Sobre
“A Náusea” (La Nausée, 1938)
do
escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Quando
a Literatura explicita uma existência nauseante
parte 1
Aqui
continuamos nossa saga através das obras que apresentam o indivíduo,
a voz subjetiva, diante de uma sociedade, um mundo, em sua
coletividade e objetividade. São vozes demasiadamente pessoais que
atuam deslocadas num contexto de época ou classe, e que denunciam a
coisificação do ser humano e das relações sociais. Ao destoarem
das vozes circundantes, os deslocados, ou flutuantes, ou outsiders,
conseguem explicitar o que não se desvela a quem segue a 'ordem
unida' da conformidade.
Mas
como já vimos em “Demian” - quando abordamos “O Lobo
da Estepe”, de H. Hesse - e veremos em “O Estrangeiro / O
Estranho”, de A. Camus, há algo mais que a narrativa, há um
desejo de discutir questões filosóficas que incomodam tanto os
autores quanto os leitores. A identidade, a consciência, a razão
para viver, a expressão de sentimentos pessoais, a confissão de
culpas (reais ou imaginárias), eis alguns eixos temáticos que
impulsionam os textos, sempre a buscarem alguma cumplicidade com quem
se anima a ler.
Aqui
em A Náusea, publicado em 1938, adentraremos o universo da
Filosofia existencialista do francês Jean-Paul Sartre, pensador e
ativista, autor também de O Ser e o Nada (L'être
et le Néant, 1943), obra filosófica, pensada durante a
Segunda Guerra Mundial, quando o filósofo foi prisioneiro dos
alemães nazistas, e escreveu mais romances existencialistas (a
trilogia “Os Caminhos da Liberdade”: A Idade da Razão,
Sursis, e Com a Morte
na Alma) que ajudaram a divulgar que “o existencialismo
é um humanismo”, em diálogo com os marxistas e os humanistas
(católicos ou ateus).
Mais
sobre o existencialismo sartreano
Mas
falemos de literatura. Antoine Roquetin, o narrador-protagonista de A
Náusea, lembra muito o tipo psicológico do
narrador-protagonista Paul Hilbert do conto “Erostrato” de
Sartre (publicado no volume intitulado “O Muro”, Le Mur,
1939), cujo enredo é basicamente tecido em torno de um cidadão
amargurado e misantropo, que marca sua passagem pelo mundo pelo
niilismo e autodestruição, tal qual o incendiário grego famoso por
ter destruído o templo de uma deusa.
Tanto
em Erostrato quanto em A Náusea, é tematizado o “se
deus não existe, tudo é permitido” (em “Os irmãos
Karamázov”, de Dostoiévski), onde o ser humano está só, no
sentido de que tudo é recriado e justificado pela ação humana,
pois não há 'lei divina', então os humanos precisam criar as leis,
daí a angústia da responsabilidade, ao não esperar mais a
'intervenção divina'.
Pois
a vida não tem sentido, é uma gratuidade. É preciso inventar um
sentido para se viver. “Dar sentido à própria vida”,
segundo o filósofo iconoclasta Friedrich Nietzsche (1844-1900), é
quando, ao percebermos que não há um Sentido dado por uma
Transcendência, ou Divindade, passamos a inventar um sentido para
nossas existências – criar novas leis – e evitar a queda
no misticismo ou seguir um 'sentido' dado pelos líderes, sejam os
espirituais ou os temporais, sejam as autoridades, os especialistas,
os ditadores, os padres, os reverendos, os escritores de auto-ajuda,
os pensadores, os santos.
Relendo
La Nausée agora no original, os aspectos estilísticos se
destacam mais, a simplicidade dos diálogos, as frases feitas, em
relação às meditações filosóficas-metafísicas sobre a
consciência. Ousei fazer a tradução das citações para melhor 'me
apropriar' do texto, conseguir me orientar nessa tessitura de
digressões de um protagonista errante que vive a escrever em seu
diário as suas impressões. “O melhor seria escrever os
acontecimentos dia a dia” (“Le mieux serait d'écrire les
événements au jour le jour.” p. 11) Mas por que escrever? Ele
precisa, pois quer relatar, colocar ordem no que vive, num tédio que
progressivamente o domina. É o que denomina 'a náusea'. O que será?
