tout ce qu'il me dit, je
reconnais au passage l'emprunt, la citation? Si je vois réapparaître,
pendant qu'il parle, tous les humanistes que j'ai connus? Hélas,
j'en ai tant connu!” p. 165)
O
que poderia ser um diálogo de aproximação torna-se um farejar de
inimigo, um nascer de mútua desconfiança – todo um mal-estar que
nada tem de humanista. Afinal, as distâncias entre as pessoas é bem
maior que as pontes que podem ser lançadas. Os líderes, em vão,
tentam congregar as pessoas em categorias e ideologias, em nome da
Nação, da comunidade, do progresso, mas é perda de tempo: cada um
persegue interesses pessoais e mesquinhos. Adotam rótulos, e querem
rotular os demais: um é comunista, o outro é nazista, um é
misantropo, um outro é judeu, aquele ali é pederasta, aquela ali é
feminista, ou seja, em mil rotulações estereotipadas que acabam por
coisificarem uns aos outros.
O
humanismo pode aceitar tudo: desde que seja humano. Pode o humanista
se aliar a um misantropo? Um socialista pode ser amigo de um
anti-social? Quanto a Roquetin, ele acha difícil tanto amar quanto
odiar os homens. Tudo parece parte de uma farsa, uma comédia. Talvez
por isso seja tudo tão trágico. Uma vida breve numa representação
de papeis sociais – para uma tragicomédia sem ensaios, onde uns
lucram e outros morrem miseráveis.
É
impossível esgotar ('arrêter') o ser humano, é preciso
admirar o Homem, é necessário suportar o sofrimento e a condição
humana – eis algumas ideias e frases feitas do Humanismo, ao qual
Roquetin reconhece como múltiplo e contraditório. Tudo porque as
pessoas não suportam a solidão e inventam ideias gerais, crenças e
ideologias que possam congregar, em igrejas, templos, clubes sociais,
partidos políticos. Tudo isso nada significa para o cético
Roquetin. Todas a situação falsa e inútil só consegue atrair a
náusea, o desconforto existencial de estar-aí sem-sentido,
Com o olhar eu percorro a sala e um
desgosto violento me invade. O que faço aqui? Por que me dispus a
discutir sobre o humanismo? Por que estas pessoas estão aqui? Por
que elas comem? É verdade que elas não sabem que existem. Tenho
vontade de ir embora, de ir a qualquer lugar onde estivesse de
verdade em meu lugar, onde me adequasse … Mas meu lugar não é
lugar algum; sou demais. […] e de súbito aí está: a Náusea. /
Uma bela crise: que me agita de alto a baixo. Há uma hora que a
sentia chegar, só que não queria admitir. […] É então a Náusea:
esta evidência cegante? Como quebrei a cabeça? Sobre o que escrevi!
Agora eu sei: existo – o mundo existe – e eu sei que o mundo
existe. Eis tudo. Mas a mim é igual. É estranho que a tudo a mim
seja assim indiferente: isso me assusta. (“Je parcours la salle
du regard, et un violent dégout m'envahit. Que fais-je ici? Qu'ai-je
été me mêler de discourir sur l'humanisme? Pourquoi ces gens
sont-ils là? Pourquoi mangent-ils? C'est vrai qu'ils ne savant pas,
eux, qu'ils existent. J'ai envie de partir, de m'en aller quelque
part où je serais vraiment à ma place, où je m'embolterais... Mais
ma place n'est nulle part; je suis de trop. […] et tout d'un coup
ça y est: la Nausée. / Une belle crise: ça me secoue du haut en
bas. Il y a une heure que je la voyais venir, seulement, je ne
voulais pas me l'avouer. […] C'est donc ça la Nausée: cette
aveuglante évidence? Me suis-je creusè la tête! En ai-je écrit!
Maintenant je sais: J'existe – le monde existe – et je sais que
le monde existe. C'est tout. Mais ça m'est égal. C'est étrange que
tout me soit aussi égal: ça m'effraie.” pp. 172-73)
Sempre
deslocado, Roquetin deixa o restaurante, sentindo a hostilidade dos
agregados, afinal, ele enganou a todos: não é um ser gregário, é
um nauseado. As palavras não completam o mundo, nem correspondem a
ele – daí a desconfiança que despertam. “As coisas se libertam
de seus nomes. Estão aí, grotescas, teimosas, gigantes e parece
idiota chamá-las de bancos ou de dizer o que sejam elas: estou no
meio das Coisas, as inomináveis. Sozinho, sem palavras, sem defesas,
elas me cercam, debaixo de mim, atrás de mim, acima de mim. Elas
nada exigem, elas não se impõem: elas estão lá.” (“Les
choses se sont délivrées de leurs noms. Elles sont là, grotesques,
têtus, géants et ça paraît imbécile de les appeler des
banquettes ou de dire quoi que ce soit sur elles: je suis au milieu
des Choses, les innommables. Seul, sans mots, sans défenses, elles
m'environnent, sous moi, derrière moi, au-dessus de moi. Elles
n'exigent rien, elles ne s'imposent pas: elles sont lá.” p.