A náusea advém se perceber-se mais uma 'coisa' entre coisas, um
corpo a perambular por aí (a carregar uma alma consciente?), pois é
comum coisificar-se os outros, seus corpos e suas palavras, mas
assumir-se enquanto coisa é difícil.
“Acho que é perigo se ter um
diário: se exagera tudo, fica à espreita, se força continuamente a
verdade” (“Je pense que c'est le danger si l'on tient un
journal: on s'exagere tout, on est aux aguets, on force
continuellement la vérité.” p. 11)
“Acho que sou eu mesmo quem tem
mudado: é a solução mais simples. Também a mais desagradável.
Mas enfim eu devo reconhecer que estou sujeito à estas
transformações súbitas.” (“Je crois que c'est moi qui ai
changé: c'est la solution la plus simple. La plus désagréable
aussi. Mais enfin je dois reconnaître que je suis sujet à ces
transformations soudaines.” p. 16)
“Terça-feira, 30 de janeiro. Eu
vivo sozinho, inteiramente só. Não converso com quem quer seja,
nunca; eu nada recebo, e nada entrego.” (“mardi 30 janvier:
Moi je vis seul, entièrement seul. Je ne parle à personne, jamais;
je ne reçois rien, je ne donne rien.” p. 19)
“Na maioria das vezes, por falta de
se ligar às palavras, meus pensamentos ficam nevoentos. Eles esboçam
formas vagas e agradáveis, se engolfam : assim logo esqueço todos.”
(“La plupart du temps, faute de s'attacher à des mots, mes
pensées restent des brouillards. Elles dessinent des formes vagues
et plaisants, s'engloutissent: aussitôt, je les oublie.” p.
19)
Não
apenas de Roquetin a obra vem tratar em suas 200 páginas. Outros
figurantes aparecem, com destaque para dois, o cidadão que lê na
biblioteca pública, como forma de auto-instrução, que recebe aqui
a alcunha de 'Autodidata'; e uma esperada mulher com a qual o
protagonista teve um relacionamento frustrado, a enigmática Anny.
Esta mulher só reaparecerá no final da obra – ou diário, ao qual
temos acesso (Mas como conseguimos este diário? Será que Roquetin o
publicou?!) - enquanto o estudioso é um contraponto constante, como
paródia e como figura de desprezo.
O
Autodidata (Ogier P.) espera a autoridade externa, “Mas eu
desconfio tanto de mim mesmo; seria preciso ter lido tudo.” (“Mais
je me défie tant de moi-même; il faudait avoir tout lu.” p.
56) Aliás, o Sr. Ogier é aquele que se 'educa' por ordem
alfabética, com autores de A a Z, de um autor a outro autor,
passando por assuntos os mais diversos, tudo ao almejar um
'conhecimento universal' (como se fosse possível ler a Enciclopedia
Brittannica de A a Z.)
O
estudioso é um humanista, daí ressurgir aqui a questão do
Humanismo, se é possível amar o Ser Humano enquanto entidade
abstrata, e não reconhecê-lo no próximo – amar a Humanidade,
mas desprezar o vizinho, o operário na rua, odiar o patrão no
serviço, etc. Afinal, o humanista ama o Homem idealizado, que ele
deseja de certo modo – caso contrário, vem o desprezo, o “inferno
são os outros” (frase do próprio filósofo-escritor em sua
peça “Entre quatro paredes”, Huis Clos , de 1944).
Enquanto
não observa a cidade de Bouville e seus pacatos habitantes, Roquetin
lê e escreve na Biblioteca pública, concentrado em concluir a
biografia de um certo excêntrico Sr. de Rollebon, dado às intrigas
políticas e palacianas. Entre leituras, narrativas, dados
biográficos, para ele não é estranho que a própria vida veja
vista enquanto uma narrativa. Mesmo de uma vida comum. “Quando se
vive, nada acontece. As cenas mudam, as pessoas entraram e saem, eis
tudo.” (“Quand on vit, il n'arrive rien. Les décors changent,
les gens entrent et sortent, voilà tout.” p. 62) Contudo a
narrativa pode criar o extraordinário.
“Aqui eis o que pensei: para que um
acontecimento mais banal se torne uma aventura, é preciso e é
suficiente que se comece a narrá-lo. É o que ilude as pessoas: um
homem é sempre um narrador de estórias, vivem em torno de suas
estórias e pelas estórias dos outros, vê tudo o que ocorre através
delas; e procura viver sua vida como se a recontasse [narrasse].
(“Voici ce que j'ai pensé: pour que l'événement le plus banal
devienne une aventure, il faut et il suffit qu'on se mette à le
raconter. C'est ce qui dupe les gens: un homme, c'est toujours un
conteur d'histoires, il vit entouré de ses histoires et les
histoires d'autrui, il voit tout ce qui lui arrive à travers elles;
et il cherche à vivre sa vie comme s'il la racontait.” pp.
61-62)
Lembramos
que é possível uma distinção entre 'História' (History)
com H maiúsculo, no sentido de factual, documental, e 'estória'
(story) no sentido de ficcional, imaginário. “Eis o que é
o viver. Mas quando se narra a vida, tudo muda; apenas uma mudança
na qual ninguém repara: a prova é que se fala de estórias reais.
Como se pudesse haver estórias reais; os acontecimentos acontecem de
um jeito e são narrados de modo inverso.” (“Ça, c'est
vivre. Mais quand on raconte la vie, tout change; seulement c'est un
changement que personne ne remarque: la preuve c'est qu'on parle
d'histoires vraies. Comme s'il pouvait y avoir des histoires vraies;
les événements se produisent dans un sens et nous les racontons en
sens inverse.” p. 63)
“Mas
é preciso escolher: viver ou narrar.” (“Mais il faut choisir:
vivre ou raconter.”) ou seja, enquanto se vive, não se narra;
apenas pode-se narrar depois de vivenciado, daí termos os
memoralistas. Mas Roquetin quer registrar o momento, o vivido,
exatamente no mesmo instante – ele ouve uma música e passa a
descrevê-la, e suas reações emocionais. Mas enquanto ele narra,
sabe que tudo se modifica (“Ça, c'est vivre. Mais quand on
raconte la vie, tout change.”), o que se vivenciou, já passou,
é lembrança.
Mas
Roquetin desconfia das narrativas, e da Literatura, a tessitura de
factual e ficcional, tal como o eu lírico de Carlos Drummond de
Andrade em “Elegia 1938”, “A literatura estragou tuas
melhores horas de amor”, que deixa de aproveitar o momento ao
observar-se para narrar. Além do mais, para quem o protagonista
escreve? Para si mesmo, pois seu diário é uma válvula de escape,
uma forma de manter a sanidade. Daí a necessidade de ser espontâneo,
não um literato exibicionista. (Vejamos o 'contrato ficcional' aqui:
o Leitor tem acesso a um diário, não a um romance...)
Não preciso fazer frases. Escrevo
para deixar claro certas circunstâncias. Desconfiar da literatura. É
preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras. (“Je
n'ai pas besoin de faire des phrases. J'écris pour tirer au clair
certaines circonstances. Se méfier de la littératture. Il faut
écrire au courant de la plume; sans chercher les mots.” p. 85)
É
preciso viver, experimentar, e não narrar. O conhecimento se
apreende pelo vivenciado, não pelo absorvido dos livros. Ainda que
tenha-se um delay (um atraso) entre o experimentado e o
percebido – quando só se tem as lembranças, meras sombras das
emoções – a ponto de se pensar que o vivido foi lido, “Tudo o
que sei da minha vida, parece-me que tenho aprendido nos livros.”