177)
O
que cansa o protagonista-narrador deste diário-romance não é a
existência, mas a consciência da existência, “Gostaria de me
deixar, me esquecer, de dormir. Mas não posso, me sufoco: a
existência me penetra por tudo, pelos olhos, pelo nariz, pela
boca...” (“Je voudrais tant me laisser aller, m'oublier,
dormir. Mais je ne peux pas, je suffoque: l'existence me pénètre de
partout, par les yeux, par les nez, par la bouche...” p. 178)
Ao
constar que a Náusea é inerente à sua condição humana, de
ser consciente da finitude, Roquetin se entrega a infindas digressões
filosóficas cuidadosamente anotadas. Por um lado é confissão, por
outro um excesso. Às vezes, só um leitor de filosofia entenderia. A
preocupação do autor é certamente divulgar suas ideias
existencialistas – adiantando discussões da obra técnica O Ser
e o Nada. A literatura enquanto veículo de comunicação de
ideias filosóficas (e políticas) é evidente nas escritas de
autores como Sartre, André Gide, Albert Camus, Simone de Beauvoir,
André Malraux, Aldous Huxley, George Orwell, dentre outros.
Roquetin
dedica a tarde de quarta-feira, após o almoço desastrado com o
Autodidata, para escrever sobre suas meditações sobre a existência,
a consciência, a condição humana. Temas centrais na filosofia
existencialista de Sartre e camaradas (Camus, Beauvoir, Malraux e
incluindo Dostoiévski, que viveu mais de meio século antes). Em seu
diário, o nauseado disseca sua Náusea, que está nele e é
ele. Vivemos dentro da existência, como um peixe dentro de um
aquário, inconsciente da água que o mantem vivo. De repente, a
existência se faz evidente, é de se perder o fôlego. É a
experiência sensorial-metafísica, de expressão surrealista, que
ele vem desvelar (no sentido de 'tirar o véu' das aparências).
Assim
tudo impregnado de existência, por isso passam despercebidas, assim
como se nota o ar apenas quando esta falta, e se sufoca. É natural
andar por entre as coisas, que tudo parece um imenso cenário. Se
esquece que é uma coisa andando entre coisas, tudo farto de existir.
Como
se livrar da existência? O suicídio, a auto-eliminação, seria
solução? Não, pois se geraria mais existência: uma agonia, uma
morte, um cadáver, uma autópsia, um enterro. É inútil requer
resvalar no Nada. Até a morte faz parte da existência.
“Cogitava vagamente em me suprimir,
para anular ao menos um destas existências supérfluas. Mas minha
morte teria sido demais. Demais. Meu cadáver, meu sangue sobre estes
seixos, entre estas plantas, ao fundo deste jardim sorridente. E a
carne corroída teria sido demais na terra que a tivesse recebido e
meus ossos, enfim, limpos, descascados, purificados e asseados como
os dentes teria sido ainda demais: eu era demais para a eternidade.”
(“Je rêvais vaguement de me supprimer, pour anéantir au moins
une de ces existences superflues. Mais ma mort même eût été de
trop. De trop. Mon cadavre, mon sang sur ces cailloux, entre ces
plantes, au fond de ce jardin souriant. Et la chair rongée eût été
de trop dans la terre qui l'eût reçue et mes os, enfin, nettoyés,
écorcés, propres et nets comme des dents eussent encore été de
trop: j'étais de trop pour l'éternité.” p. 181)
As
digressões do ex-biógrafo continua entre o absurdo e o ilogismo do
existir: jogados no estar-aí gratuitamente, sem explicação. Mas
para expressar o ilógico ele ainda usa palavras, um modo de
linguagem, que carrega um sistema de lógica, com seus casos,
sujeitos, objetos, complementos, conjugações, derivações,
etimologias, etc, que requer atenção de quem pretende atingir
o outro. Uma linguagem ilógica não comunica, não passa de um
delírio.
“Absurdo: ainda uma palavra; eu me
debato contra as palavras; lá eu tocava a coisa. Mas eu gostaria de
fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um gesto, um
acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens não é mais
absurdo do que relativamente: em relação às circunstâncias que o
acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em
relação à situação onde se encontra mas não em relação ao seu
delírio.” (“Absurdité: encore un mot; je me débats contre
des mots; lá-bas, je touchais la chose. Mais je voudrais fixer ici
le caractére absolu de cette absurdité. Un geste, un événement
dans le petit monde coloriré des hommes n'est jamais absurde que
relativement: par rapport aux circonstances qui l'accompagnent. Les
discours d'un fou, par exemple, sont absurdes par rapport à la
situation où il se trouve mais non par rapport à son délire.”
p. 182)
Não
é possível explicar a existência: estamos demasiadamente dentro
dela. O viver excede a toda a nossa compreensão: qualquer explicação
é transitória, ilusória, no máximo serve de consolo, evita o
desespero. “o mundo das explicações e das razões não é aquele
da existência. Um círculo não é absurdo, se explica bem pela
rotação de um segmento de reta em torno de suas extremidades. Mas
também um círculo não existe. Esta raiz, ao contrário, existia
na medida em que eu não a podia explicar. Nodosa, inerte, sem nome,
ela me fascinava, me preenchia os olhos, me conduzia sempre à
própria existência.” (“[...] le monde des explications et
des raisons n'est pas celui de l'existence. Un cercle n'est pas
absurde, il s'explique très bien par la rotation d'un segment de
droite autour d'une de ses extrémités. Mais aussi un cercle
n'existe pas. Cette racine, au contraire, existait dans la mesure oú
je ne pouvais pas l'expliquer. Noueuse, inerte, sans nom, elle me
fascinait, m'emplissait les yeux, me ramenait sans cesse à sa propre
existence.” p. 182)
Em
plena crise existencial, Roquetin procura palavras para expressar as
sensações-contrações de seu ser no mundo, incapaz de entender em
que condição está jogado, sem solução. Mas como descrever a
Náusea? Afinal, é uma sensação, assim como um religioso em
êxtase, um místico em iluminação, não há como comunicar o
vivenciado. É inútil expressar o que é intransmissível –
vive-se, não se pode narrar.
Há
alguma luta pela vida? Algum orgulho de existir? Que voracidade
exibiam as árvores, folhas, raízes nas sombras do jardim público? Eis o
mundo que nos cerca e domina. Somos parte do mundo e conscientes do
mundo, o que nos deixa deslocados.
Como
desistiu de escrever a biografia do ilustre desconhecido Sr. de
Rollebon, o ex-biógrafo agora autor de diários Roquetin decide se
mudar para Paris, onde passará seus dias, com ou sem náusea. Deve
se mudar logo depois de rever a mui aguardada Anny. Ela chega e logo
começam os mal-entendidos, as ausências nos olhares, a solidão a
dois, tudo o que Roquetin já previa, pois sabia. É um imenso
desencontro – ele esperava tanto por ela – com as expectativas
que falham. Ou o que acontece não corresponde ao esperado.
O
que ambos têm em comum? O desejo? O gosto literário? O pensamento
filosófico? Afinal, o que realmente une duas pessoas? O que há em
cada uma capaz de fazer com seja preferida em relação às outras?
Roquetin tem seus interesses, Anny tem outros interesses, assim
precisam lidar com 'denominadores comuns' para conviverem. Quando não
encontram, o que há? Uma separação. Pois para manter um contato é
preciso palavras, fórmulas de tratamento, respeito mútuo. Muito
mais do que ideias. Como manter uma amizade erótica quando se
precisa patrulhar cada fala, da nuance do diálogo. Ou seriam dois
monólogos? Pois é uma coisa teatral, dramática mesmo: como se o
outro precisasse de uma plateia!
Assim
o casal Roquetin e Anny parece interpretar personagens tal qual
aquele jovem casal que Roquetin observou atentamente certa vez num
restaurante, quando almoçava com o Autodidata. Enquanto Roquetin
pouco compreende, Anny se esforça por se explicar – o que são os
'momentos perfeitos', aquelas expectativas as quais é preciso
satisfazer. Momentos que deveriam ser perfeitos para serem
relembrados, perfeitos para justificarem os tantos momentos
imperfeitos. Mas,
em vão, não há nada de perfeição no mundo subjetivo. Sempre algo
ou alguém quebras as expectativas, pois
não existem momentos perfeitos, como a própria Anny percebera.