(“Tout ce que je sais de ma vie, il me semble que je l'ai appris
dans des livres.” ) Roquetin é um homem sem aventuras, e ele o
sabe, “Não tive aventuras” (“Je n'ai pas eu
d'aventures.”), pois em sua vida nada há de extraordinário,
afinal,
“Enfim, eu tinha imaginado que em
certos momentos minha vida podia adquirir uma qualidade rara e
preciosa. Sem necessidade de circunstâncias extraordinárias: exigia
apenas um pouco de rigor. Minha vida presente nada tinha de
brilhante: mas de tempo em tempo, por exemplo quando se tocava música
nos cafés, eu me recordava e me dizia: outrora, em Londres, em
Meknes, em Tóquio, conheci momentos admiráveis, eu tive aventuras.
Eis o que me é tirado. Percebo, bruscamente, sem razão aparente,
que tenho mentido a mim mesmo por dez anos. As aventuras estão nos
livros.” (“Enfin je m'étais imaginé qu'à de certains
moments ma vie pouvait prendre une qualité rare et précieuse. Il
n'était pas besoin de circonstances extraordinaires: je demandais
tout juste un peu de rigueur. Ma vie présente n'a rien de très
brillant: mais de temps en temps, par exemple quand on jouait de la
musique dans les cafés, je revenais en arrière et je me disais:
autrefois, à Londres, à Meknès, à Tokio j'ai connu des moments
admirables, j'ai eu des aventures. C'est ça qu'on m'enlève, à
présent. Je viens d'apprendre, brusquement, sans raison apparente,
que je me suis menti pendant dix ans. Les aventures sont dans les
livres.” p. 59)
Enquanto
se narra, se re-elabora o vivenciado, o tempo escorre, se esvai, o
“famoso escorrer do tempo” (“ce fameux écoulement du
temps”) que corrói a vida, que nos afasta de nós mesmos –
um eu-de-hoje em relação a um eu-de-ontem e um eu-de-amanhã –
pois “cada instante se aniquila, que não vale a pena tentar
retê-lo, etc” (“chaque instant s'anéantit, que ce n'est pas
la peine d'essayer de le retenir, etc”), contudo o que faz
Roquetin? Ele não retem o instante, mas o conserva enquanto
narrativa – ele registra o momento e o que sentiu, e eis o relato
que temos (e do qual ele desconfia!) Pois inevitavelmente o tempo
passa, e a consciência bem o sabe! “Alguma coisa começa por
findar: a aventura não se deixa alongar; ela não tem sentido senão
por sua morte.” (“Quelque chose comence pour finir: l'aventure
ne se laisse pas mettre de rallonger; elle n'a de sens que par sa
mort.” p. 60)
No
mais, a vida não está nos livros! Tudo o que está descrito, já
está anestesiado, congelado. Quando se tem a emoção não se narra
– daí a inutilidade da psicologia na escrita, mera simulação.
“Não passava de psicologia. Igual a que se faz nos romances.”
(“C'était tout juste de la psychologie, comme on em fait dans
les romans.” ) Se a vida é vazia e sem sentido, pelo menos
poderíamos valorizá-la com 'momentos perfeitos', a obsessão de
Anny, sabendo que o tempo passa, foge, tempus fugit, e é um
desejo febril o de congelá-lo em retratos, em fotografias
emocionais, em momentos únicos, excepcionais, daí rememoráveis. Um
amor avassalador, uma paisagem, uma sinfonia ouvida ao crepúsculo,
tudo se constitui em singularidades meio às banalidades.
“Eu me inclino sobre cada segundo,
tento desgastar todos; nada passa que eu não perceba, que eu não
fixe para sempre em mim, nada, nem a ternura fugaz desses belos
olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade indecisa do aurora: e
no entanto o minuto se escorre e eu não o retenho, gosto que passe
assim.” (“Je me penche sur chaque seconde, j'essaie de
l'épuiser; rien ne passe que je ne saisisse, que je ne fixe pour
jamais en moi, rien, ni la tendresse fugitive de ces beaux yeux, ni
les bruits de la rue, ni la clarté fausse du petit jour: et
cependant la minute s'écoule et je ne la retiens pas, j'aime qu'elle
passe.” p. 60)
Roquetin
com medo da loucura, além da solidão , do viver sem amigos, “Quando
se vive só, nem se sabe mais o que é isso de narrar: a
verossimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos.” (“Quand
on vit seul, on ne sait même plus ce que c'est que raconter: le
vraisemblable disparaît en même temps que les amis.” p. 20)
que pode culminar na perda da identidade, “Então é isso que me
espera? Pela primeira vez me entedia estar só. Desejaria falar com
alguém sobre isso que me afeta antes que seja tarde demais, antes
que eu aterrorize os meninos. Gostaria que Anny estivesse aqui.”