A
solidão a dois acaba por novamente separar o casal. Roquetin esperou
tanto pelo reencontro, e nada havia a comunicar do que as desilusões
de ambos. Então não houve encontro – apenas se viram um diante do
outro. Sem comunicação. Se ela vive uma vida, em outros lugar, ou
outro tempo, ele vive uma não vida, deslocado de lugar e de tempo. É
inútil um diálogo – nem contato corporal seria possível.
Roquetin não reencontrou Anny e muito menos a si mesmo.
Assim
só resta ir embora, deixar a cidade de Bouville, lugar tedioso. Sua
missão auto-imposta – a escrita da biografia – não foi
cumprida, seu sentido para viver se perdeu, ele deixou que Anny se
fosse. O que norteia a existência do nauseado Roquetin? Ele se deixa
levar em visões sucessivas, em crises de estar-no-mundo, em êxtases
niilistas de colorações surrealistas. Basta conferir as páginas
finais. Nada o prende ao mundo ao redor – com ele se sente em
semelhante liberdade? Afinal, não estará 'condenado à liberdade'?
“Sou livre: não me resta mais razão
para viver, todas aquelas que eu experimentei se perderam e não
posso mais imaginar outras. Sou ainda bem jovem, ainda tenho força
para recomeçar. Mas que é preciso recomeçar? O quanto, no ápice
dos meus terrores, de minhas náuseas, eu tinha contado com Anny para
me salvar, eu o compreendo somente agora. Meu passado está morto, o
Sr. de Rollebon está morto, Anny não voltou senão para tirar toda
a esperança. Estou só nesta rua branca que limita os jardins.
Sozinho e livre. Mas esta liberta se assemelha um pouco à morte.”
(“Je suis libre: il ne me reste plus aucune raison de vivre,
toutes celles que j'ai essayées ont lâché et je ne peux plus en
imaginer d'autres. Je suis encore assez jeune, j'ai encore assez de
forces pour recommencer. Mais que faut-il recommencer? Combien, au
plus fort de mes terreurs, de mes nausées, j'avais compté sur Anny
pour me sauver, je le comprends seulement maintenant. Mon passé est
mort, M. de Rollebon est mort, Anny n'est revenue que pour m'ôter
tout espoir. Je suis seul dans cette rue blanche que bordent les
jardins. Seul et libre. Mais cette liberté ressemble un peu à la
mort.” p. 219)
O
fato de se definir pelos negativos – o que não é, o que não tem
– o protagonista Roquetin se encontra num vazio, cheio de
pensamentos niilistas, logo derrotistas. Uma falta de vigor, de
vontade de agir, de desistir de interferir, fazer diferença É
entregar os pontos, literalmente. “Perdi o jogo. De súbito,
percebo que se perde sempre. Ninguém além dos canalhas acreditam
que ganham.” (“j'ai perdu la partie. Du même coup, j'ai
appris qu'on perd toujours. Il n'y a que les salauds qui croient
gagner.” p. 219) Assim toda uma atmosfera mental que notamos
nos intelectuais da época (e que muito favoreceu aos avanços
alemães-nazistas durante a próxima guerra, de 1939-1945, com o
antisemitismo francês pós-caso Dreyfus), sejam de esquerda
ou de direita, tais como Sartre, Camus, Céline, Gide, dentre outros.
Perdido
num labirinto niilista, Roquetin passa seus últimos momentos na
cidadezinha de Bouville, já pensando no futuro, quando se lembrará
do tempo perdido ali, numa biografia incompleta, num esforço em vão.
Não entende porque afinal está ali, sendo aquele ser feito de
ideias e hábitos, de renúncias e perdas, de deslocamento e ironia.