(“Est-ce donc ça qui m'attend? Pour la première fois cela
m'ennuie d'être seul. Je voudrais parler à quelqu'un de ce qui
m'arrive avant qu'il ne soit trop tarde, avant que je ne fasse peur
aux petits garçons. Je voudrais qu'Anny soit là.” p. 22)
O
narrador do diário mostra o quanto está entediado com o seu
biografado (M de Rollebon), sendo que a escrita da biografia é o que
dá sentido a vida do deslocado narrador, “Mas, agora, o homem... o
homem começa a me entediar. É ao livro que eu me atenho, sinto uma
necessidade cada vez mais forte de escrever – à medida em que
envelheço, diria.” (“Mais, maintenant, l'homme... l'homme
commence à m'ennuyer. C'est au livre que je m'attache, je sens un
besoin de plus en plus fort de l'écrire – à mesure que je
vieillis, dirait-on.” p. 27) Ele questiona a biografia versus
o romance, a ficcionalização – o quanto a vida é espontânea? O
quanto M. Rollebon é real? O quanto é verossímil? “Tenho a
impressão de fazer um trabalho de pura imaginação. Ainda estou bem
certo que as personagens de romance teriam um ar mais real, seriam,
em todo caso, mais agradáveis.” (“J'ai l'impression de faire
un travail de pure imagination. Encore suis-je bien sûr que des
personnages de roman auraient l'air plus vrais, seraient, en tout
cas, plus plaisants.” p. 28)
Destaca-se
aqui o contemplar-se: é possível o Eu definir-se? Como se detém
diante da própria face? “Eu nada entendo desta face. Aquelas dos
outros têm um sentido. Não a minha. Eu não posso mesmo decidir se
é bela ou feia.” (“Je n'y comprends rien, à ce visage. Ceux
des autres ont un sens. Pas le mien. Je ne peux même pas decider
s'il est beau ou laid.” p. 32) mas está presente o perigo da
introspecção, o mergulho em si-mesmo que pode levar ao desgosto, a
náusea, “um quarto de hora bastaria, estou certo, para que tivesse
o supremo desgosto comigo mesmo.” (“un quart d'heure
suffirait, j'en suis sûr, pour que je parvienne au supreme degôut
de moi.” p. 29)
Pois
o ser humano vivem sociedade, no convívio com o outro, ponto de
apoio e motivo de desgosto. É através do outro que o eu toma
consciência de si mesmo, percebe-se numa relação de alteridade.