Ele olha com desprezo para os habitantes da pacata Bouville, que
seguem em suas vidas pactas, ordinárias, sem medo, pois 'sentem-se
em casa', e que nada questionam, vivem apenas. “Eles são pacatos,
um pouco morosos, eles pensam no amanhã, isto é, simplesmente um
novo hoje; as cidades possuem apenas um dia retorna igual a cada
manhã. Com esforço só se enfeita um pouco, aos domingos.” (“Ils
sont paisibles, un peu moroses, ils pensent à Demain, c'est-à-dire,
simplement, à un nouvel aujoud'hui; les villes ne disposent que
d'une seule journée qui revient toute pareille à chaque matin. A
peine la pomponne-t-on un peu, les dimanches.” p. 221)
E,
se subitamente, algo inesperado ocorresse? E se uma catástrofe se
abatesse sobre a cidadezinha? E se um conflito abalasse a vida
ordinária? E se um bombardeio aéreo devastasse aquela existência
cotidiana? E se as leis da física fossem abolidas? E se entidades
surreais invadissem aquele mundo pacato? E se as coisas saíssem dos
eixos? Roquetin gostaria muito de saber como se comportariam. “Ou
nada disso acontecerá, não se produzirá qualquer mudança
apreciável, mas as pessoas, numa manhã, ao abrirem as janelas,
serão surpreendidos por uma espécie de sentido horrendo,
pesadamente pousado sobre as coisas e que terá um ar de espera. Nada
mais que isso: mas por pouco tempo que isso dure, haverá centenas de
suicidas.” (“ou alors rien de tout cela n'arrivera, il ne se
produira aucun changement appréciable, mais les gens, un matin, en
ouvrant leurs persiennes, seront surpris par une espèce de sens
affreux, loudement posé sur les choses et qui aura l'air d'attendre.
Rien que cela: mais pour peu que cela dure quelque temps, il y aura
des suicides par centaines.” pp. 222-23
Numa
vida modesta e ordinária, qualquer diferença, qualquer inesperado
pode produzir tragédias – pois o incomum, o não familiar, o
unheimlich pode irromper e desfazer a aparente 'normalidade'.
Por exemplo, um escândalo. Vejamos o pacato Autodidata. Aquele
humanista que se instrui na biblioteca seguindo um método
alfabético, autores de A a Z. Ele não inspira suspeitas, mas
percebe-se que seu humanismo não é apenas um 'amor ao homem'
no sentido simbólico, mas também físico, pois Roquetin presencia
um ato obsceno, um impulso homoerótico não refreado, quando o
Autodidata encontra os jovens estudantes na sala de leitura. O ato
desviante quebra a calma cuidadosamente encenada.
Roquetin
tenta ajudar o 'humanista', mas em vão. Com seu gesto impensado, o
Autodidata jogou fora sua reputação e adentrou a margem da
sociedade, que não permite desvios. Ele agora deixará a 'cultura' e
viverá sua solidão, longe dos homens (em ambos os sentidos). Não
terá mais legitimidade para andar por entre os concidadãos, seres
do comum e do ordinário. O ser desviante – tal como o nauseado
Roquetin – é sempre afastado do grupo (até formar seu próprio
grupo desviante, a excluir outros desviantes do desvio...)
Pronto
para partir, e ainda na cidade que deixara, o escritor de diário não
sabe o que fazer com esta perda de laços de pertença. Não é da
cidade que abandona, não é da cidade para a qual se mudará. Ele
sofre não com a existência, mas com a Consciência de existir,
ser-aí, o Dasein (da filosofia de Heidegger), “e há a
consciência de tudo e a consciência, ai de mim!, da consciência.”
(“et il y a conscience de tout ça et conscience, hélas! de la
consciência.” p. 238) e para se despedir da pequena cidade,
Roquetin se refugia na taverna para ouvir, mais uma vez!, a melodia
de jazz que faz afastar a náusea, a melodia que traz emoção à sua
percepção niilista. A melodia soa, se expande, a voz canta, a
cantora talvez nem mais viva, os sons se sucedem, se desgastam, tudo
tão frágil, tudo pronto para acabar, no entanto, o que pode fazer!
Pode suspender o tempo, pode dar uma amostra da dádiva da Arte –
pelo menos algo que o ser humano criou que o faz transcender, se
superar – algo que não existe fisicamente, mas vivendo-morrendo a
cada acorde, a cada nota.
Some
of these days (1911; 1927)
É
assim que Roquetin se despede, talvez para seguir em novas viagens,
em busca de aventuras para embotar o tédio, para escrever um diário
ou uma biografia ou um romance, para que digam que ele foi alguém –
o autor de uma obra. Alguém que deixou um rastro, que provou que
existiu, não apenas como uma coisa consciente, mas um criador, a
superar o tempo, tal qual esta melodia jazzística que
existe-não-existindo, obra de um compositor e de uma cantora,
interpretada por uma série de músicos, que se superaram e legaram
algo que se superou, uma sucessão de sons capaz de ser em si mesmo
uma expressão humana e além-do-humano. É a única salvação para
quem vive a náusea do existir humano, 'demasiadamente humano' - como
vem nos lembrar Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre, em suas
obras.
fonte:
SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris, Gallimard, 1938.
jun/13
Leonardo
de Magalhaens
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