Sem o outro o eu não pode nem qualificar a própria aparência –
acostuma a ser considerado belo ou feio de acordo com as apreciações
externas. Sozinho, como ele se julga? Será belo ou feio? Que padrões
terá além daqueles dados socialmente? Veja-se os critérios da
moda, sempre fugaz. Pois bem, ele não sabeo que dizer da própria
face! E se indaga se “As outras pessoas têm tanta dificuldade de
julgar a própria face?” (“Est-ce que les autres hommes ont
autant de peine à juger de leur visage?” p. 33
“Talvez seja impossível entender a
própria face. Ou talvez seja por que sou um homem solitário? As
pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver, nos espelhos, tal
como elas aparecem aos amigos. Eu não tenho amigos: será por isso
que minha carne é tão desnuda? É de se dizer – sim, diria a
natureza sem os seres humanos.” (“Peut-être est-il impossible
de comprendre son propre visage. Ou peut-être est-ce parce que je
suis un homme seul? Les gens qui vivent en société ont appris à se
voir, dans les glaces, tels qu'ils apparaissents à leurs amis. Je
n'ai pas d'amis: est-ce pour cela que ma chair est si nue? On dirait
– oui, en dirait la nature sans les hommes.” p. 34)
Neste
quadro de solidão, de introspecção, não é de se espantar se ela
surge, a crise existencial, denominada a Náusea, que está
nele e em tudo, “Assim a Náusea me dominou. Deixei-me cair no
banco, nem sabia mais onde eu estava; eu via girar lentamente as
cores ao meu redor, tinha vontade de vomitar. Pois é: depois a
Náusea não me abandonou, ela me sujeitou.” (“Alors la Nausée
m'a saisi. Je me suis laissé tomber sur la banquette, je ne savais
même plus où j'étais; je voyais tourner lentement les couleurs
autour de moi, j'avais envie de vomir. Et voilà: depuis, la Nausée
ne m'a pas quitté, elle me tient.” p. 35) e também: “A
Náusea não está em mim: eu a percebo lá na parede, nos
suspensórios, em tudo ao meu redor. Ela não faz mais que um todo
com o café, sou eu quem está nela.” (“La Nausée n'est pas
em moi: je la ressens là-bas sur le mur, sur les bretelles, partout
autour de moi. Elle ne fait qu'un avec le café, c'est moi qui suis
em elle.” p. 36)
A
arte, a música, a simples canção de jazz consegue dissolver
a crise existencial, a Náusea, “A Náusea se desvaneceu. De
súbito: […] ao mesmo tempo a duração da música se dilatava, se
inflava como uma tromba. Ela preenchia a sala com sua transparência
metálica, a esmagar contra as paredes nosso tempo miserável. Estou
na música.” (“La Nausée s'est évanouie. D'un coup: […] En
même temps la durée de la musique se dilatait, s'enflait comme une
trombe. Elle emplissait la salle de sa transparence métallique, em
écrasant contre les murs notre temps misérable. Je suis dans la
musique.” p. 40)
Consciente,
Roquetin quer escrever espontâneo, sem literatura. Mas exibe trechos
líricos, com matiz literária “A Náusea ficou lá, na luz
amarela. Estou contente: esse frio é tão puro, tão pura esta
noite; não sou eu mesmo uma onda de ar gélido? Não ter sangue, nem
linfa, nem carne. Escorrer por esse longo canal em direção àquela
palidez lá. Não ser exceto frio.” (“La Nausée est restée
là-bas, dans la lumière jaune. Je susis heureux: ce froid est si
pur, si pure cette nuit; ne suis-je pas moi-même une vague d'air
glacé? N'avoir ni sang, ni lymphe, ni chair. Couler dans ce long
canal vers cette pâleur là-bas. N'être que du froid.” p. 45)
Ou
quando fala do tempo, “Eu nem distinguo mais o presente do futuro e
no entanto tem duração, ao se realizar pouco a pouco; a velha
avança na rua deserta; ela desloca suas grossas sandálias
masculinas. É este o tempo todo nu, que vem lentamente à
existência, que se faz esperar e quando vem, é de se estar
entediado pois se percebe que já estava ali há muito tempo.“(“Je
ne distingue plus le présent du futur et pourtant ça dure, ça se
réalise peu à peu; la vieille avance dans la rue déserte; elle
déplace ses gros souliers d'homme. C'est ça le temps tout nu, ça
vient lentement à l'existence, ça se fait attendre et quand ça
vient, on est écoeuré parce qu'on s'aperçoit que c'était déjà
là depuis longtemps.” p. 51)
O
escritor do diário passa seus momentos em perambulações ou
acomodado entre os volumes da biblioteca, está entre imagens e
textos, aprisionado por obsessões que desabrocham a qualquer
momento, brotando da inconsciência. Tudo latente, a aflorar
subitamente bastando um estímulo visual ou olfativo. Ele é cativo
de suas próprias impressões – ser entre seres, coisa entre
coisas. Suas leituras são apenas distrações, ele não leva à
sério. Ele se diverte e julga os autores, tece considerações
irônicas – enfim, desconfia do que lê, despreza os literatos.
Despreza o humanista incauto ironicamente denominado Autodidata, que
ainda acredita que a cultura melhora o homem.
A
distinção eu-de-hoje com o eu-de-ontem, a lacuna temporal que
separa ser que viveu e o ser que narra, “Mas eu não vejo mais:
tenho vasculhado o passado e nada retiro mais que os destroços de
imagens e eu não sei mais o que representam, nem se são recordações
ou ficções.” (“Mais je ne vois plus rien: j'ai beau fouiller
le passé je n'en retire plus que des bribes d'images et je ne sais
pas très bien ce qu'elles représentent, ni si ce sont des souvenirs
ou des fictions.” p. 53.)
“Em muitos casos os próprios
destroços desapareceram: apenas restam as palavras: ainda poderia
narras as estórias, narrar todas muito bem (em anedota eu não temo
ninguém, salvo os oficiais da marinha e os profissionais), mas não
passam de carcaças. Tratam de um sujeito que fez isso ou aquilo, mas
não sou eu, nada tenho em comum com ele.” (“Il y a beaucoup
de cas d'ailleurs où ces bribes elles-mêmes ont disparu: il ne
reste plus que des mots: je pourrais encore raconter les histoires,
les raconter trop bien (pour l'anecdote je ne crains personne, sauf
les officiers de mer et les professionnels), mais ce ne sont plus que
des carcasses. Il y est question d'un type qui fait ceci ou cela,
mais ça n'est pas moi, je n'ai rien de commun avec lui.” p.
53)
Sem
ter uma produtiva e satisfatória vida própria, Roquetin perambula a
observar as vidas dos outro, os jogadores no bar, os casais nos
modestos boulevards, os pequenos dramas, as autoridades nos
passeios dominicais, os frequentadores de museus, os que vivem
cotidianamente, medianamente, sem sobressaltos, sem náuseas,
enquanto ele segue e sempre deslocado não sabe o que fazer da
própria existência. Ele se deixa a observar e criticar ironicamente
os transeuntes, com suas vestes e faces, suas poses e hierarquias,
descrente da ordem social que não passa de aparência e inércia.
“Ela, a multidão, era mais
misturada do que pela manhã. Parecia que todos aqueles homens não
tivessem mais a força de sustentar esta bela hierarquia social, a
qual, antes do almoço, eles eram tão orgulhosos. Os comerciantes e
os burocratas andavam lado a lado; eles se encostavam, mesmo empurrar
e deslocar-se por pequenos empregados de ares pobres. As
aristocracias, as elites, os grupos profissionais se fundiam nessa
multidão morna. Restavam apenas homens quase solitários, que não
representavam mais.” (“Elle était plus mêlée que le matin.
Il semblait que tous ces hommes n'eussent plus la force de soutenir
cette belle hiérarchie sociale dont, avant déjeuner, ils étaient
si fiers. Les négociants et les fonctionnaires marchaient côte à
côte; ils se laissaient coudoyer, heurter même et déplacer par de
petits employés à la mine pauvre. Les aristocraties, les élites,
les groupements professionnels avaient fondu dans cette foule tiède.
Il restait des hommes presque seuls, qui ne représentaient plus.”
p. 78)
E
Roquetin sempre deslocado, “Eu andava com passos de lobo, furtivo,
nem sabia o que fazer com meu corpo duro e fresco, em meio a esta
multidão trágica que repousava.” (“Je marchais à pas de
loup, je ne savais que faire de mon corps dur et frais, au millieu de
cette foule tragique qui se reposait.” p. 80) e suas meditações
transitam entre a ironia e o tratado sociológico, enquanto ele se
indaga, no seu embaçado humanismo, “Eu me perguntei, por um
instante. Se eu não amaria os homens.” (“Je me demandai, un
instant, si je n'allais pas aimer les hommes.” p. 81) pensa o
angustiado Roquetin ao ver as multidões na avenida à beira-mar,
enquanto se sente solitário meio ao coletivo, que tem identidade e
estilo, enquanto ele indaga sobre tudo e sobre si-mesmo. Os outros
têm conforto na conformidade, no viver grupal, ele nada tem. A
conformidade gera comodidade, a vida de rebanho, sem ideias próprias,
sem o peso da responsabilidade. “As ideias gerais são mais
cômodas” (“Les idées générales c'est plus flatteur.”
p. 102)
O
escritor de diário se descreve, em sua condição solitária, de
deslocado e desapegado das honras sociais, que todos buscam
avidamente, para agregarem às suas identidades. Profissionais,
autoridades, sacerdotes, todos esperam aplausos e honrarias. Tudo
para o belo edifício social. Enquanto a Roquetin, é um homem sem
rumos, talvez um anti-herói,
Sou sozinho, a maioria das pessoas
adentram os seus lares, onde leem jornais e ouvem a rádio TSF. O
domingo que finda tem deixado nelas um gosto de cinzas e o pensamento
delas se volta para a segunda-feira. Mas não há para mim nem
segunda-feira, nem domingo: existem os dias que se sucedem em
desordem, e mais, de súbito, clarões como este.
Nada tem mudado e no entanto tudo
existe de uma outra forma. Não posso descrever; é como a Náusea e
no entanto é bem o contrário: enfim uma aventura me ocorre e quando
eu me pergunto, eu vejo que me ocorre que sou eu e que estou aqui;
sou eu que fendo a noite, estou contente como um herói de
romance.
(“Je suis seul, la plupart des
gens sont rentrés dans leurs foyers, ils lisent le journal du soir
em écoutant la T. S. F. Le dimanche qui finit leur a laissé un goût
de cendre et déjà leur pensée se torne vers le lundi . Mais il n'y
a pour moi ni lundi ni dimanche: il y a des jours qui se poussent en
désordre, et puis, tout d'un coup, des éclairs comme celui-ci.
Rien n'a changé et pourtant tout
existe d'une autre façon. Je ne peux pas décrire; c'est comme la
Nausée et pourtant c'est juste le contraire: enfin une aventure
m'arrive et quand je m'interroge, je vois qu'il
m'arrive que je suis moi et que je suis ici; c'est moi qui
fends la nuit, je suis heureux comme un héros de roman.” p.
82)
É
atordoante, para o narrador do diário, e para nós, os leitores
desprevenidos, a extrema noção de si-mesmo e do que está ao redor,
sincronicamente no mundo, o ser pensante no contexto do existir, em
algum lugar em relação a todos os lugares, com sua vida disposta em
paralelo com outras tantas vidas,
Sigo adiante. O vento traz até mim um
grito de sirene. Estou só, mas eu marcho como uma tropa que adentra
uma cidade. Existem, neste instante, navios ressonantes de música
sobre o mar; as luzes se acendem em todas as cidades da Europa; os
comunistas e os nazistas atiram uns nos outros nas ruas de Berlim, os
desempregados perambulam pelas ruas de Nova York, as mulheres, diante
de suas penteadeiras, num quarto morno, aplicam rímel nos cílios. E
eu estou aqui, nesta rua deserta, e cada disparo de uma janela de
Neukölln, cada soluço sangrado dos feridos que são transportados,
cada gesto preciso e modesto das mulheres que se enfeitam
correspondem a cada um de meus passos, a cada pulsar de meu coração.
(“Je repars. Le vent m'apporte le cri d'une sirène. Je suis
tout seul, mais je marche comme une troupe qui descend sur une ville.
Il y a , en cet instant, des navires qui resonnent de musique sur la
mer; des lumières s'allument dans toutes les villes d'Europe; des
communistes et des nazis font le coup de feu dans les rues de Berlin,
des chômeurs battent le pavé de New York, des femmes, devant leurs
coiffeuses, dans une chambre chaude, se mettent du rimmel sur les
cils. Et moi je suis là, dans cette rue désert, et chaque coup de
feu qui part d'une fenêtre de Neukölln, chaque hoquet sanglant des
blessés qu'on emporte, chaque geste précis et menu des femmes qui
se parent répond à chacun de mes pas, à chaque battement de mon
coeur.” p. 83)
fonte:
SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris, Gallimard, 1938.
continua
…
jun/13
Leonardo
de Magalhaens
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